Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15426/17.2T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULAS NULAS
INTERPRETAÇÃO DO CLAUSULADO
INVALIDEZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Na interpretação do contrato de seguro, partindo do vertido na respetiva apólice, há que ter em conta o fim prosseguido com a celebração do contrato e o seu efeito útil: no caso concreto, a Autora, tomadora do seguro, mutuária num contrato de crédito à habitação, celebrou com a Ré, Seguradora, um contrato de seguro deste crédito (ramo vida) com uma cobertura complementar que pretende ver acionada, atinente à invalidez total e permanente (da Pessoa Segura), por motivo de doença ou de acidente.
II - Na ação intentada com vista a obter o cumprimento desse contrato de seguro, bem como uma indemnização pelo não cumprimento, cabe à Autora o ónus da alegação e prova da verificação de uma tal situação de invalidez, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga titular (art. 342.º, n.º 1 do CC).
III - Na definição e concretização dessa invalidez há que atender ao que consta da apólice e às cláusulas das condições gerais, especiais e particulares, interpretando-as, tendo em atenção o disposto nos artigos 236.º a 238.º do CC e no art. 11.º, n.ºs 1 e 2, do RRCCG.
IV - Face ao objetivo visado pelo contrato, não se mostra contrária à boa fé a cláusula 3.ª das Condições Especiais que, visando a concretização da situação de Invalidez Total e Permanente definida na cláusula 2.ª das Condições Especiais (como “situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”), explicite que tal invalidez deverá “corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”; e ser “precedida de uma incapacidade absoluta (completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação profissional) e durar mais de 180 dias consecutivos, sendo esse período alargado para dois anos, nos casos de alienação mental ou perturbações psíquicas.”
V - Tão pouco será de considerar contrária à boa fé tal cláusula na parte em que determina que o seu reconhecimento pela Seguradora terá lugar logo que essa invalidez seja “clinicamente constatada, com fundamento em elementos objetivos, por um médico mandatado pelo Segurador, não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura” e seja “reconhecida previamente pela Instituição da Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida”; mas tal clausulado apenas pode ser visto como um mecanismo, no âmbito do procedimento interno da Seguradora, de prevenção e combate à fraude de seguros, que em nada obsta ao reconhecimento judicial da situação de invalidez, se verificada em juízo, mormente com recurso a prova pericial.
VI - A circunstância de a Autora ter obtido um atestado médico de incapacidade multiuso em que lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global definitiva de 76% não basta para que se possa considerar verificada a referida situação de Invalidez Total e Permanente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
JA, Autora na ação declarativa de condenação que, sob a forma de processo comum, intentou contra Companhia de SegurosLimited, interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Na Petição Inicial, apresentada em 03-07-2017, a Autora pediu a condenação da Ré:
1) a reconhecer a nulidade da cláusula 3.3 das condições especiais do complementar de invalidez total e permanente da apólice de seguro contratado entre a Autora e a Ré, que faz depender o pagamento do capital seguro dos requisitos cumulativamente aí apostos;
2) a pagar a indemnização/capital em dívida, relativo à apólice de seguro de vida, no valor de 48.275,87 € (quarenta e oito mil duzentos e setenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos).
3) a devolver o valor do prémio mensal pago desde dezembro de 2015 que computa, àquela data, em 665,00 € (seiscentos e sessenta e cinco euros);
4) a indemnizar a Autora por danos não patrimoniais, no valor de 5.000,00 € (cinco mil euros);
5) a pagar a quantia de 1.000,00 €, (mil euros) a título de indemnização correspondente ao valor que a Autora despendeu, desde a data da verificação da sua invalidez, até à presente data;
6) a pagar os juros, à taxa legal, sobre a quantia peticionada desde a notificação até ao integral e efetivo pagamento.
Para tanto e em síntese, alegou que: no dia 22-03-2012, celebrou um contrato de seguro com a Seguradora Ré, o que fez na qualidade de tomadora de seguro e de pessoa segura, conforme apólice n.º …, do qual é beneficiária irrevogável a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, para garantia do contrato de mútuo que com a mesma celebrou; a Autora está impossibilitada de exercer uma atividade remunerada, designadamente na distribuição de pão a que se dedicava, pois padece de várias enfermidades; desde dezembro de 2015 que “se encontra aferido à A. um grau de incapacidade definitiva de 0,764%”; a incapacidade de que padece torna dolorosa a condução automóvel e tornou impossível para a Autora carregar os cestos com pão para o veículo com vista à sua distribuição; tendo em conta as suas capacidades, conhecimentos e aptidões, a Autora não consegue exercer outras funções semelhantes ou sequer compatíveis com as exercidas em data anterior à incapacidade; a cláusula 3.3. da Condições Especiais do contrato de seguro deve ser considerada não escrita, porquanto a verificação simultânea dos requisitos nela previstos é abusiva; a Autora depende economicamente de familiares, o que a deixa angustiada, estando a ser sujeita a constrangimentos e preocupações, o que agrava o estado depressivo de que padece.
Juntou documentos, arrolou testemunhas e requereu a realização de perícia, indicando o seguinte objeto: “Qual a percentagem de incapacidade de que a Autora padece?”.
A Ré apresentou Contestação, na qual se defendeu por exceção e impugnação motivada, de facto e de direito, alegando que: o sinistro não está abrangido pelo contrato de seguro em causa, não recaindo sobre a Ré qualquer obrigação de indemnizar, pois a incapacidade de que a Autora diz ser portadora apenas dificulta o exercício da sua atividade habitual, mas não a impossibilita de a exercer; o que consta da cláusula 3.3 das Condições Especiais diz respeito aos critérios concretizadores da situação de invalidez, não sendo, no entanto, esses requisitos que definem o âmbito da cobertura da apólice, pelo que só se estivesse preenchido o crivo da cláusula 2.ª das Condições Especiais é que se justificaria verificar se estavam preenchidos os requisitos da cláusula 3.3; ser inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, no que tange ao pedido de declaração de nulidade da cláusula, pois a Autora limita-se a referir que é abusiva sem alegar qualquer facto que sustente tal conclusão, e no tocante ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, por falta de alegação de factos; considera a Ré que a cláusula serve para estabelecer critérios objetivos e razoáveis para que a seguradora possa fazer, de forma objetiva a avaliação do sinistro, nada tendo de abusivo e servindo para acautelar o risco de fraude; entende não estar preenchido o primeiro requisito da cláusula porque, conforme entendido pelo Departamento Clínico da Ré, algumas das patologias que a Autora apresenta são passíveis de melhoria futura; não estar verificado o segundo requisito da cláusula porque o grau de desvalorização não pode deixar de ser o que corresponde à apólice contratada, outras apólices existindo para outros graus de desvalorização, com prémios em conformidade, não servindo o atestado multiusos para comprovar a incapacidade relevante que, no caso, conforme foi apurado pelo Departamento Clínico da Ré não é sequer superior a 44%; tão pouco se verifica o terceiro requisito já que nunca a Autora fez prova, nem no procedimento de sinistro, nem nos presentes autos, de que a Segurança Social tenha reconhecido a incapacidade de que se arroga; quanto ao quarto requisito, reconhece a Ré, pelas informações recolhidas no âmbito do processo de sinistro, que se encontra preenchido, por visar apenas discernir as situações de invalidez total e permanente das situações de incapacidade temporária, tudo indicando que a situação invocada pela Autora já se verifica há mais de 180 dias.
Juntou um documento e arrolou testemunhas.
Realizou-se audiência prévia, onde se proferiu despacho saneador, que julgou improcedente a exceção relativa à ineptidão da petição inicial, mais tendo sido proferido despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
A Autora indicou nessa diligência que pretendia que a perícia requerida tivesse o seguinte objeto:
“1 – Qual a influência desta incapacidade na realização de tarefas do quotidiano da Autora?
2 – Implicações dessa mesma incapacidade a nível profissional, nomeadamente no exercício da profissão da Autora ou no desempenho de funções compatíveis com as suas capacidade, aptidões e conhecimentos?”
Foi determinada a realização de perícia, conforme requerido pela Autora, tendo sido junto aos autos, em 15-10-2018, o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil, no qual se concluiu designadamente que “Atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil (Anexo II do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro) e considerando o valor global da perda funcional decorrente dos antecedentes patológicos da examinanda atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 14 pontos”; mais se concluindo que “A afectação funcional decorrentes dos antecedentes patológicos da examinanda, não afectam a mesma em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico” e que “Neste caso, a afectação funcional decorrente dos antecedentes patológicos da examinanda são compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual da mesma, mas implicam esforços suplementares”.
A Autora requereu a realização de segunda perícia, o que foi indeferido por despacho de 12-12-2018, decisão que veio a ser revogada por acórdão da Relação de Lisboa, que determinou a realização daquela perícia. Em 15-10-2019, foi junto aos autos o respetivo relatório da perícia de avaliação do dano corporal em Direito Cível, nos termos do qual foi valorada em 14 pontos a denominada “incapacidade”, isto é, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica da Autora, concluindo-se igualmente que tal défice resultante das patologias médicas referidas “não é causa de afectação funcional da examinada em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico” e que tal afectação funcional “é compatível com o exercício profissional da examinanda de vendedora/distribuidora de produtos de panificação, implicando esforços suplementares”.
A Autora reclamou do relatório pericial, tendo sido indeferida a reclamação por despacho de 26-11-2019.
Após um primeiro adiamento, por falta da mandatária da Autora, e um segundo adiamento, por nova falta da mandatária da Autora, que foi considerada uma situação de justo impedimento, realizou-se a audiência final de julgamento, na qual foram ouvidas duas testemunhas arroladas pela Ré.
Em 06-04-2021, foi proferida a sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Por tudo quanto exposto fica, decide-se julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver a ré dos pedidos contra si formulados.
Custas pela autora, sem prejuízo do concedido apoio judiciário.”
Inconformada com esta decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a. A sentença recorrida não concedeu a nulidade da cláusula 3.ª/3 da apólice ajuizada.
b. Considerou que as diversas alíneas cumulativas da dita cláusula cumpriam o programa legal dos art.ºs 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG.
c. Pelo contrário, a recorrente confere à al. a) cláusula 3.ª uma inscrição na má-fé objectiva de reservar exclusivamente para a contraente seguradora o veredicto sobre a incapacidade da tomadora, coberta pela apólice deste seguro que à recorrente garante o risco de invalidez total e permanente pelo valor do capital mutuado, sendo beneficiário o banco credor (Caixa de Crédito Agrícola Mútuo).
d. Para tanto, deduz nesta motivação como elemento da boa-fé objectiva contratual a exigência, segundo o art.º 1.º da CRP, de uma apreciação “recursiva”, i.e., sob decisão de 2.º nível, quanto a esta matéria da invalidez coberta pelo seguro.
e. Por outro lado, as circunstâncias concretas e o ambiente negocial de um seguro garantia do reembolso de um empréstimo bancário para habitação própria, tal como é neste caso, aconselharem, antes de mais, a neutralidade da apreciação da severa invalidez da segurada, impõem também um juízo funcional sobre o tema e que tenha em conta a efectiva realidade da situação profissional e de ganho da recorrente.
f. Ora, competia à recorrida contestar por excepção, com base em negar este status concreto de a recorrente não estar carecida em situação profissional e de ganho, e não o fez.
g. Por isso mesmo, a sentença recorrida julgou in abstracto, de forma desadequada à lei e à justiça do caso.
h. De seguida, a recorrente insiste na nulidade da cláusula 3.ª/3, quanto à al. b), porque interpretada no sentido de excluir radicalmente um Atestado Médico Multiusos, como prova de uma incapacidade da segurada de mais de 60%, adjudicando-a apenas a um resultado segundo a Tabela Nacional de Avaliação do Dano em Direito Civil, infringe também a boa-fé.
i. Boa-fé inscrita e decorrente do ordenamento presente e suposto pela contraente/A., que vai do art.º 71.º/2 da CRP à Lei 9/89, de 02/05 e à republicação pelo DL 291/2009, de 12/10, do DL 202/96, de 23/10 – neste caso consoante o seu art.º 4.º/6/9.
j. Aqui, por desconsideração de um documento oficial e, por isso, documento autêntico (de alcance erga omnes), o qual, ao contrário do que defende a sentença recorrida, e desde logo, por exemplo, para efeitos tributários, logo comprovaria “invalidez para desempenho de actividade remunerada”.
k. Com efeito, são os rendimentos do trabalho in casu que estão em jogo (IRS).
l. Mas o que é certo é não ser mesmo o diploma que instituiu a TNI (por acidentes de trabalho e doenças profissionais) dirigido e esta instrumento adequado sequer (como elemento conjunto ou separado) ao juízo sobre a relevância de uma incapacidade profissional e de ganho da recorrente.
m. Base esta, da erosão económico-financeira da recorrente, em ordem à continuação em bom propósito do pagamento das prestações de reembolso do empréstimo bancário que obteve para adquirir casa própria.
n. Mais adiante, defende a recorrente que a al. c) da cláusula 3.ª/3 da apólice também infringe a boa-fé objectiva: transpõe, para o âmago de um contrato civil e correspondente relação privatística, uma circunstância de direito público e de lógica deôntica tão divergente quanto separada.
o. Por fim, defende também a recorrente, no que diz respeito à al. d) da cláusula 3.ª/3 posta em crise, que o prazo de 180 dias consecutivos e precedentes da incapacidade absoluta da segurada, resultam da passagem do Atestado Médico Multiusos, contados, segundo a lei e o hábito institucional e processual respectivos (exige-se demora – que não é necessário alegar, por ser do conhecimento comum  – na instrução do requerimento e uma junta médica de avaliação, nomeada – art.º 3.º/1/2/5 do DL 202/96, de 23/10).
p. Assim, a recusa da recorrida quanto ao pagamento da indenização/capital, prevista na cláusula 2.ª/1/2 das condições gerais e segundo as condições particulares (cobertura de invalidez total e permanente, actual, de € 48.275,87), infringe a apólice, eliminadas as suas cláusulas nulas.
q. Com efeito, as cláusulas que a recorrente arguiu de nulas, estão irremediavelmente feridas do vício em questão, e ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, por força dos art.ºs 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG.
r. Enquanto tal, para além de a recorrente ter provado uma invalidez profissional de 76% (irremissível – art.º 4.º/9 do DL 202/96, de 22/10), certo é que o ponto de vista que lhe exigiu a sentença recorrida, na sua parte final, quanto a não ter logrado sequer encontrar-se total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, é matéria de contestação por excepção, de que a recorrida não lançou mão.
s. De qualquer modo, tópico este da sentença recorrida que não pode obter respaldo algum, perante o Atestado Médico Multiusos passado à recorrente.
t. Entretanto, o resultado do exame médico legal a que a recorrente foi submetida, por não respeitar as exigências e limites da causa de pedir, não pode nem deve ser tido em conta.
u. Mas o que é certo é não poder prevalescer de qualquer modo contra o antecedente em data Atestado Médico Multiusos, acima referido, e pela já feita anotação legal do art.º 4.º/9 do DL 202/96, de 22/10.
v. Em resumo, a sentença recorrida, ao contrário, do que defende, fez errada aplicação dos art.ºs 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG.
w. E quanto ao obiter dictum de não ter a recorrente feito prova da invalidez exigível nos termos da cláusula 2.ª da apólice, não teve nem tem qualquer razão.
x. Termos em que merece, a douta sentença, ser reformada, em ordem à procedência do pedido.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Ré pugna pela manutenção da sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos:
1. Da análise conjugada dos artigos 2º e 3º das condições especiais extrai-se que a ré se obrigou a pagar o capital indicado na apólice no caso de se verificar uma situação de invalidez total e permanente, entendida esta como uma situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, servindo de  referência, para este efeito, concretamente, um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, em vigor à data da emissão da apólice.
2. O risco coberto é o facto de a pessoa ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões.
3. O estabelecimento da correspondência entre a invalidez total e permanente e os requisitos elencados na cláusula 3.3. serve de guia, de parâmetro de verificação da situação de invalidez.
4. Os referidos requisitos nada têm de abusivos, sendo ao invés critérios objectivos, que têm uma função instrumental de meio de prova da situação de invalidez e não visam caracterizar a situação como de invalidez, pois esta resulta antes do que consta da cláusula 2ª.
5. Assim, a exclusão da cláusula 3.3. – no que não se concede – em nada afectaria as coberturas contratadas.
6. Invalidez total e permanente pressupõe sempre uma incapacidade para trabalhar, mais concretamente, uma incapacidade para a actividade habitualmente exercida pela pessoa segura, ou qualquer outra compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
7. Nos presentes autos resultou provado que a incapacidade da autora apenas dificulta o exercício da actividade que habitualmente exercia, sendo que a dificuldade acrescida, não significa que a autora esteja impossibilitada de exercer a sua actividade profissional.
8. Em face do exposto, a pretensão da autora não pode proceder.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se o clausulado em 3.3 das Condições Especiais é nulo por contrariar a boa fé;
2.ª) Se, assim sendo e face aos factos provados quanto à situação profissional e de invalidez da Autora, a Ré está obrigada ao pagamento da indemnização/capital prevista na cláusula 2.ª das condições gerais e segundo as condições particulares (cobertura de invalidez total e permanente, atual, de 48.275,87 €), o que se prende com o ónus da respetiva alegação e prova.
Dos Factos
Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos (alterámos a redação em conformidade com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, salvo nas passagens que correspondem a citações; acrescentámos os destaques - negrito e sublinhado -, bem como, ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, e 607.º, n.º 4, ex vi 663.º, n.º 2, do CPC, os factos que constam entre parenteses retos):
A) A 07-02-2012, e com efeitos a 26-03-2012, a Ré, na qualidade de seguradora, celebrou com a Autora, na qualidade de tomadora de seguro e de pessoa segura, um contrato de seguro de vida temporário anual renovável, na modalidade “Crédito Seguro”, titulado pela apólice n.º … (documentos juntos a fls. 9 a 12 e 14 a 15 verso dos autos), para garantia de um crédito hipotecário, para aquisição de imóvel.
B) No sobredito contrato de seguro de vida temporário anual renovável figura como beneficiária irrevogável a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
C) Nos termos do disposto na cláusula 2.ª das Condições Gerais:
“2.1 – Consoante as modalidades, o contrato tem por objecto a cobertura do risco de morte da Pessoa Segura, ou sobrevivência, ou ambos. O pagamento das importâncias seguras – capitais ou rendas – é garantido em conformidade com o estipulado nas Condições Especiais e Particulares da Apólice.
2.2 - Pode ainda ser objecto do contrato a cobertura complementar dos riscos que afectem a esperança de vida da Pessoa Segura, nos termos das condições Especiais e Particulares aplicáveis.”
D) De acordo com as Condições Particulares, o contrato de seguro objeto dos presentes autos compreende as seguintes coberturas:
(i) Morte - 66.285,603 € (atualmente 48.275,87 €)
(ii) Invalidez Total e Permanente - 66.285,604 € (atualmente 48.275,87 €), como melhor se afere do documento junto a fls. 15 verso.
E) De acordo com a cláusula beneficiária prevista nas referidas Condições Particulares,
“Em caso de Morte/Invalidez
Beneficiário Irrevogável – CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO
Será pago o Capital em Dívida, até ao limite do Capital Seguro à data do Sinistro.
Caso o Capital Seguro seja superior ao Capital em Dívida, o diferencial será pago a:
HERDEIROS LEGAIS DA PESSOA SEGURA.”
F) Nos termos do disposto na cláusula 1.ª das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente):
“1.1 - A presente cobertura é complementar da cobertura principal do Seguro de Vida em conjunto com a qual se emite.
1.2 - Esta cobertura rege-se pelas Condições Gerais e Especiais da apólice e, complementarmente, pelas presentes Condições Especiais.”
G) Dispõe a cláusula 2.ª das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente) que,
“Para efeitos desta cobertura complementar, entende-se por:
a) INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE – Situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
H) De acordo com o disposto no artigo 3.1 das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente):
“3.1 – Através desta cobertura complementar o Segurador garante o pagamento, por antecipação, do capital seguro em caso de morte expresso nas condições particulares se a pessoa segura ficar em situação de invalidez total e permanente por motivo de doença ou de acidente. (...)” [constando no art. 1.º das Condições Gerais, além do mais, as seguintes definições “o) ACIDENTE – Acontecimento fortuito, súbito e imprevisível, devido a acção exterior e alheia à vontade da Pessoa Segura, que nela provoque a morte ou lesões corporais clínica e objectivamente constatáveis. P) DOENÇA – Qualquer alteração do estado de saúde da Pessoa segura diagnosticada e confirmada por um médico conforme definido na alínea r). (…) MÉDICO – O licenciado por uma Faculdade de Medicina legalmente autorizado a exercer a sua profissão no país onde o acto médico tiver lugar, e inscrito ma Ordem dos Médicos ou organismo equivalente nesse país. Excluem-se expressamente a Pessoa Segura ou qualquer membro da sua família.”]
I) Por fim, dispõe [o n.º 2 do art. 3.º das Condições Especiais, artigo com a epígrafe “GARANTIAS” que “A presente cobertura, quando complementar do Produto Patrimonial Vida, garante também a liberação do pagamento dos prémios vincendos” e] o n.º 3 da cláusula 3.ª das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente) que,
“3.3 – É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da invalidez a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
a) ser clinicamente constatada, com fundamento em elementos objectivos, por um médico da Seguradora [mandatado pelo Segurador], não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura [o que consta entre parenteses retos resulta da retificação do assinalado lapso de escrita];
b) corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;
c) ser reconhecida previamente pela Instituição da Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida;
d) ser precedida de uma incapacidade absoluta (completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação profissional) e durar mais de 180 dias consecutivos, sendo esse período alargado para dois anos, nos casos de alienação mental ou perturbações psíquicas.” [Mais constando do art. 7.º destas Condições Especiais que:
7.1. O Capital seguro será liquidado à própria Pessoa Segura ou a quem ela tenha designado, após a constatação por parte do Segurador do estado de Invalidez Total e Permanente, cessando todas as garantias da Apólice, excepto quando o contrato subscrito tiver sido o Patrimonial Vida.
7.2. Uma vez consolidada e clinicamente comprovada a Invalidez Total e Permanente, compete à Pessoa Segura, ou ao seu representante, apresentar a participação do sinistro ao Segurador, acompanhada de relatório médico - onde se descreva com pormenor a data de início, evolução, causas e natureza da invalidez, bem como qual a conclusão clínica – e dos demais elementos clínicos comprovativos da situação. Em caso de acidente, o referido relatório deverá detalhar as condições em que o mesmo ocorreu e nexo de causalidade entre aquele e a invalidez, e ainda atestar a consolidação da perda anatómica ou a impotência orgânica que permita determinar o coeficiente de desvalorização que lhe corresponde.
7.3. Se não houver acordo entre Pessoa Segura - ou o seu representante – e o Segurador sobre a causa, a natureza ou o grau de invalidez, cada uma das partes designará um perito médico para, em conferência, decidir a situação no prazo de 30 dias.
7.4. A Pessoa Segura obriga-se a fazer os exames que o médico designado pelo Segurador entender necessários para a comprovação da Invalidez Total e Permanente, realizando-os no local e no prazo que para tal forem indicados pelo Segurador, e obrigando-se também a autorizar o seu médico assistente, ou qualquer outro que a tenha examinado, a prestar ao Segurador todas as informações necessárias para o mesmo fim. (…)”].
J) Sob a epígrafe “Declaração Final” constante da Proposta de Seguro consta o seguinte:
“3) O Tomador de Seguro reconhece que ao subscrever a presente proposta de seguro de vida lhe foram fornecidas todas as informações pré-contratuais legalmente exigíveis quanto às condições do presente seguro, as quais constam das Condições Gerais e Especiais da Apólice que lhe foram entregues (...)” – documento junto a fls. 37 verso a 40 e cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
L) A Autora subscreveu esta declaração a 07-02-2012.
M) Em 04-12-2015 a Autora acionou a cobertura de Invalidez da sua apólice Vida.
N) A Autora foi observada nos serviços da Ré, tendo esta concluído que a Autora não reunia as condições necessárias para o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente, o que foi comunicado à Autora pelas cartas juntas a fls. 16 a 18 e 19 verso [designadamente, foi pela Ré enviada à Autora:
- A carta datada de 29-04-2016, na qual informou que “o Departamento Médico da MetLife não verifica todos os requisitos necessários ao reconhecimento da Invalidez Total e Permanente, nomeadamente no que diz respeito às alíneas a), b) e c) referente ao Artº 3.3 das Condições Especiais do Complementar de Invalidez total e Permanente (…) Face ao exposto, iremos proceder ao encerramento do processo de sinistro não havendo lugar ao pagamento de qualquer valor de indemnização.”;
- Carta de 28-12-2016, com carta anexa para a qual remete, subscrita pelo Dr. JS, e em que se refere designadamente que a Autora “foi observada nesta Companhia de Seguros em 01-02-2016. Da avaliação a que foi submetida foi parecer pelo Departamento Médico que a D.ª JA não reunia os requisitos necessários para o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente pelas seguintes razões:
- Não ter sido clinicamente constatada por Médico Mandatado da Seguradora, já que algumas das patologias que apresenta são passíveis de melhoria futura;
- O grau de desvalorização que apresenta, de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil é de 44% (44 pontos), conforme cálculo anexo;
- Não lhe ter sido reconhecida pela Instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida a situação de Invalidez.
Em relação ao Atestado Multiusos, o mesmo destina-se exclusivamente a benefícios fiscais não sendo por si só comprovativo de qualquer tipo de Invalidez para o desempenho de uma actividade remunerada nem para a atribuição de uma pensão de Invalidez.”;
- Carta datada de 11-04-2017, na qual consta o seguinte “Como responsável do Departamento Médico, venho responder à sua missiva.
Em 04/12/2015 V. Exa accionou a cobertura de Invalidez Total e Permanente da sua Apólice de Vida n° 3420062111.
Foi reavaliada em 20/02/2017 e o parecer deste Departamento, tendo em conta a Observação Médica efectuada, assim como a nova documentação recebida (Relatório Médico de Reumatologia Dr. FS de 02/03/2017 enviado posteriormente) é de que V. Exa não reúne os requisitos necessários para o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente pelas seguintes razões:
- Não ser clinicamente constatada por Médico Mandatado da Seguradora, já que algumas das patologias que apresenta são passíveis de melhoria futura;
- O grau de desvalorização que apresenta, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, é de 44% conforme cálculo anexo;
- Não lhe ter sido reconhecido pela Instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida a situação de Invalidez (...não reúne as condições de incapacidade permanente, determinantes da atribuição da pensão de invalidez relativa...) conforme cópia em anexo;
- Em relação ao Atestado Multiusos, o mesmo destina-se exclusivamente a benefícios fiscais não sendo por si só comprovativo de qualquer tipo de Invalidez para o desempenho de uma actividade remunerada nem para a atribuição de uma pensão de Invalidez (anexa-se carta da Direcção Geral da Saúde)”, constando nesse anexo o seguinte:
“Em referência ao seu pedido de informação mencionado em epígrafe informa-se:
Nos termos do nº 6 do artº 4º do DL nº 202/96, de 23 de outubro, alterado pelo DL nº 291/2009, de 12 de outubro: (…)
Em termos de eventuais benefícios fiscais decorrentes da emissão de Atestados de Incapacidade Multiuso remete-se para o folheto informativo da Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), disponível no Portal das Finanças (em anexo).
Para além dos benefícios fiscais o utente com atestados de incapacidade multiuso poderá ainda eventualmente beneficiar de:
- Lugar de estacionamento para deficiente motor junto à residência em casos específicos de incapacidade motora (60% ou mais de incapacidade motora permanente nos membros superiores ou inferiores) ou multideficiência profunda (incapacidade de 90% ou mais, da qual pelo menos 60% motora) nos termos do DL nº 307/2003, de 10 de dezembro alterado pelo DL n° 17/2011, de 27 de janeiro;
- Isenção de taxas moderadoras, nos termos do DL 113/2011, de 29 de novembro, alterado pelo DL 117/2014, de 5 de agosto e pelo DL 61/2015, de 22 de abril (incapacidade igual ou superior a 60%);
- Manutenção do contrato de arrendamento e obtenção de um regime mais favorável de atualização de renda. O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela lei 6/2006 de 27 de Fevereiro (alterado pela Lei 31/2012, de 14 de agosto), que regula os contratos de arrendamento, no seu art.º 57.º ao tratar da Transmissão, no seu ponto 1. alínea e) refere que por morte do primitivo arrendatário o arrendamento para habitação não caduca se lhe sobreviver filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de 1 ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. Por outro lado o artº 36º do mesmo diploma estabelece um regime mais favorável de atualização de renda para arrendatário com grau de incapacidade superior a 60%;
- Crédito bonificado. As pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60% podem aceder a um regime autónomo de crédito à habitação bonificado. Este regime é aplicável às pessoas com deficiência que contratem um empréstimo e aos mutuários de contratos de crédito à habitação já celebrados e que, durante a vigência desse contrato, adquiram uma incapacidade igual ou superior a 60%.”]
O) A Autora foi avaliada em Junta Médica, para Atestado Médico de Incapacidade Multiuso [datado de 04-12-2015], que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global definitiva de 76% - fls. 21.
P) A Autora exercia a atividade de comerciante de pão, através de venda e distribuição ambulante.
Q) Antes da venda ambulante de pão possuía um estabelecimento de restauração onde exercia funções de cozinheira e empregada de balcão.
R) Anteriormente tinha trabalhado como empregada num estabelecimento de lavandaria industrial.
S) A Autora possui o 6.º ano de escolaridade.
T) À Autora foi atribuído um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica de 14 pontos.
U) “Este défice não é causa de afectação funcional da autora em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico.” (as aspas constam da sentença)
V) “A afectação funcional da autora resultante das patologias médicas ... é compatível com o exercício profissional da autora de vendedora/distribuidora de produtos de panificação, implicando esforços suplementares.” (as aspas constam da sentença)
Na sentença foram considerados não provados os factos constantes dos arts. 9.º, 14.º, 15.º, 24.º, 28.º a 33.º da Petição Inicial [designadamente, que:
- A Autora está impossibilidade de exercer uma atividade remunerada pois que padece de várias enfermidades, conforme Avaliação Prévia (doc. 8 junto com a PI);
- A incapacidade de que padece torna dolorosa a condução automóvel (quando praticada em longos períodos), bem como a entrada e saída dos veículos;
- Tornou-se impossível para a Autora carregar os cestos com pão para o veículo com vista à sua distribuição;
- Foi atribuído à Autora incapacidade superior a 60%;
- A Autora não possui quaisquer rendimentos para fazer face ao crédito mutuado, tão pouco às despesas correntes mensais;
- Pelo que desde a data da verificação da incapacidade que a Autora sobrevive à conta de ajudas de familiares para alimentação e despesas mensais essenciais;
- Esta dependência económica desgasta e afeta psicologicamente a Autora deixando-a profundamente angustiada;
- A que acrescem todos os constrangimentos (consultas, exames, deslocações, espera por resposta, sucessivas respostas negativas, entre outros) e preocupações a que a Autora foi e continua a ser sujeita para ver o seu direito reconhecido;
- O que agrava o estado depressivo de que padece.]

1.ª questão – Da nulidade da cláusula 3.3 das Condições Especiais
Na sentença recorrida, começou-se por indicar que a pretensão da Autora se fundava no cumprimento de contrato de seguro, fundamentando-se o decidido a respeito da invocada nulidade da dita cláusula nos seguintes termos:
«É um contrato de adesão, já que, por via de regra, (sobretudo nos seguros de massa), o tomador do seguro dispõe da possibilidade de aderir ou rejeitar em bloco um conjunto de cláusulas contratuais padronizadas prévia e unilateralmente elaboradas pela empresa seguradora. É um contrato sinalagmático e oneroso, mas também contrato aleatório - caracterizado por uma álea intrínseca, onde reina um estado de incerteza quanto ao significado patrimonial do contrato para os contraentes.
É, finalmente, um contrato de boa-fé.
Face à factualidade dada como provada dúvidas não restam que, no caso dos autos, estamos perante um contrato de seguro do ramo Vida, subscrito pela autora, seguro destinado a garantir o risco de morte e também de o risco de invalidez total e permanente, pelo valor do capital mutuado sendo seu beneficiário o Banco credor – Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
Entende a autora que reúne as condições para accionar com êxito a cobertura de Invalidez pois foi-lhe fixado um grau de incapacidade definitiva de 76%. Porém, a ré faz depender o reconhecimento da invalidez da verificação simultânea dos requisitos referidos na cláusula 3.3 das Condições Especiais do Complementar de Invalidez Total e Permanente, que entende ser abusiva e, portanto, no seu entender a cláusula é nula.
O contrato em causa – contrato de seguro do ramo Vida – é um contrato de adesão, pois que, não tendo sido previamente negociado, o seu clausulado, de elaboração exclusiva do proponente, consta de impressos tipificados que são apresentados ao destinatário que se limita a subscrever e aceitar; apenas lhe cabe aceitar ou rejeitar o texto que lhe é proposto.
Como típico contrato de adesão que é está sujeito, enquanto tal ao regime do DL nº 446/85 de 25/10.
As cláusulas contratuais gerais são entendidas como proposições pré-elaboradas, sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a subscrever ou a aceitar (art. 1.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25-10, que aprovou o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais).
Tais cláusulas caracterizam-se, assim: (i) pela sua generalidade, uma vez que se destinam a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser por eles subscritas; e (ii) pela sua rigidez, por serem elaboradas sem prévia negociação individual e recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceita, que, assim, não tem qualquer possibilidade de modelar o seu conteúdo, nem de introduzir nelas alterações.
Dispõe o art. 15.º do RJCCJ que “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé”, acrescentando o art. 12.º do mesmo regime que “As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos.”
Dispõe o art. 16.º do mesmo diploma legal que “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada e, especialmente:
a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.
Com essa remissão para os valores fundamentais do direito, em face da situação concreta, pretende-se que a decisão obedeça aos ditames da dogmática jurídica, excluindo-se, dessa forma, quer a hipótese de arbítrio, quer uma solução que atenda apenas às características do caso concreto, dado que os valores fundamentais do direito, ainda que só detectados em concreto, correspondem a vectores genéricos, referenciáveis em abstracto.
À luz dos critérios enunciados no art. 16.º do RJCCG, serão consideradas abusiva, porque opostas à boa fé e, como tal, proibidas: (i) as cláusulas que ofendam a confiança legítima provocada pelos factores enunciados na lei; e (ii) as cláusulas que, sem justificação legítima, contrariem, dificultem ou impeçam os objectivos prosseguidos pelas partes com o contrato.
Ao cabo e ao resto, para decidir da conformidade à boa fé, necessário se torna fazer um juízo comparativo entre a ordenação levada a cabo pelas cláusulas contratuais gerais e a que resultaria de uma equilibrada ponderação de interesses.
No que se refere em concreto ao contrato de seguro – que recorre a cláusulas pré-redigidas e gerais, impostas, desde logo, por exigências técnicas -, tal como faz notar Moitinho de Almeida “Contrato de Seguro, Estudos”, pg. 98-100, “são frequentes cláusulas que limitam arbitrariamente a protecção dos segurados ou tornam particularmente difícil o exercício dos direitos que a estes pertencem, e que, contrapostamente concedem injustificados direitos aos seguradores.
Assim, para aferir da natureza abusiva de uma cláusula neste domínio, deve ponderar-se a finalidade do contrato e quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela que o tomador podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato, devem tais cláusulas ser consideradas nulas.”
Em causa está nos autos um seguro que garante, em caso de morte ou de invalidez total e permanente (em consequência de doença ou acidente), a liquidação ao Banco mutuante do montante em dívida, tanto de capital como de juros.
Resulta, assim, ser evidente que o escopo específico de tal contrato é o de garantir que caso o segurado morra ou se veja incapacitado de trabalhar e, consequentemente, de auferir rendimentos, fique assegurado o pagamento ao Banco do “quantum” em dívida. É, pois, este, o preciso interesse da segurada.
Já o interesse do Banco, enquanto mutuante, consiste em ver reforçada a garantia de que o montante emprestado, bem como os respectivos juros, lhe serão pagos, ainda que a mutuária possa ficar em situação que impossibilite ou dificulte essa restituição.
No que concerne aos riscos tipificados no contrato, são eles a morte e a invalidez total e permanente em consequência de doença ou acidente da pessoa segura.
É, portanto, de meridiana clareza que os ditos eventos relevam na medida em que afectem a capacidade da mutuária de auferir rendimentos que lhe permita satisfazer a dívida que assumiu.
E é justamente nesse sentido o entendimento que vem sendo sufragado pelo STJ – veja-se a título de exemplo os Ac. de 18/09/2014 e 27/09/2016 - afirmando repetidamente que, à luz dos fins que presidem a um seguro como aquele em causa nos autos, o sinistro ou a verificação do risco ocorre quando os réditos dos devedores (aderentes) ficam comprometidos em ordem ao regular reembolso do mútuo, em razão da invalidez total e permanente que os torna incapazes de exercer uma actividade remunerada.
No caso presente, a cláusula que a autora entende dever ser excluída do contrato limita-se a clarificar o conceito de invalidez total e permanente. Melhor dito: na cláusula 2ª das Condições Especiais define-se o que se deve entender por uma situação de invalidez total e absoluta; na cláusula 3.3 estabelecem-se os requisitos que permitem aferir se a previamente detectada situação de invalidez integra o conceito de invalidez total e permanente relevante para efeitos da cobertura da apólice em causa.
Nesta conformidade, a cláusula constante das condições especiais da apólice, na qual se explicita o que deve entender-se por invalidez total e permanente, definindo-se quais as condições cumulativas de que depende a indemnização contratada evidencia-se perfeitamente compreensível e expectável para qualquer aderente de um contrato de seguro. Estabelece critérios objectivos e razoáveis para que a seguradora possa fazer auma avaliação objectiva do sinistro.
Não se vê, assim, que tal cláusula restrinja, de forma desproporcionada, os direitos dos segurados que aderiram à cobertura complementar de invalidez total e permanente, e nem que frustre a confiança que os mesmos, razoável e legitimamente, nela depositaram face ao sentido global das cláusulas, ao processo de formação do contrato e ao seu teor; e muito menos se vislumbra que tal cláusula esvazie de conteúdo o objectivo visado pelas partes ao contratar.
Na verdade, a cláusula em análise limita-se a clarificar o conceito de invalidez total e permanente ou, dito de outro modo, o risco coberto pelo seguro, sendo que era naturalmente com essa cobertura que os segurados, tendo em conta a finalidade do contrato, podiam razoavelmente contar, a qual, consequentemente, não resulta, de modo nenhum, contrariada, impedida ou sequer dificultada por essa estipulação.
Nada tem de abusiva a cláusula que estabelece requisitos que tem uma função instrumental de meio de prova da situação de invalidez e não visam caracterizar a situação como de invalidez, pois esta resulta antes do que consta da cláusula 2ª.
Na verdade, não se vislumbra em que medida a confiança depositada no dito contrato poderia ficar defraudada e muito menos se concebe, ponderando os interesses de ambos os contraentes, que a seguradora aufira, por força da dita cláusula, uma qualquer vantagem injustificada ou desproporcionada.
Tudo para concluir que não sendo a cláusula em questão desproporcionada, não favorecendo injustificadamente a posição contratual do predisponente e também não prejudicando inequitativa e danosamente o aderente, não pode a mesma considerar-se abusiva nos termos dos arts. 15.º e 16.º do RJCCG.»
A Autora-Apelante defende que a Ré-Apelada está obrigada ao cumprimento do contrato de seguro do ramo Vida Crédito Habitação, clamando pela nulidade da cláusula 3.3. das Condições Especiais, por força do disposto nos artigos 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG.
Vejamos se tem razão.
Não sem antes referir que, em face da interpretação que temos por correta dessa cláusula (como se explanará adiante) e face aos factos que foram considerados provados na sentença (decisão de facto que a Autora não impugnou, pelo menos com respeito pelo disposto no art. 640.º do CPC), em particular no tocante ao estipulado nas Condições Gerais, nas Condições Particulares e na cláusula 2.ª das Condições Especiais, até se poderia considerar inteiramente prejudicada, a apreciação da questão da nulidade do clausulado em 3.3. das Condições Especiais. No entanto, uma vez que isso não se mostra evidente, implicando uma justificação adicional, em parte coincidente com a que se terá de desenvolver na análise da questão em apreço, em torno da qual a Autora centrou a sua alegação de recurso, dela passamos a conhecer.
Tal cláusula encontra-se reduzida a escrito, sendo de referir, a propósito, que a validade do contrato de seguro não depende da observância de qualquer forma especial (ad substantiam ou ad probationem). Apesar disso, bastando o mero consenso, é obrigatória a redução a escrito da apólice pela Seguradora, assim se conseguindo a indispensável certeza jurídica quanto ao conteúdo do contrato, até porque aquela não poderá prevalecer-se do que foi acordado no contrato sem que cumpra tal obrigação (cf. art. 32.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04).
Não se discute que o contrato de seguro em apreço se insere no âmbito de aplicação do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10 – cf. art. 1.º, n.º 2. Sendo de salientar o princípio geral consagrado no seu art. 10.º a respeito da interpretação e integração cláusulas contratuais gerais: “As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.” O que convoca, assim, o disposto nos artigos 236.º a 239.º do CC, em que avulta, como principal critério interpretativo o do sentido normal da declaração, isto é, a teoria da impressão do destinatário (apenas postergado pelo da vontade real, no caso de esta ser conhecida do declaratário).
De referir ainda que, conforme disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 11.º do RRCCG, as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente.
Solução para a qual já apontaria, aliás, o art. 237.º do CC, nos termos do qual, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, o que, na interpretação dos contratos de seguro significa que, em caso de dúvida, deve prevalecer o sentido mais favorável a quem deles beneficia.
De referir, num breve excurso pela jurisprudência, que, numa situação em que estava em causa precisamente um contrato de mútuo, destinado a financiar a aquisição de habitação, no âmbito do qual assumiu a obrigação de contratar um seguro de vida ou de invalidez total e permanente para garantia do capital mutuado, o STJ, no acórdão de 05-07-2012, proferido na Revista n.º 1028/09.0TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção (disponível em www.dgsi.pt), considerou que:
“I - Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo. 
II - Em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (art. 236.º do CC). 
III - No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida.”
Na mesma linha de pensamento, e também a propósito de contratos de seguro, vejam-se os seguintes acórdãos do STJ (sumários disponíveis em www.stj.pt):
- de 10-05-2011, na Revista n.º 1870/08.0TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção: “I - A interpretação das cláusulas contratuais de um contrato de seguro deve ser efectuada de acordo com o disposto nos arts. 236.º a 238.º do CC, tendo também em conta o disposto no DL n.º 446/85, de 25-10, em relação às cláusulas contratuais gerais e, em geral, os princípios da boa fé contratual. II - Na interpretação das cláusulas gerais de um contrato de seguro deve seguir-se a doutrina da impressão do declaratário; e, se forem ambíguas, esgotadas todas as hipóteses, prevalece o sentido mais favorável ao segurado (art. 11.º, n.º 2, do citado DL n.º 446/85).”;
- de 14-06-2011, na Revista n.º 576/06.0TBPBL.L1.S1 - 1.ª Secção: “A lei acolheu, no art. 236.º do CC, a teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração negocial há-de ser interpretada e aceite de acordo com o que deveria ser entendido por uma pessoa que, histórico-socialmente situada, estivesse colocada na posição do declaratário e de acordo com o sentido normal e corrente que um destinatário colocado nessa posição atribuísse à declaração emitida.”
Portanto, na interpretação do contrato de seguro, partindo do vertido na respetiva apólice, dever-se-á ter em conta o fim prosseguido com a celebração do contrato e o seu efeito útil: no caso concreto, a tomadora do seguro, mutuária no contrato de crédito à habitação, celebrou um contrato de seguro de vida com uma cobertura complementar que agora pretende acionar, atinente à sua (da Pessoa Segura) invalidez total e permanente, ou seja, a situação de invalidez total e permanente por motivo de doença ou de acidente.
Significa isto que, ao atentarmos no clausulado no n.º 3 do art. 3.º das Condições Especiais, não podemos olvidar tudo o mais constante na apólice, bem como nas condições gerais, especiais e particulares do contrato.
A Apelante defende que tais cláusulas não respeitam o disposto nos artigos 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG. É bom lembrar o previsto nestes artigos, começando pelo art. 12.º, com a epígrafe, “Cláusulas proibidas”: “(A)s cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos.” Por sua vez, o art. 15.º consagra o princípio geral da boa fé, determinando que “(S)ão proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé.” O art. 16.º vem concretizar que “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:
a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.”
Recorde-se o teor do n.º 3 da cláusula 3.ª das Condições Especiais:
“3.3 – É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da invalidez a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
a) ser clinicamente constatada, com fundamento em elementos objectivos, por um médico da Seguradora [mandatado pelo Segurador], não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura [retificou-se o assinalado lapso de escrita];
b) corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;
c) ser reconhecida previamente pela Instituição da Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida;
d) ser precedida de uma incapacidade absoluta (completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação profissional) e durar mais de 180 dias consecutivos, sendo esse período alargado para dois anos, nos casos de alienação mental ou perturbações psíquicas.”
Antes de mais, sempre se dirá que não se descortina qualquer interesse em agir por parte da Apelante ao questionar a validade do clausulado em d), já que a própria Ré-Apelada sempre reconheceu o preenchimento do requisito aí previsto: nunca disse o contrário, como se vê pelo teor da correspondência enviada, e até expressamente aceitou na Contestação que se verificava. Além disso, não há dúvida que, a considerar-se que, como defende a Autora, a situação de facto que veio a resultar provada nos termos descritos em O) é quanto basta para que se possa considerar verificado o risco coberto pelo contrato de seguro em apreço, sempre se haveria igualmente de concluir que tal incapacidade absoluta durava há mais de 180 dias consecutivos. Portanto, em bom rigor, até nos parece inútil desenvolver esta subquestão (cf. art. 130.º do CPC).
Sempre se dirá, todavia, que o clausulado nessa alínea d), bem como na alínea b), se complementam, em moldes que não nos parecem contrários à boa fé, na concretização da situação de Invalidez Total e Permanente referida na cláusula 2.ª das Condições Especiais, aí definida como Situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões. Com efeito, face ao objetivo visado pelo contrato, parece razoável e até desejável a existência de elementos objetivos concretizadores duma tal situação de invalidez; ao invés, passível de frustrar a confiança da Autora seria um clausulado que deixasse “em aberto” algo de tão crucial na execução do contrato.
Assim, mostra-se adequada, a todos os níveis, a remissão para a Tabela que constitui o anexo II do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23-10, que, além de aprovar nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, veio aprovar a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil, a qual, conforme expressamente anunciado no Preâmbulo desse diploma, visa a criação de um instrumento adequado de avaliação neste domínio específico do direito, consubstanciado na aplicação de uma tabela médica com valor indicativo, destinada à avaliação e pontuação das incapacidades resultantes de alterações na integridade psicofísica.
Ademais, a previsão de um grau de desvalorização de, pelo menos, 60% também se mostra adequada já que a cobertura se refere a uma invalidez total e não há motivo algum para que a Autora fosse levada a confiar em que bastaria um grau inferior para aquela operar. O grau de 60% fixado certamente terá correspetivo no valor do prémio do seguro e nada tem de excessivo no contexto do tipo de contrato de seguro em apreço.
Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 24-10-2019, no processo n.º 1499/18.4T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt: “Num seguro de incapacidade o risco que se pretende acautelar são as consequências que para o segurado podem resultar da circunstância de ficar numa tal situação de debilidade funcional que o torna incapaz de fazer a sua vida normal e de auferir rendimentos pelo seu trabalho, em razão de invalidez absoluta e definitiva, com diminuição das capacidades para os atos normais da vida diária espelhadas numa incapacidade de 60% ou mais, sendo nessa previsão que, com lealdade e seriedade, se encontra o equilíbrio das prestações.” Nesse caso, havia sido estabelecido, numa cláusula contratual geral, o conceito de incapacidade que exigia, na consideração da situação de invalidez absoluta e definitiva, que a pessoa segura necessitasse de recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária, identificados como os mais básicos - comer, vestir-se e cuidar da sua higiene - exigindo, na prática, uma total e absoluta falta de autonomia, quase só equiparável a um estado vegetativo; considerou-se que tal exigência já nada tinha a ver com a afetação da capacidade de trabalho e de obtenção de rendimentos ou com uma diminuição das capacidades para o exercício de uma vida normal, que sempre é indiciada por uma incapacidade funcional de 60%, antes ia além deste conceito e da razão de ser do contrato, determinando um desequilíbrio das prestações contratuais e frustração da confiança do segurado, sendo abusiva por desproporcionada e contrária à boa fé e, por isso, nula.
Ainda, na mesma linha de pensamento, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 09-06-2016, no processo n.º 2603/14.7T8BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, de que citamos, para melhor esclarecimento, parte do respetivo sumário: “3 - Os segurados/aderentes num contrato de seguro de grupo contributivo associado a contrato de mútuo concedido para aquisição de habitação própria, frequentemente imposto pela instituição bancária mutuante, pretendem acautelar a hipótese de perder, por invalidez, a sua capacidade de ganho e consequentemente, a sua habitação, por incumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo. 4 - Num contrato de seguro, que cobre os riscos de morte e de invalidez permanente do segurado que contraiu empréstimos bancários - efectuando tal seguro por imposição do mutuante – é desproporcional à caracterização do estado de invalidez permanente que o mesmo seguro visa prevenir, a exigência cumulativa de um grau de incapacidade permanente igual ou superior a 75% com a impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa. Sendo este último segmento abusivo e, em consequência, nulo. 5 - E fazendo operar os critérios estabelecidos nos artigos 9º, 10º, 12º e 13º da LCCG, porque a amputação daquele segmento abusivo da clausula que definia a Invalidez Absoluta e Definitiva, não afecta o núcleo essencial das prestações do contrato de seguro em causa, impõe-se reduzir essa cláusula ao verdadeiro âmbito de um seguro de Vida, que cobre a Morte e a Invalidez Absoluta e Definitiva.”
Também no tocante à duração da incapacidade relevante não cremos que se justifique, no caso concreto, um juízo de desconformidade com a boa fé negocial, posto que a invalidez em apreço, além de total, deve ser permanente, verificando-se quando a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, não se afigurando desproporcionada ou descabida a exigência de uma completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a profissão ou ocupação profissional, durante mais de 180 dias consecutivos. Basta ver que, conforme referido no referido DL n.º 352/2007, na avaliação pericial, se deve ter em conta o conceito de consolidação, isto é, a altura em que, na sequência de um processo transitório de cuidados terapêuticos, a situação clínica (lesão ou défice funcional) se fixa e adquire um carácter permanente ou, pelo menos, duradouro, persistindo por um período de tempo indefinido.
Ao que acresce o atual estado da medicina, em todas as suas valências, possibilitando, fruto de intervenções cirúrgicas, medicação, tratamentos e terapias várias (v.g. fisioterapia), significativas melhorias no quadro clínico dos pacientes, que não são imediatas e, com frequência, podem ultrapassar a barreira dos 180 dias. A título meramente exemplificativo, veja-se o caso de um Acidente Vascular Cerebral, em que o pico da recuperação pode variar entre os 3 a 6 meses após o AVC.
Embora nem seja especificamente relevante para o caso, sempre se dirá que mesmo a duração alargada de dois anos prevista na cláusula em apreço não deixa de ter a sua razão de ser, como até resulta do aludido Decreto-Lei n.º 352/2007, aí se referindo, precisamente, que, na reação depressiva prolongada, se verifica um quadro depressivo moderado em resposta à exposição prolongada a uma situação geradora de stresse, cuja duração não exceda os dois anos; mas, se a duração for superior, o perito pode considerar tratar-se da síndrome classicamente conhecida por neurose pós-traumática, que mantém a sua relevância médico-legal e cujo diagnóstico, a ser formulado, é enquadrável na perturbação neurótica não especificada.
Quanto ao estatuído nas demais alíneas da cláusula em apreço já não se cuida aí, a nosso ver, propriamente da definição da Invalidez relevante, mas do procedimento interno de verificação da ocorrência daquela invalidez em ordem ao seu reconhecimento - voluntário, como é evidente - por parte da Seguradora. Com efeito, não vemos nestas alíneas um requisito necessário para a verificação da situação de invalidez, evento que está “a montante” desse procedimento, iniciado mediante a apresentação da indispensável participação/reclamação (no caso, pela Autora). No fundo, são exigências no âmbito do procedimento interno da Seguradora motivadas pela prevenção e combate à fraude de seguros. É a essa luz que deverá ser interpretado o que resulta do clausulado, ou seja, que a Seguradora logo reconhecerá a situação de Invalidez que tenha sido clinicamente constatada, com fundamento em elementos objetivos, por um médico mandatado por si, não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura, e que já tenha sido previamente reconhecida pela Instituição da Segurança Social.
Tal não significa que a Seguradora não possa ter de cumprir o contrato, efetuando o pagamento devido, independentemente da posição que tal médico ou Instituição da Segurança Social tenham adotado, como se retira, por exemplo, do clausulado em 7.3 das Condições Especiais: Se não houver acordo entre Pessoa Segura - ou o seu representante – e o Segurador sobre a causa, a natureza ou o grau de invalidez, cada uma das partes designará um perito médico para, em conferência, decidir a situação no prazo de 30 dias.” Esta cláusula evidencia bem que, no âmbito do procedimento interno da própria Seguradora, se não existir acordo quanto à causa, natureza ou grau de invalidez, seja por que motivo for, nem por isso a Pessoa Segura ou a Seguradora ficam sujeitas e para sempre “amarradas” ao parecer do médico mandatado, muito menos à posição da Instituição da Segurança Social (que até pode tardar e/ou ser impugnada na sede própria, pois de ato administrativo se trata); ao invés, prevê-se expressamente que possa ser realizada nova avaliação médica, em conferência, a realizar por dois peritos médicos, um indicado pela Pessoa Segura e outro pela Seguradora.
Por maioria de razão, não se poderá ver nessa cláusula um impedimento a que a Pessoa Segura possa demandar judicialmente a Seguradora para ver reconhecida essa situação de invalidez, pois uma tal interpretação afrontaria a garantia constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, incluindo o direito à ação adequada – cf. art. 20.º da CRP. Sendo óbvio que uma qualquer posição da Instituição Segurança Social (a existir) ou do perito médico mandatado pela Ré em nada obstam ou condicionam a decisão do tribunal, como, aliás, resulta evidente da posição assumida pela Ré nos presentes autos e da tramitação dos mesmos, em que, a requerimento da Autora, veio a ser realizada perícia para comprovação da invocada situação de invalidez.
Assim interpretada tal cláusula, como mecanismo interno de prevenção e combate à fraude de seguros, que em nada obsta ao reconhecimento judicial da situação de invalidez, não se mostra contrária à boa fé.
Parece-nos mesmo que contrário à boa fé seria pretender que a Seguradora tivesse de cumprir o contrato sem possibilidade de confirmar a veracidade da invocada invalidez e que, aquela, ou mesmo o Tribunal, tivesse de se bastar com o atestado num documento obtido sem o devido contraditório.
Tudo ponderado, não é de considerar contrária à boa fé a cláusula 3.3. das Condições Especiais, a qual deve, no caso dos autos, ser interpretada e aplicada da forma acima descrita, improcedendo, neste particular, as conclusões da alegação de recurso.
2.ª questão – Da situação profissional e de invalidez da Autora (ónus da prova)
Neste particular, considerou-se na sentença recorrida que:
“Acresce, ainda, que a autora não logrou sequer provar encontrar-se total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões. Aliás, nem sequer logrou provar que se encontra totalmente incapacitada para o exercício da sua profissão.
A este respeito apenas se apurou que a autora apresenta um défice funcional permanente da integridade física ou psíquica fixado em 14 pontos que tal défice não é causa de afectação funcional da autora em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico e que a afectação funcional da autora resultante das patologias médicas é compatível com o exercício profissional da autora de vendedora/distribuidora de produtos de panificação, implicando esforços suplementares.
Os factos apurados atestam claramente que não se mostra preenchido o conceito de invalidez total e permanente abrangido pelo seguro.
E não releva para estes efeitos o facto de a autora ter sido avaliada em Junta Médica para atestado médico de incapacidade multiuso que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global definitiva de 76%, porquanto como é sabido este atestado destina-se a obter, principalmente, benefícios fiscais não servindo para comprovar qualquer tipo de invalidez para desempenho de actividade remunerada ou atribuição de pensão de invalidez.
Ora, a falta de prova dos factos, constitutivos do alegado direito da autora é quanto basta para que lhe faleça base e razão no pretendido accionamento do contrato de seguro em causa (art. 342.º n.º 1 do C. Civil).”
A Autora-Apelante discorda deste entendimento, defendendo, em síntese, ter provado, perante o Atestado Médico Multiusos, uma invalidez profissional de 76% e que o facto, tido por não provado na sentença, de se encontrar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, é matéria de contestação por exceção, de que a Apelada não lançou mão; que o resultado do exame médico legal a que a Apelante foi submetida, por não respeitar as exigências e limites da causa de pedir, não pode nem deve ser tido em conta, nem pode prevalecer contra o antecedente em data Atestado Médico Multiusos.
A Ré-Apelada sustenta ter resultado provado que a incapacidade da Autora apenas dificulta o exercício da atividade que habitualmente exercia, mas não significa que esteja impossibilitada de exercer a sua atividade profissional, pelo que improcede a sua pretensão.
Apreciando.
Em primeiro lugar, não podemos deixar de dizer que a desvalorização do relatório do exame médico legal feita pela Apelante na sua alegação recursória nos causa alguma perplexidade. Com efeito, se o resultado do exame médico não podia ser tido em conta e sempre havia de prevalecer o atestado médico multiuso, nem se percebe por que motivo a Autora requereu e insistiu, inclusive em sede de outro recurso, no sentido da realização da perícia em questão. É evidente que a perícia servia para provar se a Autora se encontrava ou não na situação de incapacidade que havia alegado e a circunstância de o resultado apontar para um grau de incapacidade inferior ao invocado e sem repercussão profissional - matéria que foi assim dada como provada, sem que tivesse sido impugnada tal decisão de facto, pelo menos com observância do disposto no art. 640.º do CPC - em nada extravasa o princípio dispositivo, quanto à causa de pedir (cf. art. 5.º do CPC).
Reitera-se que a decisão da matéria de facto provada, mormente ao incluir, ainda que entre aspas, factos complementares ou concretizadores atinentes à alegada situação de invalidez, não foi, do que nos é dado ver, verdadeiramente impugnada. Sempre se dirá que, a ter sido esse o propósito da Apelante, certo é que não podia deixar de ser rejeitada uma tal impugnação, por manifesta inobservância do disposto no n.º 1 do art. 640.º do CPC.
A Autora invoca o disposto no art. 4.º, n.º 9, do Decreto-Lei n.º 202/96, de 22-10, que estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei. Este diploma legal republicado, em data mais recente, pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12-10, conforme consta do seu artigo 1.º, estabelece o regime de avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência, tal como definido no art. 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18-08, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade. Que benefícios são esses?
Na alínea N) do elenco dos factos provados já transcrevemos uma informação oficial a esse respeito, mas pode ler-se igualmente no próprio sítio da entidade Reguladora da Saúde, que o atestado médico de incapacidade multiuso pode ser usado em várias situações previstas na lei, adquirindo assim uma função multiuso. Pode, por exemplo, ser usado como prova de incapacidade para ter direito a: Isenção de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde (SNS); Transporte não urgente de doentes; Atendimento prioritário; Benefícios fiscais; Proteção e apoios sociais.
Estão ainda previstos no referido diploma legal os procedimentos para avaliação da incapacidade, sendo evidente que tal diploma em nada pode aproveitar à pretensão da Autora, em particular o referido n.º 9 do art. 4.º, nos termos do qual “(N)o processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação.” É que o Atestado Multiusos serve propósitos vários, como a Autora foi informada, mas, contrariamente ao que afirma - de forma, aliás, pouco coerente com a tese da nulidade do clausulado em 3.3 das Condições Especiais - tal atestado não pode ser considerado “mais do que suficiente para preencher a exigência da cláusula 3.ª/3/b da apólice”.
Na verdade, a cobertura do seguro em apreço verifica-se perante uma situação de Invalidez Total e Permanente tal como definida na cláusula 2.ª das Condições Especiais: Situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
Para que se possa ter como verificada essa situação juridicamente relevante não basta um atestado médico obtido num procedimento em que a Seguradora não tem qualquer intervenção. Se bastasse, nem teria qualquer sentido prever-se, nas Condições Especiais, que, em caso de desacordo das partes, quanto ao parecer do médico mandatado pela seguradora, se realiza uma avaliação conjunta, em que cada uma das partes pode indicar um médico.
Seja como for, perante o litígio das partes, é em sede de ação judicial que cumpre averiguar se ocorreu uma tal situação passível de ser considerada um risco coberto pelo contrato de seguro, com observância dos princípios do processo civil, mormente do princípio do contraditório (uma das garantias do processo equitativo). Não se está com isto a afirmar a total irrelevância nos autos do atestado médico multiuso, que pode servir na instrução, como prova documental (da qual até podem resultar factos complementares dos factos essenciais alegados na petição inicial), apenas se pretende salientar que não é o facto de ter sido emitido que consubstancia a verificação do risco de invalidez que o seguro em apreço garante, como cobertura complementar.
No presente processo, a pretensão da Autora visa o cumprimento do contrato de seguro (e uma indemnização pelo não cumprimento), assentando na verificação, durante a vigência desse contrato, do risco coberto, face à situação, em que alegadamente se encontrava, de incapacidade definitiva de 76,4%, que não lhe permitia o exercício da sua atividade habitual, nem de qualquer outra profissão remunerada compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões. Logo, é claro que estamos perante factos constitutivos do (invocado) direito, sendo à Autora que cumpria alegar e provar que padecia de doença de que resultou uma tal incapacidade permanente com rebate profissional (cf. art. 342.º do CC), não se tratando de matéria de exceção. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se, em www.dgsi.pt:
- o acórdão da Relação de Guimarães de 30-11-2017, no processo n.º 830/12.0TBVCT.G1, conforme se alcança do ponto 1 do respetivo sumário: “1- Celebrado contrato de seguro entre as partes, em que um dos riscos cobertos é a invalidez absoluta e definitiva por doença, ao Autor cabe a prova da sua verificação, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga (art. 342º, n.º 1 do CC), competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC)”;
- o acórdão da Relação de Guimarães de 17-05-2018, no processo n.º 7/17.9T8VCT.G1, conforme resulta das seguintes passagens do respetivo sumário: “6- Celebrado contrato de seguro entre as partes, em que um dos riscos cobertos é a invalidez absoluta e definitiva por doença, ao Autor cabe a prova da sua verificação, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga (art. 342º, n.º 1 do CC), competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC); 7- Cumpre aquele ónus o segurado que logra demonstrar ter sido afetado por doença (do foro oncológico) que fez com que, em sequência das intervenções cirúrgicas a que foi submetido, ficasse a padecer de hérnias incisionais que o impossibilitam de fazer esforços e de exercer uma atividade remunerada”;
- numa situação próxima, o acórdão da Relação de Coimbra de 03-05-2011, no processo n.º 1922/07.3TBPMS.C1: “3. Configura seguro de vida em caso de morte, na modalidade de seguro temporário, o seguro sobre a vida do mutuário que ocorre quando o segurador assume a obrigação de pagar ao credor do mutuário, caso este morra antes de o empréstimo se encontrar inteiramente por liquidar, uma soma igual ao capital por liquidar no momento da morte. (…) 6. O autor tem o ónus de alegar e provar a existência do seguro, o falecimento do segurado, que o beneficiário é a entidade mutuante e ter suportado determinados pagamentos a esta”.
Ora, atentando no elenco dos factos provados e não provados, é inevitável concluir que a Autora não logrou provar os factos essenciais que alegou. Aliás, até quedou provado o contrário, conforme resulta das duas perícias realizadas, salientando-se que a segunda das quais se fez por insistência da própria Autora. Portanto, embora tenha procurado desviar a atenção dessa realidade incontornável, o certo é que não logrou provar, como lhe incumbia, que tivesse sofrido, após a celebração do contrato de seguro, de doença causal de incapacidade permanente com repercussão no plano profissional.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, não podendo deixar de ser confirmada a sentença recorrida, que não incorre no invocado erro de julgamento.
Vencida a Autora-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (cf. artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC); porém, como beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. decisão do Instituto da Segurança Social, I.P. que foi junta aos autos com a PI), não vai condenada a efetuar o respetivo pagamento (cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Não se condena a Autora-Apelante no pagamento das custas do recurso atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 09-09-2021
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira