Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
29506/21.6T8LSB.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE COMÉRCIO
QUESTÕES INCIDENTAIS
CESSÃO GRATUÍTA DE QUOTAS ENTRE CÔNJUGES
NULIDADE DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nos casos contemplados nos art.ºs 91º e 92º do CPC, a competência de um dado tribunal pode estender-se a outras questões nele ou à margem dele suscitadas e para cujo conhecimento não teria, em princípio, competência.
2. Mas se o juiz da acção decidir essas questões não se forma, em princípio, caso julgado material sobre as mesmas.
3. Quaisquer que sejam as questões incidentais, o tribunal, desde que tenha competência para julgar a acção, tem por isso mesmo competência para decidir aquelas questões.
4. As questões incidentais (lato sensu) a que se reporta o art.º 91º do CPC, que surgem numa causa pendente, como condição ou requisito para se decidir a matéria fundamental da causa, abrangem as questões prejudiciais de natureza diversa das especificamente referenciadas no art.º 92º do mesmo diploma (penais ou administrativas).
5. Não se trata aqui de estender a competência do tribunal da causa, mas sim de atribuir ao juiz o poder de conhecer dessa questão, que se torna necessário decidir por dela depender a sorte do pedido formulado na acção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. FM e FS intentaram contra MO e MG a presente acção declarativa de condenação, peticionando que:
 - seja declarada a nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroactivos;
 - sejam invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Para tanto, alegaram, em suma que o 1.º AUTOR é filho do 2.º AUTOR e, juntamente com os dois RÉUS que são cônjuges, são sócios da sociedade comercial por quotas denominada K., LDA, a qual distribui motociclos e produtos da marca Triumph em Portugal; que o  1.º AUTOR requereu, em 29.10.2021, a convocação de uma assembleia geral extraordinária para, entre outros pontos da ordem de trabalhos, deliberar a destituição da gerência da 2.ª Ré (sendo que também é sócia) e a exclusão do sócio 1.º Réu; que tendo em vista evitar as consequências de destituição e exclusão acima referidas, os RÉUS estabeleceram uma divisão e cessão de quotas da 2.ª RÉ a favor do 1.º RÉU por forma a alterar o equilíbrio de poderes entre os vários sócios, e influenciar as maiorias de quórum deliberativo; que os Réus efectuaram uma cessão gratuita de quota, no dia 14.10.2021, sendo casados em regime de comunhão de adquiridos; que a doação entre casados é permitida, apenas e só se o bem doado for um bem próprio do cônjuge doador (cfr. art.º 1764.º, n.º 1, do CC); que a quota doada não é um bem próprio da 2.ª Ré; que nas situações de dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes devem considerar-se comuns, de acordo com o art.º 1725.º do CC; que qualquer doação de bens comuns consubstancia um negócio contrário à lei e, por consequência, nos termos dos artigos 280.º e 294.º CC, esse negócio é nulo, sendo, nos termos dos art.º 286.º do CC, a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado, tendo esta efeito retroactivo nos termos do art.º 289.º CC; que a doação ora em crise pretendeu, além de outros interesses contundentes com os interesses da sociedade, contornar as regras societárias que ditariam a presidência da Assembleia Geral a cargo do 2.º Autor, por ser este o mais velho; que, ainda que assim se não entendesse, o certo é que nunca existiu a intenção de doar a quota, apenas se pretendeu extraviar o equilíbrio de poderes deliberativos existente na SOCIEDADE, e assim prejudicar totalmente as deliberações primeiramente propostas a Assembleia Geral extraordinária, pelo que a doação sempre seria nula por simulação absoluta; que, sem prejuízo deste esquema para tomar a condução dos trabalhos da Assembleia Geral convocada, o 1.º RÉU e a 2.ª RÉ tiveram ainda em vista alcançar uma maioria na votação por forma a bloquear a deliberação, nomeadamente, dos seguintes pontos da convocatória para a assembleia geral extraordinária de 7/12/2021: Ponto Um: deliberar sobre a destituição da gerente MG, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 257.º do CSC; Ponto Nove: deliberar sobre o voto de confiança e de louvor à atuação e ao desempenho até à data da gerente MG; Ponto Dez: ratificar e deliberar sobre a remuneração da gerência; Ponto Onze: deliberar sobre a propositura de ação judicial para exclusão de sócia de MG, nos termos do art.º 242.0 do CSC; Ponto Doze: deliberar sobre a propositura de ação social judicial de responsabilidade civil contra a gerente em exercício MG, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 72.º e 75.º, n.º 1, do CSC, e Ponto Catorze: nomeação de um representante especial ou de um curador ad litem para cada ação como forma de assegurar a respetiva representação em litígios que se relacionem a Sociedade com os seus sócios, nomeadamente das que resultem de deliberações da presente assembleia geral, por impossibilidade ou incompatibilidade do(s) gerente(s) para assumir as funções de representação; que nessa assembleia não se discutiu nenhum ponto da ordem de trabalhos: as cerca de cincos horas de reunião detiveram-se na discussão de alguns pontos prévios, não se tendo entrado na ordem de trabalhos(Cfr. Ata da Assembleia Geral Extraordinária de dia 07.12.2021 que ora se junta como Doc. n.º 8 e cujo teor se reproduz para os devidos efeitos legais); que os réus obtiveram assim a não destituição da gerência da SOCIEDADE e a ratificação da remuneração da 2.ª RÉ como gerente, o 1.º RÉU enceta, desta forma, uma estratégia diametralmente oposta aos interesses da SOCIEDADE, com consequências diretas para os demais sócios; que, em face da nulidade da cessão de quotas havida entre os cônjuges Réus, a qual tem por consequência a alteração das percentagens de voto daqueles sócios, todas as deliberações supostamente aprovadas única e exclusivamente por força dessa alteração de poderes de voto devem ser invalidadas por este Tribunal, nos termos e para os efeitos do art.º 58.º, n.º 1, alínea a) do CSC.
Os Réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção arguiram a incompetência material do Tribunal de Comércio quanto ao 1º pedido formulado pelos Autores, peticionando a sua absolvição da instância; a ilegitimidade dos Réus quanto ao segundo pedido formulado pelos Autores, posto que a legitimidade passiva para o segundo pedido formulado pelos Autores pertence à sociedade, a qual não foi demandada; a falta de interesse em agir, por os Autores não terem concretizado qualquer direito digno de tutela judicial, dado que o pedido de declaração de nulidade de uma doação de quotas entre cônjuges, em nada se reflecte na sua esfera jurídica; e a dedução de pedido genérico fora dos ditames legais.
Peticionam, por isso, a absolvição dos réus da instância.
Os réus impugnaram ainda, na sua essência, os factos indicados pelos Autores na petição inicial.
Os autores presentaram articulado de resposta às excepções invocadas na contestação, deduziram articulado superveniente e ampliaram os pedidos formulados na p.i., aditando os seguintes pedidos:
- Ser cancelado o registo que consta da certidão comercial permanente da SOCIEDADE K., Lda.,Menção Dep. 9525/2021- 11-17 19:49:11 UTC - Transmissão de Quota(s), referente à transmissão de quotas celebrada pelos RÉUS;
- Serem cancelados todos os factos registados na certidão comercial permanente da SOCIEDADE K., Lda., atuais e futuros, decorrentes de todas as deliberações das Assembleias Gerais da SOCIEDADE K., Lda., tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do art.º 58.º, n.º 1, al. a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Alegaram, além do mais, que após a primeira sessão da Assembleia Geral da SOCIEDADE de 07.12.2021, tiveram lugar mais duas sessões (14.12.2021 e 20.12.2021) onde foram discutidos e votados os diversos pontos da convocatória; que na sessão de 14.12.2021, da referida Assembleia Geral, foram discutidos e votados os pontos 1 a  4 e na sessão de 20/12/2021 os pontos 5 a 10; os pontos 1 (Deliberar sobre a destituição da gerente MG), 9 (Deliberar sobre o voto de confiança e de louvou à atuação e ao desempenho até a data da gerente MG) e 10 (Ratificar e deliberar sobre a remuneração da gerência), não foram aprovados, face aos votos contra do 1.º RÉU, que isoladamente, atualmente, detém uma percentagem representativa de 45% do capital social, adquirida, como supra referiu de forma ilícita, mediante a celebração de um contrato de doação de quotas; que desta forma os réus obtiveram a não destituição da gerência da SOCIEDADE, e a ratificação da remuneração da 2.ª RÉ como gerente
Nesse articulado deduziram ainda incidente de intervenção principal provocada, como associada dos RÉUS, da K., LDA.
Por despacho de 2/01/2023 exarou-se:
“Conclui-se, assim, que o pedido de nulidade do contrato de cessão de quotas apenas pode ser apreciado pelos juízos cíveis, sendo este tribunal materialmente incompetente para a sua apreciação.
Donde, a cumulação de pedidos formulada pelos Autores não é admissível, por ofender a competência material deste tribunal.
Face ao exposto, notifique-se os Autores para, no prazo de 10 dias, indicarem qual o pedido que pretendem ver apreciado neste processo, sob pena de, não o fazendo, serem os Réus absolvidos da instância quanto a todos eles, nos termos do artigo 38.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
Por requerimento de 17/01/2023 vieram os autores dizer o seguinte:
1. Interpretando o douto despacho em referência, os AUTORES entendem que este não decide a questão da competência material do Tribunal, tanto assim que não indica o efeito da incompetência material; a sua decisão stricto sensu esgota-se na formulação aos AUTORES do convite previsto no art.º 38º, n.º 1, do CPC (que o Tribunal está a aplicar à cumulação de pedidos), para que, após a resposta dos AUTORES a esse convite, o Tribunal determine o pedido ou pedidos dos quais absolverá os RÉUS da instância e o pedido para cuja apreciação de mérito os presentes autos seguirão os seus termos.
2. Ainda que os AUTORES não acompanhem o entendimento do Tribunal plasmado no despacho a que se responde, nomeadamente em relação à incompetência material do mesmo para apreciar o primeiro pedido formulado – nulidade do contrato de cessão de quotas entre os cônjuges a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos  retroativos – , pelo que a apresentação do presente requerimento não significa que se conformem com esse entendimento, reservando-se todos os direitos, em resposta ao convite do Tribunal os AUTORES declaram que pretendem ver apreciado no presente processo o segundo pedido: Serem invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., LDA. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC.
3. Não se logra ignorar que o segundo pedido tem relação com o primeiro pedido. No entanto,
4. Ainda que se declare incompetente para julgar o primeiro pedido, o Tribunal será competente para, em sede de análise e julgamento do segundo pedido, conhecer da questão da nulidade do contrato de cessão de quotas celebrado entre a 2.ª e o 1.º RÉUS e determinar os efeitos comerciais e societários que resultam dessa nulidade.
5. Conforme dispõe o art.º 91.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), se o Tribunal é competente para conhecer da ação (no caso, do segundo pedido), deve ser também competente para conhecer das questões que nela se levantem a título incidental. Assim,
6. Para apreciar o segundo pedido, o Tribunal terá de apreciar a questão da nulidade do contrato de cessão de quotas.
7. Com a ação assim configurada, em face da opção que lhes é conferida pelo douto despacho a que se responde, não visam os AUTORES que o Tribunal conheça do primeiro pedido, relativamente ao qual se poderá vir a considerar incompetente, mas somente o conhecimento em concreto da invalidade do negócio, destacando ou autonomizando os efeitos que dele possam advir no plano societário para a  decisão do segundo pedido, conforme se discute nos presentes autos.
8. Aquilo que se mostra indispensável, devido à circunstância de o segundo pedido se fundar e ancorar na nulidade do contrato de cessão de quotas, é que o Tribunal reconheça a impossibilidade da produção de efeitos, na relação societária, máxime na aprovação de deliberações sociais, daquele contrato, pelo facto de este ser inválido.
9. Neste mesmo sentido decidiu o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, no Acórdão de 07.06.2011, que sumariamente refere: Daí que a apreciação da validade de um acto de natureza administrativa como questão incidental, conexa com o que se discute no processo cível, possa de ser conhecida pelo tribunal cível, que é materialmente competente, como decorre dos art.º 134, nºs 1 e 2 do CPA e 96 do CPC. (Cfr. Ac. TRL de 07.06.2011 (ROSÁRIO GONÇALVES), proc. n. º 5338/09.9TBCSC-A.L1-1). Ora,
10. Se o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA admitiu a apreciação de uma matéria da jurisdição dos tribunais administrativos, enquanto questão incidental, por maioria de razão, neste caso, o Juízo do Comércio terá também competência, reitere-se, de natureza incidental, para conhecer, apenas para efeito deste concreto pedido, da nulidade do contrato de cessão de quota celebrado entre a 2.ª e o 1.º RÉUS, obstando à produção de efeitos na relação societária.
11. Não sendo o presente pedido para estrita apreciação da nulidade do contrato no seu todo, para efeitos do regime civil, os efeitos que o contrato produz na relação societária são, em parte, destacáveis e autonomizáveis enquanto meio de defesa  incidental, nos termos do art.º 91.º, n.º 1 do CPC.
12. Neste sentido, em conformidade com o disposto no art.º 91.º, n.º 1 do CPC, será admissível o bloqueio ou restrição de efeitos daquele contrato em relação aos AUTORES.
13. Destarte, entendem os AUTORES que o Tribunal, para analisar e julgar o segundo pedido, pode e deve apreciar, a título incidental, a invalidade do contrato de cessão de quotas e os efeitos que resultam dessa nulidade para a anulação de todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., LDA., tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os RÉUS) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os RÉUS, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do Código das Sociedades Comerciais, o que se requer.
Por despacho de 27.01.2023, ao abrigo dos artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 1 e 3 ex vi artigo 555.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foi reconhecida a incompetência material do juízo de comércio para apreciação do primeiro pedido deduzido pelos Autores e os Réus foram absolvidos do pedido de declaração da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos.
Mais se determinou que os autos prosseguissem para apreciação do pedido de anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021
Exarou-se, além do mais, nesse despacho:
No caso concreto, o pedido formulado pelos Autores, de nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos, é fundamentado na proibição de doação entre cônjuges de bens alegadamente comuns (art.ºs 1764º, n.º 1, 280º e 294º, todos do Código Civil e na a existência de uma putativa simulação absoluta (art.º 240º, n.º 2 do Código Civil).
O que está em causa é assim a nulidade de um contrato de cessão de quota, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos vícios conducentes a essa nulidade e que não visam o exercício de um direito social dos Autores – apesar de ser alegado que o negócio em causa visou contornar as regras societárias que ditariam a presidência da Assembleia Geral a cargo do 2.º Autor, por ser este o mais velho.
No mesmo sentido, veja-se a seguinte jurisprudência, toda disponível em www.dgsi.pt:
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.11.2021, onde se pode ler no sumário que: “I)– Aos Tribunais/juízos de Comércio , tendo presente o disposto no art.º 128º nº 1 c) da Lei nº 62/2013 de 26/08, compete preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais; ii) Os direitos sociais são aqueles que estão previstos na Lei das Sociedades Comerciais ou no contrato de sociedade III) Visando o autor na acção intentada que seja decretada a anulação de um contrato de cessão de quota, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos vícios conducentes a essa nulidade e que não visam o exercício de um direito social do Autor – apesar de ser evidente que o negócio em causa o prejudicou patrimonialmente enquanto participante no capital da 1ª Ré – então de acção se trata cuja preparação e julgamento não incumbe aos Tribunais/juízos de Comércio.”.
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.05.2016, onde se pode ler no sumário que: “Compete à secção cível da instância central a preparação e julgamento de ação declarativa cível de processo comum de valor superior a €50.000,00, na qual se pede, a título principal, que sejam anulados os negócios jurídicos de cessão de quotas de pais para filhos, sem o consentimento da Autora, invocando esta a qualidade de filha de um dos cedentes, nos termos do art.º 877.º/2 do C. Civil, tendo em conta a regra prevista na alínea a), do n.º 1, do art.º 117.º, da L.O.S.J.”.
Por outro lado, ao contrário do que defendem os autores, a nulidade do contrato de cessão de quotas não é uma questão incidental, mas a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pelos Autores.
Conclui-se, assim, que o pedido de nulidade do contrato de cessão de quotas apenas pode ser apreciado pelos juízos cíveis, sendo este tribunal materialmente incompetente para a sua apreciação. Donde, a cumulação de pedidos formulada pelos Autores não é admissível, por ofender a competência material deste tribunal.
Verifica-se, assim, um obstáculo à coligação e consequentemente à cumulação dos pedidos.
A cumulação ilegal é susceptível de suprimento, nos termos do artigo 38.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, mediante a indicação do pedido que o Autor pretende ver apreciado. Feita a indicação, o artigo 38.º, n.º 2 do mesmo diploma determina que se absolva o Réu quanto aos restantes pedidos.
Pelo exposto, ao abrigo dos artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 1 e 3 ex vi artigo 555.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, absolve-se os Réus do pedido de declaração da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos.
Os autos prosseguem para apreciação do pedido de anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021.
Notifique.
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Por outro lado, da análise dos articulados apresentados pelas partes, retira-se que os autos reúnem, desde já, os elementos necessários para que possa ser resolvido com segurança, nesta fase processual, independentemente da prova que viesse a ser produzida, o mérito da causa.
Pelo que ao abrigo do disposto no art.º 6.º do Código de Processo Civil, notificam‑se as partes para, no prazo de 10 dias, alegarem por escrito”.
Após estas terem alegado, foi proferida sentença, na qual se decidiu: “(…) julga-se a presente acção totalmente improcedente e em consequência absolve-se os Réus do pedido.
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Fixo o valor da acção em 30.000,01€ - artigos 296.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil.
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Custas pelos Réus – artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Notifique.”
Nessa sentença esgrimiu-se a seguinte fundamentação:
“Os Réus invocaram, na contestação, as seguintes excepções dilatórias: de ilegitimidade dos Réus quanto ao segundo pedido formulado pelos Autores, falta de interesse em agir e dedução de pedido genérico.
Todavia, nos termos do artigo 278.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, por o estado dos autos permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, entende-se que não existem nulidades, excepções dilatórias, questões prévias ou incidentais de que cumpra apreciar neste momento.
(…)
Nos presentes autos os Autores peticionam que sejam invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC. Para tanto, alegam, em suma, que os Réus efectuaram uma cessão gratuita de quota, no dia 14.10.2021, sendo casados em regime de comunhão de adquiridos.
 Mais alegaram que, a doação entre casados é permitida, apenas e só se o bem doado for um bem próprio do cônjuge doador (Cfr. Art.º 1764.º, n.º 1, do CC); a quota doada não é um bem próprio da 2.ª Ré.
Nas situações de dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes devem considerar-se comuns, de acordo com o art.º 1725.º do CC. Por oposição, qualquer doação de bens comuns consubstancia um negócio contrário à lei e, por consequência, nos termos dos artigos 280.º e 294.º CC, esse negócio é nulo.
 Nos termos dos art.º 286.º do CC, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado. E nos termos do art.º 289.º CC, a declaração de nulidade tem efeitos retroativos.
A doação ora em crise pretendeu, além de outros interesses contundentes com os interesses da sociedade, contornar as regras societárias que ditariam a presidência da Assembleia Geral a cargo do 2.º Autor, por ser este o mais velho.
 Mais concluem que, em face da nulidade da cessão de quotas havida entre os cônjuges Réus, a qual tem por consequência a alteração das percentagens de voto daqueles sócios, todas as deliberações supostamente aprovadas única e exclusivamente por força dessa alteração de poderes de voto devem ser invalidadas por este Tribunal, nos termos e para os efeitos do art.º 58.º, n.º 1, alínea a) do CSC.
Todavia, o Tribunal entendeu, por despacho de 2.01.2023, que o pedido de nulidade do contrato de cessão de quotas apenas pode ser apreciado pelos juízos cíveis, sendo o tribunal de Comércio materialmente incompetente para a sua apreciação. Nessa sequência, os Autores foram convidados a indicarem qual o pedido que pretendiam ver apreciado neste processo, sob pena de, não o fazendo, serem os Réus absolvidos da instância quanto a todos eles, nos termos do artigo 38.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Em consequência, ao abrigo dos artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 1 e 3 ex vi artigo 555.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, em 27.01.2023, os Réus foram absolvidos do pedido de declaração da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, e os autos prosseguiram para apreciação do pedido de anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021.
Ora, aqui chegados, verificamos que não podendo o Tribunal conhecer da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, o pedido subsistente é manifestamente improcedente, porquanto está dependente do prévio conhecimento da nulidade do contrato de cessão de quotas.
Mais se diga que até ao momento, os Autores não comprovaram nos autos terem interposto qualquer acção nos Juízos Cíveis a peticionar a declaração de nulidade de tal negócio. Como tal e sem necessidade de maiores considerações por desnecessárias, assentando a causa de pedir da anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021, na nulidade do contrato de cessão de quotas entre os Réus e não tendo sido declarada tal nulidade em processo judicial próprio, nem tendo os Autores comprovado a propositura da acção no Tribunal territorialmente competente, a presente acção mostra-se manifestamente improcedente”.
Inconformados, vieram os autores interpor recurso de apelação e apresentar alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da Sentença com a referência Citius n.º 422651340 de 23.03.2023 proferida pelo Tribunal a quo, porquanto, a mesma, entendeu julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo os RÉUS, ora RECORRIDOS, do pedido;
2. Entendem os RECORRENTES que o Tribunal a quo não efetuou uma correta interpretação da matéria de Direito, violando nomeadamente, do Art.º 2.º do CPC e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP); Art.º 6.º do CPC; Art.º 91.º, n.º 1 do CPC; Art.º 92.º, n.º 1 do CPC à contrário.
3.  Os AUTORES, ora RECORRENTES, intentaram a presente ação de processo comum contra os RÉUS, ora RECORRIDOS, tendo requerido ao Tribunal a quo o seguinte: - Ser declarada a nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos; - Serem invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., LDA. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
4. Por despacho com referência Citius n.º 419956537 de 02.01.2023, veio o Tribunal a quo declarar-se materialmente incompetente para julgar o pedido de nulidade do contrato de cessão de quotas, tendo notificando os RECORRENTES para que no prazo de 10 dias, indicarem qual o pedido que pretendiam ver apreciado.
5. Nesse seguimento, através do requerimento com a referência Citius n.º 44432236 de 17.01.2023, os RECORRENTES indicaram a sua pretensão de que o segundo pedido fosse apreciado a título principal, devendo o mesmo ser apreciado numa vertente incidental.
6. Por Sentença com referência Citius n.º 422651340 de 23.03.2023, veio o Tribunal a quo julgar manifestamente improcedente a ação, com os seguintes fundamentos: Ora, aqui chegados, verificamos que não podendo o Tribunal conhecer da nulidade da cessão gratuita de quotas entre cônjuges, o pedido subsistente é manifestamente improcedente, porquanto está dependente do prévio conhecimento da nulidade do contrato de cessão de quotas. Mais se diga que até ao momento, os Autores não comprovaram nos autos terem interposto qualquer ação nos Juízes Cíveis a peticionar a declaração de nulidade de tal negócio. Como tal e sem necessidade de maiores considerações por desnecessárias, assentando a causa de pedir da anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 07.11.2021, na nulidade do contrato de cessão de quotas entre os Réus e não tendo sido declarada tal nulidade em processo judicial próprio, nem tendo os Autores comprovado a propositura da ação do Tribunal territorialmente competente, a presente ação mostra-se manifestamente improcedente. (…) Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a presente ação totalmente improcedente e em consequência absolve-se os Réus do pedido.
7. Os RECORRENTES não se conformam com a douta Decisão no que toca à fundamentação e à decisão, porquanto entendem que andou mal o Tribunal a quo ao decidir de tal forma.
8. Os RECORRENTES viram o seu direito de acesso aos tribunais ser restringido por critérios de formalidade (no caso, a suposta incompetência material do tribunal), em detrimento do conteúdo material deste direito, que consistirá sempre em verem apreciada a sua pretensão.
9. No mesmo sentido, deve ter-se consciência de que a solução proferida pelo Tribunal a quo determina uma situação absurda e que, reflexamente, dificulta o direito de acesso aos tribunais.
10. Não é admissível afirmar que um direito existe quando o mesmo é esvaziado de efeito útil.
11. Veja-se a declaração de incompetência proferida pelo Tribunal a quo, que determina que os RECORRENTES necessitavam de iniciar uma nova ação, no Juízo Cível (supostamente o competente) para que o mesmo aprecie a questão da nulidade da cessão de quotas (apenas!).
12. Olvidou-se, contudo o Tribunal a quo, que sendo o 2.º pedido da competência do Juízo do Comércio, nos termos do art.º 128.º, n.º 1, al. c) da LOSJ, o Juízo Cível não o poderia apreciar.
13. E, neste raciocínio, chegamos a uma conclusão totalmente contrária à eficiência e celeridade judicial: cada um dos tribunais aprecia um dos pedidos, sendo que o primeiro pedido influencia a decisão do segundo e que, nos termos do art.º 92.º, n.º 2 do CPC, não há possibilidade de sobrestar na decisão porque não está em causa um tribunal criminal ou um tribunal administrativo.
14. Por outro lado, só após a declaração de nulidade da cessão de quotas por parte do Juízo Cível seria possível requerer a anulação da deliberação (muito após o decurso do breve prazo de caducidade, previsto no art.º 59.º do CSC), o que, claramente, prejudica o direito que os RECORRENTES têm de ver a sua pretensão ser eficazmente e de forma célere.
15. Repare-se que, a solução do Tribunal a quo, da necessidade de os RECORRENTES intentarem uma ação com vista à nulidade do contrato de cessão de quotas no Juízo Cível, é incompatível com a eventual decisão de serem invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021, o que, de facto, se impõe.
16. Um dos princípios basilares do sistema processual civil português assenta numa intervenção ativa do juiz nesse mesmo processo, ao qual foi, nomeadamente, atribuído um poder-dever de direção do processo.
17. Ao tratar-se de um poder-dever, não está na liberdade do juiz exercê-lo, mas antes lhe é imposto em nome de critérios de celeridade da justiça, satisfação das pretensões das partes e procura da verdade material no processo.
18. No caso em apreço, a postura do Tribunal violou o dever de direção do processo, na medida em que, (i) o Despacho com referência Citius n.º 419956537 de 02.01.2022, mostrou-se impercetível pelos RECORRENTES, na medida em que solicita a escolha de um único pedido, contudo, o Tribunal a quo já havia decidido que apenas era competente para julgar um dos pedidos. Não se entende. Neste sentido, não se pode afirmar que haja uma “escolha”, o que suscitou nos RECORRIDOS bastante confusão, prejudicando a resposta ao Despacho; (ii) a Sentença com referência Citius n.º 422651340 de 23.03.2023, em consequência, julga improcedente o alegado pelos RECORRENTES, ignorando, propositadamente (tendo em conta o Despacho com referência Citius n.º 421847816 de 27.01.2023, que afasta a sua aplicação), a um dos mecanismos legais de gestão processual aplicáveis que prevê a extensão da competência (art.º 91.º, n.º 1 do CPC); (iii) tornou a pretensão dos RECORRENTES, de difícil execução, por não agilizar o conhecimento de uma questão incidental no mesmo processo, entendendo que a melhor solução seria a apreciação parcelar de cada pedido por Juízos diversos, com todas as consequências preservas já mencionadas.
19. Sendo certo que o poder-dever de gestão processual não se mostra como um mecanismo estabelecido de forma taxativa quanto às suas manifestações, os pontos elencados mostram-se claras violações do mesmo por afastarem categoricamente a proximidade à verdade material do processo, criando até bastantes obstáculos à mesma.
20.  A decisão de improcedência da ação deve-se, na sua essência, à consideração pelo Tribunal a quo de que é materialmente incompetente para o conhecer o 1.º pedido (Ser declarada a nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos.).
21. Quanto ao segundo pedido (Serem invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., LDA. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de 28 / 34 cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC.), a sua improcedência deve-se a uma relação de dependência face ao primeiro pedido, tal como evidenciou o Tribunal a quo quando afirma que: Como tal e sem necessidade de maiores considerações por desnecessárias, assentando a causa de pedir da anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021, na nulidade do contrato de cessão de quotas entre os Réus e não tendo sido declarada tal nulidade em processo judicial próprio, nem tendo os Autores comprovado a propositura da acção no Tribunal territorialmente competente, a presente acção mostra-se manifestamente improcedente.
22. Como é sabido, a competência dos Tribunais é definida legalmente e encontra-se pré-determinada tanto no CPC como na LOSJ.
23. Um dos critérios de definição da competência e que, cuja falta, resulta em incompetência absoluta – nos termos do art.º 96.º, al. a) do CPC - diz respeito ao critério da competência em razão da matéria, prevista, nomeadamente 65.º do CPC e 40.º e 81.º da LOSJ.
24. Da aplicação deste critério, e para efeitos do caso em apreço, a competência material, repartindo as competências dos tribunais (ou juízos) consoante a matéria do litígio, permitirá perceber qual o juízo competente.
25. O Tribunal a quo considerou-se incompetente para conhecer sobre o 1.º pedido (Ser declarada a nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroativos.), afirmando que a competência cabe ao Juízo Cível, pelo que, consequentemente, se trata de uma incompetência material.
26. Os RECORRENTES, quando confrontados com a questão da incompetência material, não conformados com tal conclusão, entenderam que a competência do Tribunal a quo, quanto ao 1.º pedido encontrava-se assegurada pela al. c) do art.º 128.º do LOSJ.
27. Sem prejuízo do facto de o Tribunal a quo não ter seguido essa orientação, mostra-se, ainda assim, inadmissível a conclusão de incompetência material, que determine a improcedência do 1.º pedido.
28. O Tribunal a quo não pôs em causa a sua competência para apreciar o 2.º pedido, a qual está garantidamente assegurada, nos termos do art.º 128.º, n.º 1 al. c) da LOSJ.
29. No entanto, considerou que a ação era improcedente pelo facto de o 1.º pedido ser causa de pedir do primeiro e o mesmo não ter competência para o apreciar, pelos fundamentos já expostos.
30. Contudo, tal conclusão funda-se em erro grosseiro por parte do Tribunal a quo, tendo em conta que, no caso em apreço, teria aplicação a regra de extensão de competência prevista no art.º 91.º, n.º 1 do CPC.
31.Assim sendo, tendo competência para conhecer da anulabilidade das deliberações (a qual está garantida), através da norma de extensão da competência do art.º 91.º, n.º 1 do CPC, o Tribunal a quo tem competência para conhecer da nulidade que determina a anulabilidade das deliberações, visto que a nulidade se mostra um incidente para efeitos dessa norma.
32. Importa também esclarecer a distinção, de forma clara, entre os incidentes da instância e os incidentes que relevam para efeitos do art.º 91.º, n.º 1 do CPC.
33. Os incidentes da instância caracterizam-se de acordo com as seguintes linhas gerais: A questão incidental é, assim, de natureza contenciosa, com certo grau de conexão com alguns dos elementos que integram o processo. O incidente processual é, pois, a ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual, que origine um processado próprio, isto é, com um mínimo de autonomia, ou, noutra perspetiva, a interferência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo principal ou ao recurso. (Cf. Salvador Costa, Os Incidentes da Instância, 11.ª Edição, Almedina, 2020, p.7-8).
34. Por outro lado, os incidentes para efeitos do art.º 91.º, n.º 1 correspondem: [às] questões, afora as suscitadas pelo réu, que têm de ser previamente resolvidas para que o juiz possa estatuir sobre a pretensão do autor – Vaz Serra, RLJ 110.º, P.234 (cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, 2019, p. 31).
35. A nulidade da cessão de quotas, que posteriormente impacta todas as deliberações posteriores é um exemplo claro de uma questão incidental, visto que, o seu conhecimento e apreciação se mostram necessários para o julgamento da pretensão – no caso, do 2.º pedido.
36. Não é possível anular as deliberações se não foi reconhecida a ilegitimidade das quotas e, consequentemente, das votações tomadas com base nessas quotas, se não se reconhece como nulo o negócio que as transmite.
37. O raciocínio segundo o qual a nulidade se trata de um incidente foi já anteriormente apresentado pelos RECORRENTES, com o seguinte fundamento: Destarte, entendem os AUTORES que o Tribunal, para analisar e julgar o segundo pedido, pode e deve apreciar, a título incidental, a invalidade do contrato de cessão de quotas e os efeitos que resultam dessa nulidade para a anulação de todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., LDA., tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os RÉUS) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os RÉUS, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do Código das Sociedades Comerciais, o que se requer.
38. A suposta incompetência material do Juízo de Comércio quanto ao 1.º pedido não é um argumento à inaplicabilidade do art.º 91.º, n.º 1 do CPC, na medida em que, (i) não é esse um pressuposto da aplicação do artigo, antes pelo contrário; (ii) o próprio art.º 91.º, n.º 2 determina que a decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo.
39. Assim, não existe uma preclusão da (suposta) competência material dos Juízos Cíveis, visto que a apreciação da nulidade é efetuada só e apenas para efeitos deste processo e quanto ao que for relevante para apreciar o 2.º pedido.
40. Mais se afirme que se fosse necessário que a competência do Tribunal em razão da matéria, a parte final do art.º 91.º, n.º 2 do CPC seria inútil, visto que admite o requerimento do julgamento com essa amplitude quando o Tribunal for competente em razão da matéria.
41. Assim, reitera-se o alegado pelos RECORRENTES, à data AUTORES de que, Não se pretende que com a presente lide o Tribunal conheça do primeiro pedido, relativamente ao qual se considerou incompetente, isto é, não se peticiona a nulidade do contrato com eficácia erga omnes, i.e., e a consequente destruição do contrato no seu todo, mas somente o conhecimento em concreto da invalidade do negócio, destacando ou autonomizando os efeitos que dele possam advir no plano societário, conforme se discute nos presentes autos.
42. O conhecimento da nulidade mostra-se assim apenas uma questão incidental a apreciar para efeitos de apreciação do 2.º pedido, que produzirá efeitos apenas no âmbito do processo, por estar em causa uma questão que apenas faz caso julgado formal.
43. Cabe ainda fazer menção à necessidade de proceder a uma interpretação sistemática do art.º 91.º, n.º 1 do CPC, tendo em conta, nomeadamente, o art.º 92.º do CPC a contrario.
44. O art.º 92.º, n.º 1 do CPC atribui o poder ao juiz de sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie, quando está em causa questões da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, que tenham de ser previamente decididas para apreciar o pedido em análise.
45. Se apenas nesse caso é atribuída a possibilidade de sobrestar na decisão, e não estamos perante uma situação da competência de um tribunal criminal ou de tribunal administrativo, então não é possível ao tribunal, tendo competência ao abrigo do art.º 91.º, n.º 1 do CPC, sobrestar na decisão e aguardar a pronuncia do Juízo Cível.
46. É exatamente por isso que não é correta a afirmação do Tribunal a quo segundo a qual expõe como argumento para a improcedência o facto de os RECORRENTES não terem comprovado nos autos terem interposto qualquer acção nos Juízos Cíveis a peticionar a declaração de nulidade de tal negócio.
47. O facto de os RECORRENTES não terem comprovado a interposição (ou sequer ter interposto) qualquer ação nos Juízos Cíveis a peticionar a declaração de nulidade de tal negócio não prejudica, de modo algum, a admissibilidade da pretensão, sob pena de se admitir um raciocínio que ignora e, assim, viola os art.ºs 91.º e 92.º do CPC.
48. A inversão das regras de justiça foi já evidenciada no que toca à violação tanto à violação do direito de acesso aos tribunais quanto ao dever de gestão processual do juiz.
49. No entanto, essa não se baseia apenas em tais violações, mas também na existência de uma subversão da materialidade da pretensão em benefício de regras meramente formais.
50. O direito civil português tem como princípio basial a prevalência da matéria face à forma, visto que apenas tento por base este princípio se atingirá a devida justiça, fundada na descoberta da verdade material das realidades litigiosas.
51. Este princípio, baseado na boa-fé, é denominado como princípio da primazia da materialidade subjacente.
52. No caso em apreço observa-se uma clara violação deste princípio, tendo em conta que a pretensão material a ser apreciada foi julgada improcedente, pelo mero facto de, (reitera-se!) supostamente, não ter o tribunal competência material.
53. Assim, foi violado o art.º 91.º do CPC, que prevê a extensão de competência e que se mostra uma clara expressão legal do princípio da primazia da materialidade subjacente.
54.  O seu fundamento consiste na ideia de que o relevante é apreciar a pretensão, mesmo que tal signifique apreciar questões laterais, em princípio não enquadráveis naquele concreto processo, mas que se mostram imprescindível de conhecimento.
55.  É admissível, num sistema que prevê este princípio, que se admita a produção de efeitos de deliberações que são fundadas em (ou, pelo menos, impactadas por) posições jurídicas indevidamente obtidas?
56. A nulidade do contrato de cessão de quotas, por violação do art.º 1764.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos já exaustivamente expostos na Petição Inicial apresentada pelos RECORRENTES, enquanto não for conhecida, fundamenta uma posição jurídica indevida para tanto a 2.º RÉ como para o 1.º RÉU.
57. A recusa por parte do Tribunal a quo de conhecer a nulidade, a título incidental, determina, portanto, a manutenção da situação de ilegalidade e, em especial, de uma situação de abuso de direito por parte dos RÉUS.
58. Os RÉUS atuaram em abuso de direito, na medida em que invocam uma situação ilícita – a cessão de quotas (nula!) – para fundamentarem os resultados das deliberações da Assembleia Geral efetuadas a partir de dia 17.11.2021 e, nomeadamente, para sustentarem os poderes de voto, implicando assim diretamente as posições dos restantes sócios - em especial dos RECORRENTES - e da própria sociedade.
59. Assim sendo, tendo em conta que um contrato nulo não produz (de todo!) efeitos, não se pode admitir que os RÉUS beneficiem dos seus efeitos e, muito menos, que não haja a devida apreciação, a título incidental, desta situação no âmbito judicial.
Nestes termos, e em face do exposto, deve ser dado integral provimento ao presente recurso e, por conseguinte, a douta Sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Os réus apresentaram contra-alegações, nas quais propugnam pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
II. Na sentença consideraram-se provados os seguintes factos:
1. A sociedade K., Lda. é uma sociedade por quotas, com o capital social de €110.000,00, pessoa colectiva e matrícula n.º …, com sede na Rua …..
2. Tem como objecto social importação, comércio e fabrico de veículos com e sem motor, bem como à importação e comércio de peças e acessórios, vestuário e demais artigos relacionados com a actividade.
3. A sociedade tem o capital social de €110.000,00.
4.  A referida sociedade tinha, até 16.11.2021, o capital social dividido da seguinte forma: i. FM (ora 1.º, titular de quotas com o valor nominal global de €11.000,00, correspondente a 10% do capital social; ii. FS, titular de quotas com o valor nominal global de €33.000,00, correspondente a 30% (trinta por cento) do capital social; iii. MO, titular de quotas com o valor nominal global de €33.000,00, correspondente a 30% (trinta por cento) do capital social; iv. MG, titular de quotas com o valor nominal global de €33.000,00, correspondente a 30% (trinta por cento) do capital social.
5. No dia 17 de Outubro de 2021, MG dividiu a sua quota no valor nominal de €33.000,00 em duas novas quotas no valor nominal de €16.500,00, tendo doado uma das novas quotas no valor de €16.500,00, correspondente a 15% do capital social – ao seu marido MO.
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III. As questões de que cumpre conhecer consistem em saber:
- se a sentença recorrida viola o disposto no art.º 91º, n.º 1, do CPC e o poder-dever de gestão processual;
- se essa decisão restringiu o direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º, n.ºs 1 e 4, da CRP, fazendo prevalecer a matéria sobre a forma;
- se os réus actuaram com abuso de direito.
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IV. Da questão de mérito:
Na apelação não se questiona a decisão tomada pelo tribunal a quo, nos termos do art.º 278º, n.º 3, 2ª parte, do CPC, de conhecer do mérito da causa, com a absolvição dos réus do pedido, sem previamente conhecer das excepções dilatórias invocadas por estes, tendentes à sua absolvição da instância.
Não estando em causa a verificação dos parâmetros definidos nesse normativo, a questão a apreciar reconduz-se, essencialmente, a saber se, como propugnam os autores/apelantes, competia ao tribunal conhecer da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, enquanto questão prejudicial do conhecimento da validade/invalidade das deliberações sociais, nos termos do art.º 91º, n.º 1 do CPC (conclusões 18ª, 30ª a 47ª e 53ª).
Na p.i. os autores formularam dois pedidos, a saber:
- seja declarada a nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, a 2.ª Ré e o 1.º Réu, com efeitos retroactivos;
 - sejam invalidadas, por anulação, todas as deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021 (data do registo da cessão de quotas entre os Réus) que sejam aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Relativamente ao 1º dos aludidos pedidos, por despacho proferido dia 27.01.2023, transitado em julgado, foi reconhecida a incompetência material do Juízo de Comércio para sua apreciação, por se entender serem competentes os Juízos Cíveis, sendo ilegal a coligação de pedidos, decidindo-se, ao abrigo dos artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 1 e 3 ex vi artigo 555.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, absolver os Réus do pedido de declaração da nulidade da cessão gratuita de quotas entre os cônjuges, com efeitos retroativos (esta decisão, ao que tudo indica, enferma de lapso de escrita, porquanto infere-se das disposições legais invocadas que se pretendeu aludir à absolvição da instância).
E na decisão recorrida entendeu o tribunal a quo que, como o pedido de nulidade do contrato de cessão de quotas apenas pode ser apreciado pelos juízos cíveis, sendo o tribunal de Comércio materialmente incompetente para a sua apreciação, não pode conhecer dessa nulidade, pelo que, estando o pedido subsistente (pedido de anulação das deliberações da Assembleia Geral da Sociedade K., Lda. tomadas após 17.11.2021 e aprovadas em consequência da distribuição do poder de voto resultante do contrato nulo de cessão gratuita de quotas entre os Réus, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) do CSC e conforme o disposto no art.º 556.º, n.º 1, alínea b) do CPC.) dependente do prévio conhecimento da nulidade daquela cessão de quotas, o mesmo é manifestamente improcedente.
Dissentindo, dizem os autores/apelantes que através da norma de extensão da competência do art.º 91.º, n.º 1 do CPC, o Tribunal a quo tem competência para conhecer da nulidade que determina a anulabilidade das deliberações.
Vejamos.
No âmbito da extensão e modificações da competência, prescrevem os artºs. 91º e 92º do Cód. de Processo Civil que:
Art.º 91º:
“1 - O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.
2 - A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia”.
Art.º 92º:
“1 - Se o conhecimento do objeto da ação depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.
2 - A suspensão fica sem efeito se a ação penal ou a ação administrativa não for exercida dentro de um mês ou se o respetivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da ação decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida”.
Nos casos contemplados nos citados normativos, a competência de um dado tribunal pode estender-se a outras questões nele ou à margem dele suscitadas e para cujo conhecimento não teria, em princípio, competência.
Mas se o juiz da acção decidir essas  questões não se forma caso julgado material sobre as mesmas, ou seja, “a questão prejudicial ou incidental é objecto apenas de conhecimento «incidentaliter tantum» e não «principaliter», podendo ser objecto de nova acção, embora sem prejuízo da decisão anterior” - Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, pág. 44 e 45.
Como assinala A. Reis (Comentário ao CPC, volume 1º, pág. 283), se “o tribunal é competente para conhecer do mérito da causa, para declarar o direito na espécie submetida à sua apreciação, importa coloca-lo em condições de proferir o seu veredicto; há que habilitá-lo, portanto, a resolver as questões que apareçam no caminho e que poderiam impedi-lo de chegar ao termo da jornada.
A regra é peremptória: quaisquer que sejam as questões incidentais, o tribunal, desde que tem competência para julgar a acção, tem por isso mesmo competência para decidir aquelas questões”.
À regra assim estabelecida no art.º 91º quanto às questões incidentais, o normativo seguinte prevê uma limitação relativamente às questões prejudiciais penais e administrativas, ao estabelecer poder o juiz, em alternativa, decidi-las ou sobrestar na decisão até ao julgamento pelo tribunal competente.
Atento o carácter excepcional do art.º 92º do CPC, não pode o regime nele previsto ser estendido por analogia a casos diferentes dos previstos – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, volume 1º, 3ª edição, pág. 184.
Ora, no caso sujeito à nossa apreciação, a questão incidental suscitada não reveste a natureza penal ou administrativa, mas sim a natureza cível, sendo inaplicável o art.º 92º do CPC.
Como sustenta A. Reis (ob. cit. pág. 287), entre “a espécie regulada no artigo 96º e a regulada no artigo 97º (equivalentes aos actuais art.ºs 91º e 92º do CPC) há este ponto de contacto: a questão prejudicial tem o carácter de questão incidental, quer dizer surge numa causa pendente, como condição ou requisito para se decidir a matéria fundamental da causa. Pelo contrário, no caso previsto no artigo 284º (equivalente ao vigente 272º) a questão prejudicial constitui o objecto próprio duma causa distinta que pende no mesmo ou noutro tribunal.
Tais são as semelhanças e diferenças sob o ponto de vista processual.
Consideradas agora as espécies sob o ponto de vista material, não há dificuldade alguma em distinguir o caso prevenido no artigo 97º do prevenido no artigo 96º. Aquele artigo é expresso: diz unicamente respeito às hipóteses da questão prejudicial consistir: a) na verificação da existência ou inexistência de um facto criminoso; b) na apreciação da validade e conteúdo dum acto administrativo.
Quando a questão prejudicial-incidental verse sobre matérias diferentes, o texto a aplicar é o artigo 96º (actual art.º 91º)”.
As questões incidentais (lato sensu) a que se reporta o art.º 91º do CPC, abrangem, pois, as questões prejudiciais de natureza diversa das especificamente referenciadas no art.º 92º do mesmo diploma.
“É questão prejudicial toda aquela cuja resolução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, quer esta necessidade resulte da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência duma excepção, perenptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo, e seja mais ou menos direta a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou o thema decidendum” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 183.
Ora, no caso, o que está em jogo, em face do reconhecimento da incompetência material do tribunal para a apreciação do pedido de anulação da escritura de doação de quotas, é tão-só o conhecimento incidental da questão da validade ou invalidade desta, enquanto questão prejudicial do conhecimento do objecto da acção (pedido de anulação das deliberações sociais).
Efectivamente, a ser nula a cessão de quotas, então as deliberações tomadas poderão ser inválidas face à alteração das percentagens de voto do sócio réu, aprovadas única e exclusivamente por força dessa cessão.
Mas o conhecimento pelo juiz dessa questão prejudicial não visa, naturalmente, a declaração da nulidade da cessão de quotas, com a formação de caso julgado material sobre a mesma, mas tão-só que seja objecto de conhecimento incidental (e não principal), formando a decisão, após o seu trânsito, caso julgado formal.
Não se trata aqui de estender a competência do tribunal da causa, mas sim de atribuir ao juiz o poder de conhecer dessa questão, que se torna necessário decidir por dela depender a sorte do pedido de anulação das deliberações sociais.
E assim sendo, o tribunal poderá e deverá conhecer a título incidental da questão da invalidade da cessão de quotas, enquanto pressuposto da apreciação do pedido de anulação das deliberações sociais.
Impõe-se, por isso, revogar a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação das questões nele suscitadas, nomeadamente das excepções invocadas na contestação, do incidente de intervenção principal provocada, da dedução de articulado superveniente e da ampliação do pedido.
Procede, por isso, a apelação, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões postas no recurso.

***
V. Decisão:
Pelo acima exposto, decide-se:
1. Julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos nos termos sobreditos;
2. Custas do recurso pelos apelados, enquanto parte vencida;
3. Notifique.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024
Manuel Marques
Paula Cardoso
Teresa Sousa Henriques