Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7504/22.2T8LSB.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: EFEITOS DA REVELIA
ARTICULADO SUPERVENIENTE DO RÉU REVEL
ARRENDAMENTO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
VIOLAÇÃO REITERADA E GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1–A revelia operante produz efeitos relevantes no processo: (i) consideram-se confessados os factos articulados pelo autor (artº 567º nº 1 do CPC); e (ii) na marcha do processo, “salta-se” da fase dos articulado directamente para a fase de julgamento da causa conforme for de direito (artº 567º nº 2 do CPC).

2–Não é pacífico o entendimento sobre se o réu revel, em situação de revelia operante, pode apresentar articulado superveniente nos termos do artº 588º do CPC.

3–Mesmo para quem propenda a admitir a dedução, em abstracto, de articulado superveniente por banda do réu em situação de revelia operante, ainda assim há que verificar se esses factos novos são modificativos ou extintivos do direito da autora (artº 588º nº 1 do CPC) porque, se o não forem, o articulado superveniente deve ser rejeitado, nos termos do artº 588º nº 4 do CPC, porque, manifestamente, não interessam à boa decisão da causa.

4–Apesar de o artº 1083º nº 2, al. a) do CC, na redacção resultante da Lei 31/2012, de 14/08, ter deixado de mencionar “A violação reiterada e grave” (…de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio), ainda assim, deve ter-se em conta que o proémio desse nº 2 do artº 1083º, continua a exigir que o incumprimento seja grave e, além disso que, pelas suas consequências, torne inexigível que o senhorio mantenha a relação contratual de arrendamento.

5–Para de decidir se certos comportamento do inquilino constituem uma situação de grave violação das regras de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança, deve aferir-se se a conduta desse arrendatário viola os padrões normais de comportamento para com aqueles que estão próximos de si e que podem ser afectados pelo modo como o prédio é utilizado pelo arrendatário incumpridor das regras de higiene, do sossego e da boa vizinhança. Ou seja, se o comportamento do arrendatário incumpridor “perturba a paz do prédio”.

6–Nos recursos de reponderação, sistema que vigora em Portugal, não é concedida às partes recorrentes a possibilidade de alegação de questões novas (ius novorum).O objecto do recursoé constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


1Herança de ACA, representada pela cabeça-de-casal, MEDA, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra, MHM, pedindo:

Seja decretada a resolução do contrato de arrendamento relativo ao 3º andar do prédio sito na Calçada … nºs …, Lisboa e, condenada a ré a despejar o locado e a entrega-lo livre e devoluto.

Alegou, em síntese, ser proprietária do prédio urbano sito na Calçada…nºs…, Lisboa. Em 10/01/1969 o então proprietário deu de arrendamento o 3º andar do mencionado prédio a ANM, pai da ré, mediante a renda mensal de 850$00, actualmente de 101,66€. Com o óbito do pai da ré o contrato transmitiu-se para esta. Sucede que a ré vive no locado com um cão, em completa falta de higiene, acumulando lixo e urina do animal, espalhados por toda a casa, deixando um cheiro nauseabundo nas escadas do prédio; a ré chegou a defecar contra a parede ao lado da porta do locado; atirou cuecas higiénicas pela janela que vieram cair no estendal da vizinha; a ré é seguida há 10 anos em psiquiatria no Centro de Saúde da Lapa, tomando regularmente antidepressivos e álcool; tem provocado infiltrações no locado por utilização descuidada da cozinha e casa de banho e chegando a provocar um curto-circuito e obriga a autora a promover sucessivas reparações no locado; a ré deixa muitas vezes o cão sozinho, em casa, levando o animal a ganir incomodando os vizinhos; só esporadicamente o cão é passeado na rua o que leva a que faça a necessidades  em casa gerando um cheiro insuportável levando os vizinhos a fazer queixas à PSP. Estes factos são reiterados e constituem clamorosa violação de regaras de higiene, sossego e boa vizinhança, sendo esta utilização do locado contrária à ordem pública e bons costumes. Invoca o artº 1083º nº 2, als. a) e b) do CC.

2–Citada pessoalmente, mediante aviso de recepção assinado a 25/03/2022, a ré não contestou.

3–Em 10/11/2022, o Dr. ASA, juntou aos autos cópia de ofício da Segurança Social, de 11/10/2022, dando nota de, nessa data, ter sido nomeado Patrono à ré e solicitando acesso electrónico ao processo.

4–Em 14/11/2022, o Dr. ASA, informou os autos de ter pedido escusa junto da Ordem dos Advogados.

5–Em 18/11/2022, a Dra. ACS, deu a conhecer nos autos que foi nomeada Patrona da ré.

6–Em 23/11/2022, a Dra. ACS deu a conhecer nos autos que a rá havia solicitado apoio judiciário junto da Segurança Social, a 29/04/2022.

7–Em 02/12/2022, a Dra. ACS, apresentou requerimento no processo, informando que a Assistente Social que acompanha a ré mobilizou meios para assegurar a higiene da casa onde habita a ré, com profunda limpeza do locado, que passou a ter todas as condições de habitabilidade e salubridade; bem como foi assegurada a ida diária do canídeo à rua. Conclui tratar-se de factualidade superveniente que afasta os pressupostos da acção instaurada.
Solicita a prorrogação do prazo de apresentação da contestação.

8–A autora respondeu ao requerimento da ré, de 02/12/2022, pugnando pelo respectivo desentranhamento.

9–Em 04/01/2023, foi proferido despacho a indeferir a requerida prorrogação do prazo de contestação, nos seguintes termos:
A Ilustre Patrona da R requereu a prorrogação do prazo de Contestação.
Sucede, porém, que tendo a R sido citada em 25-03-2022 e sendo o prazo de Contestação de trinta dias (cfr. artigo 569.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), aquele terminara, já em 03-05-2022.
Pelos fundamentos expostos, porquanto em 23-11-2022 se encontrava já extinto o prazo de Contestação, indeferido a requerida prorrogação de prazo, por falta de fundamento legal, a saber: o Tribunal pode prolongar um prazo em curso mas não pode repristinar um prazo já decorrido, por força da preclusão processual, como sucede no caso – cfr. artigos 569.º, n.º 5 e 139.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Finalmente, ainda que de forma lateral, haverá, apenas, que referir que não tendo sido dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, mediante a junção de documento comprovativo do requerimento com que haja sido promovido o procedimento administrativo, não ocorreu interrupção de prazo;
Custas pela R, que vai dispensada do seu pagamento.”

10–Na mesma data, 04/01/2023, foi proferido despacho dispensando os prazos a que se reporta o artº 567º nº 2 do CPC, dada a falta de contestação e a simplicidade da questão. Na mesma data foi ainda proferida sentença, considerando confessados os factos alegados na petição inicial, nos termos do artº 567º nº 1 do CPC e, com fundamentação sumária do julgado, nos termos do artº 567º nº 3 do CPC, foi decidido:

III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção procedente, por provada e, consequentemente, decido:
a)-declarar a resolução do contrato de arrendamento supra identificado, relativo ao apartamento correspondente ao 3.º andar do prédio urbano sito na rua Calçada… nº …, Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo nº…da freguesia da Estrela, concelho de Lisboa;
b)- condenar a R a entregar o locado à A, após o trânsito da presente decisão, deixando-o devoluto de pessoas e bens.
Valor da causa: o indicado.
Custas pela R., sem prejuízo da sua inexigibilidade.

11–Inconformada, a ré interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1)-Tendo havido lugar a alteração de circunstâncias no que toca ao objecto da causa de pedir, ou seja, o estado de conservação do locado e a observância de condutas respeitadoras das regras de higiene e boa vizinhança por parte da R., a sentença ora recorrida revela-se desadequada, por desproporcional;
2)-Tal desproporcionalidade verifica-se desde logo na falta da verificação suficiente dos pressupostos que permitem concluir pela inexigibilidade à A. da manutenção do contrato de arrendamento com a R.,
3)-Mas também considerando o benefício que a A. dela retira, em confrontação com o prejuízo que dela advém para a R., principalmente tendo em conta que os fundamentos invocados deixaram de existir.
4)-Deve, por todo o supra exposto e alegado, ser revogada a sentença proferida nos presentes autos, sendo substituída por outra que absolva a R. do pedido, ordenando a manutenção do contrato de arrendamento e revogando a condenação de entrega do locado pela R.
5)-Sem conceder, caso se entenda o presente recurso improcedente, deve a R. beneficiar do diferimento da ordem de despejo, por comprovadas razões imperiosas de ordem social.
Termos estes, e nos mais de Direito que os Venerandos Desembargadores suprirão, em que deverá ao presente recurso ser concedido provimento, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, sendo esta substituída por outra que ordene a manutenção do contrato de arrendamento que vigora entre Autora e Ré e, consequentemente, sendo a Ré absolvida do pedido de desocupação do locado.
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12–Não constam dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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IIFUNDAMENTAÇÃO.

1-Objecto do Recurso.

É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)-A revogação da sentença, com absolvição da ré do pedido, por não verificação do requisito “gravidade e reiteração” do comportamento da ré que torne inexigível a manutenção do arrendamento;
b)-Subsidiariamente, o deferimento da desocupação do locado, por prazo até cinco meses, mas não inferior a três meses.
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2- Factualidade Relevante.

Com relevância para a apreciação e decisão do recurso importa ter em consideração a factualidade mencionada no RELATÓRIO que antecede.
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3- As Questões Enunciadas.

3.1-A revogação da sentença, com absolvição da ré do pedido, por não verificação do requisito “gravidade e reiteração” do comportamento da ré que torne inexigível a manutenção do arrendamento.

Entende a ré que a sentença deve ser revogada por não se verificarem os requisitos de que a lei, concretamente o artº 1083º do CC, faz depender a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento. Fundamenta essa sua pretensão, baseando-se nos factos que alegou no requerimento de 02/11/2022, pelo qual trouxe ao conhecimento do tribunal as actuais circunstâncias de higiene e boa vizinhança do locado, que são o contrário das que foram invocadas na petição inicial. Que se tratou de circunstância pontual, que foi debelada, devido à intervenção dos Serviços da Segurança Social, encontrando-se actualmente ultrapassada. As boas condições de higiene e salubridade foram respostas, não se verificando, assim, uma situação de inexigibilidade de manutenção do contrato.

Será assim?
Vejamos.

Em primeiro lugar está fora de discussão que a ré não contestou.
O mesmo é dizer que a ré se colocou numa situação de revelia: absteve-se de contestar. Em sentido próprio a revelia consiste na não contestação definitiva do réu.
Como é sabido, quanto às modalidades, a revelia pode ser absoluta ou relativa. Absoluta quando o réu não comparece em juízo nem intervém no processo. É relativa quando o réu comparece em juízo, intervém no processo, por exemplo nomeando mandatário, mas não contesta.
Pode ser revelia inoperanteou revelia operante.É operante quando produz efeitos no processo; inoperante quando a falta de contestação do réu não produz nenhuns efeitos em juízo.
Tratando-se de revelia operante tem efeitos profundos no processo: (i) efeitos quanto ao julgamento do processo; (ii) efeitos quanto à marcha do processo; (iii) e outros efeitos secundários. (Cf. Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual do Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, pág. 69).
Em termos simples, quanto ao julgamento do processo, a revelia operante produz o efeito de se considerarem confessados os factos articulados pelo autor (artº 567º nº 1 do CPC).
Quanto à influência da revelia operante na marcha do processo, “salta-se” da fase dos articulado directamente para a fase de julgamento da causa conforme for de direito (artº 567º nº 2 do CPC). (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual…, cit., pág. 72).
Portanto, na revelia operante, em princípio não são admissíveis quaisquer outros articulados para além da petição inicial. (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, vol. I, 2ª edição, anotação 7 ao artº 567º, pág. 655).

Portanto, o efeito do comportamento omissivo do réu conduz à chamada confissão tácita ou ficta: consideram-se confessados os factos alegados pelo autor, restando apenas decidir a causa conforme for de direito. Isso significa que na revelia operante, por via da confissão ficta, deixa de haver controvérsia sobre essa factualidade. O réu revel tornou-se confitente e fica impedido de produzir provas no processo e o tribunal apenas tem de verificar se a acção é fundada.

Daqui resulta que no caso dos autos se têm por confessados os factos alegados na petição inicial, de que se salienta:
A ré vive no locado com um cão, em completa falta de higiene, acumulando lixo e urina do animal, espalhados por toda a casa, deixando um cheiro nauseabundo nas escadas do prédio;
A ré chegou a defecar contra a parede ao lado da porta do locado;
Atirou cuecas higiénicas pela janela que vieram cair no estendal da vizinha;
A ré é seguida há 10 anos em psiquiatria no Centro de Saúde da Lapa, tomando regularmente antidepressivos e álcool;
Tem provocado infiltrações no locado por utilização descuidada da cozinha e casa de banho e chegando a provocar um curto-circuito e obriga a autora a promover sucessivas reparações no locado;
A ré deixa muitas vezes o cão sozinho, em casa, levando o animal a ganir incomodando os vizinhos;
Só esporadicamente o cão é passeado na rua o que leva a que faça a necessidades em casa gerando um cheiro insuportável levando os vizinhos a fazer queixas à PSP;
Estes factos são reiterados.
Portanto, em face do que acima dissemos, estes factos tornaram definitivos no processo.

E poderá ser levada em consideração a factualidade invocada pela ré no seu requerimento de 02/12/2022, concretamente, em síntese, “…a Assistente Social que acompanha a ré mobilizou meios para assegurar a higiene da casa onde habita a ré, com profunda limpeza do locado, que passou a ter todas as condições de habitabilidade e salubridade; bem como foi assegurada a ida diário do canídeo à rua.” ?
Ou seja, será admissível a apresentação de “articulado superveniente” por um réu revel?

Como dissemos acima, um dos efeitos da revelia operante traduz-se na alteração da tramitação processual, num salto processual que passa directamente da petição inicial para a fase de julgamento conforme for de direito.

Pois bem, há doutrina e jurisprudência que admitem a possibilidade de o réu revel, em situação de revelia operante, apresentar “articulado superveniente(Miguel Mesquita, A Revelia em Processo Ordinário, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, AAVV, Vol. I, pág. 1102 e segs.) dizendo que “…o facto da inexistência da contestação não pode afastar a possibilidade da apresentação, pelo réu, de um articulado superveniente. (…) Apesar de a situação não se encontrar prevista na lei, nomeadamente no artº 506º nº 3 (leia-se, actualmente, 588º nº 3), o demandado e o mesmo vale para o autor, poderá apresentar articulado após ser notificado para a fase de discussão da matéria de direito e antes de ser proferida sentença. O juiz deverá, então, resolver o problema da admissibilidade do articulado superveniente, reordenando o processo por força dos factos trazidos à lide e fazendo sempre respeitar o contraditório.

Também Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (CPC anotado, Vol. 2, 3ª edição, 2017, pág. 534) Como já apontava Manuel de Andrade, a apresentação da contestação, como aliás, de qualquer outro articulado fora do prazo, só é possível nos casos – raros – de justo impedimento em circunstância que, aliás, rigorosamente implicam pôr em causa, não o efeito de um comportamento omissivo, mas o acto positivo que não se praticou e de que se pretende não ter precludido o direito a praticá-lo, sem prejuízo ainda da invocação, em articulado superveniente (artº 588º nº 2) do conhecimento tardio da inexistência dos factos (alegados pela parte contrária) que erradamente se tivessem julgado existentes.” Ou seja, estes autores (Lebre de Freitas/Isabel Alexandre), parecem admitir a dedução de articulado superveniente, pelo réu em situação de revelia operante, desde que os factos supervenientes se destinem, a final, a demonstrar a inexistência de factos alegados pelo autor e, que seriam considerados “confessados” na sentença. Portanto, não admitirão a possibilidade de articulado superveniente fora deste circunstancialismo.
De resto, Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, 1993, pág. 164), parece admitir a possibilidade de apresentação de articulado superveniente pelo réu em revelia operante, quando, estando em erro sobre certos factos alegados na petição inicial, julgando-os verdadeiros, estava equivocado quando à realidade desses factos.

Na jurisprudência, o acórdão do TRL, de 30/11/2010 (Maria do Rosário Barbosa) com o seguinte sumário:
1.-Se o réu não contestante tiver conhecimento de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do A., pode ter lugar articulado superveniente em que a parte a quem o facto é favorável o alegará.
2.-Seja a revelia absoluta ou relativa o réu revel pode, nas mesmas condições do réu contestante, apresentar articulado superveniente. É o que decorre do art. 489, nº2 do CPC.
3.- Se é certo que o nº1 do mesmo preceito consagra o princípio da concentração da defesa na contestação, o nº2, consagra meios de defesa supervenientes abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objectiva) quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação mas só posteriormente é conhecido pelo Réu (superveniência subjectiva).
4.- E essa possibilidade do não contestante apresentar articulado superveniente tem sustentação legal, pois a referência feita naquele nº2 “não só às excepções” mas também aos “meios de defesa” permite esta interpretação de que o Réu revel (seja a revelia absoluta ou relativa) pode apresentar articulado superveniente.

Pois bem, no caso concreto, a questão que se colocam é a de saber se os factos alegados pela réu – em situação de revelia operante – no seu requerimento de 02/12/2022 - a Assistente Social que acompanha a ré mobilizou meios para assegurar a higiene da casa onde habita a ré, com profunda limpeza do locado, que passou a ter todas as condições de habitabilidade e salubridade; bem como foi assegurada a ida diário do canídeo à rua podem preencher o conceito de articulado superveniente nos termos do artº 588º nº 1 do CPC, ou seja, se podem considerar-se factos modificativos ou extintivos do direito da autora.
Na verdade, como decorre do artº 588º nº 1 do CPC, no que toca ao réu, o articulado superveniente pode ser usado para invocar factos modificativos ou extintivos do direito do autor.
Em termos simples, são factos modificativos, por exemplo, a concessão de uma moratória ao réu, a excepção de não cumprimento, a datio pro solvendo, a sub-rogação, a mudança do percurso de uma servidão, a concertação, pela escolha, do objecto da obrigação.
Factos extintivos do direito do direito alegado pelo autor são, por exemplo, o pagamento, a dação em cumprimento, a caducidade, a prescrição, a usucapião, o perdão, a renúncia, a novação, a condição resolutiva, o termo peremptório (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC Anotado, vol. I, cit., pág. 676).

Ora, no caso dos autos, a factualidade invocada pela ré, no requerimento de 02/12/2022, não consubstancia a invocação de factos modificativos ou de factos extintivos do direito da autora.
De resto, esses factos que acima se mencionaram – ficaram assentes, rectius, provados por via da falta de contestação, revelia operante, da ré. Aqueles factos tornaram-se incontroversos no processo.

A esta luz, dado que o requerimento de 02/12/2022 não constitui a invocação de factos modificativos ou extintivos do direito da autora, não podem ser considerados, isto é, tidos em conta: tudo se passa como se não tivessem sido invocados.

De resto, decorre directamente do artº 588º nº 4 do CPC determina que o juiz deve rejeitar o articulado superveniente quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa.
Em suma: não se consideram os factos alegados pela ré no seu requerimento de 02/12/2022.

Resta, pois, saber se, em face dos factos invocados na petição inicial e confessados há, ou não, fundamento para revogar a sentença, ou seja, para considerar que não estão verificados os requisitos da resolução do contrato de arrendamento.

A ré invoca que se tratou de circunstância pontual, que foi debelada, devido à intervenção dos Serviços da Segurança Social, encontrando-se actualmente ultrapassada. As boas condições de higiene e salubridade foram respostas, não se verificando, assim, uma situação de inexigibilidade de manutenção do contrato.

A sentença considerou resolvido o contrato de arrendamento tendo como demonstrada a verificação da previsão normativa das alíneas a) e b) do artº 1083º nºs 1 e 2 do CC, escrevendo:
Assim sendo, a A logrou provar os factos constitutivos do direito a exigir a resolução do contrato, com fundamento em violação contratual, conforme resulta da aplicação conjugada dos artigos 405.º, n.º 1 e 1083.º n.ºs 1 e 2, als. a) e b) do Código Civil, que dispõe que:
“ (…)
2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
a)- A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio;
b)- A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública; (…)

Como decidir?

Em primeiro lugar, recorde-se o que acima dissemos: não podem ser considerados os factos alegados pela ré no seu requerimento de 02/12/2022. Isto é, não se pode levar em conta que a situação de falta de higiene, salubridade e incómodo dos vizinhos está ultrapassada e, que a situação factual relatada na petição inicial foi pontual.

Portanto, vejamos se face aos factos alegados na petição inicial e que foram considerados provados, face à falta de contestação da ré, estão preenchidas as previsões das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 1083º do CC.

A versão da al. a) do nº 2 do artº 1083º do CC, na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27/02, dizia:
2- É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
a)-A violação reiterada e grave de regras de higiene, de sossego, de boa   vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio;
b)- A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública.

A Lei 31/2102, de 14/08, alterou a redacção da alínea a), que passou a ser a seguinte:
a)-A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio;

A Lei 43/2017, de 14/06, manteve esta redacção.

O mesmo aconteceu com a Lei 13/2019, de 12/02: não alterou a redacção daquelas duas alíneas.

Começando pela al. b), invocada pela autora e referida na sentença.
Diz o preceito que é fundamento de resolução o incumprimento que pela sua gravidade e consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, nomeadamente, A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública.
A norma exige que o incumprimento seja grave e, além disso que, pelas suas consequências, torne inexigível que o senhorio mantenha a relação contratual de arrendamento. Não basta, portanto, qualquer prática que infrinja a lei, os bons costumes e a ordem pública que justificam a resolução do contrato. Apenas situações excepcionalmente graves, como actividades criminosas, prostituição, jogo ilícito, possibilitam ao senhorio a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na alínea b) do nº 2 do artº 1083º do CC. (Cf. Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 6ª edição, 2013, pág. 145).

Como explica Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 506 e seg.) os bons costumes envolvem áreas de conduta relacionadas com códigos ou normas deontológicos, de conduta sexual e familiar. (para outros desenvolvimentos, por todos, Jorge Morais de Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, págs. 103 a 123).
Por sua vez, a ordem pública constitui um factor sistemático de limitação à autonomia privada. Ou seja, a autonomia privada é limitada por normas jurídicas imperativas. São exemplos, as situações de contratos que exijam esforços desmesurados ao devedor ou que restrinjam demasiado a sua liberdade pessoal ou económica ou valores constitucionais (Cf. Menezes Cordeiro, Tratado…cit., pág.507 e seg.; Jorge Morais de Carvalho, Os Limites…cit., págs. 102).
Ora, no caso dos autos, nenhum dos factos alegados pela autora e considerados provados por via da confissão ficta, se integram ou preenchem a previsão da al, b) do nº 2 do artº 1083º do CC.
Daqui resulta que não havia fundamento para declarar a resolução do contrato de arrendamento com base nessa alínea b) do nº 2 do artº 1083º do CC.

Quanto à al. a) do nº 2 do artº 1083º do CC.
Como se referiu acima, a ré entende que a factualidade alegada na petição inicial se tratou de circunstância pontual, que foi debelada, encontrando-se actualmente ultrapassada. As boas condições de higiene e salubridade foram respostas, não se verificando, assim, uma situação de inexigibilidade de manutenção do contrato.
Igualmente vimos que não podem ser considerados os factos alegados pela ré no seu requerimento de 02/12/2022. Isto é, não se pode levar em conta que a situação de falta de higiene, salubridade e incómodo dos vizinhos está ultrapassada e, que a situação factual relatada na petição inicial foi pontual.
Portanto, o que importa aferir é saber se os factos considerados provados são de molde a preencher a previsão normativa da al. a) do nº 2 do artº 1083º do CC.
Recordemos a letra do preceito:
a)-A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio.”

Pois bem, semelhantemente ao que dissemos acerca da alínea b), esta alínea a) deve ser conjugada com o proémio do nº 2 que exige que o incumprimento seja grave e, além disso que, pelas suas consequências, torne inexigível que o senhorio mantenha a relação contratual de arrendamento, não bastando, por isso, qualquer violação das regras de higiene, sossego e boa vizinhança. Aliás, neste veja-se Elsa Sequeira Santos (CC anotado, coord. Ana Prata, vol. I, pág. 1322) que refere que “…em nossa opinião, sobretudo face ao pensamento do legislador que parece transparecer da história do precito. Assim, a Lei 31/2012 alterou a al. a), retirando, face à redação anterior, a exigência de que a violação das regras ali elencadas fosse “reiterada e grave”. Naturalmente que não se aceita que qualquer violação única de uma regra – p. ex. violação das regras de higiene por haver uma vez o esquecimento de colocar o lixo no contentor – possa levar à resolução do contrato. Não sendo essa, certamente, a intenção do legislador, a eliminação do qualificativo “reiterado e grave” apenas se pode explicar por ter sido considerado redundante face ao crivo já previsto na cláusula geral.

Ou seja, o que é necessário é que o incumprimento, no caso concreto, “pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”, o que passa por uma apreciação de circunstâncias o comportamento prévio das partes e o tipo de duração, frequência e efeitos do inadimplemento”. (Cf. David Magalhães, A Resolução do Contrato de Arrendamento, pág. 143).

Deve aferir-se se a conduta do arrendatário viola certos padrões normais de comportamento para com aqueles que estão próximos de si e que podem ser afectados pelo modo como o prédio é utilizado pelo arrendatário incumpridor das regras de higiene, do sossego e da boa vizinhança. Ou seja, se o comportamento do arrendatário incumpridor perturba a paz do prédio”, pondo em causa a protecção da consideração dos interesses de quem tem importantes dimensões da sua existência em comum, dependendo do respeito das outras pessoas para consigo. (David Magalhães, A Resolução…, cit., pág. 227).

No caso dos autos ficou provado, por efeito da confissão ficta, que
A ré vive no locado com um cão, em completa falta de higiene, acumulando lixo e urina do animal, espalhados por toda a casa, deixando um cheiro nauseabundo nas escadas do prédio;
A ré chegou a defecar contra a parede ao lado da porta do locado;
Atirou cuecas higiénicas pela janela que vieram cair no estendal da vizinha;
A ré é seguida há 10 anos em psiquiatria no Centro de Saúde da Lapa, tomando regularmente antidepressivos e álcool;
Tem provocado infiltrações no locado por utilização descuidada da cozinha e casa de banho e chegando a provocar um curto-circuito e obriga a autora a promover sucessivas reparações no locado;
A ré deixa muitas vezes o cão sozinho, em casa, levando o animal a ganir incomodando os vizinhos;
Só esporadicamente o cão é passeado na rua o que leva a que faça a necessidades em casa gerando um cheiro insuportável levando os vizinhos a fazer queixas à PSP;
Estes factos são reiterados.

Ora bem, perante esta factualidade estamos perante uma situação de grave violação das regras de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança. Na verdade, a acumulação de lixo, dejectos e urina do canídeo por toda a casa, causando um cheiro nauseabundo nas escadas do prédio; defecou contra a parede ao lado da porta do locado; o cheiro insuportável que levou os vizinhos a solicitar a intervenção da PSP; atirar cuecas higiénicas pela janela que caíram no estendal da roupa da vizinha; o abandono do canídeo em casa e os latidos e ganidos deste que incomodam os vizinhos.

Manifestamente, a conduta da arrendatária viola todos os padrões normais de comportamento para com aqueles que estão próximos de si e que são afectados pelo modo como o prédio é utilizado pela ré em matéria de regras de higiene, do sossego e da boa vizinhança.
E este comportamento reiterado da ré traduz um incumprimento grave das regras de boa vizinhança que, pelas suas consequências, torna inexigível que a senhoria mantenha a relação contratual de arrendamento.
O mesmo é concluir que há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.

3.2- O deferimento da desocupação do locado, por prazo até cinco meses, mas não inferior a três meses.

Nas alegações e nas conclusões a ré/apelante pretende, subsidiariamente, que seja deferida a desocupação do locado por um prazo entre três e cinco meses.
Alega comprovadas razões imperiosas de ordem social” baseando-se na factualidade que invocou no requerimento de 02/12/2022: frágil condição de saúde, ausência de familiares que a assistam, sem alternativa para ir residir.
Será que este tribunal de recurso pode decretar o pretendido diferimento da desocupação do locado por três a cinco meses?
Não nos parece, por uma razão muito simples: a ré/apelante jamais solicitou, junto da 1ª instância, o pretendido diferimento da desocupação do locado.

Trata-se, portanto, de uma questão nova que é colocada pela primeira vez junto do tribunal de recurso.
Ora, como é sabido, em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida(Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pág. 81) e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 395). Ou seja, os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido e as questões formulados na 1ª instância. O recurso ordinário consubstancia-se, pois, num pedido de reapreciação de uma decisão, ainda não transitada em julgado, dirigido ao tribunal hierarquicamente superior e com fundamento na ilegalidade da decisão, visando revogá-la ou substituí-la por outra mais favorável ao recorrente. Desta forma, os recursos ordinários incidem sobre ou têm por objecto o juízo ou julgamento realizado pelo tribunal recorrido

Portanto, nos recursos de reponderação, sistema que vigora em Portugal (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 8ª edição, pág. 147) não é concedida às partes a possibilidade de alegação de questões novas (ius novorum). O objecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial. Assim sendo, a natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objecto decorrente do factor de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Processo Civil, 3ª edição, pág.97).
Tanto basta para se concluir que este tribunal de recurso não pode apreciar e decidir o pedido de diferimento de desocupação do locado que foi colocado, rectius, peticionado, pela 1ª vez, em sede de recurso.

Em face do que se expôs, resta concluir que o recurso improcede.

***

IIIDECISÃO.

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso improcedente e, em consequência, mantém a sentença sob impugnação.

Sem custas na fase de recurso, dado que a ré/apelante litiga com benefício de apoio judiciário, e não há lugar à aplicação, nesta instância, do disposto no artº 26º nº 6 do RCP visto que a autora/apelada não contra-alegou.


Lisboa, 28/09/2023


(Adeodato Brotas)
(Maria de Deus Correia)
(Anabela Calafate)