Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20730/15.1T8SNT-B.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: CRÉDITO
DÍVIDA
MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRAÇÃO
DEVEDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.Serão tidos como créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento já existia à data da declaração da insolvência (artigo 47.º do CIRE), sendo que serão já créditos sobre a massa insolvente os que se constituam na pendência do processo (artigo 51.º do CIRE).

II.Enquadram-se nestes últimos, entre outros, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, bem como as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções – artigo 51.º, n.º 1, als. c) e d) do CIRE.

III.O facto de, num período inicial, a administração da massa insolvente ter ficado atribuída à devedora – artigo 224.º do CIRE –, não obsta a que as dívidas que, nesse âmbito tenham sido contraídas, sejam consideradas como crédito sobre a massa insolvente.

IV.A massa insolvente constitui-se a partir do momento em que a insolvência é declarada, com a mesma não se confundindo as subsequentes operações de apreensão de bens e de liquidação.

V.Mesmo nos casos em que a administração da massa insolvente é atribuída à devedora, incumbe ao Administrador Judicial nomeado fiscalizar a mesma, reportando ao processo qualquer acto que entenda ser prejudicial àquela – artigo 226.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE.

VI.Estando em causa um crédito decorrente de honorários devidos a mandatário constituído pela insolvente no período em que a mesma esteve a administrar a massa insolvente, e não sendo sequer o mesmo questionado pelo Administrador da Insolvência (que aceitou ser devido o montante em causa), estamos perante um crédito sobre a massa insolvente.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


Z … Lda. apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 21/09/2015, já transitada em julgado.

Por tal sentença foi atribuída a administração da massa insolvente à devedora, no pressuposto de que a mesma apresentaria plano de insolvência em 30 dias.

Foi ainda, para além do mais, nomeado como administrador judicial o Sr. Dr. V ….

O plano de insolvência foi apresentado em 12/11/2015.

Em 12/04/2016 realizou-se a assembleia de credores, no âmbito da qual foram admitidas alterações ao plano proposto.

Por decisão proferida em 09/05/2016, considerou-se não aprovado o plano de insolvência apresentado e determinou-se o prosseguimento dos autos para liquidação.

Em 21/09/2018 foi elaborado o auto de apreensão de bens para a massa insolvente (cfr. apenso H).

Em 25/11/2015 (apenso B), pelo AI foi apresentada a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, a qual foi posteriormente actualizada em 29/12/2015 e em 20/07/2016.

Entre os créditos reconhecidos, o AI incluiu, sem que tivesse sido reclamado, o crédito da apelante, o qual classificou como sendo comum e pelo valor de 102.773,02€.

Notificada nos moldes previstos pelo n.º 4 do artigo 129.º, por requerimento de 18/08/2016 veio a Sociedade W & Advogados Associados, RL (a qual passará a identificar-se como W) apresentar impugnação da lista de credores reconhecidos, nos termos previstos pelo artigo 130.º, tendo peticionado: deverá ser o crédito reconhecido à Impugnante considerado um crédito sobre a massa insolvente, nos termos e para os efeitos do artigo 51.º do CIRE.

Alegou em síntese: - ter sido notificada no dia 08/08/2016 (artigo 129.º. n.º 4) de que o seu crédito havia sido reconhecido como comum e pelo no valor de 102.773,02€; - que tal crédito se reporta à prestação de serviços jurídicos até ao final de Abril de 2016”; - que existem “valores a serem facturados, por serviços jurídicos prestados à massa insolvente após o dia 30 de Abril de 2016 (no dia 03/06/2016, a impugnante patrocinou a massa insolvente em sede de tentativa de conciliação); - ser irrelevante, in casu, que a administração da insolvente estava numa fase inicial confiada à Insolvente e só após o Douto Despacho que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação tenha sido exclusivamente assumida pelo Senhor Administrador de Insolvência(tanto que, em 28/12/2015, a massa insolvente, representada pelo AI, outorgou procuração forense a favor de advogados da impugnante); - deverá o seu crédito ser pago previamente aos demais que incidem sobre a insolvente – artigos 46.º, n.º 1, e 172.º, n.º 1.
Entre outros documentos, juntou duas procurações forenses: uma outorgada em 02/06/2016 pelo então AI[1] e outra outorgada em 28/12/2015 pelos administradores da insolvente[2].

Teve lugar audiência prévia.
Posteriormente, em 02/03/2020, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: (…) A questão relativa às impugnações mostra-se pacificada na sua totalidade, tendo o Sr. AI junto nova lista rectificada, conforme R/ 1.02.2020/R 580, a qual deverá ser notificada a todos eles. // Notifique o AI para: // a) Juntar a documentação solicitada em sede da audiência prévia (relativa ao credor impugnação da Sociedade W) (…)” – tal notificação foi reiterada em novo despacho de 20/03/2021.

Em 10/04/2021, veio o AI informar nos autos:
“(…) 1. Foi retificado o valor do crédito reconhecido à W Advogados, nos termos do preceituado no Artigo 129º, nº 4 (…) // 2. O crédito havia sido reconhecido em conformidade com os elementos da Contabilidade da Z … Lda., então disponíveis, que totalizavam 102.773,02 Euros. //3. Conforme informação prestada posteriormente pela W Advogados, tomei então conhecimento de que, o montante dos créditos da W Advogados que constavam da Contabilidade, apresentavam uma divergência, justificada na referida informação, que aludia, passo a citar, "são um pouco superior a 106.283,71 Euros, mas nada significativo", crédito que se considerou justificado com as Faturas enviadas em anexo à aludida comunicação (Doc 2). //4. Os créditos resultaram de serviços solicitados pela então Gerência da Sociedade ora insolvente, e não pela Massa Insolvente, durante o período em que, por Douta Sentença Judicial havia sido confiada a gestão da sociedade aos Gerentes da mesma, até à apresentação e apreciação do Plano de Insolvência em Assembleia de Credores, Plano que não foi aprovado, sendo então decretado o prosseguimento dos autos com a liquidação, data a partir da qual cessou a gestão dos Gerentes da sociedade ora Insolvente. //5. Até então, reitere-se, toda a gestão da sociedade foi exercida pelos Gerentes da sociedade insolvente, nomeadamente nomeação de Mandatários e instauração de Ações Judiciais. //6. Como se alcança da comunicação remetida pela W Advogados, o montante de 106.283,71 € respeita a serviços prestados entre 1 de Janeiro de 2016 a 30 de Abril de 2016, (quatro meses), e como na referida comunicação a W Advogados também refere, "reportam-se a trabalho prestado anteriormente à passagem da administração da insolvente para o Administrador da Insolvência e consequentemente não compreendem trabalho prestado ao abrigo do acordo de prestação de serviços celebrado com o Administrador da Insolvência após a sua assunção plena da administração, trabalho esse que foi oportunamente pago" //7. Efetivamente, só após Iniciado o processo da liquidação, com a não aprovação do Plano de Insolvência, as decisões de gestão da Massa Insolvente foram assumidas por Administrador da Insolvência. //8. No interesse da Massa Insolvente, e consequentemente dos Credores, solicitei então à W Advogados, a identificação de todas as acções judiciais que estavam em curso, instauradas pelos Gerentes da sociedade ora insolvente, a fim de decidir os serviços que viriam a ser prestados à Massa Insolvente pela W Advogados, e que constituiriam encargo da Massa Insolvente. //9. Conforme a comunicação da W Advogados, em anexo, (Doc 3), enviada via e-mail em 31-05-2016, às 19 H e 52 M, foi então apresentada uma proposta para prestação de serviços de Assessoria Jurídica à Massa Insolvente de Z … Lda. //10. Com base num critério de racionalidade económica da Massa Insolvente, no legítimo interesse dos credores, ponderando o custo dos serviços propostos, identifiquei os serviços a prestar pela W Advogados, à Massa Insolvente, no estrito interesse da Massa, conforme comunicação em anexo, (Doc 4), que remeti à W Advogados. //11. Os referidos serviços, constituindo encargo assumido pela Massa Insolvente, foram pagos integralmente pelas receitas então realizadas pela Massa Insolvente, mediante a apresentação das respetivas Faturas, que a seguir se identificam. (…) 8.808,47€ //12. Foram reconhecidos à W Advogados, nos termos do Artigo 129º do CIRE, os créditos que resultaram dos serviços solicitados à W Advogados, pela então Gerência da Sociedade Z … Lda, créditos que totalizaram o montante de 106.283,71 Euros, como já foi referido no "item" 3. //13. Os aludidos créditos, no montante de 106.283,71 Euros foram qualificados com a natureza de Créditos Comuns, nos termos do Artigo 47º, nº 4, alínea c) do CIRE. //14. Foi enviada a comunicação da retificação do referido crédito reconhecido à W Advogados, nos termos do Artigo 129º, nº 4 do CIRE, conforme cópia em anexo, (Doc 5). //15. É pretensão da W Advogados, que todos os serviços contratados pela então gerência da Z …Lda., em data anterior à gestão e liquidação da Massa Insolvente pelo Administrador da Insolvência constituam encargo da Massa Insolvente. //16. Com o devido respeito por outro entendimento, é minha convicção, face às disposições legais emanadas do CIRE, que os créditos apresentados pela W Advogados, por serviços contratados pela então gerência da sociedade devem ser reconhecidos nos termos do Artigo 129º do CIRE, como efetivamente foram, reconhecimento que, reitere-se, foi comunicado ao referido credor W Advogados. //17. Na senda do mesmo princípio, considerar os referidos créditos como encargo da Massa Insolvente, e efetuar o pagamento integral dos mesmos, seria conceder injustificadamente um benefício indevido a um credor, em detrimento de todos os outros credores, em igualdade de circunstâncias. //18. Neste contexto, o pagamento dos créditos reconhecidos nos termos do Artigo 129º do CIRE devem aguardar que seja proferida a Douta Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, e o cálculo dos valores do rateio do saldo da Massa Insolvente, para eventualmente serem ressarcidos total ou parcialmente, em função do valor apurado no Rateio.”

Notificada desse requerimento, veio a credora apelante, em 26/06/2021 pronunciar-se nos seguintes moldes:
1. Refere o Sr. Administrador da Insolvência que por os créditos devidos à ora Credora resultarem de serviços solicitados pela então gerência da sociedade insolvente, gestão essa confiada aos gerentes da Insolvente por Sentença Judicial, e não tendo os referidos serviços sido contratados com o Sr. Administrador da Insolvência, tal dívida não constitui encargo da Massa Insolvente. //2. O mencionado crédito assumiria, assim, a natureza de crédito sobre a Insolvência e não de crédito sobre a Massa. //3. Com o devido respeito, e à semelhança do referido em sede de Impugnação da Lista de Credores Reconhecidos, o entendimento defendido pelo Sr. Administrador da Insolvência não tem cabimento factual nem legal, como explanaremos //4. Em 21 de setembro 2015, foi proferida Sentença que declarou a insolvência da Z … Lda e, no âmbito dessa decisão, foi atribuída a administração da Massa Insolvente à gerência da sociedade insolvente e nomeado como Administrador Judicial o Sr. Dr. V …. //5. No dia 28 de dezembro de 2015, foi outorgada uma procuração, a favor da Credora, pela Massa Insolvente da Z … Lda, com o conhecimento, intervenção e concordância do Sr. Administrador da Insolvência: (…) //6. Assim, mandatada pela gerência da Insolvente e com concordância do Sr. Administrador da Insolvência, a Credora prestou serviços jurídicos sempre com o objetivo de fazer prevalecer os direitos e legítimos interesses da massa insolvente e dos seus credores. //7. A prestação de serviços, ao abrigo da sobredita procuração, manteve-se até à data da realização da Assembleia de Credores, em 12 de abril de 2016, que não aprovou o Plano de Insolvência e, consequentemente, determinou a sua liquidação. //8. No dia 2 de junho de 2016, o Sr. Administrador da Insolvência, reiterando a confiança no trabalho realizado pela aqui Credora, outorgou em nome da massa insolvente nova procuração forense a favor desta: (…) //9. Como já referido, todo o trabalho realizado ao abrigo das referidas procurações foi em prol da Massa Insolvente e após a declaração de insolvência da aqui Insolvente. //10. Ora, o artigo 51.º, n.º 1, alínea d) do CIRE é claro ao estabelecer que são dívidas da massa insolvente: “As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;” //11. Sendo irrelevante que a administração da Insolvente estivesse, numa fase inicial, confiada à própria Insolvente e só após o Despacho que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação tenha sido exclusivamente assumida pelo Sr. Administrador da Insolvência. //12. Acresce que, nos termos da lei, o Sr. Administrador da Insolvência não estava obrigado a concordar com a outorga da procuração de 28 de dezembro de 2015. //13. Todavia concordou e aceitou o seu teor. //14. Nunca, até ao momento de elaboração da lista de credores, prontamente impugnada pela ora Credora, o Sr. Administrador da Insolvência manifestou qualquer discordância quanto ao trabalho realizado – que acompanhou de perto e de forma proativa –, ao valor dos honorários faturado ou qualquer outra circunstância. //15. Nessa circunstância, a aqui Credora, de boa-fé, prestou todos os serviços jurídicos que lhe foram solicitados, esperando, naturalmente, ser paga em conformidade. (…) //18. Atento o exposto, deverá a Credora ser reconhecida como credora da Massa Insolvente, e não como credora comum, sob pena de ser gravemente prejudicada por ter atuado de boa-fé e sempre no interesse da Massa Insolvente e dos seus credores. // Nestes termos requer-se a V. Exa. que o crédito em causa seja considerado um crédito sobre a massa insolvente, nos termos e para os efeitos do artigo 51.º do CIRE.”

Em 11/11/2021, o AI apresentou novo requerimento:
“(…)1. Havia sido reconhecido inicialmente, nos termos do Artigo 129º do CIRE, em conformidade com os elementos da Contabilidade então disponíveis, o crédito no montante de 102.773,02 € ao credor W Advogados, conforme a comunicação efetuada nos termos do Artigo 129º nº. 4 do CIRE. //2. O referido crédito foi reconhecido com a natureza de Crédito Comum, nos termos do Artigo 47º, nº. 4, alínea c) do CIRE. //3. Posteriormente, o valor reconhecido foi retificado para 106.283,71€, ao tomar conhecimento da existência de uma Fatura, emitida pela importância de 3.510,69 €, que não tinha sido considerada. //4. A diferença de 3.510,69 € que se verifica no reconhecimento dos créditos, corresponde precisamente à Fatura nº. 0110024987, no valor de 3.510,69 €, que, como já se aludiu, só posteriormente tomei conhecimento da existência da mesma. //5. Para comprovação do montante reconhecido, a seguir se identificam as Faturas reconhecidas nos termos do Artigo 129º. do CIRE, e o montante dos créditos qualificados com a natureza de Crédito Comum, nos termos do Artigo 47º, nº. 4, alínea c) do CIRE. (…) 106.283,71€ //6. O valor do crédito retificado, foi comunicado ao referido credor, nos termos do Artigo 129º, nº. 4 do CIRE.”

Tendo sido notificado para juntar aos autos a reclamação de créditos que havia sido apresentada pela apelante, o AI veio reiterar inexistir a mesma, tendo o crédito sido reconhecido em face dos elementos constantes da contabilidade (ref.ªs/Citius 135057424 e 20499907). Tendo depois a apelante voltado a alegar que o seu crédito (na globalidade) terá de ser considerado como uma dívida da massa insolvente (Ref.ªs/Citius 21501125 e 22662799).

Em 13/12/2022 foi junta a lista de de créditos reconhecidos devidamente rectificada.

Em 07/07/2023 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, pela qual, para além do mais, se decidiu:
1. Julgar improcedente a impugnação deduzida pelo credor Sociedade W. //2. (…) //3. Homologar a lista de créditos junta pelo Sr. Administrador da Insolvência conforme R/ 13.12.2022/Ref 22353297 julgando verificados todos os créditos dela constantes e as respectivas naturezas (…). //4. (…) //5. Graduar os créditos nos seguintes termos: //a. Em primeiro lugar aos créditos dos trabalhadores no apurado proveniente do desconto desse valor inicial e aquele que foi recebido do FGS e que consta R/ 13.12.2022 /Ref 22353426; a par destes o Fundo Garantia Salarial; //b. Em segundo lugar aos créditos comuns, sem prejuízo da provisão que assegure o pagamento dos créditos sob condição; //c. Por último aos créditos subordinados.

Com relação à impugnação da aqui apelante consignou-se na sentença:
“Alega este credor que o Administrador de Insolvência lhe reconheceu, inicialmente, um crédito no valor de € 102.773,02, o qual se reporta a serviços jurídicos prestados até ao final de Abril de 2016. Existiram valores facturados após esta data, mormente, e a título de exemplo, no dia 3 de Junho de 2016 o patrocínio da massa insolvente em sede de tentativa de conciliação a que alude o artigo 136.º do CIRE, no valor parcial de €3.510,69, vindo o Administrador de Insolvência a corrigir o valor final para o montante de €106.283,71.
Considera que este crédito é da massa insolvente e não da insolvente, o que reclama (R/ 18.08.2016).
Junta para o efeito, entre outros, a procuração emitida pelo Administrador de Insolvência para representação da massa insolvente em sede de tentativa de conciliação a que alude o art.º 136º do CIRE, datadas de 28.12.2015 e de 2.06.2016 (doc. n.º 3 junto com o respectivo requerimento).
O Administrador de Insolvência veio responder referindo o seguinte:
A gestão da sociedade insolvente foi concedida à gerência da mesma com vista à apresentação de um Plano de Insolvência que visava a recuperação da sociedade.
Todavia em Assembleia de Credores, realizada em 9.05.2016, o Plano foi vetado pelo ISSP o que forçou o prosseguimento dos autos para liquidação.
Neste contexto, e não tendo este credor impugnante apresentado reclamação de créditos nos termos do art.º 128º do CIRE, foi considerado o crédito que constava dos elementos da contabilidade a favor do mesmo, no valor de €102.773,02. Este valor foi mais tarde rectificado para o montante total de €106.283,71 em face de factura apresentada, posteriormente, no valor de €3.510,69.
Considerando que no período que mediou entre a declaração de insolvência da sociedade e a decisão de prosseguimento dos autos para liquidação, a gestão da  sociedade foi exercida pelos respectivos gerentes, reportando-se as facturas apresentadas a serviços prestado pelo credor W Advogados a esse hiato temporal - no montante de €106.283,71 -, o Administrador de Insolvência considera que não está compreendido nos serviços contratados ao abrigo do acordo de prestação de assessoria jurídica celebrado entre o Administrador de Insolvência e a respectivo prestador/fornecedor após assumir a administração da massa insolvente.
Com efeito, após se ter iniciado o processo de liquidação o Administrador de Insolvência solicitou à W Advogados a identificação de todas as acções judiciais que estavam em curso e que haviam sido instauradas pelos gerentes da sociedade a fim de decidir os serviços que viriam a ser prestados à massa insolvente pelos mesmos e que constituiriam encargo da massa insolvente. E conforme resulta do documento que junta como doc. 3, datado de 31.05.20216 foi apresentada uma proposta para «Assessoria Jurídica à Massa Insolvente da Z … Lda». Estes foram assumidos e integralmente pagos. Os demais não são créditos da massa à luz das disposições do CIRE e considerá-lo um encargo da massa constituiria um benefício injustificado ao um credor em detrimento de todos os outros. (R/10.04.2021, 11.11.2021; 21.02.2022).
Conclui pugnando pela manutenção do créditos reconhecidos nos precisos termos constantes da lista de créditos.
Decidindo.
São dívidas da insolvência aquelas que se constituíram antes da declaração da insolvência do devedor e se encontram submetidas ao regime do pagamento fixado nos arts. 173º e ss. do CIRE. Já as dívidas da massa insolvente estão elencadas, exemplificativamente, no art. 51º do CIRE e correspondem, grosso modo, a dívidas que se constituíram após a declaração da insolvência do devedor e o respetivo pagamento apenas se encontra submetido ao regime da pontualidade previsto no art. 172º, n.º 3 do CIRE.
Analisando o art.º 51º do CIRE resulta que (…).
Ora, in casu, alega o credor que o crédito em referência se reporta a serviços jurídicos prestados à insolvente até Abril de 2016 e após a declaração de insolvência sendo irrelevante que tenha ocorrido durante o período de administração atribuído à própria insolvente.
O Administrador de Insolvência, por seu lado, apenas assume como dívida da massa a despesas realizada no âmbito da respectiva administração, ou seja, após a assunção da administração da massa insolvente e no âmbito dos serviços por si contratados.
Ora, no caso que se aprecia a insolvente manteve-se em plena actividade após a declaração de insolvência, exarada em 21.09.2015, com administração atribuída à própria, até ter sido proferida a decisão que determinou que «atenta a não aprovação do plano de insolvência apresentado, os autos prosseguirão com a liquidação», em 9.05.20216.
No período de mediou entre 21.09.2015 e 9.05.2016 não pode falar-se ainda na existência da administração da massa insolvente, a qual só de materializa, efectivamente, com a cessação da administração da insolvente pelos seus gerentes e a ordem de liquidação dos bens da sociedade com consequente apreensão de todo o acervo de bens (Cf. art.º 46º do CIRE).
Nos termos do disposto no supracitado normativo são dívidas da massa as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente (alínea c).
No caso, os serviços jurídicos prestados, ainda que realizados após a declaração de insolvência, foram-no no interesse da própria insolvente em sede de continuidade laborativa na perspectiva de apresentação de Plano de Insolvência e não no âmbito da administração da massa insolvente e respectivos beneficiários, os credores.
Nesta medida, consideramos que assiste integral razão ao Administrador de Insolvência na catalogação deste crédito como crédito da insolvente e não da massa insolvente por não se mostrar incluído na previsão normativo da susodita norma.
Quanto ao parcial no valor de €3.510,69, relativo a factura apresentada pelos serviços de preparação e intervenção na tentativa de conciliação a que alude o art.º 136º, n.º 2 do CIRE, o Administrador de insolvência também não aceita que a mesma tenha sido em benefício da massa insolvente.
Compulsada a acta referente à tentativa de conciliação ocorrida em 3 de Junho de 2016 (apenso B) constatamos a massa insolvente não se fez representar por mandatário, apenas pelo respectivo Administrador de Insolvência, tendo a intervenção do Ilustres Advogados Dr. P…, Dra. S … e Dra. F … ocorrido em representação da própria Insolvente.
Diferentemente, em diligência realizada no âmbito do mesmo apenso em 8.02.2019, a massa insolvente fez-se representar por Advogada, a saber: a Dra: G … cujo honorários não estão incluídos nos créditos no acervo de crédito em apreciação.
Do exposto, resulta de forma clara que também a assessoria jurídica ocorrida por força da tentativa de conciliação não foi em benefício da massa insolvente, ficando igualmente excluída do pecúlio que integra as despesas da massa insolvente tal como preconizado pelo Administrador de Insolvência.
Pelo exposto, importa julgar improcedente a impugnação mantendo o crédito reconhecido nos precisos termos que consta da lista de créditos reconhecidos.

Não se conformando com tal sentença, no que concerne à classificação do seu crédito, veio a credora W dela interpor RECURSO, tendo para tanto formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
A. A Sentença de que se recorre errou ao concluir que o crédito reclamado pela ora Recorrente, no valor de €106.283,71, não se qualifica como dívida da massa insolvente, o que decorre de uma interpretação manifestamente equivocada das normas previstas nos artigos 46.º, n.º 1 e 51.º, n.º 1, alínea c) e d) do CIRE.
B. Em 21/09/2015, foi proferida a sentença que declarou a insolvência da sociedade Z … Lda. e nomeado um Administrador de Insolvência, tendo a administração da insolvente ficado, numa fase inicial, confiada à própria Insolvente.
C. Nos termos do artigo 46.º, n.º 1 do CIRE, foi nesse momento que se constituiu a massa insolvente composta por todo o património da devedora à data da declaração de insolvência, bem como por todos os bens e direitos que ela adquirisse na pendência do processo, pelo que, a partir desse momento, todas as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, bem como as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções são consideradas dívidas da massa insolvente (alínea c) e d) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRE).
D. Assim, o crédito reclamado de €106.283,71, valor que se reporta à prestação de serviços jurídicos, desde Setembro de 2015 até Junho de 2016, deve ser classificado como crédito sobre a massa insolvente.
E. Sendo irrelevante que a administração da insolvente tenha ficado numa fase inicial confiada à Insolvente e só após o douto Despacho que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação tenha sido exclusivamente assumida pelo Senhor Administrador de Insolvência – a procuração datada de 28 de Dezembro de 2015, outorgada pela massa insolvente de Z … Lda. a favor dos mandatários da ora Recorrente evidencia à saciedade o que se expõe (Doc. 4 junto com a impugnação da lista de credores reconhecidos).
F. A errada interpretação do Tribunal a quo ao considerar que: “No período de mediou entre 21.09.2015 e 9.05.2016 não pode falar-se ainda na existência da administração da massa insolvente, a qual só de materializa, efectivamente, com a cessação da administração da insolvente pelos seus gerentes e a ordem de liquidação dos bens da sociedade com consequente apreensão de todo o acervo de bens (Cf. art.º 46º do CIRE).”, levou-o a não aplicar o disposto na alínea c), do n.º 1 do artigo 51.º.
G.Ainda que assim fosse, o que não se concebe, sempre teria aplicação a alínea d) do mesmo artigo, na medida em que o Ilustre Administrador de Insolvência conferiu o mandato, outorgando procuração para o efeito, a favor de Advogados da aqui Recorrente.
H.Também não tem acolhimento o entendimento de que apenas com a ordem de liquidação dos bens da sociedade e a respetiva apreensão de todo o acervo de bens é que tem início a administração da massa insolvente, sendo a mesma administrada quer pelo insolvente, quer pelo administrador, desde o momento da sua constituição, a declaração de insolvência (artigo 46.º, n.º 1 do CIRE).
I.Se seguíssemos a linha de raciocínio do Tribunal a quo, teríamos situações em que não existiria administração da massa insolvente durante anos, face ao tempo que decorre entre a declaração de insolvência e a ordem de liquidação dos bens da sociedade.
J.Na senda do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/07/2021, “IV – As dívidas resultantes da atuação do devedor a quem foi atribuída a administração devem ser consideradas dívidas da massa insolvente.”
K.“A circunstância de não haver lugar à apreensão de bens quando a administração seja assegurada pelo devedor, não conduz à “inexistência” da massa insolvente (…)”, a qual é constituída por “(…) todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.”
L.Assim, “Conformemente, tendo a devedora constituído novas dívidas com a sua administração, tais dívidas porque contraídas no decurso do processo são dívidas da massa insolvente.”
M.Atento exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente, a decisão recorrida ser revogada por violação das normas previstas nos artigos 46.º, n.º 1 e 51.º, n.º 1, alínea c) e d) do CIRE e substituída por outra decisão que julgue procedente a impugnação deduzida pela ora Recorrente, reconhecendo o crédito da Recorrente como crédito sobre a massa insolvente, graduado e pago em conformidade.
Assim decidindo, revogando a sentença recorrida nos termos alegados, farão Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!”

Não consta que tenha sido apresentada Resposta.

O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, a vexata quaestio consiste em decidir se o crédito reconhecido à apelante corresponde a um crédito sobre a insolvência (como decidido pela 1.ª instância) ou a um crédito sobre a massa insolvente (como defendido pela apelante).

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III–FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.

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Fundamentação de direito
Sendo o processo insolvencial um processo de execução universal (abrangendo todo o património do devedor) e concursal, ao mesmo são chamados a intervir todos os credores, os quais apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE, durante a pendência do processo de insolvência – cfr. artigos 1.º, 46.º, n.º 1 e 90.º[3].
Por assim ser, aquando da prolação da sentença que declare a insolvência ter-se-á de fixar o prazo dentro do qual poderão ser apresentadas as reclamações de créditos, prazo esse que poderá ir até 30 dias – artigo 36.º, n.º 1, al. j).
Do artigo 128.º, n.ºs 1 e 2 resulta igualmente que, dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória de insolvência, devem os credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos por requerimento endereçado ao AI. Sobre cada um dos credores incide um ónus de reclamação cujo incumprimento poderá constituir impedimento a que os seus interesses/créditos sejam satisfeitos, designadamente por não lhes ser viabilizado que beneficiem do produto da liquidação do activo (desde logo em face do previsto no artigo 173.º).
Porém, para além dos créditos que tenham sido reclamados, o AI deverá igualmente reconhecer aqueles que, apesar de o não terem sido, constem da contabilidade do devedor ou cheguem ao seu conhecimento por qualquer outro meio (artigo 129.º).

Na sentença que declarou a insolvência, pela Mma. Juíza a quo foi atribuída a administração da massa insolvente à própria sociedade devedora.
Tal possibilidade constitui uma excepção ao estatuído no n.º 1 do artigo 81.º[4] e vem prevista e regulada nos artigos 223.º e ss.
Prescreve o artigo 224.º, n.ºs 1 e 2, que assim poderá suceder desde que estejam preenchidos os seguintes pressupostos: a) O devedor a tenha requerido; b) O devedor tenha já apresentado, ou se comprometa a fazê-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da empresa por si próprio; c) Não haja razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores; d) O requerente da insolvência dê o seu acordo, caso não seja o devedor”.

Sem prejuízo de assim suceder, a administração levada a cabo pela devedora fica sujeita à fiscalização do administrador da insolvência que tenha sido nomeado, o que deverá suceder nos moldes previstos pelo artigo 226.º.
Resulta deste artigo que o AI “fiscaliza a administração da massa insolvente pelo devedor e comunica imediatamente ao juiz e à comissão de credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a subsistência da situação; não havendo comissão de credores, a comunicação é feita a todos os credores que tiverem reclamado os seus créditos” (n.º 1); bem como que, “Sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações: a) se o administrador da insolvência se opuser, tratando-se de actos de gestão corrente; b) sem o consentimento do administrador, tratando-se de actos de administração extraordinária” (n.º 2). Mais se prevê no seu n.º 7 que “A atribuição ao devedor da administração da massa insolvente não prejudica o exercício pelo administrador da insolvência de todas as demais competências que legalmente lhe cabem e dos poderes necessários para o efeito, designadamente o de examinar todos os elementos da contabilidade do devedor”[5].
No caso, o AI nomeado aceitou os montantes que a apelante entende serem-lhe devidos a título de honoráriosaliás, para além do valor que constava da contabilidade da insolvente (102.773,02€), aceitou igualmente o remanescente que a apelante referiu estar ainda em dívida (acabando por consentir no pagamento de um montante global de 106.283,71€).
Não sendo colocado em causa que a dívida foi contraída após a declaração da insolvência, discute-se já se estaremos perante uma dívida da massa insolvente ou antes perante uma dívida da própria insolvênciano caso, insiste-se, está apenas em causa a qualificação do crédito, e já não o seu montante ou a sua proveniência (e tão pouco a sua graduação, caso a qualificação da 1.ª instância seja confirmada)[6]
De acordo com o artigo 47.º, “1. Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio. 2. Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência. (…)”[7]. Já no seu n.º 3, o mesmo artigo refere que os créditos sobre a insolvência podem ser: a) Garantidos e privilegiados, b) subordinados, ou c) comuns (sublinhado nosso).
Já no artigo 51.º, n.º 1 o legislador qualificou, a título exemplificativo, como sendo dívidas da massa insolvente as seguintes: a) As custas do processo de insolvência; b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93º.”
Daí que, como Catarina Serra[8] escreve:Distingue-se agora entre os «créditos sobre a massa insolvente» (ou «dívidas da massa insolvente») e «créditos sobre a insolvência» (ou «dívidas da insolvência») e, em conformidade com isso, entre «credores da massa» e «credores da insolvência». Os «créditos sobre a massa» são os créditos constituídos no decurso do processo (cfr. art. 51º, nºs. 1 e 2) e os «créditos sobre a insolvência» são os créditos cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência (cfr. art. 47º, nºs. 1 e 2). Dentro dos «créditos sobre a insolvência», distingue-se por seu turno, entre «créditos garantidos», «créditos privilegiados», «créditos subordinados» e «créditos comuns».”
Vigora aqui o princípio da precipuidade, devendo as dívidas da massa insolvente ser pagas com prioridade relativamente às demais – artigo 46.º, n.º 1[9].
E, enquanto os créditos sobre a insolvência deverão ser reclamados nos moldes a que já se aludiu na presente fundamentação (em conformidade com o disposto no artigo 128.º, sem prejuízo de também o poderem ser no âmbito de uma acção de verificação ulterior de créditos, ao abrigo do artigo 146.º - cfr., ainda, artigo 173.º), já os créditos sobre a massa insolvente não terão que ser objecto de qualquer reclamação.
Quanto a estes, considerando que os mesmos deverão ser pagos nas datas dos respectivos pagamentos (regra da pontualidade[10]), independentemente do estado do processo (artigo 172.º, n.º 3), caso o não sejam, terá o respectivo titular de intentar uma acção nos moldes previstos pelo artigo 89.º. 
Reportando ao caso, constata-se que o crédito de que a apelante se arroga não foi efectivamente reclamado, constituiu-se na pendência do processo (após a declaração da insolvência) e respeita a uma prestação de serviços efectuada no âmbito da administração da massa insolvente pela própria devedora.
Ora, sendo certo que são dívidas da massa as emergentes dos actos de administração da massa insolvente - al. c) do n.º 1 do artigo 51.º - também assim deverão ser consideradas as dívidas que resultam da actuação do devedor enquanto administrador da massa insolvente[11].

Porém, diverso entendimento teve a 1.ª instância, para tanto defendendo: “No período de mediou entre 21.09.2015 e 9.05.2016 não pode falar-se ainda na existência da administração da massa insolvente, a qual só de materializa, efectivamente, com a cessação da administração da insolvente pelos seus gerentes e a ordem de liquidação dos bens da sociedade com consequente apreensão de todo o acervo de bens (Cf. art.º 46º do CIRE). // Nos termos do disposto no supracitado normativo são dívidas da massa as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente (alínea c). // No caso, os serviços jurídicos prestados, ainda que realizados após a declaração de insolvência, foram-no no interesse da própria insolvente em sede de continuidade laborativa na perspectiva de apresentação de Plano de Insolvência e não no âmbito da administração da massa insolvente e respectivos beneficiários, os credores.”
Não subscrevemos tal posição.
Por regra, uma vez declarada a insolvência, o juiz decreta a apreensão dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, os quais serão imediatamente entregues ao AI– artigo 36.º, n.º 1, al. g) –, passando este a gozar de poderes de administração e de disposição sobre os mesmos.
Já quando, no âmbito da própria sentença insolvencial, se atribuiu a administração da massa insolvente ao devedor, não se decreta logo qualquer apreensão. Mas, uma vez terminada a administração pelo devedor, imediatamente terá a mesma de ser efectuada. E só então poderá o AI dar início à liquidação – artigo 225.º.
Não obstante, tais circunstâncias não permitem extrair a conclusão a que chegou a 1.ª instância.
Resulta dos autos que apenas por despacho proferido em 09/05/2016, na sequência de não ter sido aprovado o plano de insolvência apresentado, foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação. E, apenas em 21/09/2018 foi elaborado o auto de apreensão de bens para a massa insolvente.
Sucede que, como expressamente se prevê no n.º 1 do artigo 46.º, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”, haja ou não, desde logo, apreensão de bens. Ou seja, a massa insolvente constitui-se ab inicio, independentemente dos bens que a venham a integrar.
Subscreve-se, pois, a posição da apelante quando alega ser irrelevante que a administração da insolvente tenha ficado numa fase inicial confiada à Insolvente e só após o douto Despacho que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação tenha sido exclusivamente assumida pelo Senhor Administrador de Insolvência”, bem como quando defende não ter acolhimento o entendimento de que apenas com a ordem de liquidação dos bens da sociedade e a respetiva apreensão de todo o acervo de bens é que tem início a administração da massa insolvente, sendo a mesma administrada quer pelo insolvente, quer pelo administrador, desde o momento da sua constituição, a declaração de insolvência” (artigo 46.º, n.º 1 do CIRE).
Aliás, não obstante a massa insolvente (independentemente de ser administrada pela devedora ou pelo AI) visar a satisfação das suas próprias dívidas e dos créditos dos credores da insolvência, satisfação essa que, na maioria dos casos, passa pela liquidação dos bens que a integram, nem sempre assim terá de suceder.
Tratando-se de dívida contraída nos moldes descritos nos autos, a qual sequer foi questionada pelo AI (no que respeita à sua existência e valor), sempre a mesma terá de ser qualificada como dívida da massa insolvente.[12]
A sua existência, na verdade, tem como fundamento a própria situação de insolvência e o funcionamento da empresa após assim ter sido declarada (tendo sido nesse âmbito que a dívida foi contraída).
Como escreve Catarina Serra[13], referindo-se às alíneas do n.º 1 do artigo 51.º, Agrupando os casos atendendo ao seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência. Sendo previsíveis e naturais ao processo de insolvência, tendo por finalidade assegurar a abertura e o curso de um processo de insolvência (como as resultantes das custas), ou sendo meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), a verdade é que todas são consequência do processo de insolvência.

Já segundo o decidido pelo acórdão da Relação de Guimarães de 01/07/2021[14]:
A atribuição desta qualificação é explicitada por Catarina Serra com a indicação de duas razões fundamentais: primeiro, dada a analogia destas dívidas com as reguladas nas als. d).e h) do n.º 1 do art. 51.º do CIRE, respeitantes às dívidas resultantes da atividade (análoga) do administrador da insolvência e do administrador judicial provisório; segundo, por uma razão prático-teleológica, se as dívidas fossem qualificadas como dívidas da insolvência ninguém concederia crédito ao devedor; sem crédito não haveria empresa, ainda para mais insolvente, que pudesse continuar em atividade e aí é que o instituto da administração pelo devedor estaria definitivamente condenado. // A circunstância de não haver lugar à apreensão de bens quando a administração seja assegurada pelo devedor, não conduz à “inexistência” da massa insolvente, como pressupõe a decisão recorrida. // A massa insolvente é integrada por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. // Está claro que a atribuição da administração ao devedor ao diferir a apreensão de bens para a massa insolvente, obriga a que o regime da administração tenha de ser entendido em termos hábeis, pois na verdade o devedor continua a administrar todo o seu património, mantendo-se a empresa insolvente no comércio jurídico. // Como afirma Carvalho Fernandes “Pelo que respeita à administração da massa insolvente pelo devedor, importa ter presente que a referência a massa insolvente tem aqui de ser tomada como feita ao conjunto de bens que podem (vir a) se apreendidos no processo de insolvência, uma vez que (…) na generalidade dos casos em que a administração desse conjunto patrimonial é atribuído ao devedor, a sua efectiva apreensão ainda não se verificou“ // Todavia, praticado ato pelo devedor a quem foi confiada a administração, gerador de consequências sobre o património os encargos que daí decorram projetam-se na massa insolvente, conforme decorre do disposto no artigo 51.º do CIRE. // Conformemente, tendo a devedora constituído novas dívidas com a sua administração, tais dívidas porque contraídas no decurso do processo são dívidas da massa insolvente.”

Porém, se é certo que assiste razão à apelante quando defende ser credora da massa insolvente, já igual conclusão se não poderá extrair quanto à sua pretensão de ser tal crédito reconhecido, graduado e pago - como a mesma peticiona na al. M) das conclusões de recurso.

Com efeito, e como decorre do que já anteriormente se expôs, as dívidas da massa insolvente não têm que ser reclamadas nos termos previstos pelo artigo 128.º, nessa medida não tendo igualmente que ser reconhecidas e graduadas em sede de sentença de verificação e graduação de créditos (a qual apenas tem subjacente os créditos sobre a insolvência).

Estando em causa dívidas da massa insolvente, não sendo as mesmas pagas, sempre o respectivo pagamento terá que ser reclamado em acção própria (declarativa ou executiva), nos termos previstos pelo artigo 89.º, n.º 2.

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IVDECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente por provada, nessa medida se revogando a sentença recorrida na parte em que homologou e graduou o crédito da apelante como crédito comum.

Sem custas.


Lisboa, 23 de Abril de 2024 - (acórdão assinado digitalmente)


Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
Manuel Ribeiro Marques


[1]Na mesma se podendo ler: “MASSA INSOLVENTE DE Z … Lda.” (…), neste acto representada pelo Senhor Administrador de Insolvência, o Senhor Dr. V … (…) pela presente constitui seus bastantes procuradores (…) para a representar na diligência de Tentativa de Conciliação a realizar (…)”.
[2]Na mesma se podendo ler: “MASSA INSOLVENTE DE Z … Lda.” (…), representada pelo Senhor GW (…), na qualidade de gerente, com poderes para vincular a sociedade e praticar este acto, conforme douta sentença datada de 21.09.2015 (…) pela presente constitui seus bastantes procuradores (…) confere os mais amplos poderes em direito permitidos, incluindo o de participar e votar em assembleias de credores”.
[3]Ainda segundo o n.º 1 do artigo 91.º, “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.
[4]Dispondo esta norma que “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente,os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
[5] Como refere ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 4.ª edição, 2022, págs. 493-495, “O devedor que tem a administração da massa insolvente a seu cargo pode praticar atos de gestão corrente. E pode fazê-lo ainda que dos mesmos resultem obrigações. Porém, já não deve contrair essas obrigações se o administrador da insolvência se opuser. // Para que este o possa fazer, tem que fiscalizar (art. 226.º1). // Mas, se aquela oposição se verificar, o ato é na mesma eficaz. É o que resulta do art. 226º, 2, a). (…) No que diz respeito a atos de administração extraordinária de que resultem obrigações a solução é diferente. Aqueles necessitam de consentimento do administrador da insolvência apesar de a falta desse consentimento não afetar a eficácia do ato (art. 226.º, 2, b)). Não obstante o crédito da apelante (referente a uma prestação de serviços/honorários) traduzir um acto de gestão extraordinária, no caso, esta questão não assume relevância porquanto o pagamento não foi ordenado (e muito menos concretizado) pela devedora, para além de o próprio AI entender ser o montante em causa devido (apenas existindo controvérsia quanto à natureza desse crédito). 
[6]Razão pela qual entendemos não se revelar correcta a dedução de impugnação ao abrigo do artigo 130.º - e o seu conhecimento em sede de decisão nos moldes em que o foi -, porquanto a mesma tem subjacente o apenso de verificação e graduação dos créditos sobre a insolvência (e não dos créditos sobre a massa insolvente). 
[7]Embora nem sempre assim seja, como o comprova a previsão da al. h) do n.º 1 do artigo 51.º.
[8]O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, 2008, pág. 30.
[9]Prescreve o n.º 1 do artigo 46.º que “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas (…)”. Como referem CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, 2015, pág. 308, “A identificação desta categoria de dívidas é importante pelo especial regime de pagamento de que beneficiam, na confrontação com a generalidade das dívidas da insolvência que, como elas, concorram aos bens do insolvente. // Com efeito, como de vê do n.º 1 do art.º 46.º, as, como as qualificadas, dívidas da massa são pagas com precipuidade, significando isto que os créditos sobre a insolvência, independentemente da sua categoria, são preteridos no confronto com os créditos sobre a massa. // Esta precedência e a sua concretização prática são garantidas pelo regime consignado no art.º 172.º do Código.
[10]Como tal, sendo a massa insolvente insuficiente para a satisfação de todas as suas dívidas, não se procede a qualquer rateio, sendo tais dívidas pagas pela ordem do respectivo vencimento (“first come, first served”).
[11]Nesse sentido, CATARINA SERRA, Os efeitos patrimoniais da declaração de insolvência após a alteração da Lei n.º 16/2012 ao código da Insolvência, Julgar, 18, Setembro-Dezembro, 2012, pág. 193, invocando a autora a analogia com o artigo 51.º, n.º 1, als. d) e h) – esta posição encontra-se vertida no acórdão da Relação de Guimarães de 01/07/2021 (citado, aliás, pela apelante nas suas conclusões de recurso), ao qual se aludirá mais à frente.
[12]A este propósito, CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, obra citada, pág. 309, escrevem: “(…) a administração da massa pode, quando esta integre uma empresa, continuar confiada ao próprio devedor, verificados os demais pressupostos do art.º 224.º, o que envolverá comummente a permanência do exercício empresarial. // A consequência é, pois, a de que todas as dívidas de funcionamento da empresa nascidas no período posterior à declaração de insolvência – dívidas laborais, fiscais, providenciais, bancárias, de fornecimento, etc -, por serem consideradas dívidas da massa insolvente, são pagas prioritariamente à satisfação de todos os credores da insolvência, titulares de créditos anteriores à prolação da sentença (…).
[13]Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2.ª edição, 2021, pág. 64.
[14]Proc. n.º 5468/19.9T8VNF-J.G1, relatora Conceição Sampaio.