Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE ANTUNES | ||
Descritores: | ENCERRAMENTO INQUÉRITO NULIDADE FALTA DE PROMOÇÃO DO PROCESSO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PODERES DO JUIZ | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/11/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | “I–A circunstância de no despacho de encerramento do inquérito, em que é deduzida acusação por determinada situação delituosa, se omitir qualquer referência a uma outra situação denunciada nos autos, não determina a ocorrência da nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no artigo 119.º, b), do Código de Processo Penal; II–Essa nulidade ocorre apenas nos casos de prossecução processual sem prévia acusação do MP ou, sendo caso disso, do assistente, não surgindo nos casos em que o MP arquiva erradamente, quer em arquivamento expresso (arquiva em vez de acusar) quer implícito (acusa por determinado crime, mas omite outro crime). Nestes casos de erro na leitura dos indícios recolhidos ou na sua adequada qualificação jurídica, o controlo judicial apenas ocorrerá se suscitado pelo assistente (artigo 287.º, nº 1, al. b, do CPP), formando-se, de outro modo, efeito de causa penal decidida; III–Não compete ao juiz de julgamento, no momento processual previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal, exercer um controlo oficioso da regularidade do inquérito, de modo a apreciar se ele foi bem ou mal dirigido.” (Sumário elaborado pelo relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa * I–Relatório 1.–O Processo 69/21.4SVLSB foi distribuído para julgamento como processo comum ao Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 1), após acusação do Ministério Público que imputou ao arguido GR, com os demais sinais dos autos, a prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2º, nº 1, al. ap), 3º, nº 2 al. e), e 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 50/2013, de 24 de julho. 2.–Por despacho proferido em 3 de outubro de 2022, foi decidido: “Da nulidade insanável Dispõe o art. 276º nº1 do Código de Processo Penal que o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (…). E de acordo com o art.277º nº1 do mesmo diploma legal, o Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. Por último dispõe o art.283º nº1 do Código de Processo Penal que se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias deduz acusação contra aquele. Os presentes autos tiveram início com uma participação datada de 01-10-2021 na qual se dava conta de que o ora arguido, na qualidade de suspeito, se teria dirigido, no dia 29-09-2021, a uma dependência da empresa Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa (Gebalis) e que no decurso de uma discussão com um dos funcionários, teria ostentado uma arma de fogo “fazendo questão de a mostrar de forma intimidatória para conseguir os seus intentos”. Perante o teor desta participação, e com base no relatório da PSP elaborado a fls. 15 a 17 dos autos, o Magistrado do Ministério Público, promoveu, junto do Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal, a emissão de mandados de busca domiciliária. O que veio a ser deferido. Ora, quanto àqueles factos, o Ministério Público no despacho de encerramento de inquérito o Ministério Público não se pronuncia. Dispõe o art. 119º al. b) do Código de Processo Penal que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que forem cominadas em outras disposições legais, a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência. A não pronúncia do Ministério Público quanto aos factos denunciados, constitui nos termos da disposição legal citada, uma nulidade insanável. As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aqueles puderem afectar (art.122º nº1 do Código de Processo Penal). Assim, declaro a nulidade do acto processual de encerramento do inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes. Deposite. Notifique. * Dê a competente baixa. * ** Oportunamente, remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público.”. 3.–Inconformado com essa decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, pedindo que seja revogada a decisão proferida e substituída por outra que receba a acusação pública deduzida nos autos. Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: “1ª-O presente recurso vem interposto do despacho proferido a 3/10/22 (refª 419181029) nestes autos que conheceu e declarou uma nulidade insanável de inquérito dizendo que o Ministério Público não proferiu despacho de arquivamento quanto a parte dos factos objeto do inquérito. 2ª-Considerou aquele douto despacho como questão prévia ao recebimento da acusação o facto de o arguido ter exibido uma arma de fogo nas circunstâncias descritas na participação, afirmando estar verificada uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, alínea b) do Cód. de Processo Penal. 3ª-O despacho recorrido não se encontra em conformidade com as normas legais aplicáveis ao caso concreto, tendo procedido a uma incorreta interpretação e aplicação do direito, violando, desta forma, as normas constantes nos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 48.º, 53.º, n.º 2, alínea b), 119.º, alínea b), 262.º, 276.º, n.º 1, 283.º, nºs. 1 e 3, alínea c), e 311.º do Código de Processo Penal. 4ª-Dos artigos 48º, 49º, 50º do Cód. de Processo Penal resulta a legitimidade do Ministério Público em processo penal, a quem compete colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade e, em especial, receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; dirigir o inquérito e deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento (cfr. artigo 53º, n.ºs 1 2 do Cód. de Processo Penal). 5ª-No âmbito do conjunto de diligências de inquérito, o único acto obrigatório de inquérito é o interrogatório do arguido quando aquele corre contra pessoa determinada (artigo 272º, n.º 1 do Cód. de Processo Penal e AUJ 1/2006). 6ª-Da conjugação das normas acima citadas decorre que o Ministério Público é o titular do exercício da acção penal, competindo-lhe promover o processo penal, com as limitações dos artigos 49.º, a 52.º e, em especial, receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito, deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento. 7ª-Daqui decorre que o magistrado titular do inquérito deverá levar a cabo todas as diligências que visem obter prova de um crime e de quem são os seus agentes em ordem à decisão de acusação. As diligências a realizar são decididas de forma discricionária em ordem às respetivas finalidades, sendo que, o único acto obrigatório será o interrogatório de arguido. 8ª-Efetivamente, nos termos que resultam do princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da C.R.P., deve existir uma rígida separação entre a entidade que promove o processo penal e que fixa faticamente o seu objecto com vista a sua submissão a julgamento, e a entidade que, de forma imparcial quer com a acusação, quer com a defesa, julga esse mesmo objecto (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª Edição Revista, p. 205 e 206). 9ª-Daqui decorre que, sob pena de total postergação deste princípio, que, apenas haverá falta de promoção do processo por parte do Ministério Público, quando, no plano da legitimidade, não seja esta magistratura a promovê-lo, nomeadamente através da abertura do competente inquérito, ou quando não seja este a deduzir a acusação que lhe compete, designadamente quando estejam em causa crimes de natureza pública ou semi-pública (artigos 48º a 50º do Cód. de Processo Penal, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9/09/2020, proferido no processo n.º 45/18.4SYLSB.L1-3, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/03/2021, proferido no processo n.º 167/18.1T9STS.P1, todos disponíveis em dgsi.pt). 10ª-Conforme decorre da estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente consagrada, ao Ministério Público cabe investigar e apreciar toda a factualidade denunciada ou noticiada, dando-lhe o respetivo enquadramento jurídico, caso tenha constituído arguidos e tomar posição expressa quanto a esses arguidos. 11ª-Ora, no caso dos autos, o Ministério Público fê-lo, acusando o arguido após aquele ter assumido a qualidade de arguido, desse modo cumprindo a lei, pelo que, inexiste qualquer nulidade insanável ou nulidade dependente de arguição. 12ª-Assim sendo, tendo o Ministério Público apreciado toda a factualidade que constituía o objeto do processo e subsumido a mesma a um crime de detenção de arma proibida, impunha-se que aquela acusação fosse recebida, nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, e fosse proferido despacho nos termos dos artigos 312.º e 313.º do Código de Processo Penal, o que não sucedeu. 13ª-Quanto aos restantes factos que poderiam ter sido praticados pelo arguido, resulta evidente do acima já exposto que não se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea b) do C.P.P. 14ª-Ainda que assim não se entenda, sempre se diria que, uma eventual omissão quanto a eventuais diligências que se reputassem “essenciais para a descoberta da verdade”, poderia levar a uma insuficiência do inquérito, o que, salvo melhor entendimento, implicaria uma nulidade dependente de arguição (artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP), sendo certo que, uma tal nulidade nunca poderia ser oficiosamente apreciada pelo Tribunal ‘a quo’ no início da audiência de julgamento (artigo 120º, n.º 3 do CPP). 15ª-Em suma, uma vez que foi deduzida acusação por magistrado do Ministério Público contra o arguido como tal constituído nos autos, não se verifica nenhuma nulidade insanável de inquérito por falta de promoção do processo, sendo certo que não cabe à Mmª Juiz de julgamento pronunciar-se sobre as diligências a levar a cabo em sede de inquérito, sob pena de uma violação inaceitável do princípio do acusatório. 16ª-Termos em que, não se verificando nenhuma nulidade de inquérito, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida. 4.–O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal. 5.–A defesa do arguido GR, notificada do recurso, não ofereceu resposta. 6.–Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, teve vista dos autos e emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso, com o seguinte teor: “Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a posição da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, aderindo à correta e bem fundamentada argumentação oferecida na sua Motivação e Conclusões do Recurso interposto, que aqui se subscreve e se dá por reproduzida, sublinhando-se, na linha da jurisprudência citada na Motivação de Recurso, ainda os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 25/5/2021 (Relatora Dra. Filomena Soares, Proc. n.º 645/17.0GASXL-A. E1) e de 16/5/2017 (Relator Dr. Gilberto Cunha, Proc. n.º 14/16) e, particularmente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/9/2021 (Relatora Dra. Maria Perquilhas, Proc. n.º 6549/13.8TDLSB-3. Com efeito, o Ministério Público deduziu acusação sobre os factos que investigou e sobre os quais entendeu existirem indícios suficientes da sua prática e dos respetivos autores tendo-os qualificado juridicamente. E convém referir que o Ministério Público no caso em apreço não omitiu pronúncia sobre a totalidade do objecto do inquérito, na medida em que a indiciação criminal inicial veio até a fundamentar a qualificação jurídica constante da acusação, sendo que, se inicialmente se investigava crime de detenção de arma proibida (arma de fogo), as diligências levas a efeito só proporcionaram a apreensão de uma soqueira, facto que integra o mesmo tipo legal de crime. Por outro lado, não compete ao juiz a indicação dos indícios verificados nem a designação de qual o crime pelo qual deverá ser exercida a acção penal, matéria que, indubitavelmente, se apresenta, por opção do legislador constitucional e ordinário, como da exclusiva competência do detentor da acção penal, o poder-dever que lhe é conferido pelo art. 311.º, do Código de Processo Penal de sanear o processo, incluindo o de conhecer de possíveis nulidades e outras questões prévias ou incidentais incide exclusivamente sobre a acusação que lhe é presente, não podendo estender essa actividade cognitiva a questões que ultrapassem a acusação, como foi aqui o caso. Aliás, e no sentido de que não estamos perante qualquer nulidade, veja-se João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Artigos 1.º a 123.º, Coimbra, Almedina, 2019, pág. 1233, na parte em que sustenta que «[o] âmbito de aplicação desta norma esgota-se nesta hipótese paradigmática – prossecução processual sem prévia acusação do MP (…) ou, sendo caso disso, do assistente – não incluindo, como preconiza alguma jurisprudência (…), os casos em que o MP erradamente não deduz acusação proferindo um arquivamento expresso (arquiva em vez de acusar) ou implícito (acusa mas omite outros crimes (…)). Nestes casos, de errada leitura dos indícios recolhidos ou da sua integral qualificação jurídica, o controlo judicial, deverá ser suscitado pelo assistente (artigo 287.º/1/b), sob pena de, não o fazendo, se operar – nessa parte – a consumpção da acção penal (…): apesar de tudo o MP acabou por exercer a acção penal. Aliás, o que está em causa não é, sequer, um erro no rito processual susceptível de gerar invalidade, mas um erro de apreciação dos indícios ou da sua qualificação jurídica. Ele pode/deve ser impugnado, mas não é causa de invalidade». Nestes termos, e não se verificando, a nosso ver, nenhuma nulidade de inquérito, o douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida. * Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que que receba a acusação deduzida.”. 7.–Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir. * II–QUESTÕES A DECIDIR. Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ,www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.») Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o despacho que declarou nulo o despacho de encerramento do inquérito (acusação) –, a questão a examinar e decidir prende-se com o regime de conhecimento da invalidade em questão, de modo a aferir se o Tribunal a quo podia dela conhecer oficiosamente ou se, pelo contrário, lhe estava vedado tal conhecimento. * III–ELEMENTOS RELEVANTES PARA O CONHECIMENTO DO RECURSO: Dos autos resultam as seguintes circunstâncias relevantes: a)-No dia 26 de maio de 2022, o Ministério Público proferiu despacho de encerramento do inquérito e deduziu acusação contra o arguido GR, tendo tal despacho o seguinte teor: “Declaro encerrado o inquérito nos termos do disposto no art.º 276 O Ministério Público, em Processo Comum e para julgamento perante Tribunal de estrutura Singular, deduz acusação contra: GR, filho de (…) e de (…), natural da freguesia do (…), concelho de (…), onde nasceu a (…), divorciado, aposentado, com domicílio na (…) – TIR prestado a fls. 33 *** Porquanto, No dia 1 de março de 2022, cerca das 09H15, o arguido guardava em cima de um móvel colocado no “hall” de entrada de sua residência, sita na Rua (…), Lisboa um “boxer”, sem marca, em metal, de cor preta, com quatro orifícios para introdução de dedos e uma área para preenchimento da zona palmar da mão. O “boxer” é um instrumento destinado a ser empunhado e a ampliar o efeito resultante de uma agressão. O arguido não era titular de licença de uso e porte de qualquer tipo de arma. O arguido conhecia as características do “boxer” que guardava, e ainda assim quis detê-la, bem sabendo que não estava autorizado administrativamente a fazê-lo. O arguido agiu de forma livre deliberada e conscientemente, bem sabendo da reprovabilidade da sua conduta. * O arguido atuou com dolo direto, logo mais intenso. O arguido não regista antecedentes criminais. O arguido tinha à data dos factos 73 anos de idade O arguido é reformado e aufere rendimentos em valor 5.0707,30€ anuais. *** Pelo exposto, constitui-se o arguido GR como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º n.º 1 al. ap), 3.º, nº 2 al. e) e art.º 86.º, nº 1 d) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei 50/2013, de 24 de julho. *** Da Prova Documental 1.- Auto de Busca e Apreensão de fls. 29 a 30 2.- Fotografia de fls. 37 Testemunhal 1.- (…) , a prestar Serviço na 3.ª EIC da PSP, id. a fls. 29 Pericial 1.-Auto de Exame Pericial de fls. 56 a 56v *** Estatuto Processual do Arguido Nada a requerer. *** Diligencie através do sistema S.I.N.O.A. pela indicação de Advogado que desde já se nomeia como defensor oficioso do arguido GVR... . Oportunamente cumpra o estabelecido no art. 66.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Informe o arguido, nos termos do artigo 64.º n.º4 do CPP, que caso seja condenado, fica obrigado a pagar os honorários do(a) defensor(a), salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e ainda que pode proceder à substituição do(a) defensor(a) mediante a constituição de advogado. *** Nos termos do artigo 277.º, n.ºs 3 e 4, ex vi, artigo 283.º, n.º 5 e 6, ambos do Código de Processo Penal, comunique a acusação, notificando ainda o arguido da possibilidade de requerer a instrução no prazo de vinte dias [art. 287º, nº 1, do mesmo diploma legal] ao: I.–Arguido GR, mediante carta, enviada via postal simples (artigo 283.º, n.º 6 e 113.º, n.º 1 alínea c) e n.º 3, ambos do Código de Processo Penal); II.–Defensor(a), por via postal registada; III.–Cumpridas as notificações, e decorrido o prazo a que se reporta o artigo 287.º do Código de Processo Penal, nada sendo requerido, remeta os autos à distribuição como processo comum. *** Elaborei e Revi – art.º 94.º, nº 2 do Código de Processo Penal * Lisboa, 26 de maio de 2022 O Procurador da República” * b)- Nos autos não ocorreu constituição de assistente; c)- A acusação deduzida foi notificada: - ao arguido GR – por via postal simples, remetida para a morada que consta da acusação e que corresponde à que foi consignada no termo identidade e residência de fls. 33 (cfr. fls. 84) e depositada no dia 31-05-2022; - à Ilustre defensora oficiosa do arguido – por via postal expedida no dia 04-07-2022; d)-Nada tendo sido requerido nos autos na sequência de tais notificações, no dia 21 de setembro de 2022, o processo foi remetido ao Juízo Local Criminal de Lisboa, para distribuição. * IV–FUNDAMENTAÇÃO. O despacho recorrido declarou a nulidade insanável do despacho de encerramento do inquérito (no caso, despacho de acusação) com fundamento no disposto no artigo 119º, al. b) do Código de Processo Penal. Para tanto, argumenta-se que: “Os presentes autos tiveram início com uma participação datada de 01-10-2021 na qual se dava conta de que o ora arguido, na qualidade de suspeito, se teria dirigido, no dia 29-09-2021, a uma dependência da empresa Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa (Gebalis) e que no decurso de uma discussão com um dos funcionários, teria ostentado uma arma de fogo “fazendo questão de a mostrar de forma intimidatória para conseguir os seus intentos”. Perante o teor desta participação, e com base no relatório da PSP elaborado a fls. 15 a 17 dos autos, o Magistrado do Ministério Público, promoveu, junto do Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal, a emissão de mandados de busca domiciliária. O que veio a ser deferido. Ora, quanto àqueles factos, o Ministério Público no despacho de encerramento de inquérito o Ministério Público não se pronuncia.” O Ministério Público recorre, pedindo a revogação do despacho, por entender que não ocorre nulidade insanável, sendo que de uma eventual nulidade por insuficiência de inquérito (que considera não ocorrer) o Tribunal a quo não podia conhecer oficiosamente. Cumpre apreciar. Nessa tarefa recolhemos o importante apoio de João Conde Correia que, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Artigos 1.º a 123.º, Coimbra, Almedina, 2019, pág. 1233, sobre o âmbito de aplicação da norma em que o Tribunal a quo sustentou a ocorrência de nulidade insanável, sustenta que «[o] âmbito de aplicação desta norma esgota-se nesta hipótese paradigmática – prossecução processual sem prévia acusação do MP (…) ou, sendo caso disso, do assistente – não incluindo, como preconiza alguma jurisprudência (…), os casos em que o MP erradamente não deduz acusação proferindo um arquivamento expresso (arquiva em vez de acusar) ou implícito (acusa mas omite outros crimes (…)). Nestes casos, de errada leitura dos indícios recolhidos ou da sua integral qualificação jurídica, o controlo judicial, deverá ser suscitado pelo assistente (artigo 287.º/1/b), sob pena de, não o fazendo, se operar – nessa parte – a consumpção da acção penal (…): apesar de tudo o MP acabou por exercer a acção penal. Aliás, o que está em causa não é, sequer, um erro no rito processual susceptível de gerar invalidade, mas um erro de apreciação dos indícios ou da sua qualificação jurídica. Ele pode/deve ser impugnado, mas não é causa de invalidade». Efetivamente, não compete ao juiz de julgamento, no momento processual previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal, exercer um controlo oficioso da regularidade do inquérito, de modo a apreciar se ele foi bem ou mal dirigido. Como bem refere o Ministério Público na motivação do recurso, essa limitação decorre da autonomia do Ministério Público a quem, nos termos do nº 1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa “(…) compete (…) exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.” Em conformidade com tal atribuição, o artigo 53º do Cód. de Processo Penal confere ao Ministério Público competência para colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade e, em especial, receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito e deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento. Na direção do inquérito, exercerá o Ministério Público, com exclusividade e autonomia, os poderes previstos no artigo 262º, n.º 1 do Cód. de Processo Penal, “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”. No âmbito do conjunto de diligências de inquérito, o único acto obrigatório de inquérito é o interrogatório do arguido quando aquele corre contra pessoa determinada (artigo 272º, n.º 1 do Cód. de Processo Penal e AUJ 1/2006). Como se diz na motivação de recurso: “(n)os presentes autos, pretende a Mmª Juiz ‘a quo’ que o Ministério Público deveria ter proferido despacho de arquivamento quanto ao facto de o arguido ter exibido uma ama proibida, ameaçando usá-la. Pretende a Mmª Juiz que, uma tal falta configura uma nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b) do Cód. de Processo Penal. De acordo com a previsão daquela norma legal “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (…) a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º (…)” Caso se viesse a adotar o entendimento da Mmª Juiz, qualquer vício implicaria uma nulidade de conhecimento oficioso, violando, assim, a intenção do legislador de tipificar as nulidades (artigo 118.º do Código de Processo Penal) e esvaziando de conteúdo a norma do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal.”. Tem razão o Ministério Público quando afirma que estava vedado à Mmª Juiz apreciar quais os factos do inquérito sobre os quais se deveria ter proferido arquivamento ou acusação, por força da garantia de estrutura acusatória do processo penal: “Com efeito, deriva do artigo 32º, nº 5 da CRP, que “o processo criminal tem estrutura acusatória.” Conforme explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação a este artigo: “O princípio acusatório (n.º 5, 1ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual Penal. Essencialmente ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª Edição Revista, p. 205 e 206).”. E por isso é correto convocar nesta sede o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3 de dezembro de 2018, proferido no processo n.º 987/16.1T9VNF.G1, disponível em dgsi.pt: “I-«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados». II-Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da acção penal, para aperfeiçoamento, rectificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.” Assim como o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão datado de 24/03/2021, proferido no processo n.º 167/18.1T9STS.P1: “I–A omissão de diligências em inquérito, ainda que legalmente obrigatórias, não configura a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no artigo 119.º, b), do Código de Processo Penal II–A nulidade, dependente de arguição, de insuficiência do inquérito, prevista no artigo 120.º, n.º 2, d), do Código de Processo Penal, requer interpretação restritiva, cingindo-se à falta de interrogatório do denunciado, pois as restantes diligências estão no âmbito da autonomia do Ministério Público, não podendo ser ordenadas pelo Juiz de Instrução e podendo a omissão de alguma diligência no inquérito ser suprida na fase de instrução.” Nesta conformidade, tem razão o Ministério Público – “foi deduzida acusação por magistrado do Ministério Público contra o arguido como tal constituído nos autos, não se verifica nenhuma nulidade insanável de inquérito por falta de promoção do processo, sendo certo que não cabe à Mmª Juiz de julgamento pronunciar-se sobre as diligências a levar a cabo em sede de inquérito, sob pena de uma violação inaceitável do princípio do acusatório. Não pode deixar de julgar-se procedente o recurso. * V.–DECISÃO Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por despacho que, caso não se verifiquem outras circunstâncias que impeçam a prossecução do processo para a fase processual de julgamento, determine os trâmites legais para prosseguimento da causa. * Sem custas. * D.N. * O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.). Lisboa, 11 de abril de 2023 Juiz Desembargador Relator: Jorge Antunes Juíza Desembargadora Adjunta: Sandra Oliveira Pinto Juíza Desembargadora Adjunta: Mafalda Sequinho dos Santos |