Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21136/23.4T8LSB.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
PETIÇÃO INICIAL
INVIABILIDADE
FUNÇÃO JURISDICIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Em regra, não há lugar à audiência prévia do autor ou requerente da ação ou procedimento em momento prévio ao despacho de indeferimento liminar.
II – Se na petição inicial indeferida liminarmente não foi alegada a existência de assédio em fundamento do pedido de reintegração formulado, não é lícito aos autores virem alegar na apelação que foram vítimas de assédio e pretender fundar aquele pedido em nova causa de pedir.
III – É de considerar que se formou caso julgado sobre a questão da inviabilidade do pedido de reintegração formulado pelos AA. com fundamento na alegada alteração das circunstâncias e na violação do princípio da igualdade, se os mesmos não se insurgiram na apelação contra o juízo da 1.ª instância no sentido de que a alegação da petição inicial não consubstancia qualquer alteração de todas as circunstâncias, nem refutam também na apelação o juízo da 1.ª instância quanto à manifesta inviabilidade do pedido formulado de condenação da R. na sua reintegração com fundamento no princípio da igualdade, atenta a diversidade da sua situação jurídica relativamente aos trabalhadores cuja igualdade de tratamento reclamam.
IV – Não se enquadra na função jurisdicional chamar as partes de um possível litígio para mediar uma eventual negociação entre ambas, nem pode ser instaurada uma acção, declarativa ou executiva, com tal desiderato.
V – Se o quadro factual alegado na petição inicial não se subsume a qualquer uma das normas substantivas que prevê o direito do trabalhador que viu cessado o seu contrato de trabalho à reintegração, com o reassumir do contrato de trabalho cessado, é manifesta a inviabilidade do pedido de reintegração.
(sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

П
1. Relatório
1º AA
2º BB
3º CC
4º DD
5º EE
6º FF
7º GG
8º HH
9º II
10º JJ
11º KK
12º LL
intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra
XX, S.A.
pedindo que a Ré seja “condenada a reintegrar os AA, sem prejuízo da categoria, remuneração, antiguidade e posto de trabalho que detinham na data do despedimento coletivo; condenando-se ainda Ré no pagamento, a titulo de sanção pecuniária compulsória, na quantia diária, por cada AA, por cada dia, a contar da citação em que a Ré se abstenha de, por qualquer forma, convocar, por escrito, cada AA para retomar o posto de trabalho”.
Alegaram em fundamento da sua pretensão o seguinte:
“1º - Todos os AA foram admitidos ao serviço da Ré em 1995 (…).
2º - Em Abril de 2021, todos os representados receberam, inicialmente emails e depois cartas, a comunicar a intenção de inclusão num processo de despedimento coletivo.
3º - Foi invocada a situação de crise empresarial realçando-se as consequência da Pandemia do COVID 19 (…); tendo ocorrido o Lay Off que impôs que estivessem completamente desligados da Ré, sem qualquer acesso a informações, tal como Doc 1 que se junta).
(…)
5º - Foram abrangidos mais de 100 trabalhadores, tal como Doc. 2 que se junta.
6º - Seguiram-se várias reuniões com os recursos humanos e com as chefia imediatas e inexplicavelmente quando ainda tinham acesso ao Portal recebiam informação a comunicarem a disponibilidade para prestarem serviço (…), todavia quando se apresentavam era-lhes transmitido que tal disponibilidade já não existia, tal como Doc. 3 que se junta.
7º - Com registo do dia (…) de 2021, tal como Doc. 4 que se junta todos os AA receberam a decisão de despedimento coletivo.
8º - Nesse âmbito alguns trabalhadores abrangidos impugnaram o despedimento coletivo e na pendência dos processos lograram ser reintegrados, sem que tivesse ocorrido audiência de julgamento através de transações judiciais tal como sucedeu no processo….
9º - Outros lograram ser reintegrados através da procedência da ação de impugnação de despedimento.
10º - Mesmo aqueles colegas abrangidos e que foram objeto de despejo em 31 de outubro de 2021 lograram ser reintegrados por decisão expressa do CA da XX, S.A. (…).
11º - No decurso das reintegrações todos os Representados ficaram a saber que afinal as circunstâncias que terão determinado o despedimento coletivo deixaram de se verificar (…).
12º - A Ré para dar resposta (…) teve de reintegrar trabalhadores, o que continua a diligenciar; teve de abrir concurso de admissão do exterior com experiência na função (…) encontrando-se em fase avançada mais um novo concurso de admissão do exterior designadamente com a reintegração de todos os que foram “transferidos” para a ZZ e é neste contexto que todos os representados pretendem ser reintegrados na Ré, com manutenção da categoria, remuneração, antiguidade e posto de trabalho.
13º - Formulam tal pedido com base na alegação da igualdade de tratamento (…) a observação de tal principio com nivelamento por cima, ou seja, terem o mesmo tratamento que os colegas que têm estado a ser reintegrados.
14º - Dir-se-á que todos os AA receberam uma quantia monetária a título de compensação de natureza global, nada mais tendo ou podendo exigir da Ré. Todavia, os colegas que sem precedência de julgamento ou até do trânsito em julgado foram reintegrados receberam montantes indemnizatórios de valor equivalente ao dos ora representado ou até mais do que o dobro.
15º - Assim, o recebimento da indemnização não pode ser obstáculo ao deferimento do pedido de reintegração em condições de igualdade.
16º - Dir-se-á ainda que enquanto determinados trabalhadores da mesma categoria continuaram a prestar serviço, a dar a sua força de trabalho intelectual e manual à Ré, o ora AA deixaram de dar tal força à Ré. Sucede que os AA sempre quiseram trabalhar e não lhes foi permitido, podendo até sustentar-se que “uns se sacrificaram pelos outros”.
17º - Sucede que para o desempenho das funções das categorias em causa é indispensável o recurso a pessoal com experiência e atenta a quantidade necessária e celeridade a Ré pretende reintegrar trabalhadores que já demonstraram no âmbito dessa categoria estarem dotados da experiência e aptidão necessárias, evitando assim o recurso a trabalhadores que ainda têm que frequentar formação teórica e prática que demora alguns meses.
18º - A única questão que se coloca e que deverá merecer do Tribunal uma tomada de decisão é a que se prende com o facto de ter decorrido mais de um ano após a extinção da relação jurídico laboral, sendo certo que os colegas que impugnaram o despedimento coletivo também não obtiveram a interrupção do referido prazo através de providência cautelar ou notificação judicial avulsa e tendo ocorrido a reintegração por força da homologação da transação, ou seja, nunca tendo chegado a ocorrer julgamento, nem decisão através do saneador é manifesto que a Ré prescindiu do prazo de prescrição dos créditos laborais quanto aos trabalhadores entretanto reintegrados.
19º - Tudo se resume à igualdade de tratamento pois que a Ré tem poderes dispositivos para prescindir do prazo de prescrição, sendo certo que a prescrição ao contrário da caducidade tem de ser invocada.
20º - Por mera cautela ainda se poderá adiantar que os AA receberam subsídio de desemprego. Ora, o mesmo sucedeu com os reintegrados que nunca chegaram a julgamento.
21º - No que tem a haver com a declaração de que se encontram integralmente pagos e que no fundo se traduz numa renúncia antecipada a intentar qualquer ação contra a XX, S.A. importa reiterar que só aceitaram rescindir pelo facto de estarem impedidos de trabalhar e que todos os AA se sentiram forçados a rescindir, pois que o que mais desejavam era continuar a trabalhar para a XX, S.A., apesar dos cortes, e uma vez que se alteraram todas as circunstâncias passou a ser legitima a interposição da presente ação.
22º - A maior parte das reintegrações dos trabalhadores objeto de despedimento coletivo tiveram lugar no âmbito de negociações levadas a cabo com vários sindicatos, passado assim a ser reforçado o interesse na demanda.”
Debruçando-se sobre esta petição inicial, o Mmo. Juiz a quo emitiu despacho de indeferimento liminar, que fundamentou nas seguintes considerações:
«[…]
Perante a factualidade alegada na petição inicial e acima integralmente transcrita, impõe-se concluir que os autores não detêm na sua esfera jurídica, à data de interposição da acção, qualquer direito a reclamar da ré a sua reintegração na categoria profissional (…) que detinham na data em que rescindiram com a mesma os contratos de trabalho que alegadamente haviam celebrado em 1995.
Com efeito, a alegação dos autores, sob o art.º 21º da petição, de que “só aceitaram rescindir pelo facto de estarem impedidos de trabalhar e que todos os AA se sentiram forçados a rescindir, pois que o que mais desejavam era continuar a trabalhar para a XX, S.A., apesar dos cortes”, não consubstancia qualquer alteração de todas as circunstâncias, nem fez com que passasse a ser legítima a interposição da presente acção, contrariamente ao que aí alegam.
Na verdade, o facto de, posteriormente à ocorrência do despedimento colectivo, a ré ter chegado a acordo judicial ou extrajudicial com trabalhadores abrangidos pelo mesmo e que o impugnaram judicialmente não afecta a validade dos acordos de rescisão do contrato de trabalho que os autores celebraram com a ré e que invocam nesta acção.
Assim, não detêm os autores direito a tratamento igual a outros trabalhadores que a ré alegadamente veio a reintegrar na sequência da impugnação do despedimento colectivo, uma vez que os autores, como alegam, não impugnaram o despedimento colectivo, sendo diferente a sua situação jurídica relativamente aos trabalhadores cuja igualdade de tratamento reclamam.
Além disso, também não confere aos autores o direito à sua reintegração o facto invocado de que para o desempenho das funções das categorias em causa é indispensável o recurso a pessoal com experiência e atenta a quantidade necessária e celeridade a Ré pretende reintegrar trabalhadores que já demonstraram no âmbito dessa categoria estarem dotados da experiencia e aptidão necessárias, evitando assim o recurso a trabalhadores que ainda têm que frequentar formação teórica e prática que demora alguns meses, uma vez que só á ré cabe a escolha dos trabalhadores a contratar.
Nesta conformidade, sem necessidade de outras considerações, a presente acção carece inteiramente de fundamento legal, revelando-se manifestamente inviável quanto ao direito invocado e ao pedido formulado.
Consequentemente, sendo a pretensão manifestamente improcedente, deverá a petição inicial ser indeferida, nos termos do disposto no art.º 590º, nº 1 do C. P. Civil, ex vi do art.º 1º, nº 2, al. a) do C. P. Trabalho, e art.º 54º, nº 1 do C. P. Trabalho.
III - Pelos fundamentos expostos, indefiro liminarmente a presente acção.
Custas pelos autores (art.º 527º do C. P. Civil).
Fixo o valor da causa em 24,000,00 € (art.º 297º do C. P. Civil), correspondentes a 2.000,00 € por cada um dos autores, tal como por eles indicado na petição inicial.
[…]»
1.2. Os AA. AA; BB; CC; DD; EE;FF; GG; II; JJ e LL, inconformados, interpuseram recurso desta decisão e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1ª O douto despacho afigura-se ilegal pois que não respeitando a deficiências que poderiam conduzir à apresentação de nova p.i. se limitou a julgar o pedido totalmente improcedente sem sequer obter da XX, S.A. a confirmação de que tem estado a readmitir trabalhadores da mesma categoria dos AA, alguns que tinham sido objeto de despedimento coletivo, sem julgamento; outros, objeto de despedimento com justa, pelas violações mais diversas e estando os AA disponíveis para acordar a devolução de partes da indemnização a XX, S.A. decidiu não as reintegrar só porque não. O douto despacho ao violar o principio do contraditório com uma decisão surpresa é nulo.
2ª O art.3 nº3 do CPC consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efetivamente às partes a sua participação efetiva no desenvolvimento de todo o litigio, designando-se de “contraditório dinâmico“.
3ª O indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um despacho pré-liminar de audição (cf., por ex., decisões singulares da RC de 5/12/2017 (proc. nº 6097/17) e de 29/1/2018 (proc. nº3550/17), disponíveis em www dgsi.pt).
4º A tutela das demais violações da integridadefísica emoral, como éo caso, entre outras, situações, do “assédio moral não discriminatório”, é assegurada com base no artigo 18.º e das normas atinentes aos deveres contratuais das partes e às consequências do seu incumprimento artigos. 120.º, a) e c), e 363.º,, conjugadas com as disposições gerais da lei civil.
5ª Mesmo que se possa retirar do artigo 29º do Código do Trabalho que o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos pela norma – respeito pela integridade psíquica e moral do trabalhador.
6º Nos termos dos factos assentes sob os números 1, 2, 3, 4, 6 e 21 todo os AA foram vitimas de assédio moral, não tendo assinado as rescisões dos contratos de trabalho de forma livre e esclarecida o que carece naturalmente de ser demonstrado em audiência de discussão e julgamento sendo que tal prova deverá conduzir à declaração de ilicitude das rescisões com inerentes consequências em sede de reintegração.
7º Deste modo e com todo o respeito por opinião diversa, afigura-se-nos que, perante a matéria de facto alegada pelos AA o Mmo Juiz do Tribunal a quo melhor teria andando se, na ausência de qualquer outra razão que a tal obstasse, tivesse feito prosseguir os presentes autos no âmbito da sua normal tramitação.
8ª Nos termos dos factos assentes sob o números: 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16 , 19 e 22 é manifesto que ao abrigo da igualdade de tratamento exigível (...) se impõe um nivelamento por cima o que só por si deveria fazer com que a XX, S.A. fosse chamada ao processo para dizer se é verdade ou não e sendo verdade se aceita ou não de volta os AA nos termos exposto.
9ª Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei.
10ª Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual’. – art. 13.º.
11ª Em caso de invocação de qualquer prática discriminatória no acesso ao trabalho, à formação profissional e nas condições de trabalho, nomeadamente por motivo de licença por maternidade, dispensa para consultas pré-natais, protecção da segurança e saúde e de despedimento de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, licença parental ou faltas para assistência a menores, aplica-se o regime previsto no n.º3 do art. 23.º do Código do Trabalho em matéria de ónus da prova’.
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente por provado e por via dele deve ser admitida a p.i., ordenada a citação da Ré, prosseguindo-se os ulteriores termos.”
1.3. Citada a para os termos da acção e do recurso (artigo 641.º, n.º 7, do Código de Processo Civil), não consta que a mesma tenha apresentado contra-alegações.
1.4. O recurso foi admitido, com efeito devolutivo.
1.5. Autuada a presente apelação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido de que não se verifica ofensa do princípio do contraditório e que o despacho deve ser substituído por Acórdão que determine a notificação dos AA para procederem à apresentação de nova petição inicial, completando as insuficiências que a anterior evidencia.
Não foi apresentada resposta a este Parecer.
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Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal são as seguintes:
1.ª – da violação do princípio do contraditório;
2.ª – da manifesta improcedência do pedido formulado.
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3. Fundamentação de facto
São relevantes para a decisão da apelação os factos e ocorrências processuais que emergem do relatório antecedente.
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4. Fundamentação de direito
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4.1. Da nulidade do despacho recorrido por violação do contraditório
No início das suas alegações, os recorrentes afirmam que o despacho que decretou o indeferimento da petição inicial é nulo por violar o princípio do contraditório com uma decisão surpresa.
O tribunal recorrido proferiu o despacho de indeferimento liminar que é aqui objeto de impugnação a coberto do regime jurídico do artigo 54.º, número 1 do Código de Processo do Trabalho, nos termos do qual “[r]ecebida a petição, se o juiz nela verificar deficiências ou obscuridades, deve convidar o autor a completá-la ou esclarecê-la, sem prejuízo do seu indeferimento nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 590.º do Código de Processo Civil”.
De acordo com este n.º 1 do artigo 590.º do CPC, “[n]os casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.”
O princípio do contraditório integra-se no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Tal como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/98, “o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 nº1, da Constituição1.
No âmbito da lei ordinária, o artigo 3.º, nº 3, do Código de Processo Civil dispõe que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O processo civil tem estrutura dialética ou polémica, pois que assume a natureza de um debate ou discussão entre as partes e estas devem ser tratadas com igualdade. Para além do princípio do dispositivo ou da livre iniciativa e do ditame da livre apreciação das provas pelo julgador, o princípio do contraditório e o da igualdade das partes (igualdade de armas) constituem princípios estruturantes do processo civil. Na palavra do Acórdão do Tribunal Constitucional n° 86/88, reiterado em jurisprudência posterior2, o princípio do contraditório (audiatur et altera pars), “exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de deduzir as suas razões (de facto e de direito), de oferecer as suas provas, de controlar as provas do adversário» e de discretear sobre o valor e resultados de umas e outras
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa enfatizam que “[a]o princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham. Posto que a necessidade de observância do contraditório seja replicada em diversos preceitos avulsos, tal não diminui o relevo da sua enunciação como princípio geral que se impõe em todas as fases processuais, especialmente nos articulados e na apresentação e produção de meios de prova (art.º 415.º) […] Na formulação do n.º 3 foram adotados conceitos indeterminados ou cláusulas gerais cuja maleabilidade permite assegurar a instrumentalidade do processo face ao direito substantivo sem, no entanto, dispensar critérios rigorosos e convincentes relativamente à sua delimitação a partir da análise ou resolução de casos concretos. Cabe ao juiz um papel fundamental na compatibilização dos diversos interesses que no processo se interligam”.3
Relativamente à questão de saber se igualmente se exige a audição prévia da parte no âmbito do despacho de indeferimento liminar, a jurisprudência não tem sido uniforme, embora a posição francamente maioritária seja no sentido de que não é necessária a prolação de um despacho pré-liminar de audição em caso de indeferimento liminar da petição inicial4.
Propendemos a acolher esta tese maioritária, ainda que admitindo que, excepcionalmente, se possa justificar o exercício do princípio do contraditório previamente à prolação de despachos judiciais de indeferimento liminar, quando os motivos ou problemáticas que os justificam não resultem dos elementos constantes do articulado inicial e dos documentos que o complementam ou quando, sendo de conhecimento oficioso, sejam inesperadas e imprevisíveis5.
Mas, como regra geral, entendemos que não há lugar à audiência prévia do autor ou requerente da ação ou procedimento em momento prévio ao despacho de indeferimento liminar, com base nos argumentos que de forma sucinta enunciamos:
- através da apresentação em juízo da petição inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art. 3.º, n.º1, do CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, só então nascendo a designada estrutura dialéctica do processo;
- nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa [artigos 629.º, nº 3, alínea c) e 641 n.º 7, do Código de Processo Civil], pelo que, permitindo-se ao autor o contraditório diferido e em situação de igualdade com o réu, é desnecessária a audição prévia do autor;
- a imposição de um despacho prévio é, em si mesma, contraditória: se o despacho é de rejeição “liminar”, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente6;
- não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa” na prolação de despacho de indeferimento liminar que se funde nas causas de rejeição taxativamente previstas no artigo 590.º do CPC; se é a própria lei que as prevê expressamente como causa específica de rejeição e, por isso, são insupríveis, tal torna inútil qualquer instrução e discussão posterior, bem como desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento7.
Sendo obrigatória a abertura de conclusão ao juiz em todas as ações declarativas laborais com processo comum, como é a dos autos, a fim de ser proferido despacho judicial de natureza liminar (cfr. os artigos 54.º do CPT e 590.º do CPC), o autor deve conceber a possibilidade da prolação de uma decisão de marcação de data para a realização de audiência de partes (n.º 2, do artigo 54.º do CPT) e a possibilidade de juiz o convidar a aperfeiçoar a petição inicial (artigo 54.º, n.º 1, 1.ª parte), a par da possibilidade de o juiz indeferir desde logo a petição inicial por falta de pressupostos processuais insupríveis, por ineptidão da petição inicial ou pela óbvia improcedência do pedido ou pedidos, com aquela causa ou causas de pedir específicas, por carência evidente de base legal mínima para a sua procedência (artigo 54.º, n.º 1, 2.ª parte).
No caso vertente, nada impunha, a nosso ver, a prévia notificação dos autores para se pronunciarem sobre um “projecto” de despacho de indeferimento liminar, quer porque esta era uma possibilidade real, perante a análise liminar do juiz, com que os AA. deviam contar, quer porque o despacho recorrido não se funda em nada que seja novo e surpreendente ou que extrapole o alegado na petição inicial que se acha elaborada nos autos. Pelo contrário, fundamentou-se na alegação que os autores dela fizeram constar e no pedido que nela foi formulado, o que era conhecido dos recorrentes, vindo a concluir pela sua manifesta inviabilidade.
Não houve pois, por parte do Mmo. Juiz a quo, qualquer violação do princípio do contraditório com a prolação do despacho de indeferimento liminar sub judice, não procedendo a pretensão dos recorrentes de que se declare a respectiva nulidade.
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4.2. Do mérito do despacho
4.2.1. Ao longo das alegações, e das concussões que as rematam, os recorrentes mostram o seu inconformismo com a decisão sob apelação esgrimindo argumentação no sentido de ser admitida a petição inicial e ordenada a citação da R.
Em síntese invocam que a pretensão formulada na petição inicial de ser condenada a R. na sua reintegração é consequência da alegação de que todos foram “vítimas de assédio moral, não tendo assinado as rescisões dos contratos de trabalho de forma livre e esclarecida, o que deverá conduzir à declaração de ilicitude das rescisões com inerentes consequências em sede de reintegração” e que, ao abrigo da igualdade de tratamento, a decisão recorrida não devia “julgar o pedido totalmente improcedente sem sequer obter da XX, S.A. a confirmação de que tem estado a readmitir trabalhadores da mesma categoria dos AA, alguns que tinham sido objeto de despedimento coletivo, sem julgamento; outros, objeto de despedimento com justa, pelas violações mais diversas e estando os AA disponíveis para acordar a devolução de partes da indemnização”.
4.2.2. Os casos de indeferimento liminar – que no processo comum laboral encontram o seu fundamento nas disposições conjugadas dos já citados artigos 54.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem prever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado terminará com uma decisão de mérito ou que é inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor8.
Ensina o Professor Alberto dos Reis que a previsão do despacho de indeferimento liminar constitui um dos corolários do princípio da economia processual, com vista "a evitar o dispêndio inútil da atividade judicial" em casos em que, “ou por motivos de forma, ou por motivos de fundo, a pretensão do autor está irremediavelmente comprometida, está votada ao insucesso"9. Especificamente nas situações de indeferimento por ser o pedido manifestamente improcedente, afirma este Professor que as mesmas apenas se justificam quando a improcedência da pretensão seja “tão evidente que se torna inútil qualquer instrução ou discussão posterior”, sendo o caso típico, o de a simples inspecção da petição inicial habilitar o juiz a emitir o juízo de que o autor não tem o direito que se arroga face ao que ali alega10.
No caso sub judice, analisada a petição inicial e vista a argumentação expressa na apelação, podemos adiantar que merece conformação a decisão da 1.ª instância que considerou manifestamente inviável o pedido formulado pelos apelantes de “reintegração dos AA, sem prejuízo da categoria, remuneração, antiguidade e posto de trabalho que detinham na data do despedimento coletivo”.
Senão vejamos.
4.2.3. Resulta da alegação constante da petição inicial que os AA. foram admitidos ao serviço da R. em 1995 com a categoria profissional de (…), mas que foram em Abril de 2021 sujeitos a um procedimento de despedimento colectivo que abrangeu mais de 100 trabalhadores (artigos 2.º a 7.º da petição inicial) e que aceitaram rescindir os seus contratos de trabalho por estarem impedidos de trabalhar e se sentirem forçados a rescindir por esse facto (artigo 21.º da petição inicial).
Dizem os AA. ser “legítima” a interposição da presente acção “uma vez que se alteraram todas as circunstâncias” que determinaram o despedimento colectivo e o tráfego aéreo é intenso (artigos 11.º e 21.º da petição inicial).
Alegam também que alguns trabalhadores abrangidos pelo despedimento colectivo o impugnaram e lograram ser reintegrados (através de transacções no decurso do processo, por procedência da acção, ou por decisão do CA) e que a R. abriu “concurso de admissão do exterior” para dar resposta (…), explicitando que formulam o pedido de reintegração com base na alegação de “igualdade de tratamento” com os trabalhadores que têm estado a ser reintegrados.
Antecipando a defesa da R., alegam ainda que o recebimento de uma indemnização “a título de compensação global nada mais tendo ou podendo exigir da Ré” não é obstáculo ao pedido de reintegração em condições de igualdade pois os outros reintegrados também receberam indemnizações (artigos 14.º e 15.º da petição inicial) e que, apesar de ter decorrido um ano após a extinção do contrato de trabalho, deve entender-se que a ré prescindiu deste prazo de prescrição, como aconteceu com os trabalhadores que impugnaram o despedimento colectivo e foram reintegrados por força de homologação de transacção, podendo a R. dispor do prazo de prescrição que tem que ser invocada, ao contrário da caducidade (artigos 18.º e 19.º da petição inicial).
A decisão sob recurso, analisando a factualidade que os ora recorrentes alegam na petição inicial, concluiu que os mesmos não detinham na sua esfera jurídica, qualquer direito a reclamar a sua “reintegração” ao serviço da R. na categoria profissional (…) que detinham quando cessaram os contratos de trabalho que alegadamente haviam celebrado em 1995.
4.2.4. Deve começar por se dizer que os recorrentes não impugnaram nesta acção instaurada em 8 de Setembro de 2023 o despedimento colectivo cuja decisão lhes foi comunicada (artigo 7.º da petição inicial) e que, tanto quanto se infere da sua alegação, não chegou a produzir efeitos porque, entretanto “aceitaram rescindir” os contratos de trabalho que celebraram com a ré (artigo 21.º da petição inicial).
Caso o despedimento colectivo houvesse produzido efeitos e os recorrentes o pretendessem impugnar, se lhes impunha a instauração da acção especial de impugnação de despedimento colectivo ou a intervenção na acção adrede instaurada (cfr. os artigos 156.º e ss. do Código de Processo do Trabalho), no prazo de 6 meses a contar da data da cessação do contrato (artigo 388.º do Código do Trabalho), precedida, ou não, de procedimento cautelar de suspensão de despedimento (artigos 33.º-A e ss. do Código de Processo do Trabalho), este a instaurar no prazo de 5 dias úteis a contar da data da recepção da comunicação de despedimento (artigo 386.º do Código do Trabalho). Prazos que são e caducidade.
Na hipótese de ilicitude do despedimento colectivo por verificado algum dos fundamentos gerais de ilicitude do despedimento (artigo 381.º do Código do Trabalho) ou algum dos fundamentos específicos de ilicitude do despedimento colectivo (artigo 383.º do Código do Trabalho), a lei prevê efectivamente o direito de reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento ou empresa, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, nos termos do preceituado no artigo 389.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho.
Contudo, pelo que se infere da petição inicial, os recorrentes não fundam o seu pedido de reintegração na ilicitude de um despedimento colectivo, que não terá chegado a produzir os seus efeitos extintivos.
Fundam tal pedido, sim, em dois vectores essenciais:
- em primeiro lugar, numa alegada “alteração das circunstâncias” (… deixaram de se verificar as circunstâncias que terão determinado o despedimento colectivo, tendo a ré diligenciado por reintegrar trabalhadores e aberto concurso de admissão); segundo aduzem, só “aceitaram rescindir” pelo facto de estarem impedidos de trabalhar e, “uma vez que se alteraram todas as circunstâncias, passou a ser legítima a interposição da presente acção”;
- em segundo lugar, numa alegada violação do princípio da igualdade face aos trabalhadores que foram objecto do despedimento colectivo e foram reintegrados, a maior parte deles no âmbito de negociações levadas a cabo com os sindicatos, também neste fundamento alicerçando a pedida reintegração ao serviço da R.
4.2.5. Nas alegações de recurso, os recorrentes começam por invocar que a pretensão formulada na petição inicial de ser condenada a R. na sua reintegração é consequência da alegação que dizem ter feito nos artigos 1, 2, 3, 4, 6 e 21 daquele articulado, de que todos foram “vítimas de assédio moral, não tendo assinado as rescisões dos contratos de trabalho de forma livre e esclarecida, o que deverá conduzir à declaração de ilicitude das rescisões com inerentes consequências em sede de reintegração” (conclusões 4.ª a 6.ª).
Ora na sua petição inicial os recorrentes não invocam ter sido vítimas de assédio, nem tão pouco nela alegaram factos susceptíveis de consubstanciar tal figura jurídica prevista no artigo 29.º, n.º 2, do Código do Trabalho como “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.
Por este motivo, a decisão sob recurso não se pronunciou sobre um tal putativo fundamento do pedido de reintegração formulado, nem sobre a viabilidade deste pedido à luz daquele fundamento – nem tinha que o fazer, pois que nele não assentaram os AA. o pedido de reintegração formulado na presente acção –, pelo que deve perspectivar-se o mesmo como uma questão nova, sobre a qual não poderá este Tribunal da Relação pronunciar-se11.
Seja como for, deve dizer-se que é patente não ser a presente apelação a sede própria para os recorrentes virem alegar uma nova causa de pedir (eventualmente pretendendo a anulação da eventual denúncia ou revogação12 do contrato de trabalho por falta ou vício da vontade nos termos da lei civil - arts. 240.º e ss. do Código Civil) em fundamento do pedido de reintegração que formularam quando deram início à presente acção ou, mesmo, para dizer que os factos alegados na petição inicial a configuram, quando tal não acontece, nem nunca antes o defenderam.
Acresce que, também em abstracto – pois não foram alegados factos concretos que o pudessem revelar a existência do apelidado assédio –, a prática de assédio pode fundar um direito indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais nos termos gerais de direito (artigos 29.º, n.º 4 e 28.º do Código do Trabalho), mas não o direito à reintegração que os recorrentes pretendem fazer valer.
Reconduzindo-nos à alegação que os AA. fizeram constar do articulado inicial, verificamos que, quanto à invocada “alteração das circunstâncias” – que, quando muito, poderia desencadear a aplicação do regime preisto no artigo 437.º do Código Civil –, os recorrentes não refutam a afirmação do tribunal a quo de que a alegação que os mesmos fizeram na petição inicial “não consubstancia qualquer alteração de todas as circunstâncias, nem fez com que passasse a ser legítima a interposição da presente acção, contrariamente ao que aí alegam”, limitando-se a afirmar “ex novo” na apelação que o por si alegado integra a prática de assédio.
É, pois, de considerar que os recorrentes não impugnaram a decisão da 1.ª instância no que diz respeito à alegada alteração das circunstâncias como fundamento do pedido de reintegração, sendo certo que em parte alguma do corpo das alegações e das conclusões se encontra impugnado este fundamento da sentença ou a ele é feita qualquer referência.
Nos termos do preceituado no artigo 635.º, n.º 5 do Código de Processo Civil “[o]s efeitos do julgado na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo”.
Os apelantes não se insurgiram contra o segmento da decisão que afirmou não consubstanciar a alegação da petição inicial qualquer alteração de todas as circunstâncias, e que tal alegação não faz “com que passasse a ser legítima a interposição da presente acção, contrariamente ao que aí alegam”.
Assim, tendo em consideração a posição claramente expressa na decisão sob recurso quanto à questão da “alteração das circunstâncias” alegada na petição inicial – decisão que se expressou no sentido da inviabilidade do pedido formulado e do direito invocado a esse propósito –, é de considerar que se formou caso julgado sobre a questão da inviabilidade do pedido de reintegração formulado pelos AA. com fundamento na alegada alteração das circunstâncias. E, por isso, salvo o devido respeito, não pode este Tribunal da Relação questionar a decisão constante da sentença neste específico aspecto.
4.2.6. Resta a alegação relacionada com a invocada igualdade de tratamento.
A este propósito, os AA. alegam na petição inicial que no âmbito do despedimento colectivo alguns trabalhadores abrangidos o impugnaram e na pendência dos processos lograram ser reintegrados, sem que tivesse ocorrido audiência de julgamento através de transações judiciais, outros lograram ser reintegrados através da procedência da ação de impugnação de despedimento ou por decisão do Conselho de Administração e que a R. abriu concurso de admissão do exterior com experiência na função de (…) encontrando-se em fase avançada mais um novo concurso de admissão do exterior designadamente com a reintegração de todos os que foram “transferidos” para a ZZ. Explicitam que é neste contexto que todos os representados pretendem ser reintegrados na Ré, com manutenção da categoria, remuneração, antiguidade e posto de trabalho, esclarecendo que formulam o seu pedido com base na alegação da igualdade de tratamento (…), ou seja, terem o mesmo tratamento que os colegas que têm estado a ser reintegrados.
O despacho sob censura afirmou a este propósito que “não detêm os autores direito a tratamento igual a outros trabalhadores que a ré alegadamente veio a reintegrar na sequência da impugnação do despedimento colectivo, uma vez que os autores, como alegam, não impugnaram o despedimento colectivo, sendo diferente a sua situação jurídica relativamente aos trabalhadores cuja igualdade de tratamento reclamam. Além disso, também não confere aos autores o direito à sua reintegração”.
Ora, quanto a estes demais factos que os recorrentes alegam na sua petição inicial relacionados com a violação do princípio da igualdade de tratamento, deduz-se da apelação ser a sua pretensão, afinal, a de que a que “a XX, S.A. fosse chamada ao processo para dizer se é verdade ou não e sendo verdade se aceita ou não de volta os AA nos termos exposto[s]”, censurando a decisão recorrida por “julgar o pedido totalmente improcedente sem sequer obter da XX, S.A. a confirmação de que tem estado a readmitir trabalhadores da mesma categoria dos AA, alguns que tinham sido objeto de despedimento coletivo, sem julgamento; outros, objeto de despedimento com justa, pelas violações mais diversas e estando os AA disponíveis para acordar a devolução de partes da indemnização” (conclusões 1.ª e 8.ª).
Também aqui os recorrentes não refutam na apelação o juízo da 1.ª instância quanto à manifesta inviabilidade do pedido formulado de condenação da R. na sua reintegração com fundamento no princípio da igualdade, atenta a diversidade da sua situação jurídica relativamente aos trabalhadores cuja igualdade de tratamento reclamam.
Denotam, até, que o que simplesmente pretendiam é que o tribunal a quo chamasse a R. ao processo para dela obter “a confirmação de que tem estado a readmitir trabalhadores da mesma categoria dos AA. (…) estando os AA disponíveis para acordar a devolução de partes da indemnização” ou que a R. fosse chamada ao processo “para dizer se é verdade ou não e sendo verdade se aceita ou não de volta os AA (…)” - conclusões 1.ª e 8.ª.
Ora os tribunais judiciais são, nos termos da Constituição da República Portuguesa (artigo 202.º, n.º 1) e da lei [artigo 1º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], “órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”.
A função jurisdicional traduz-se, em termos gerais, “na decisão tendente à resolução de questões fáctico-jurídicas concernentes à violação do direito objectivo ou à ofensa de um direito subjectivo em termos de procurar restabelecer a paz jurídica posta em causa pela mencionada acção violadora ou ofensiva13.
Como é usual dizer-se, ao juiz cabe, com imparcialidade e independência, “ditar o direito”.
Se no âmbito do processo judicial, e, particularmente, do processo laboral, existem vários momentos em que o juiz tem também um papel conciliatório14, tal apenas se verifica no decurso de um iter procedimental que tem como objectivo, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar”.
Não se enquadra na função jurisdicional chamar as partes de um possível litígio para mediar uma eventual negociação entre ambas (cfr. os artigos 202.º da Constituição e 1.º da LOSJ), nem pode ser instaurada uma acção, declarativa ou executiva, com tal desiderato (cfr. os artigos 2.º e 10.º do Código de Processo Civil).
Pelo que, também quanto a este vector da argumentação dos recorrentes, não pode proceder a sua pretensão recursória.
4.2.7. Finalmente, deve dizer-se que não se infere da alegação de recurso que seja pretensão dos recorrentes a prolação de um despacho de aperfeiçoamento.
Em suma, no caso vertente não se trata de alegação fáctica insuficiente, ou carecida de concretização ou pormenorização que justificasse a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, dela não se inferindo que os recorrentes considerem haver algo no seu articulado inicial que pudesse ser aperfeiçoado.
Seja como for, tendo em consideração o que defende a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu douto Parecer, deve dizer-se muito sucintamente que, face aos fundamentos exarados na decisão sob recurso, na parte em que a mesma não foi questionada na apelação, a pretensão formulada de condenação da R. na reintegração dos recorrentes simplesmente não tem sustento nos factos alegados na petição inicial., não se subsumindo o quadro factual alegado a qualquer uma das normas substantivas que prevê o direito do trabalhador que viu cessado o seu contrato de trabalho à reintegração, com o reassumir do contrato de trabalho cessado.
Assim, uma vez que o que os AA. alegam não lhes permite alcançar a tutela jurisdicional almejada – a condenação da recorrida na reintegração dos recorrentes ao seu serviço, acrescida de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia em que a R. se abstenha de convocar cada A. para retomar o posto de trabalho – cabe confirmar o despacho recorrido quando considerou o pedido formulado na petição inicial manifestamente improcedente, o que constitui fundamento de indeferimento liminar nos termos do artigo 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 54.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo do Trabalho.
Não merece provimento a apelação.
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As custas do recurso deveriam ser suportadas pelos recorrentes, que nele ficaram vencidos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Não havendo encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), e não tendo a recorrida despesas com o presente recurso, em que não interveio (7.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), não há lugar a custas.
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5. Decisão
Em face do exposto:
5.1. julga-se improcedente a invocada nulidade;
5.2. nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão impugnada.
Não há lugar a custas.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, anexa-se o sumário do presente acórdão.
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Lisboa, 22 de Maio de 2021
Maria José Costa Pinto
Paula Penha
Paula Pott
_______________________________________________________
1. In Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998.
2. Designadamente no Acórdão nº 177/2000, DR, II série, de 27 de Outubro de 2000, no Acórdão n° 157/2008, no Acórdão n° 853/2014 e no Acórdão n.º 845/2023, in www.tribunalconstitucional.pt.
3. In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Coimbra, 2023, pp. 21-22.
4. No sentido de que é necessária a audição prévia, foram proferidas as decisões singulares da Relação de Coimbra de 2017.12.05 (proc. nº 6097/17) e de 2018.01.29 (proc. nº3550/17), in www dgsi.pt, citadas pelos recorrentes. Em sentido diverso, de desnecessidade de prévia audição da parte destinatária da decisão de indeferimento liminar, foram proferidos, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2008.11.04, Processo n.º 0826336, de 2019.03.08, Processo n.º 14727/17.4T8PRT-A.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2018.02.27, Processo n.º 5500/17.0T8CBR.C1, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 2018.06.28, Processo n.º 2621/17.3T8ENT.E1, e de 2019.04.11, Processo n.º 1501/17.7T8SLV.E1, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2021.05.11, Processo n.º 82020/19.9YIPRT.L1-7, de 2020.02.04, Processo n.º 959/13.8TBALQ-A.L1­7 e de 2017.09.27, Processo n.º 10. 847/15.8T8LSB-D.L1-4 (este em processo laboral e com o seguinte sumário: “em situação de indeferimento liminar parcial da petição inicial, formulada ao abrigo do artigo 54.º n.º 1 do CPT, por questão de conhecimento oficioso, o princípio do contraditório não obriga a que o Autor seja previamente ouvido sobre esse indeferimento”), e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2021.10.14, Processo n.º 32/14.1T8PVL-A.G1.S1.
5. Vide também neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2023.01.18, Processo 8095/21.7T8ALM.L1-4, que a ora relatora subscreveu como adjunta.
6. Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2015.02.24, processo n.º 116/14.6YLSB. Segundo se sintetizou no seu sumário, “[a] imposição de um despacho liminar prévio a um despacho liminar constitui uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar (cfr artigos 173 e 174º do EMJ), não faz qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de não admissão de recurso” e que “[n]estas circunstâncias não há qualquer decisão surpresa na prolação de um despacho liminar de rejeição por extemporaneidade na interposição de um recurso, posto que é a própria Lei a prevenir expressamente esse fundamento específico para tal rejeição”.
7. São elucidativos a este propósito os citados Acórdão da Relação de Coimbra de 2018.02.27, processo n.º 5500/17.0T8CBR.C1 e Acórdão da Relação do Porto de 2019.03.08, Processo n.º 14727/17.4T8PRT-A.P1.
8. Vide Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil”, I Volume, «I – Princípios Fundamentais 2 – Fase Inicial do Processo Declarativo», 2.ª Edição Revista e Ampliada, Coimbra, 2003, pp. 243 e ss.
9. In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, 1981, p. 373.
10. In ob. citada, p. 385.
11. Como decorre do disposto no artigo 627.º do Código de Processo Civil, e constitui jurisprudência uniforme, os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas, sim, a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso (vide, entre muitos outros, os Acórdãos do STJ de 2007.10.10, Processo n.º 3634/07-3.ª Secção, de 2008.12.04 Processo n.º 2507/08-3.ª Secção, de 2009.09.23, Processo n.º 5953/03.4TDLSB.S1-3.ª Secção, de 2016.02.08, Processo n. 207/15.6YRCBR.S1 - 3ª Secção e de 2023.07.11, Processo n.º Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, Processo 2837/19.8T8MTS.P1.S1, todos sumariados em www.stj.pt e o Prof. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 141).
12. Os AA. dizem que aceitaram “rescindir” o contrato, termo que não te correspondência na lei substantiva laboral em vigor.
13. Vide Afonso Queiró, in Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, p. 51
14. Vide Ana Margarida Delgado Henriques, in “Da Sobrevivência do Processo do Trabalho à Reforma do Processo Civil - A coerência e consistência do sistema processual laboral” pp. 144-145, referindo que “é no Processo do Trabalho que com maior insistência, se procura a conciliação entre as partes, afirmando-se mesmo a existência de uma hipervalorização do ato conciliatório”. O CPT prevê na realidade várias tentativas de conciliação (vg. nos artigos 32.º, 36.º, 51.º, 55.º, 70.º e 98.º-I) cuja realização é obrigatória, ao invés do que sucede no processo civil propriamente dito, em que a designação de uma diligência processual exclusivamente para esse efeito depende do impulso das partes ou de decisão judicial nesse sentido (art. 594º do CPC). Mas tal não desvirtua o desiderato com que é instaurado o processo declarativo comum laboral, nele incumbindo ao juiz, como é apanágio da função jurisdicional, determinar o direito aplicável a cada caso concreto em decisão com força obrigatória para as partes.