Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6523/2007-3
Relator: MORAES ROCHA
Descritores: CONTUMÁCIA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - As normas relativas à prescrição, e não apenas os tipos incriminadores e as cláusulas de extensão da tipicidade insertas na parte geral do Código Penal, estão abrangidas pelo princípio da legalidade, uma vez que também elas fundamentam a punibilidade.
II - A interpretação do segmento «a declaração de contumácia … implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido», inserto no n.º 1 do artigo 336.º da redacção originária do Código de Processo Penal, no sentido de que aí se consagra uma causa especial de suspensão da prescrição do procedimento criminal admitida pelo corpo do n.º 1 do artigo 119.º da redacção primitiva do Código Penal de 1982 viola o princípio da legalidade criminal referido, sendo portanto, por esse motivo, materialmente inconstitucional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência no Tribunal da Relação de Lisboa
O Ministério Publico recorre do despacho de fls. 122 o qual entendendo que a prescrição do procedimento criminal não se suspende com a contumácia, declarou prescrito o procedimento criminal.
Entende o recorrente que o despacho recorrido afastou a doutrina do Assento de 10/11/2000 do STJ e, como tal, deve ser revogado.
O Exmo. PGA emite parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos e realizada a Conferência cumpre apreciar e decidir.

A questão a dirimir resume-se a saber se no domínio de vigência do Código Penal de 1982 (versão do DL n.° 400/82, de 23 de Setembro) e do Código de Processo Penal de 1987 (versão do DL n.° 78/87, de 17 de Fevereiro), a declaração de contumácia constituía ou não causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto no art. 119 °, n.° 1, al. a) do CP 82.
Vejamos.
A constitucionalidade da orientação normativa firmada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 10/2000 foi já objecto, pelo menos, de duas pronúncias, contraditórias, por parte do Tribunal Constitucional: A primeira – (posto que num âmbito de apreciação mais restrito) –, através do Acórdão n.° 44912002, de 29 de Outubro, publicado no DR – lI Série, de 12-12-02, no sentido de que «não é inconstitucional a norma do art. 119.0, n.° 1 do Código Penal de1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia». A segunda, por via do recente Acórdão n.° 110107, publicado no DR – II Série, de 20-03-07, no sentido de que é «inconstitucional, por violação do artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia».

Na sequência desta última decisão entendeu o STJ não proceder ainda, nos termos do n.° 3 do art. 446.° do CPP, ao reexame da Jurisprudência fixada, que implicitamente manteve.
Ora, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal, o momento da aplicação da lei penal no tempo é o da prática ou da consumação do crime, sendo retroactiva toda a aplicação de lei que for posterior a esse momento.
A aplicação da lei no tempo, a fazer nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, tem de fazer-se por comparação entre regimes penais sucessivos, devendo ser seleccionado, em bloco, aquele que, em concreto, se revelar mais favorável ao arguido.
As normas sobre causas interruptivas ou suspensivas da prescrição são de direito material e por isso aplicam-se quanto a elas os princípios sobre a aplicação no tempo das leis penais substantivas. Isto significa que há-de ser pelas leis vigentes à data da prática dos factos que se hão-de determinar os prazos e as causas de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal, salvo na medida em que leis posteriores sejam mais favoráveis ao arguido, caso em que são aplicadas retroactivamente por força do disposto no art. 2.º n.º4 do Código Penal. Vistos os artigos 2.º, nº 4, do CP, 5.º, e 336.º, n.º 1, (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro), do CPP, e 29.º, da CRP, a lei penal substantiva aplicável deve ser a mais favorável (seja por alusão ao momento da prática dos factos, ou ao momento em que cumpre decidir determinada questão), enquanto que em sede de lei adjectiva será de aplicar o regime em vigor no momento da prática do acto processual, ressalvadas, no entanto, as normas penais processuais de conteúdo substancial (normas que circunscrevem, negativamente, os tipos legais), que seguem aquelas regras do direito substantivo – “in casu”, regime do “Código Penal 82”, e isto, porque com a aplicação do “Código Penal 95”, com diverso regime interruptivo e suspensivo do prazo prescricional, relevaria a declaração de contumácia, quer para efeitos de interrupção do prazo de prescrição, quer para efeitos de suspensão da prescrição [cf. art.120.º n.º1, al. c) e 121.º n.º1, al. c)].
À data dos factos, encontravam-se em vigor aqueles, citados, artigos, e os 119.º e 120.º, do CP, na redacção originária do DL n.º 400/82, de 23 de Setembro, não se fazendo, nestes, alusão à eficácia suspensiva e/ou interruptiva da declaração de contumácia, no incidente à prescrição.
Só em 1 de Outubro de 1995, tendo entrado em vigor o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com alteração dos aludidos preceitos, agora 120.º e 121.º, do CP, deles passou a constar, respectivamente, que “a prescrição do procedimento criminal suspende-se (...) durante o tempo em que: (...) c) vigorar a declaração de contumácia”, e que “a prescrição do procedimento criminal interrompe-se: (...) c) com a declaração de contumácia”.
Ora, independentemente de o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 10/2000, ter, ou não, implicado prática forense “sem qualquer fundamento legal”, – cf. Germano Marques da Silva, “in” Direito Penal Português, III, 1999, Verbo, p. 234, anotação n.º1 - certo é que “a proibição da analogia de normas relativas à prescrição partilha dos fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da incriminação, e insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de crimes e penas, prevista no artigo 168.°, n.º 1, alínea b), da Constituição”. Como se escreve no Acórdão do TC n.º 285/99, se “a perseguição criminal tem um “tempo” próprio, e certo, para ser desencadeada e promovida…a não prescrição do procedimento criminal é condição jurídica do exercício da acção penal - “orientada pelo princípio da legalidade”, conforme exige a Constituição no artigo 219.º n.º1.
Mas acresce que a introdução de um grau relevante de incerteza neste campo repercute-se, por sua vez, na consistência do princípio da legalidade que preside à aplicação da lei criminal, conforme exigência dos n.ºs 1 e 3 do art. 29.º da Constituição. A punição criminal pressupõe lei anterior, mas lei que tem de ser certa. Por isso neste domínio é incompatível com a Constituição uma interpretação “criadora”, que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca”.
O tribunal recorrido, ao adoptar um entendimento das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção originária, segundo o qual a prescrição do procedimento criminal não se suspende com a declaração de contumácia, respeitou o princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º, nºs 1 e 3, da Constituição da República – por razões semelhantes, como se escreve, às que levaram o Tribunal Constitucional, antes do “Acórdão 110/2007”, de 15.02.2007, “a censurar, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, “interpretações actualistas”, posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à prescrição”.
É certo que o legislador ao publicar o novo Código de Processo Penal deveria ter alterado o Código Penal de 1982, nomeadamente as disposições relativas à prescrição, para adaptar as causas de suspensão e de interrupção do procedimento criminal à nova tramitação prevista, como veio a fazer em 1995, e depois em 1998, sob pena de, de outro modo, acabar «por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça».
Porém, tais considerações de política legislativa não podem, por si só, sustentar a referida interpretação do artigo 336.º do Código de Processo Penal.
Se, em geral, as considerações político-criminais não podem ser estranhas ao intérprete e devem por ele ser consideradas na sua actividade, o resultado da interpretação não pode ir além do sentido possível das palavras utilizadas no texto. Não se pode pretender que o intérprete, com base nas considerações de política legislativa e político-criminais, se substitua ao legislador e alcance, por via da aplicação do direito, o resultado que o legislador devia ter previsto mas que, consabidamente, não previu.
De outra forma violar-se-ia inexoravelmente o princípio da legalidade consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º do Código Penal.
Na verdade, as normas relativas à prescrição, e não apenas os tipos incriminadores e as cláusulas de extensão da tipicidade insertas na parte geral do Código Penal, estão abrangidas pelo princípio da legalidade uma vez que também elas fundamentam a punibilidade.
A interpretação do segmento «a declaração de contumácia ... implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido», inserto no n.º1 do artigo 336.º da redacção originária do Código de Processo Penal, no sentido de que aí se consagra uma causa especial de suspensão da prescrição do procedimento criminal admitida pelo corpo do nº 1 do artigo 119.º da redacção primitiva do Código Penal de 1982 viola o princípio da legalidade criminal referido, sendo portanto, por esse motivo, materialmente inconstitucional.
Para além disso, essa interpretação conduziria a atribuir ao instituto da contumácia efeitos não previstos na Lei de Autorização Legislativa que permitiu a aprovação do novo Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de Dezembro), o que acarretaria também a sua inconstitucionalidade orgânica por violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa. (Neste sentido, o Ac. Rel. Lisboa de 22/02/2006, Proc. n.º 11609/05, acessível in www.dgsi.pt/jtrl (relator: Des. Carlos Almeida).
Da perspectiva do respeito pelo princípio da legalidade, e de compatibilidade com a Constituição, não se deverá, agora, entender-se que a previsão de “suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”, como efeito da declaração de contumácia, inclui, como seu sentido comum e literal, a suspensão da prescrição do procedimento criminal.
O que se disse não está prejudicado pelas recentes alterações introduzidas no CPP pela Lei n.º 48/2007.
Assim sendo, como parece ser, havendo razões para crer que a jurisprudência fixada no Assento do STJ n.º 10/2000, de 19/10/2000, está ultrapassada, como fundamenta a decisão revidenda, nos termos dos artigos 446.º, n.º 3, e 447.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPP, bem andou o tribunal recorrido, afastando-se daquela (jurisprudência fixada), e decidindo em conformidade pela prescrição do procedimento criminal.

Termos em que, na improcedência do recurso, se confirma a decisão recorrida.

Sem custas por delas o M.º P.º estar isento.

Lisboa, 26/09/2007
Moraes Rocha
Carlos Almeida
Telo Lucas