Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MORGADO | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO SENTENÇA TRANSACÇÃO JUDICIAL INTERPRETAÇÃO PROPRIEDADE HORIZONTAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/04/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | A sentença homologatória de transacção judicial constitui como as restantes sentenças de condenação título executivo (al. a), do art. 46º, do CPC), embora se deva ter em conta que o teor daquela sentença é complementado com o do negócio homologado. A interpretação de uma sentença judicial, como acto jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no art. 295º, do CC, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos. Significa isto que a sentença deve ser interpretada de acordo com o que dispõem os art. 236º e 238º, do mesmo Código, isto é, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto e que aí encontre um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. A fixação do sentido e alcance da sentença homologatória implica necessariamente que se tenha em conta os termos da transacção, que a decisão incorpora, bem como os factos alegados e o pedido formulado e que constituem o objecto da acção – cf. art. 498º, nº3, CPC. Se faltarem os requisitos legais de constituição da propriedade horizontal apenas em relação a algumas das fracções do prédio, e não em relação a todas elas, a sanção cominada no art. 1416º, do CC só deve valer quanto às fracções irregularmente constituídas. (sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Á, J e M na qualidade de executados, deduziram embargos à execução em que é exequente o Condomínio do prédio, representado pela sua administradora. Para tanto, alegam, em síntese, que: Na acção declarativa que correu entre as partes[1] foi lavrado termo de transacção, homologado por sentença, posteriormente complementada com despacho de aclaração, nos termos da qual foi declarado nulo o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio; Sendo assim, não existindo título, não dispõe o exequente de personalidade judiciária. Invocam, ainda, não serem exigíveis as quantias reclamadas na execução, respeitantes a obras feitas na porta de entrada do prédio e a honorários de advogado. 2. Os embargos foram contestados e, além do mais, foi invocado o abuso de direito. 3. Findos os articulados, foi proferida decisão que, julgando procedente a excepção invocada, absolveu os executados da instância executiva. 4. Inconformado, agrava o embargado/exequente e, em conclusão, diz: Devem ser considerar-se provados todos os factos alegados nos arts. 4º a 22º, da contestação à oposição, por serem relevantes para a decisão da causa; Quando assim se não entenda, deve ser organizada base instrutória e proceder-se a julgamento; Em todo o caso, deve reconhecer-se que, com o termo de transacção lavrado na acção judicial, as partes quiseram, não a declaração de nulidade ou anulação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em causa, mas a sua alteração, declarando-se que a fracção “B” constitui parte comum do prédio e cancelando-se a inscrição de aquisição da mesma a favor dos réus; Aliás, era esse o pedido formulado na p.i., o qual foi expressamente confessado pelos réus, conforme consta da transacção; É, neste sentido, que deve ser interpretado o teor da sentença homologatória e do respectivo despacho de aclaração; Entendimento contrário a tudo o que acima ficou exposto conduziria a um verdadeiro abuso de direito – pois não pode conceber-se nem admitir-se que os embargantes (ora recorridos) tivessem podido negociar com os restantes condóminos a cedência da antiga fracção "B" e respectiva reposição como parte comum (locupletando-se, para tal efeito, com uma avultada quantia em dinheiro) e viessem agora arguir uma pretensa "nulidade" daquilo que eles próprios negociaram e venderam. 5. Nas contra-alegações, pugna-se pela manutenção da decisão recorrida. 6. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. 7. É a seguinte a factualidade dada como assente na decisão recorrida: Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial a constituição em regime de propriedade horizontal do prédio com a descrição, do prédio; De harmonia com a descrição existente, a fracção B) compõe-se de uma cave, com o valor inicial de 658.640$00, correspondente a 82,33%0; No âmbito dos autos de Acção Ordinária foi proferida, em 28/9/1999, sentença homologatória de transacção, mediante a qual os RR. confessaram os seguintes pedidos: a) Ser declarado parcialmente nulo o negócio constitutivo da propriedade horizontal; b) Ser cancelado o registo da fracção “B”, a favor dos réus; c) Ser declarado como constituindo parte comum do prédio, a dependência, designada por fracção “B”, que constitui a cave preenchida por uma ocupação, compondo-se de uma ampla divisão e sanitários, com a distribuição pelas restantes fracções das permilagens que lhes corresponder; d) Ordenar-se a alteração, em conformidade, da descrição predial do prédio. Na sequência de pedido de aclaração, foi proferido, em 09.03.2001, o seguinte despacho, também transitado: “Nos termos da transacção de fls. 371, homologada por sentença de fls. 372, declara-se nulo o título constitutivo de propriedade horizontal do prédio, determinando-se o cancelamento do registo da fracção "B" a favor dos RR, declarando-a como constituindo parte comum do prédio, alterando-se em conformidade a descrição predial. (...)" 8. As questões a decidir neste recurso são as seguintes: - Saber se deve ser alterada a matéria de facto; - Saber se o exequente/embargado dispõe, ou não, de personalidade judiciária; na negativa, saber se estão verificados os pressupostos do abuso de direito. 9. Relativamente à pretendida alteração da matéria de facto O teor dos arts. 4º a 22º, da contestação, nos seus aspectos nucleares, e no que interessa à decisão, encontra-se vertido na matéria de facto dada como assente, pelo que, sem necessidade de mais considerações, se decide improceder a sua pretensão. 10. Da invocada excepção de falta de personalidade judiciária do exequente 10.1. O ora exequente propôs contra os ora executados uma acção declarativa em que, no tocante à fracção "B", com base em divergência (quanto ao fim a que a se destina) entre o título constitutivo da propriedade horizontal e o projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal, pedia: a) se declarasse a nulidade parcial do título; b) se cancelasse o registo da fracção a favor dos réus; c) se declarasse que a dependência em causa passava a constituir parte comum, com a correspondente alteração das permilagens; d) se ordenasse a alteração da descrição predial do prédio[2]; e) se condenasse os réus a pagar indemnização, a liquidar posteriormente[3]. Na referida acção, foi lavrado termo de transacção, do seguinte teor (cf. certidão de fls. 161): - A Autora desiste do pedido formulado na alínea e) da P.I.; - Os réus confessam os restantes pedidos, entregando nesta data a garagem à A.. Esta transacção foi homologada por sentença, transitada em julgado (cf. fls. 163). Posteriormente, o A. (ora exequente), invocando dificuldades burocráticas a nível do registo predial[4], pediu a aclaração da sentença homologatória, a fim de ser expressamente ordenada a supressão da fracção “B”, passando esta a integrar as partes comuns do prédio, redistribuindo-se pelas restantes fracções, a permilagem que lhes correspondesse. Foi, então, proferido despacho do seguinte teor (cf. fls. 164): “Nos termos da transacção de fls. 371, homologada por sentença de fls. 372, declara-se nulo o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio, determinando-se o cancelamento do registo da fracção "B”, a favor dos réus, declarando-se como constituindo parte comum do prédio, alterando-se em conformidade a descrição predial.” Perante esta factualidade, os embargantes alegam que, sendo nulo o título constitutivo da propriedade horizontal, não goza o exequente de personalidade judiciária. O Tribunal a quo (acolhendo a tese dos embargantes) entendeu que, na sequência da declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, deixou de existir «condomínio», pelo que o exequente se encontra desprovido de personalidade judiciária, pressuposto processual sem o qual não pode estar em juízo. Não é assim, como veremos. Na verdade: 10.2. O art. 6º, al. e), do CPC estende a personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador. Ora, como se sabe, é em função do título executivo que se determinam o fim e os limites (objectivos e subjectivos) da acção executiva (art. 45º, CPC), pelo que, antes de mais, há que atentar no título dado à execução. No caso dos autos, o título executivo é uma sentença homologatória de transacção judicial, que constitui como as restantes sentenças de condenação título executivo (al. a), do art. 46º, do CPC)[5], embora se deva ter em conta que o teor da sentença homologatória é complementado com o do negócio homologado. Ou seja: Transitada em julgado, a força obrigatória da sentença homologatória sobre a relação material controvertida impõe-se dentro e fora do processo, nos limites fixados pelos arts. 497º e ss., do CPC – cf. art. 673º, CPC. Além disso, embora não conheça do mérito da causa, a sentença homologatória da transacção, integra necessariamente a solução de mérito, de harmonia com a vontade das partes e nos precisos termos acordados. É esse o seu conteúdo. Neste recurso, discute-se se a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal o afecta na totalidade, ou apenas parcialmente. A resposta a dar a esta questão conduz-nos obrigatoriamente à interpretação da sentença e do respectivo despacho de aclaração. Constitui jurisprudência pacífica que a interpretação de uma sentença judicial, como acto jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no art. 295º, do CC, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos. Significa isto que a sentença deve ser interpretada de acordo com o que dispõem os art. 236º e 238º, do mesmo Código, isto é, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto e que aí encontre um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. No caso concreto: A fixação do sentido e alcance da sentença homologatória e do despacho de aclaração, seu complemento e parte integrante (art. 670º, nº1, do CPC), implica necessariamente que se tenha em conta os termos da transacção, que a decisão incorpora, bem como os factos alegados e os pedidos formulados na respectiva acção[6] (e confessados pelos réus) e que constituem o objecto da acção – cf. art. 498º, nº3, CPC –, já que é nula a sentença que condene em objecto diverso do pedido – art. 668º, nº 1, al. e), CPC. Ora, o juízo de ponderação de todos estes factores conduz inexoravelmente à conclusão de que o sentido interpretativo que um «declaratário normal» pode deduzir do contexto das sobreditas decisões é o de que se pretendia declarar (apenas) a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal (sendo esta aliás a solução legal decorrente dos preceitos atrás citados e que o julgador não poderia desconhecer)[7]. Por seu turno, a nulidade parcial – como decorre do disposto no art. 292º, do CC. - não determina a invalidade de todo o negócio, a não ser que se demonstre que este não teria sido concluído sem a parte viciada (o que in casu se não demonstrou). Neste sentido, aliás, se pronuncia Abílio Neto, in "Manual da Propriedade Horizontal", 2006, 29 e 30, escrevendo: “quando ocorra essa hipótese (a nulidade parcial) a subordinação ao regime de compropriedade deve ser aplicada apenas às fracções constituídas com ofensa da lei, passando, assim, a vigorar entre os titulares dessas mesmas fracções o regime da compropriedade. Também Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª Ed., pág. 402 sustentam que se faltarem os requisitos legais de constituição da propriedade horizontal apenas em relação a algumas das fracções do prédio, e não em relação a todas elas, a sanção cominada no art. 1416º, do CC deve valer só quanto às fracções irregularmente constituídas.[8] Em face do exposto, é de concluir que a nulidade (parcial) do título apenas atinge a fracção “B”, continuando, quanto às restantes, a vigorar o regime da propriedade horizontal, com as correcções impostas por aquela decisão. Procede, pois, o recurso, devendo a oposição prosseguir para apuramento das demais questões suscitadas nos articulados. 10. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a decisão recorrida, devendo a oposição prosseguir a sua tramitação normal. Custas pelos agravados. Lisboa, 4 de Maio de 2010 Maria do Rosário Morgado Roque Nogueira Abrantes Geraldes ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Nesta acção, a então administradora do condomínio do prédio, alegando haver desconformidade entre o fim a que se destinava a fracção “B”, no projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal e no título constitutivo da propriedade horizontal, pedia que: a) fosse declarado parcialmente nulo o negócio constitutivo da propriedade horizontal; b) fosse cancelado o registo da fracção “B”, a favor dos réus; c) fosse declarado como constituindo parte comum do prédio, a dependência designada como fracção “B”, compondo-se de uma ampla divisão e sanitários, com a distribuição pelas restantes fracções das permilagens que lhes correspondem; d) fosse ordenada a alteração, em conformidade, da descrição predial do prédio; e)fossem os réus condenados em indemnização, a liquidar em execução de sentença – cf. certidão de fls. 166 e ss. [2] Ao contrário do que alega o recorrente, era este o pedido formulado e não o de «alteração em conformidade da propriedade horizontal». [3] Cf. certidão de fls. 167 e ss. [4] Cf. requerimento de fls. 178, em que se alega que a Conservatória exigia que a sentença ordenasse expressamente a supressão da fracção “B” e a sua integração nas partes comuns do prédio, com a redistribuição das permilagens. [5] cf., a propósito, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 42 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, A Acção Executiva Singular, 74-75. [6] Repete-se: na referida acção formulava-se, além de outros, o pedido de declaração de nulidade parcial do negócio constitutivo da propriedade horizontal. [7] Cf. o Assento do STJ, de 10.5.1989 (JusNet 1620/1989), hoje, com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos arts. 732.°-A e 732.°-B, ambos do Código de Processo Civil, que versou precisamente sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal e firmou a seguinte doutrina:"nos termos do art. 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal.” [8] Cf., no mesmo sentido, Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIII, 1976, pág. 88, nota 26 e, na jurisprudência, entre outros, o Acórdão do STJ de 8 Setembro 2009 (JusNet 4732/2009). |