Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/15.5IDFUN-B.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
NÃO TRANSCRIÇÃO
CANCELAMENTO DE REGISTO CRIMINAL
PESSOAS SINGULARES
PESSOAS COLECTIVAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - A Lei nº37/15 faz uma nítida separação entre as pessoas singulares e as pessoas coletivas, ao regulamentar o conteúdo dos certificados de registo criminal, restringindo-o naqueles que são requeridos pelas primeiras, quando destinados a certos fins (n.ºs 5 e 6 do art. 10.º), enquanto que, para as segundas, seja qual for o fim a que se destina o certificado, este tem de ser sempre integral (n.º 7, do art.10.º).
- O art.13º da mesma expressamente prevê os certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10º, que de forma evidente dizem respeito, apenas, às pessoas singulares, tendo a sua justificação na proteção ao “direito ao trabalho” e a não transcrição prevista no citado art.13 se restrinja às pessoas singulares, tal como acontece com o cancelamento provisório previsto no art.12º, prevendo o art.11º (als. c, e d, do nº1) relativamente às pessoas colectivas, os requisitos para o cancelamento definitivo das respetivas condenações, mas dando às pessoas coletivas sempre tratamento diferenciado do das pessoas singulares.
- Considerando, como se referiu, que são direitos de natureza diversa e superior que justificam o tratamento diferenciado das pessoas singulares, quando comparado com o das pessoas coletivas, é manifesto que esse tratamento diferenciado não ofende quaisquer princípios constitucionais, nomeadamente os princípios da universalidade e da igualdade consagrados nos arts. 12 e 13, da CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Coletivo), nº68/15.5IDFUN-B.L1, da Comarca da …… (Juízo Local Criminal de ……), por acórdão já transitado em julgado, foi decidido:
“…
Julga-se a acusação procedente, e, pela prática em autoria material de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto nos artigos 103, n.° 1, al. c), e 104, n.°s 1 e 2, conjugados com o artigo 6.°, n.° 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 5 de junho), e 23 do CIRC e 19, n.° 3, do CIVA, e, quanto à arguida sociedade, ainda no artigo 7.°, n.° 1, do dito RGIT, são condenados:
O arguido AA na pena de dois anos e dez meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente em plano individual de reinserção social, elaborado e acompanhado pela DGRSP, e na condição de o arguido entregar ao Estado – Fazenda Nacional sessenta e dois mil euros, e comprovar nos autos essa entrega durante o prazo da suspensão, cf. artigos 50, n.°s 1 e 5, 51, n.° 1, al. c), e 53 do Código Penal, e 14 RGIT;
e a arguida S ... – Engenharia, Lda., na pena de setecentos e cinquenta dias  de multa, à taxa diária de oitenta euros.”
…”.
A sociedade arguida requereu a não transcrição da referida condenação no seu certificado de registo criminal, nos termos do n.° 1, do artigo 13, da Lei n°37/2015, de 05.05, na sequência do que, em 25 de janeiro de 2021, foi proferido o seguinte despacho:
“…
S ..., Lda., condenada nestes autos em pena de multa por crime de fraude fiscal qualificada, artigo 103, n.º 1, al. c), e 104, n.ºs 1 e 2, RGIT, requereu a não transcrição da sua condenação no CRC.
Pronunciou-se o Ministério Públio no sentido de que «as pessoas coletivas não podem requerer a não transcrição da condenação crime para efeitos civis.
O n.º 1, do artigo, da Lei n.º 37/15, de 5.05, estabelece as condições para que é possível determinar a não transcrição da condenação no registo criminal, para efeitos meramente civis. E, com efeito, este normativo permite esta possibilidade, tendo por referência as pessoas singulares.
Assim, promovo que se indefira o requerido, por falta de fundamento legal».
Sufraga-se este entendimento, que também é o da jurisprudência, cf. acórdão da Relação de Guimarães, de 06 de Fevereiro de 2017, Proc. n.º 2137/10.9TABRG-A.G1, relator Pedro Miguel Lopes, em que se sumaria: «As Pessoas Coletivas não podem requerer, nem o tribunal determinar a não transcrição da condenação no registo criminal, para efeitos meramente civis.»
Vai indeferido.
…”.
2. Inconformada com este despacho, a sociedade/arguida recorreu, concluindo:
I – A recorrente requereu junto do tribunal a quo, a não transcrição da condenação penal no seu certificado de registo criminal, invocando o artigo 13º da Lei nº 37/15, de 5 de Maio, uma vez que considerou cumprir todos os requisitos da referida norma;
II - A sociedade arguida regularizou a sua situação declarativa e procedeu ao pagamento dos impostos decorrentes das declarações de substituição;
III - “A arguida S ..., S.A. não tem antecedentes criminais”.
IV - Procedeu já ao pagamento integral da multa correspondente à pena em que foi condenada, conforme resulta dos autos, o que determinou a extinção da referida pena.
V - Decorre do disposto no art.º 13.º n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio – Lei da Identificação Criminal, que a aplicação de uma pena de prisão até 1 (um) ano ou a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, como é o caso, possibilita a não transcrição da respectiva sentença no certificado de registo criminal se a Arguida não tiver sofrido condenações anteriores por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes,
VI – A recorrente cumpre os referidos requisitos/pressupostos, sendo ainda primária uma vez que não regista qualquer condenação no seu certificado de registo criminal, não tendo, evidentemente “sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza”,
VII – Invocou ainda não haver perigo do cometimento de novos crimes.
VIII - A recorrente exerce a actividade de construção e engenharia civil e empreitadas de obras públicas, compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, a que corresponde o CAE 41200-R3 (1 dos factos provados da sentença);
IX - Tem nos seus quadros mais de 60 trabalhadores ao seu serviço e aproximadamente 200 trabalhadores em regime de subcontratação.
X – A Recorrente, no exercício da sua actividade, concorre a várias empreitadas de obras públicas, nos termos previstos no Código dos Contratos Públicos – DL 18/2008, de 29/01 (CCP), dispondo desde o ano de 2009, de alvará de obras públicas nº ……, classe máxima ……, emitido pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção.
XI - No âmbito dos procedimentos concursais ao abrigo daquele diploma legal (CCP), impõe-se à Recorrente, na qualidade de empreiteira, apresentar perante as entidades públicas adjudicantes o respectivo Certificado de Registo Criminal.
XII - A prática de crime desta natureza poderá configurar a verificação de impedimento à participação em procedimentos de contratação pública, nos termos e para os efeitos do artigo 55.º, nº1, al. b), do CCP.
XIII - Existe a efectiva possibilidade de lhe vir a ser coarctada a possibilidade de concorrer a empreitadas de obras públicas e, consequentemente, à celebração de contratos com entidades públicas, em consequência da transcrição da douta sentença no certificado de registo criminal, quadro que, a ocorrer, determinaria um grave e incomensurável prejuízo para a Recorrente, que centra a sua actividade na execução de empreitadas de obras públicas.
XIV – A transcrição da condenação no registo criminal da recorrente poderá afectar gravemente o exercício da sua actividade profissional colocando em risco a sua continuidade, a sua própria sobrevivência e bem assim dos seus trabalhadores que dela dependem, bem como a situação económica dos respectivos agregados familiares.
XV - A douta decisão recorrida faz uma interpretação meramente literal do artigo 13º da Lei nº 37/15, de 5 de Maio, o que não pode ser aceite;
XVI - Daquela lei não resulta, taxativamente, sem margem para dúvidas, que as pessoas colectivas estejam afastadas da possibilidade de requererem a não transcrição das penas no seu registo criminal.
XVII - Não existe qualquer razão para que a lei exclua tal possibilidade às pessoas colectivas.
XVIII - Resulta do artigo 60º do Código de Processo Penal sob a epígrafe de “posição processual” que “desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei.”
XIX - As pessoas colectivas, enquanto sujeitos processuais, não só gozam dos direitos, como também estão sujeitos ao cumprimento de deveres – designadamente os que constam do artigo 61º do CPP – devendo o estatuto de arguido ser aplicado em todo o seu alcance, e sem quaisquer restrições que não decorram da sua especial natureza;
.XX - A limitação dos direitos de defesa ou garantias das pessoas colectivas, não seria compatível com o Princípio da Universalidade consignado no nº2 do artigo 12º da Constituição da República Portuguesa;
XXI - A Constituição reconhece expressamente a capacidade de gozo de direitos, assim como a submissão a deveres, às pessoas colectivas, superando assim a concepção já há muito ultrapassada, de que os direitos fundamentais estão exclusivamente centrados nas pessoas singulares, o que também seria violador, em última linha, do Princípio da Igualdade, consignado no artigo 13º da CRP.
XXII - Ainda que as pessoas colectivas não sejam titulares de todos os direitos e deveres fundamentais, mas apenas aqueles compatíveis com a sua própria natureza, uma interpretação do artigo 13º da Lei nº 37/15, de 5/05, que exclua a possibilidade das pessoas colectivas requererem a não transcrição de uma condenação crime do seu registo criminal, é manifestamente violadora do Princípio da Universalidade ínsito no artigo 12º da CRP e do Princípio da Igualdade constante do artigo 13º do CRP.
XXIII - Ainda que o elemento literal daquele artigo 13º da Lei nº 37/15 aponte para a aplicação apenas a pessoas singulares, nenhuma outra razão subsiste para excluir a sua aplicação às pessoas colectivas, pelo que o entendimento do douto despacho recorrido é ilegal e inconstitucional, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
TERMOS EM QUE DEVE SER REVOGADO O DOUTO DESPACHO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE JULGUE VERIFICADOS OS REQUISITOS DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 13º DA LEI Nº 37/15, DE 5 DE MAIO, DETERMINANDO A NÃO TRANSCRIÇÃO DA CONDENAÇÃO NO REGISTO CRIMINAL DA RECORRENTE, JULGANDO AINDA QUE O ENTENDIMENTO DE QUE TAL NORMA SE APLICA APENAS A PESSOAS SINGULARES É INCONSTITUCIONAL POR VIOLAR O DISPOSTO NOS ARTIGOS 12º E 13º DA CRP.
3. Admitido o recurso a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, o Ministério Público respondeu, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto, aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância e concluiu pelo não provimento do recurso.
5. O objeto do recurso reconduz-se à questão de saber se existe fundamento legal para a não transcrição no registo criminal da condenação da recorrente.
*   
IIº 1. Condenada em pena multa, por crime de fraude fiscal qualificada, a recorrente S ..., Lda, invocando o disposto no art.13 da Lei nº 37/15, de 5 de maio, insurge-se contra o despacho recorrido que indeferiu a sua pretensão de não transcrição desta condenação penal no seu certificado de registo criminal.
Dispõe o invocado art.13:
“1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º -A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º.
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão”.
A citada Lei nº37/15 faz uma nítida separação entre as pessoas singulares e as pessoas coletivas, ao regulamentar o conteúdo dos certificados de registo criminal, restringindo-o naqueles que são requeridos pelas primeiras, quando destinados a certos fins (n.ºs 5 e 6 do art. 10.º), enquanto que, para as segundas, seja qual for o fim a que se destina o certificado, este tem de ser sempre integral (n.º 7, do art.10.º).
O art.13 invocado, expressamente prevê os certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10, que de forma evidente dizem respeito, apenas, às pessoas singulares, tendo a sua justificação na proteção ao “direito ao trabalho”.
Este “direito ao trabalho” de que é titular a pessoa singular tem a ver com direitos pessoais, enquanto o direito ao “livre exercício da atividade económica” das pessoas coletivas tem a ver com direitos de natureza económica.
São direitos de natureza diversa, optando a Constituição da República Portuguesa por colocar os direitos das pessoas singulares numa posição hierárquica superior a muitos outros direitos, nomeadamente aos direitos das pessoas coletivas.
Compreende-se, por isso, que a não transcrição prevista no citado art.13 se restrinja às pessoas singulares, tal como acontece com o cancelamento provisório previsto no art.12[1].
Isto não significa que as pessoas coletivas tenham sido esquecidas, prevendo o art. 11 (als. c, e d, do nº1) os requisitos para o cancelamento definitivo das respetivas condenações, mas dando às pessoas coletivas sempre tratamento diferenciado do das pessoas singulares.
Considerando, como se referiu, que são direitos de natureza diversa e superior que justificam o tratamento diferenciado das pessoas singulares, quando comparado com o das pessoas coletivas, é manifesto que esse tratamento diferenciado não ofende quaisquer princípios constitucionais, nomeadamente os princípios da universalidade e da igualdade consagrados nos arts. 12 e 13, da CRP.
Em conclusão, o despacho recorrido não merece qualquer censura.
*    
IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa após conferência, negando provimento ao recurso da arguida S ..., Lda., acordam em confirmar o despacho recorrido.
Condena-se a recorrente em 3Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 19 de outubro de 2021
Vieira Lamim
Artur Vargues

[1] Neste sentido decidiu esta secção por acórdão de 15 de dezembro de 2020, proferido no Pº 813/20.7TXLSB-A.L1, em que interveio como adjunto o relator do presente recurso.