Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7191/20.2T9LSB-A.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
SUSPENSÃO DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. O princípio da suficiência consagrado no nº 1 do art. 7º do Cód. Proc. Penal significa que todas as questões essenciais para conhecer da existência de um crime sejam elas de natureza penal, civil, laboral, fiscal ou administrativa, devem ser decididas no processo penal.
II. A suspensão do processo para que se decida questão não penal no foro competente, nos termos do nº 2 do art. 7º do Cód. Proc. Penal, só pode ser determinada quando se possa concluir pela necessidade e conveniência imperiosa da suspensão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, após Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do Processo Comum (Colectivo) nº 7191/20.2T9LSB-A que corre termos no Juiz 22 do Juízo Central Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, vem a assistente AA, recorrer do despacho que determinou a suspensão do processo penal, pedindo que:
- o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento do processo penal, fazendo cessar a suspensão dos autos, concluindo no sentido da suficiência do presente processo penal, nos termos e para os efeitos do art. 7º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, para conhecer da verificação dos elementos típicos do crime de furto qualificado imputado ao arguido;
- subsidiariamente, que o despacho recorrido seja parcialmente revogado e substituído por outro que determine a separação dos processos, nos termos do art. 30º, nº 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal, a fim de que o presente processo prossiga relativamente aos crimes de abuso de confiança qualificado, falsificação de documentos e desobediência qualificada
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
A. O presente recurso tem por objeto o despacho de 21.09.2024, com a referência n.º 438449905, que determinou a suspensão do presente processo penal, pelo prazo de 6 (seis) meses, até ser proferida decisão no âmbito do processo n.º 1892/21.5T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Comércio de Lisboa – Juiz 2.
B. O Despacho recorrido fundamentou a suspensão do processo penal na alegada circunstância de não se encontrar ainda estabelecido, com certeza jurídica, que os bens cuja subtração é imputada ao Arguido, quer nos termos da acusação, quer nos termos do despacho de pronúncia, têm carácter alheio, elemento típico essencial do crime de furto pelo qual o Arguido vinha acusado e, posteriormente, pronunciado.
C. Assim, o Tribunal a quo determinou a suspensão do processo penal, com o adiamento das datas designadas para a audiência de julgamento, remetendo para a jurisdição cível a decisão – sobre o que entende ser questão prejudicial –, de demonstrar que as ações ao portador que titulam o capital social da ... integram, em parte, a herança deixada por óbito de BB e de que, pelo menos uma outra parte, era pertença da Assistente AA, sob pena de ausência de legitimidade desta última para impulsionar a ação penal quanto ao crime de furto.
D. O Tribunal a quo sustentou o seu entendimento nas exceções ao princípio da suficiência do processo penal, ao abrigo do disposto no artigo 7.º, n.º 2, do CPP, as quais admitem a possibilidade de suspensão do processo penal, tendo em vista a resolução de questões prejudiciais por tribunal competente distinto do tribunal penal, in casu, permitindo remeter para o processo cível n.º 1892/21.5T8LSB, onde a questão também se discute, a resolução do problema do caráter alheio das ações da ....
E. Sucede que, apesar de o caráter alheio ser um elemento normativo do facto típico, enquanto conceito jurídico derivado das disposições legais sobre o direito de propriedade, a verdade é que o seu apuramento para efeitos de preenchimento do tipo não se limita a uma análise puramente civilista, sob pena de restrição desproporcional da amplitude do bem jurídico protegido.
F. Ademais, o afastamento do princípio da autossuficiência do processo penal, e a relevância das suas exceções para efeitos da relegação da questão prejudicial para Tribunal não penal, ao abrigo do referido artigo 7.º, n.º 2, do CPP, impõe a verificação de dois requisitos – (i) que a questão seja de resolução necessária para se conhecer da existência da infração penal e (ii) que o juiz verifique não poder a questão convenientemente decidir-se no processo penal, porquanto está em causa questão muito especializada, de difícil solução, de relevantes consequências ao seu nível próprio, ou que importe uma tramitação para a qual o processo penal não esteja talhado –, que, in casu, não se encontram preenchidos.
G. Com efeito, a questão de saber se as ações pertenciam à herança ou a outra pessoa (in casu, a BB, à ... e / ou à Assistente), não pode ser encarada como uma questão de tal forma especializada e de difícil solução, que importaria uma tramitação para a qual o processo penal não se encontra talhado.
H. Assim, o Tribunal de 1.ª instância podia afirmar categoricamente o caráter alheio das ações ao portador que titulavam o capital social da ... e que integravam, em parte, a herança deixada por BB, sem a necessidade de recorrer ao Tribunal cível para o efeito, desde logo porque existiam indícios e elementos suficientes nos autos que sempre permitiriam ao Tribunal a quo concluir, sem grandes malabarismos, pelo caráter alheio das ações.
I. Tal foi, aliás, reconhecido pela Decisão Instrutória, proferida em 04.12.2023, na qual se lê que existem indícios suficientes de que o Arguido, única pessoa com acesso ao cofre onde se encontravam as ações ao portador da ..., estava ciente de que as mesmas pertenciam à herança aberta por óbito de seu Pai, não as tendo entregado à Assistente.
J. A circunstância de a Exma. Senhora Juiz de Instrução Criminal se ter pronunciado, desde logo, sobre a questão do caráter alheio, enquanto elemento do tipo de furto, nos termos exatos em que o fez, é uma manifestação inequívoca de que, a ter prosseguido a audiência de julgamento nos termos agendados, o juiz não se depararia com uma questão dotada de complexidade ou especificidades de maior, ainda para mais numa fase do processo penal em que releva a essencialidade da produção de prova, à luz do princípio da imediação.
K. De outro modo, todas as ações penais em que estivessem em causa crimes com elementos do tipo normativos careceriam obrigatoriamente de devolução para o tribunal da jurisdição competente, deturpando o sentido do princípio da suficiência do processo penal.
L. A existência de indícios suficientes do caráter alheio – auxiliando à demonstração de que em causa não estava um problema de complexidade ou especificidade de maior –, é ainda confirmada pela Sentença proferida, em 08.11.2020, em sede do procedimento cautelar comum n.º 1269/20.4T8LSB, na qual ficou indiciariamente provado que “O Requerido CC tem na sua posse todo o acervo documental de BB, incluindo os títulos representativos do capital social da ...”.
M. E, por conseguinte, tendo decidido no sentido de determinar que “O Requerido CC [entregasse] à Requerente os títulos representativos do capital social da Requerida ... das 2.329 acções que pertencem à Requerente, bem como, os títulos das 6.670 pertencentes à Herança aberta por óbito de BB”.
N. Do exposto resulta que ficou indiciariamente provado que as ações ao portador que titulam o capital social da ... integram a herança indivisa por óbito de BB.
O. Evidenciando que a questão de saber se as ações ao portador que titulam o capital social da ... têm, ou não, caráter alheio, não é dotada de uma complexidade ou especificidade tais que justificasse ao Tribunal relegar a competência para decidir do caráter alheio à jurisdição cível, em prejuízo da autossuficiência do processo penal.
P. Razão pela qual deve a Decisão a quo ser revogada e substituída por outra que determine a cessação da suspensão dos presentes autos, concluindo no sentido da suficiência do presente processo penal para conhecer da verificação dos elementos típicos do crime de furto qualificado imputado ao Arguido, em especial, do caráter alheio das ações que titulam o capital social da ..., o que ora se requer a V. Exas.
Subsidiariamente,
Q. Ainda que não se entenda que o Tribunal recorrido andou mal ao ter determinado a suspensão do processo penal, sempre o Tribunal a quo deveria ter determinado a separação de processos, nos termos do artigo 30.º, do CPP, prosseguindo os autos quanto aos crimes relativamente aos quais entendeu não existir qualquer questão prejudicial.
R. Com efeito, a manter-se a conexão dos processos, com a inevitável consequência de, em relação a todos eles, assistir-se à suspensão da ação penal, tal resultará num grave risco para os interesses da Ofendida/Assistente, o que representa um dos fundamentos legais para ordenar a separação de processos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
S. Com efeito, o historial do presente processo demonstra que o prazo máximo de duração do inquérito nos presentes autos foi largamente excedido, tendo já decorrido 4 (quatro) anos desde a autuação dos presentes autos, em 04.08.2020, e cerca de 3 (três) anos e um (um) mês, desde a constituição do Arguido, o que, de resto, motivou a apresentação de requerimento de aceleração processual.
T. Ademais, a apensação dos processos traduz num grave risco para os interesses da Assistente, que viu a sua vida virada do avesso e completamente vasculhada desde que o seu marido de uma vida faleceu, e agora se encontra numa situação em que vê a possibilidade de não vir a ser proferida uma decisão em tempo útil.
U. Ainda para mais num contexto em que se verifica que o próprio processo cível tem vindo a ser postergado, com requerimentos a pedir pelo adiamento das sessões da audiência de julgamento, atrasando assim a decisão final que permitirá à Assistente ver a justiça restaurada e os bens do seu falecido marido devolvidos à herança onde pertencem e, com isso, atrasando também a decisão penal.
V. Razão pela qual deverão V. Exas. ordenar, a título subsidiário, a separação dos processos, a fim de que o presente processo prossiga relativamente aos crimes de abuso de confiança qualificado, falsificação de documentos e desobediência qualificada, tendo em vista os interesses da Assistente, que poderão estar em risco se assim não se considerar, o que ora se requer.
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Quer a Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, quer o arguido CC, contra-alegaram, pugnando ambos pela improcedência do recurso, ainda que sem apresentar conclusões.
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A Mma. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer onde afirma acompanhar a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª Instância.
A recorrente respondeu ao Parecer pugnando pela total procedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
No âmbito dos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal colectivo, na sequência da dedução de acusação pública e subsequente despacho de pronúncia, foi determinada a sujeição a julgamento de CC, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de:
- 1 (um) crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. e), e n.º 2, al. a), com referência ao artigo 202.º, al. b) do Código Penal;
- 1 (um) crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. artigo 205.º, n.º 1 e 4, al. b), com referência ao artigo 202.º, al. b), do Código Penal;
- 4 (quatro) crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. a), d) e e) do Código Penal; e
- 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao artigo 375.º do Código de Processo Civil.
Por requerimento apresentado a 2.09.2024 (fls. 2282 e seguintes) veio o arguido requerer a suspensão dos presentes autos, até que seja proferida decisão final no âmbito de processos cíveis que identifica – Processo n.º 1892/21.5T8LSB, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa – J2, e Processo n.º 22324/21.3T8LSB, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa – J5 –, sustentando que no âmbito da primeira acção é discutida a titularidade das acções ao portador representativas do capital social da “...”, enquanto a segunda acção tem por objecto o apuramento de responsabilidade civil do arguido, na qualidade de administrador das sociedades “...”, “...” e “...”.
O Ministério Público pronunciou-se nos autos a 18.09.2024 (fls. 3161 e seguintes), considerando, em resumo, que se verificam os pressupostos para a suspensão deste processo penal, em face da matéria em causa nestes autos e a que é discutida nas identificadas acções cíveis, pelas razões enunciadas em tal promoção, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Pronunciou-se a assistente a 18.09.2024 (fls. 3164 e seguintes), pugnando pelo indeferimento da requerida suspensão, pelas razões expostas a fls. 3164 e seguintes, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Decidindo.
Analisada a pronúncia (que remete para a acusação pública), verifica-se, no que agora releva, que a factualidade relativa ao crime de furto qualificado, assenta, em resumo, na alegada subtracção, pelo arguido, do cofre do escritório da sociedade ... – ao qual, após a morte de seu pai, apenas o arguido tinha acesso – das acções ao portador representativas do capital social dessa sociedade, fazendo crer que tais títulos tinham sido adquiridos em 2016, ainda em vida de seu pai, pela sociedade ..., o que não corresponderia à verdade.
No âmbito da acção n.º 1892/21.5T8LSB, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa – J2, instaurada pela aqui assistente AA contra o aqui arguido CC e ainda contra as sociedades ..., ..., ..., ..., e ..., é peticionada:
- A condenação dos réus a reconhecer a herança de BB como titular de 6.670 acções da sociedade ...;
- A condenação dos réus a reconhecer a autora como titular de 2.329 acções da ...;
- A condenação da sociedade ... na restituição dos títulos representativos do capital social da ... que tem na sua posse ao seus legítimos titulares, ou seja, 6.670 títulos à herança e 2.329 títulos à autora, sendo os demais títulos entregues à própria sociedade ...;
- Seja reconhecido à autora o direito de exercer todos os direitos sociais e económicos referentes às suas participações sociais na ré ..., independentemente da situação formal dos respectivos títulos;
- Seja reconhecido à autora o direito de exercer todos os direitos sociais e económicos referentes às participações sociais da herança de BB na ré ..., independentemente da situação formal dos respectivos títulos.
Já o processo n.º 22324/21.3T8LSB, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa – J5, foi instaurado por ..., ..., ..., e ... contra o ora arguido CC, pugnando aqueles pela condenação deste no pagamento da quantia de € 2.900.000,00 (dois milhões e novecentos mil euros), alicerçando a sua pretensão indemnizatória no danos causados pelo arguido, no quadro da actividade que desenvolveu enquanto administrador daquelas sociedades.
Estatui o artigo 7.º do Código de Processo Penal o seguinte:
“1. O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
2. Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
3. A suspensão pode ser requerida, após a acusação ou o requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, ou ser ordenada oficiosamente pelo tribunal. A suspensão não pode, porém, prejudicar a realização de diligências urgentes de prova.
4. O tribunal marca o prazo da suspensão, que pode ser prorrogado até um ano se a demora na decisão não for imputável ao assistente ou ao arguido. O Ministério Público pode sempre intervir no processo não penal para promover o seu rápido andamento e informar o tribunal penal. Esgotado o prazo sem que a questão prejudicial tenha sido resolvida, ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão é decidida no processo penal”.
Constitui questão prejudicial a questão jurídica concreta que, embora autónoma quanto ao seu objecto, por referência à questão principal do processo, se revela como questão condicionante do conhecimento e decisão da questão principal (Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. I, Verbo Ed., 4.ª Ed., pág. 114).
Como é sabido, o Código de Processo Penal consagra um regime misto quanto à questão da prejudicialidade: a regra é que a questão prejudicial seja resolvida no processo penal (atento o princípio da suficiência do processo penal que vigora no nosso ordenamento jurídico), sendo a excepção os casos em que o juiz entenda que tal questão não poderá ser convenientemente decidida em processo penal, caso em que é devolvida a sua resolução ao tribunal competente.
No caso que nos ocupa, no que concerne ao crime de furto, como bem assinala o Ministério Público, cumpre estabelecer, com certeza jurídica, que os bens cuja subtracção é imputada ao arguido têm carácter alheio, elemento típico essencial do crime de furto, sendo, pois, essencial demonstrar que as acções ao portador que titulam o capital social da ..., integravam, em parte, a herança deixada por óbito de BB e, pelo menos uma outra parte, era pertença da assistente AA, sob pena de ausência de legitimidade desta última para impulsionar a acção penal quanto ao crime de furto.
Ora, tal matéria está, de facto, em apreciação no processo n.º 1892/21.5T8LSB, cuja audiência de julgamento se encontra agendada para o próximo mês de Outubro, afigurando-se justificada a suspensão deste processo penal, pelo menos durante 6 meses, a fim de aguardar a definição da situação jurídica relativa a tal questão.
Já no que tange aos restantes crimes imputados ao arguido, afigura-se que as referenciadas acções cíveis pendentes não colocam em causa a suficiência do processo penal, sequer no que tange ao crime de abuso de confiança.
Em face do que se deixa exposto, deferindo parcialmente a pretensão do arguido, secundada pelo Ministério Público, considerando que se impõe a definição de factualidade prévia e essencial com vista à verificação dos elementos típicos do crime de furto qualificado imputado ao arguido, e uma vez que não se encontra iminente o decurso de prazo de prescrição do procedimento criminal relativo a qualquer um dos crimes de que se encontra pronunciado nestes autos, ao abrigo do disposto no artigo 7.º, n.º 2 e 4 do Código de Processo Penal, determino a suspensão do presente processo penal, pelo prazo de 6 (seis) meses, aguardando-se a decisão a proferir no âmbito do processo n.º 1892/21.5T8LSB do Juízo do Comércio de Lisboa – J2.
Com cópia, comunique ao processo n.º 1892/21.5T8LSB do Juízo do Comércio de Lisboa – J2 a presente decisão de suspensão do processo penal, solicitando a oportuna remessa da sentença que vier a ser proferida nesses autos, no quadro da audiência de julgamento agendada para o mês de Outubro.
(…)
* * *
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em causa está a suspensão do processo por questão prejudicial.
*
Com a interposição do presente recurso pretende a assistente que seja revogado o despacho que determinou a suspensão do processo por causa prejudicial pendente em jurisdição civil, ordenando-se o prosseguimento dos autos, ou, ao menos, seja ordenada a separação de processos para que os autos prossigam para apreciação dos factos que não estão dependentes da causa prejudicial.
A questão a decidir prende-se com a aplicação, ao caso concreto, do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 7º do Cód. Proc. Penal.
Prevê este normativo (sob a epígrafe “suficiência do processo penal”) no nº 1 que “o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.
O princípio da suficiência significa, em rigor, que o tribunal penal assume competência própria para decidir todas as questões penais e não penais que interessarem à decisão da causa” (Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, p. 40). Ou seja, todas as questões essenciais para conhecer da existência de um crime sejam elas de natureza penal, civil, laboral, fiscal ou administrativa, devem ser decididas no processo penal.
Segundo Tiago Caiado Milheiro (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, p. 135) uma das razões fundantes do princípio da suficiência do processo penal é, desde logo, a boa administração da justiça penal, na medida em que o exercício do ius puniendi, enquanto monopólio estadual, estruturante num Estado de direito democrático, não pode abdicar de um processo penal com capacidade para “valer por si só” e para reagir rapidamente à violação de bens jurídicos, sem que seja tolhida a legítima expectativa societária na movimentação da máquina judiciária para descobrir os agentes do crime e puni-los, ao mesmo tempo.
Contudo, o nº 2 do citado art. 7º acrescenta ao nº 1 uma válvula de segurança, estipulando que “quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”.
Como se lê no Acórdão da Relação de Coimbra de 23.05.2012 (Proc. 387/08.7TATMR. C1, pesquisado em www.dgsi.pt) “Os termos da formulação legal revelam que em matéria de questões prejudiciais em processo penal o legislador optou por um regime de discricionariedade vinculada. É esse o sentido da norma do nº 2 do art. 7º, quando dispõe que “(…) pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”. Ou seja, tendencialmente, todas as questões suscitadas que interessem à decisão da causa deverão ser resolvidas no processo penal (nº 1). Contudo, se a verificação da existência de um crime exigir o julgamento de questão não penal (por exemplo, questão de natureza civil cuja verificação seja essencial ao preenchimento do tipo legal de crime) e se essa questão não puder ser convenientemente resolvida no processo penal (por exemplo, pela necessidade de observar um formalismo dificilmente compaginável com o andamento do processo penal), o tribunal poderá (a título excepcional) suspender o processo penal para que a questão seja decidida no foro próprio (nº 2); e ainda assim, se a questão prejudicial não tiver sido resolvida no prazo assinalado para o efeito ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão será decidida no processo penal (nº 4).
Discricionariedade vinculada, dissemos, porque de todo o modo, ainda que a lei conceda ao julgador uma razoável margem de manobra («pode o tribunal suspender»), aponta um critério legal que vincula esse poder discricionário, cumulativamente assente na “necessidade” e na “conveniência”:
- A “necessidade” reporta-se aos elementos do tipo legal de crime (“Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário …”) e pressupõe a indispensabilidade de conhecimento da questão dita prejudicial em termos tais que a questão penal não poderá sequer ser decidida sem a prévia decisão da questão prejudicial;
- A “conveniência” deverá resultar de razões de natureza subjectiva ou processual, como seja a decisão por um tribunal de competência específica ou a utilização de uma determinada tramitação ou forma processual dificilmente compatível com a prevista para o processo penal.
Ou seja, “a questão é prejudicial quanto tendo natureza não penal a sua resolução seja necessária para o conhecimento do facto criminoso – isto é, que dela surja a dúvida sobre a existência ou não de uma infracção criminal – e que só possa ser convenientemente resolvida em outro foro e processo próprio” (Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 3ª ed., p. 122).
No caso concreto, o arguido está pronunciado pela prática de 1 (um) crime de furto qualificado, 1 (um) crime de abuso de confiança qualificado, 4 (quatro) crimes de falsificação de documentos e 1 (um) crime de desobediência qualificada.
O despacho recorrido decidiu suspender o processo porque “a factualidade relativa ao crime de furto qualificado, assenta, em resumo, na alegada subtracção, pelo arguido, do cofre do escritório da sociedade ... – ao qual, após a morte de seu pai, apenas o arguido tinha acesso – das acções ao portador representativas do capital social dessa sociedade, fazendo crer que tais títulos tinham sido adquiridos em 2016, ainda em vida de seu pai, pela sociedade ..., o que não corresponderia à verdade”, considerando que “no que concerne ao crime de furto (…) cumpre estabelecer, com certeza jurídica, que os bens cuja subtracção é imputada ao arguido têm carácter alheio, elemento típico essencial do crime de furto, sendo, pois, essencial demonstrar que as acções ao portador que titulam o capital social da ..., integravam, em parte, a herança deixada por óbito de BB e, pelo menos uma outra parte, era pertença da assistente AA, sob pena de ausência de legitimidade desta última para impulsionar a acção penal quanto ao crime de furto” e “tal matéria está, de facto, em apreciação no processo n.º 1892/21.5T8LSB”.
Compulsados os autos, verifica-se que os factos indiciados que se reportam à prática pelo arguido de 1 (um) crime de furto qualificado por ter retirado do cofre do escritório da sociedade ..., ao qual só ele tinha acesso, após a morte do BB, as acções ao portador daquela sociedade, subtraindo-as e fazendo crer que tinham sido entregues à sociedade ..., assim agindo com o propósito de subtrair, do interior do cofre, os títulos nominativos da ..., fazendo-os seus contra a vontade e em prejuízo dos legítimos proprietários, sabendo que não lhe pertenciam mas antes ao de cujus, e que pertencem à herança e aos seus familiares.
Por seu turno, no âmbito da Acção nº 1892/21.5T8LSB, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa – J2, instaurada pela aqui assistente AA contra o aqui arguido CC e ainda contra as sociedades ..., ..., ..., e ..., é peticionada, além do mais, a condenação dos réus a reconhecer a herança de BB como titular de 6.670 acções da sociedade ... e a reconhecer a autora como titular de 2.329 acções da ..., bem como a condenação da sociedade ... na restituição dos títulos representativos do capital social da ... que tem na sua posse ao seus legítimos titulares, ou seja, 6.670 títulos à herança e 2.329 títulos à autora, sendo os demais títulos entregues à própria sociedade ....
Tal como refere o despacho recorrido, é verdade que só existe crime de furto se os bens que o agente subtrai forem alheios… e é certo que a Acção nº 1892/21.5T8LSB tem como objecto o reconhecimento da legítima titularidade dos títulos cuja subtracção é imputada ao arguido nestes autos.
A questão que se coloca é se é necessário e conveniente aguardar pela decisão da Acção nº 1892/21.5T8LSB para conhecer da existência do crime de furto, isto é, se nos presentes autos não se consegue apurar a natureza alheia da coisa alegadamente furtada.
E aqui chegados a resposta tem que ser negativa.
Apurar a propriedade dos títulos ao portador alegadamente furtados não é questão que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal. Pelo contrário, o processo penal dispõe de todos os meios para resolver convenientemente o problema da propriedade de um bem.
Tal como refere Tiago Caiado Milheiro (ob. citada, p. 140) o conceito “conveniente” é um conceito aberto “que deverá ser densificado socorrendo-nos de todas as hipóteses factuais que implicariam que a questão, caso não existisse a suspensão ou possibilidade de recurso a uma decisão de jurisdição não penal – juízo hipotético –, seria mais dificilmente esclarecida no processo penal. Ou seja, a busca pela verdade material seria mais “árdua”. E poderão ser situações de extrema dificuldade técnica, que impliquem tramitações dificilmente conciliáveis com o processo penal, de ausência de meios específicos na jurisdição penal (…) quando o processo penal tem todos os elementos, ou possa “angariar” todos os meios de prova para um esclarecimento conveniente, torna-se desnecessária a suspensão. A suspensão tem que ser uma necessidade imperiosa para a descoberta da verdade e apuramento de todos os pressupostos da responsabilidade criminal, pois, só assim, se justifica um sacrifício do princípio da celeridade processual”.
No caso em análise não se verificam os requisitos exigidos para que se possa concluir pela necessidade e conveniência imperiosa da suspensão. Ao invés, o Tribunal penal tem competência e meios para decidir as questões não penais que se perfilam e interessam à decisão da causa.
Pelo que o recurso procede (sem necessidade de pronúncia sobre o pedido subsidiário).
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogam o despacho recorrido, determinando o prosseguimento do processo e cessada a suspensão.
Sem custas.

Lisboa, 6.02.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Rui Poças
Sandra Oliveira Pinto