Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO AVEIRO PEREIRA | ||
Descritores: | CONTRATO-PROMESSA INTERPRETAÇÃO FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM REDUÇÃO CONVERSÃO DO NEGÓCIO NULIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/04/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I – Independentemente do nomen iuris que as partes dão aos contratos, na interpretação e na qualificação destes, o que conta é a vontade expressa nas respectivas declarações negociais, entendidas estas com o sentido captável pelo declaratário normal, colocado no real circunstancialismo negocial. II – A falta de assinatura de um dos promitentes constitui omissão de uma formalidade ad substantiam, dando origem a um vício formal que inquina todo o documento em que o contrato-promessa foi celebrado. III – A redução não colhe porque entre um contrato-promessa bilateral e uma promessa unilateral não há uma relação quantitativa, de mais para menos, mas uma relação entre espécies contratuais diferentes. IV – A conversão pode operar a metamorfose do contrato bilateral em promessa unilateral, mas não é do conhecimento oficioso do tribunal e só é admissível quando se alegue e demonstre ser essa vontade conjectural das partes. J.A.P. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório MÁRIO, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, na forma ordinária, contra: - H, MARIA e M, LDA., com sede na Rua Bento de Jesus Caraça n.° 50-B, freguesia do Laranjeiro, concelho de Almada. Pretende o A. que o Tribunal decida: a) Declarar o incumprimento definitivo, por parte dos Réus e dar por resolvido o contrato-promessa de cedência de quotas outorgado em 27 de Maio de 1996; b) Condenar os réus solidariamente a restituírem ao Autor todas as quantias que dele receberam no total de € 47.974,82; c) Condenar os Réus solidariamente a indemnizarem o Autor com o dobro do sinal recebido no total de € 16.749,64 d) Condenar os Réus no pagamento de juros de mora, calculados sobre € 64.724,46 e contados da data de entrada da presente acção até integral pagamento. Subsidiariamente, caso assim não possa ser doutamente decidido, que seja, então, conhecido o vício de forma existente no contrato-promessa de cedência de quotas e o enriquecimento sem causa por parte dos réus e que o tribunal: a) Declare a nulidade do aludido contrato-promessa; b) Condene os Réus, solidariamente, a restituírem ao Autor as quantias que dele receberam, no total de € 47.974,82; c) Condene os Réus, solidariamente, a pagarem ao Autor os juros legais no total de € 16.243,49; d) Condene os Réus no pagamento de juros de mora, calculados à taxa legal sobre € 64.218,31 e contados da data de entrada da presente acção até integral pagamento Esta pretensão foi contestada por todos os RR., tendo excepcionado a ilegitimidade da ré sociedade e impugnado a restante matéria invocada pelo A.. Este respondeu à excepção defendendo a sua improcedência e reduzindo o seu pedido inicial de restituição de € 47.974,82 para € 46.054,82. Na audiência preliminar foi elaborado despacho saneador e absolvida a Ré Martins & Barros, Lda., da instância por ilegitimidade. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que declarou a nulidade do contrato-promessa e condenou os réus a restituírem ao autor a quantia de € 46.054,82, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva para as obrigações civis, contados da citação. Inconformados, os 1.º e 2.º RR. apelaram, concluindo as suas alegações do seguinte modo: 1. Estamos perante uma promessa unilateral, e não perante um contrato-promessa, já que o Apelado não teve qualquer intervenção no documento em apreço; 2. O Apelado nada declarou; nada assinou; nada disse; nada negociou; nada propôs; 3. O Apelado nunca interveio na declaração de vontade dos Apelantes, recebendo-a como tal, em conjunto com os demais declaratários, sem reservas ou condições; 4. O Apelado nunca dirigiu aos Apelantes qualquer interpelação, escrita, nem oral no sentido de ser fixado prazo para que os Apelados cumprissem a promessa feita de modo unilateral; 5. E no documento em causa não se fixou prazo para o cumprimento da promessa; e o Apelado bem sabia disso; 6. A promessa nunca foi revogada, pelos Apelantes, mantendo-se, ainda hoje; 7. Pelo contrário, o Apelado foi quem deixou de trabalhar para a sociedade dos Apelantes, colocando-se ele próprio, e por sua livre vontade, na posição de não querer aceitar a promessa de modo implícito; 8. O Apelado não concluiu o pagamento aludido na promessa por sua vontade, pois os Apelados nada fizeram para que tal acontecesse; 9. Natural é que passando a sociedade a dar prejuízos, as amortizações ficassem mais longas no tempo. 10. Por outro lado, sendo a promessa, escrita, como o foi, o Apelado teria de agir, em relação a ela, também por escrito; 11. E o Apelado nunca se manifestou, por escrito, em relação à promessa em causa; 12. E o Apelado nunca amortizou, até agora a sua quota-parte no preço constante da promessa. 13. Não foi fixado qualquer sinal no documento em apreço, o que revela o carácter da promessa unilateral; 14. Nem foi fixada qualquer penalidade ao Apelado para o caso de não-aceitação da promessa, o que revela que de contrato não se tratou, em tempo algum. 15. Sem sinal; sem penalidade por eventual não cumprimento pelo Apelado, o documento dos autos não é, nem nunca foi um contrato-promessa; 16. Sem tempo e modo quantitativo de aceitação da promessa, esta está completamente desenquadrada de qualquer pressuposto contratual; 17. A promessa mantém-se na sua íntegra, pelo que o Apelado não foi impedido de a aceitar e executar, já que nenhumas limitações lhe foram impostas, que não fosse o pagamento de uma quantia, sem tempo, e sem quantitativos parciais a efectuar; 18. Nos autos não se liquidou o que foram amortizações e o que foram os juros convencionados. 19. O Tribunal a quo decidiu em contradição com os factos dados como provados, violando, deste modo, o disposto no artigo 668° n.° 1 alínea c), do Código de Processo Civil. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre decidir. As questões a resolver, tal como resultam do enunciado conclusivo dos Recorrentes, são as seguintes: 1) A natureza do negócio jurídico em causa; 2) A validade da figura negocial; 3) A alegada nulidade da sentença. II – Fundamentação A – Factos provados. 1. Os réus são casados um com o outro e são os únicos sócios da sociedade por quotas M, Lda., sendo o réu H gerente da mesma; 2. Por documento escrito, datado de 10 de Abril de 1996, assinado presencialmente pelos réus em 27 de Maio de 1996, os réus declararam que o primeiro prometeu vender 50% e a segunda 100% das suas quotas na sociedade Martins & Barros, Lda., pelo valor global de € 119.711,49 (24.000 contos), distribuídos a Armindo Ribeiro Ferreira Branco, ao autor e a P, subscrevendo cada um deles a importância de € 39.903,83 (8.000 contos); 3. Nos termos desse documento, o autor subscreveria o valor de € 39.903,83 (8.000 contos), cujo pagamento seria a efectuar de acordo com os resultados dos balanços trimestrais (lucros) que a sociedade viesse a conseguir, tendo ainda ficado escrito que "amortizadas que sejam estas importâncias, através dos lucras conseguidos, será celebrada a escritura de cedência de quotas atrás mencionada pelo seu valor nominal", constando ainda do mesmo que "os promitentes-compradores pagam juros aos promitentes vendedores do capital em dívida enquanto a escritura não for celebrada. Os juros atrás mencionados serão pagos mensalmente, calculados à taxa anual de quinze por cento"; 4. Depois desse documento, o autor ficou a trabalhar na sociedade M, Lda., como empregado, até Dezembro de 2004; 5. Desde a data da outorga desse documento, o autor amortizou mensalmente diversas quantias, que eram descontadas pelo réu do seu salário; 6. Em 22 de Janeiro de 1998 os réus assinaram o documento de fls. 16, intitulado de "declaração/recibo ", onde declararam ter recebido do autor a importância de 1.679.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento do valor das quotas que detêm na sociedade M, Lda., "que aqueles lhe prometeram ceder e este lhes prometeu adquirir, através de contrato -promessa de cessão de quotas outorgado em 10 de Abril de 1996"; 7. Por conta daquele documento, o autor pagou aos réus a quantia de 19.657,00€, que estes nunca lhe restituíram, nem a quantia de 26.397,82€, apesar de o autor as ter reclamado; 8. Era o autor que fazia as contas da sociedade ao fim de cada dia, sabendo quanto a sociedade facturava diariamente, pois era ele que fechava o estabelecimento; 9. O réu nunca apresentou balanços nem quaisquer outras contas da sociedade ao autor, 10. Desde 2003 que o autor vem pedindo contas ao primeiro réu, o qual sempre alegou prejuízos da sociedade e que o preço das quotas não estava pago, e sempre se negou a realizar a escritura de cedência de quotas; 11. Desde que o autor passou a pedir contas ao réu, este passou a manifestar agressividade e a provocar discussões com aquele, à frente dos utentes do estabelecimento da sociedade, comportamento que tornou impossível a manutenção da relação profissional e societária do autor; 12. O facto de o réu não prestar contas ao autor e o seu referido comportamento fizeram com que o autor perdesse o interesse no cumprimento do que consta do mencionado documento; 13. O autor enquanto trabalhador da sociedade sempre recebeu o salário convencionado e assinava os respectivos recibos; 14. B - Apreciação jurídica 1) A natureza do negócio jurídico em causa. Na douta sentença impugnada, considerou-se que o negócio jurídico que as partes epigrafaram como «contrato-promessa de cedência de quotas» é efectivamente um contrato-promessa bilateral. É sabido que a qualificação jurídica que as partes fazem dos negócios que celebram não vincula o juiz. Além disso, independentemente do nomen iuris, o que conta é a vontade das partes expressa nas respectivas declarações negociais. Portanto, a primeira coisa a fazer é interpretar a declaração negocial, à luz do critério que resulta do art.º 236.º do C. Civ., ou seja, o da impressão do destinatário. Segundo esta teoria, a declaração há-de ter o sentido que um declaratário normal, minimamente instruído e sagaz, colocado na posição do declaratário concreto, possa deduzir do comportamento do declarante. Para este efeito, há que atender também, nomeadamente, aos termos do negócio, aos usos da prática, à finalidade perseguida pelo declarante e aos interesses negociais em jogo (cf. Mota Pinto, T.G. Direito Civil, 1980, p. 421, e M. Andrade, T.G. da Relação Jurídica, vol. 2, p. 313, nota 1). Neste caso, os réus e ora recorrentes, declararam prometer vender, respectivamente, 50% e 100% das quotas que detêm na sociedade M, Lda., por Esc. 24.000.000$00. Foi igualmente clausulado que A, P e o ora autor, Mário, pagariam àqueles a referida importância em parcelas de Esc. 8.000.000$00 cada um. Mais ficou estipulado que a escritura do contrato prometido seria celebrada logo que estivessem amortizadas as referidas parcelas e que, até à escritura, os promitentes-compradores pagariam juros aos promitentes vendedores sobre o capital em dívida. E a verdade é que se provou que o A., recorrido, pagou aos réus Esc. 1.679.000$00, que estes declararam ser «a título de sinal e princípio de pagamento do valor da quotas». Portanto, quer do elemento literal do negócio constante do documento de fls. 14-16, intitulado «contrato-promessa…», e do documento posterior, sob a epígrafe «Declaração/Recibo», quer do circunstancialismo e dos interesses que envolvem a cessão de quotas sociais, resulta que as partes quiseram realmente celebrar um contrato-promessa sinalagmático, isto é, com obrigações correspectivas para ambas. Importa agora testar a validade deste contrato-promessa bilateral que o promitente cessionário não subscreveu. 2) A validade da figura negocial. Na primeira instância, o contrato-promessa dos autos foi considerado nulo por inobservância da forma legal, em virtude de o documento só ostentar a assinatura de uma das partes, a dos promitentes-cedentes. Cumpre, pois, apreciar. No que concerne à forma, o art.º 410.º, n.º 2, do C. Civ., impõe que a promessa respeitante à celebração de um contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja bilateral ou unilateral. Para a celebração do contrato prometido de cessão de quotas, a lei exige a forma de escritura pública, nos termos da al. i) do art.º 89.º do Código do Notariado, na versão então vigente, e do art.º 80.º, n.º 2, al. i), do mesmo diploma, hoje em vigor. Por sua vez, o art.º 220.º do C. Civ., fulmina com a nulidade a declaração negocial que não observe a forma legalmente prescrita. Deste modo, sendo a assinatura do promitente cessionário das quotas uma formalidade ad substantiam, a sua omissão no documento que titula o contrato compromete irremediavelmente a validade deste. E a nulidade que aqui ocorre é total (ac. uniformizador do STJ de 29-11-89, proc.º n.º 074072, 2.ª sec., www.dgsi.pt/jstj), porque a falta de assinatura de um dos intervenientes é um vício formal que inquina todo o documento em que o contrato foi celebrado. A redução (cf. art.º 292.º do C. Civ. e ac. STJ de 5-11-2002, proc.º 2151/02, 1.ª sec., www.dgsi.pt/jstj) não tem aqui cabimento, pois a relação entre um contrato-promessa bilateral e uma promessa unilateral não é uma relação quantitativa, de mais para menos do mesmo contrato, mas uma relação entre espécies contratuais diferentes. Nesta ordem de ideias, só a conversão (art.º 293.º do C. Civ.) poderia operar a metamorfose do referido contrato bilateral numa promessa unilateral. Mas esta conversão, que não é do conhecimento oficioso do tribunal, só é admissível quando essa for a vontade conjectural das partes, isto é, quando se alegue e demonstre que era desiderato dos intervenientes manter a vontade de se vincularem à celebração do contrato prometido, mesmo sabendo que uma das partes a tanto não ficava obrigada. Esta prova não foi feita nos autos, nem sequer os factos pertinentes foram alegados, pelo que não se encontram reunidos os requisitos da conversão do contrato-promessa bilateral em promessa unilateral de contratar (cf. Ac. STJ de 25-11-2003, proc. n.º 3583/2003, 6.ª sec., www.dgsi.pt/jstj). Subsiste, portanto, a nulidade total do referido contrato, podendo sempre ser invocada por qualquer interessado e conhecida oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do art.º 286.º, com efeitos destrutivos sobre contrato e repristinatórios das prestações entretanto efectuadas, conforme prevê o art.º 289.º, ambos do C. Civ.. 3) A alegada nulidade da sentença. Os réus invocam a nulidade da sentença por, segundo concluem, o Tribunal a quo decidiu em contradição com os factos dados como provados, violando assim o disposto no art.º 668.º, n.º 1, al. c), do CPC. Tudo o que acima se deixa exposto, e que tem plena correspondência na matéria provada, conduz naturalmente à confirmação da sentença recorrida e não à declaração da sua nulidade. Com efeito, os factos dados como provados configuram um contrato-promessa bilateral nulo por falta de forma legal. Além disso, também se provou que o Recorrido havia pago aos réus as quantias de € 19.657,00 e de € 26.397,82, no cumprimento do referido contrato-promessa e em cuja restituição os réus foram bem condenados. Daí que os fundamentos da sentença recorrida não se mostrem em contradição com a decisão, pelo que não se verifica a invocada nulidade. III – Decisão Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso e, por conseguinte, confirmar a sentença recorrida. *** Lisboa, 4 de Dezembro de 2007João Aveiro Pereira Rui Moura Folque de Magalhães |