Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
48/17.6MCLSB.L2-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
DEVER DE CUIDADO
CONDUTA APROPRIADA
CONDUTA ALTERNATIVA
NORMAS TÉCNICAS DE SEGURANÇA
LEGES ARTIS
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: QUESTÃO PRINCIPAL:
O Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão absolutória da primeira instância e condenou o arguido, AA, pelos crimes de homicídio por negligência e condução perigosa de meio de transporte aéreo. A condenação ocorreu devido ao entendimento de que o arguido agiu com negligência grave ao não seguir as normas técnicas de segurança, optando por tentar religar o motor em vez de escolher imediatamente um local seguro para aterragem, resultando em colisão fatal.
FUNDAMENTO DETERMINANTE:
O Tribunal considerou que a tentativa prolongada de religação do motor desviou o foco das obrigações de segurança, violando o dever de cuidado exigido nas normas de aviação. O Tribunal entendeu que o arguido, com a sua experiência, deveria ter priorizado a escolha de um local de aterragem seguro ao invés de insistir em religar o motor em baixa altitude, o que configurou um comportamento imprudente e negligente em situação de risco elevado.
Em virtude desta negligência, que resultou em consequências fatais, foi aplicada ao arguido uma pena única de 4 anos de prisão, suspensa condicionalmente por igual período, condicionada à frequência de um programa de formação em segurança aeronáutica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1.1. Por acórdão proferido no processo comum colectivo nº 48/17.6MCLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Almada - JC Criminal - Juiz 1, em que é arguido AA foi o mesmo absolvido da prática dos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa de meio de transporte por ar, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 137.º, n.ºs 1 e 2, e 289.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código Penal.
1.2. O tribunal a quo fundamentou-se nas seguintes considerações para a absolvição:
a. Carácter de urgência e imponderabilidade da situação: O tribunal considerou que a situação de emergência enfrentada pelo arguido durante o voo justificava as suas decisões, concluindo que o arguido actuou de forma prudente ao tentar resolver a falha do motor e evitar um acidente maior.
b. Inexistência de violação das normas de cuidado: A decisão fundamentou-se na interpretação de que o arguido agiu em conformidade com o que lhe era exigível numa situação de emergência, não havendo uma violação clara e intencional das normas técnicas que pudessem configurar negligência grave.
c. Subjectividade na valoração da conduta: O tribunal valorizou subjectivamente a conduta do arguido, interpretando as suas acções como razoáveis e justificáveis à luz da sua experiência e das circunstâncias em que se encontrava.
1.3. O MP e os assistentes BB, CC, DD, EE e FF não se conformaram com a absolvição do arguido e interpuseram os devidos recursos.
. Recurso do Ministério Público
O recurso do Ministério Público (MP) centra-se essencialmente na impugnação da matéria de facto e do direito quanto à absolvição do arguido, AA por crimes de homicídio negligente e condução perigosa de meio de transporte. O MP argumenta que houve:
Erro na valoração da prova: O MP contesta a decisão sobre a matéria de facto, indicando que a decisão incorreu em erros na valoração das provas produzidas, sobretudo em relação à conduta do arguido no incidente, às perícias técnicas e aos testemunhos.
Impugnação de pontos específicos da matéria de facto dada como provada e não provada, especialmente no que se refere à caracterização da aeronave, ao conhecimento das condições atmosféricas pelo arguido e às decisões de manobra no contexto de uma situação de emergência.
Normas de cuidado aplicáveis ao arguido: O MP alega que o arguido falhou no cumprimento de normas de cuidado obrigatórias numa situação de emergência, como a gestão da altitude e a decisão de onde aterraria após a falha do motor. Argumenta que as decisões do arguido deveriam ter levado em conta as condições atmosféricas e que, ao não o fazer, houve uma actuação negligente.
Substituição dos factos não provados: Pede que sejam substituídos os factos que o tribunal deu como não provados, sugerindo que os mesmos devem reflectir as informações contidas nos manuais operacionais e as declarações do arguido durante o julgamento​.
. Recurso dos Assistentes
Os assistentes interpõem recurso, também visando reverter a absolvição do arguido, com as seguintes alegações principais:
Vícios de raciocínio e insuficiência da matéria de facto: Os assistentes argumentam que a acórdão apresenta insuficiências e omissões relevantes na matéria de facto provada, alegando a existência de vícios de raciocínio, como a insuficiência para a decisão da matéria de facto e a falta de fundamentação.
Erro notório na apreciação da prova: Defendem que o tribunal ignorou provas que indicariam que o arguido não seguiu protocolos adequados de segurança, destacando que este priorizou tentativas de reactivar o motor da aeronave em vez de escolher imediatamente um local seguro para aterragem.
Cumprimento das normas da aviação: Alega-se que o arguido agiu em contrariedade com os manuais operacionais, especialmente no que diz respeito ao Manual Operacional do Piloto (POH) e às instruções que priorizam a escolha de local para aterragem forçada ao invés de tentativas prolongadas de reactivação do motor.
Possibilidade de aterragem em outro local: Os assistentes também sustentam que, à altura da paragem do motor, o arguido teve uma visão directa da Praia da Cova do Vapor, que estava praticamente vazia, e que poderia ter optado por essa praia para a aterragem, evitando a colisão com banhistas na Praia de São João da Caparica​.
1.4. O MP veio responder ao recurso dos assistentes.
Será que o MP tem interesse em agir em responder ao recurso?
Seguramente que não!
Efectivamente, a legitimidade ou interesse do Ministério Público em responder ao recurso interposto pelos assistentes é inexistente. No sistema processual penal português, a figura do MP não representa interesses pessoais, mas sim o interesse público na administração da justiça. A jurisprudência e a doutrina consideram que o MP pode responder a um recurso interposto por outra parte apenas se tiver interesse processual directo, ou seja, se a decisão do recurso puder afectar a posição do MP no processo.
O CPP limita a intervenção do Ministério Público em recursos interpostos por outros sujeitos processuais, como os assistentes, caso o recurso não interfira no desfecho desejado pelo MP. Neste processo, o MP já interpôs seu próprio recurso, questionando a decisão absolutória do arguido e defendendo uma condenação. Logo, não há impacto directo para o MP no recurso interposto pelos assistentes, pois ambos visam o mesmo resultado: a condenação do arguido.
A jurisprudência portuguesa tem frequentemente sustentado que o interesse em agir deve derivar de um prejuízo concreto que a decisão de recurso pode causar à posição do MP. Como o recurso dos assistentes não visa a absolvição do arguido (o que poderia contrariar o interesse punitivo do MP), mas sim o agravamento das consequências jurídicas para o arguido, o MP não é afectado por esse pedido. A não ser que surgisse uma questão de ofensa a direitos fundamentais que justificasse a intervenção do MP como fiscalizador da legalidade, a doutrina defende que o MP carece de legitimidade para responder ao recurso dos assistentes por falta de interesse directo.
Com base no princípio da legalidade, o MP pode intervir quando seu interesse é prejudicado, mas, neste caso, sua actuação seria redundante. O CPP privilegia a eficiência processual, evitando intervenções de partes sem interesse processual directo para evitar a sobrecarga processual e garantir a celeridade e a clareza dos actos. Assim, a resposta do MP ao recurso dos assistentes seria inadmissível, pois não há um interesse processual concreto que legitime sua intervenção.
Termos em que não se considera, para todos os efeitos, a resposta deduzida pelo MP ao recurso dos assistentes.
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1.5. Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer sufragando os fundamentos invocados na resposta do MP, e pugna pela procedência dos recursos.
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1.6. Cumprido o preceituado no art.º 417º nº 2 do CPP, não foi deduzida resposta ao parecer.
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1.7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista nos art.ºs 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
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II – Questão Prévia
2.1. Requerimento de Audiência pelos assistentes nos termos do artigo 411.º, n.º 5, do CPP
O artigo 411.º, n.º 5, do CPP dispõe que a audiência de julgamento em recurso será realizada a pedido do recorrente ou do Ministério Público, desde que esta seja necessária para o debate de questões relevantes e complexas que não tenham sido adequadamente tratadas na decisão recorrida. Para que o pedido de audiência seja deferido, o recorrente deve fundamentar a necessidade de uma nova apreciação oral das provas ou dos argumentos. Vamos analisar os requisitos e fundamentos para questionar a procedência desse pedido de audiência no caso em apreço:
. Cumprimento dos Requisitos do Artigo 411.º, n.º 5, do CPP
O artigo 411.º, n.º 5, estabelece alguns ónus formais para a admissibilidade da audiência. Os assistentes, ao requererem a audiência, argumentam a necessidade de debater presencialmente certas matérias, alegando:
Análise e gestão da emergência pelo arguido: Defendem que o arguido demorou mais de 50 segundos na tentativa de reanimação do motor, em vez de ter escolhido de imediato o local de aterragem, priorizando uma acção que, segundo eles, não estava em conformidade com o manual operacional da aeronave. Afirmam que essa decisão deve ser revista presencialmente para melhor debate das nuances dessa conduta.
Possibilidade de alternativas de aterragem: Afirmam que a Praia da Cova do Vapor estava visível e era uma opção exequível para uma aterragem segura, o que, segundo eles, não foi suficientemente analisado no acórdão de primeira instância.
Essas justificações visam demonstrar que a audiência possibilitará uma apreciação mais detalhada das decisões e condutas do arguido, que seriam essenciais para a determinação da sua responsabilidade.
A decisão recorrida já apresentou uma análise detalhada da prova testemunhal, documental e pericial, incluindo as declarações do arguido e dos assistentes, bem como dos especialistas que participaram do julgamento. Estes elementos probatórios foram integralmente vertidos nos autos, sendo acessíveis ao tribunal de recurso para o exame das matérias de facto e de direito sem a necessidade de debate oral adicional.
O n.º 5 do artigo 411.º prevê a audiência como medida excepcional, aplicável apenas quando questões essenciais e complexas não puderam ser discutidas adequadamente. Dada a extensão do julgamento e o nível de detalhe com que as provas foram tratadas no acórdão, não parece existir um fundamento que justifique essa revisão em sede de audiência. A análise de factos e provas específicas está já claramente documentada e pode ser adequadamente revista em sede de recurso escrito.
. Carácter excepcional da audiência em segunda instância:
Os tribunais de recurso exercem um papel de reapreciação e não de nova produção de prova, cabendo-lhes analisar a razoabilidade da decisão de primeira instância face ao quadro probatório e às disposições legais. Assim, o CPP considera que a audiência é de carácter excepcional e apenas justificada em situações de manifesta insuficiência da prova documental para a reavaliação.
In casu, o requerimento dos assistentes parece basear-se em argumentos de discordância com a valoração da prova e as conclusões do acórdão, o que não configura, por si só, um motivo para uma nova audiência. Não existe indicação de que haja provas novas ou de que os elementos de prova necessitem de uma reinterpretação presencial, o que fundamentaria a inadmissibilidade do pedido nos termos do art.º 411.º, n.º 5, do CPP.
Em suma, a audiência requerida pelos assistentes pode ser considerada improcedente pela suficiência da prova documental e pela adequação do julgamento já realizado, o que dispensa uma nova apreciação oral.
Mas, ainda que esta questão não seja convincente do ponto de vista dogmático, a audiência nunca seria de admitir pelas seguintes considerações:
2.2. Enquadramento jurídico e exigência do artigo 411.º, n.º 5, do CPP
O artigo 411.º, n.º 5, do CPP, exige que o recorrente fundamente o pedido de audiência, indicando concretamente os pontos de facto que entende necessitarem de reapreciação em sede de recurso. Esse dispositivo visa limitar a realização de audiências apenas aos casos em que os factos objecto de recurso sejam suficientemente específicos e individualizados, evitando reaberturas de temas de forma ampla e indeterminada. A lei impõe, assim, que o recorrente identifique com precisão os pontos concretos sobre os quais pretende uma reapreciação presencial, não bastando uma mera remissão a temas genéricos ou matérias de discussão abstractas.
. Distinção entre factos concretos e matérias temáticas
A jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa e de outras Relações tem reforçado a necessidade de se distinguirem, em sede de recurso, factos concretos numerados e especificados dos temas ou categorias de prova. Apenas os primeiros satisfazem o ónus estabelecido pelo artigo 411.º, n.º 5, do CPP para justificar a realização de uma nova audiência de julgamento em recurso. A ausência de identificação numérica e clara dos factos em debate conduz à improcedência do pedido, uma vez que o tribunal superior não é convocado a reapreciar temas amplos, mas sim factos concretos que tenham sido julgados de forma insuficiente ou incorrecta em primeira instância.
No caso presente, conforme análise inicial, os assistentes formularam o pedido de audiência remetendo a "pontos de facto" da motivação. No entanto, essa formulação parece basear-se em matérias temáticas, ou seja, abordagens gerais sobre questões de condução do arguido durante o incidente e sobre alternativas de aterragem, sem identificação exacta dos pontos de facto específicos que se encontram numerados e delimitados na motivação.
A jurisprudência tem defendido que a remissão para temas amplos ou questões genéricas na motivação não cumpre o ónus de indicação de factos concretos exigido pelo artigo 411.º, n.º 5. O Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão n.º 125/20, e o Tribunal da Relação de Lisboa, em várias decisões, têm sustentado que a remissão para temas ou matérias de discussão não constitui uma especificação suficiente para justificar a realização de audiência em segunda instância. Esse entendimento fundamenta-se no propósito do artigo 411.º, n.º 5, de que a audiência apenas seja concedida quando existam pontos concretos que possam ser directamente objecto de análise e deliberação na audiência, sem estender essa possibilidade a debates amplos que podem ser resolvidos pela análise dos elementos probatórios já disponíveis nos autos.
A análise dos argumentos dos assistentes indica uma falta de delimitação precisa dos factos concretos exigidos para fundamentar a realização da audiência, apresentando-se como uma abordagem temática.
Vejamos mais em detalhe:
. Inexistência de factos concretos numerados e individualizados:
O pedido dos assistentes remete para temas gerais, como a escolha de alternativas de aterragem e o comportamento do arguido no gerenciamento da emergência, sem indicar factos concretos e numerados da motivação. Conforme a jurisprudência mencionada, a discussão de temas genéricos não corresponde à indicação precisa de factos concretos, tal como previsto no artigo 411.º, n.º 5, do CPP. Logo, o pedido não cumpre o ónus imposto para justificar a realização de audiência, sendo insuficiente para fundamentar a necessidade de reapreciação presencial.
. Protecção do carácter excepcional da audiência em recurso:
O objectivo do artigo 411.º, n.º 5, é assegurar que a audiência só seja realizada quando for absolutamente necessária para a discussão de factos específicos que tenham sido insuficientemente apreciados. Permitir a audiência para discutir temas gerais abriria precedentes para a utilização da audiência de recurso de forma generalizada, esvaziando o carácter excepcional da medida. Nesse sentido, a omissão de factos concretos afasta a legitimidade do pedido, preservando o princípio de excepcionalidade.
. Suficiência da prova documental e escrita para apreciação em Segunda Instância:
A abordagem dos assistentes, centrada em temas amplos, sugere uma tentativa de rever a valoração probatória de forma ampla, o que contraria o objectivo do recurso em matéria de facto. A reapreciação de provas documentais e testemunhais pode ser realizada com base nos registos disponíveis e nas peças processuais escritas, dispensando a necessidade de audiência.
Em conclusão, o pedido de audiência pelos assistentes, ao focar-se em temas gerais e não em factos concretos e individualizados, não cumpre o requisito legal do artigo 411.º, n.º 5, do CPP. Em suma, este tribunal ad quem indefere o pedido de audiência, considerando que o ónus da concretização específica não foi cumprido e que o recurso pode ser adequadamente decidido com base nos elementos probatórios e documentais já disponíveis nos autos1.
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito2.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior3.
Seguindo esta ordem lógica, in casu as questões a apreciar são as seguintes:
a. Apreciação da prova e erro notório: Avaliação das alegações de erro notório na apreciação da prova, tendo em conta o critério da livre apreciação do julgador e a confrontação das provas produzidas com os factos julgados como provados e não provados.
b. Normas de cuidado e leges artis na aviação: Debate sobre o cumprimento das regras de segurança e dos manuais operacionais no âmbito das actividades aeronáuticas, com especial ênfase nas instruções que priorizam a segurança de terceiros em caso de emergência.
c. Causalidade e previsibilidade na negligência criminal: Estudo sobre o nexo de causalidade entre a actuação do arguido e o desfecho trágico do incidente, bem como a análise da previsibilidade das consequências fatais na sua conduta.
3.2. Os factos provados e não provados, bem como a motivação da decisão de factos do acórdão tem o seguinte teor: (transcrição)
(…)
A. Factos Provados:
Apreciada a prova produzida e discutida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão de mérito:
1. Em 01.04.2016, a Escola de Aviação Aerocondor, S.A. (“EAA”) celebrou um contrato de trabalho com o arguido AA para desempenhar as funções de piloto instrutor e examinador nas instalações daquela, sitas no Aeródromo Municipal de Cascais, em Tires.
2. O arguido iniciou a sua carreira na aviação em 22.04.1974, quando foi admitido na TAP Air Portugal – Transportes Aéreos Portugueses, E.P. para exercer as funções de comissário de bordo.
3. Em 12.03.1984, obteve a licença de piloto comercial de aeroplanos, com a qualificação de voo por instrumentos desde 20.08.1984, obteve a qualificação como copiloto de DHC-6 TWIN OTTER, em 26.11.1985, e qualificou-se como piloto de BE-90 King Air, em 06.03.1987.
4. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os anos de 1989 e 1990, após obter o certificado de instrutor, o arguido iniciou a atividade de instrutor de voo, tendo trabalhado, de então para cá, para diversas ATO’s (“Approved Training Organizations”, ou seja, Organizações de Formação Autorizada), entre as quais a EAA.
5. Em 31.03.1993, o arguido obteve a licença de piloto de transporte aéreo avião – ATPL(A) – n.º PT.FCL.A1086A, emitida pelo, então, INAC.
6. Desde a década de 1980 que o arguido, sempre que tal se mostrava necessário, procedeu à renovação, junto da autoridade nacional competente para tal (primeiramente o INAC e, posteriormente, a ANAC) da sua licença de piloto de transporte aéreo avião – ATPL(A).
7. Em 02.08.2017, a licença de piloto de transporte aéreo avião – ATPL(A) – n.º PT.FCL.A1086A, de que o arguido era titular desde 31.03.1993, tinha validade até 28.02.2018 para as classificações de SEP (land) (monomotor a pistão terrestre) e de IR 4 de 66Processo: 48/17.6MCLSB (SE) (classificação instrumentos a motor) e até 31.03.2020 para as certificações de FI(A) (instrutor de voo em aviões), de IRI(A) (instrutor de avaliação de voo por instrumentos) e de CRI SEP (land) (instrutor de avaliação de classe).
8. Na mesma data, o arguido era portador do certificado médico classe 1/2/LAPL n.º PT.2035, emitido em 31.07.2017 pela ANAC, com validade até 27.01.2018 para a classe 1 e até 27.07.2018 para a classe 2, com as restrições OML (“válido apenas como ou com copiloto qualificado”, aplicável somente ao transporte em linha aérea de passageiros) e VML (“terá que usar lentes multifocais”);
9. Em 02.08.2017, o arguido tinha a seguinte experiência de voo:
- Avião monopiloto: 4.290h10 horas;
- Avião multipiloto: 1.422h45;
- Tempo de voo de noite: 239h40;
- Tempo de voo IFR: 1.930h55;
- Tempo de voo como Piloto Comandante: 3.927h30;
- Tempo de voo como Co-Piloto: 1.422h45;
- Tempo de voo como instrutor FI(A): 3.387h15
- Aterragens de dia: 10.745; e de noite: 455, das quais 292 na antiga pista do Funchal (06-24); tendo entre março de 2016 e julho de 2017, participado no Curso de Refrescamento (março de 2016), Voo de Padronização (31/10/2016), Curso de Refrescamento (maio de 2017) e Voo de Padronização (03/07/2017), bem assim em reuniões de padronização de instrutores nos dias 19/09/2016, 06/12/2017, 16/01/2017, 03/07/2017 e 21/07/2017.
10. No exercício das suas funções de piloto instrutor na EAA, o arguido agendou, para o dia 02.08.2017, uma aula de voo por instrumentos com o aluno GG, titular da autorização de aluno ATPL(A) n.º 121/15, emitida pela ANAC em 21.10.2015, com validade até 30.03.2018, em cumprimento do plano de formação do curso integrado da EAA para obtenção da licença de piloto de transporte aéreo (ATPL), no qual GG se encontrava inscrito e que frequentava no local de formação sito no Aeródromo Municipal de Cascais, Tires.
11. O voo de treino a que se alude em 10. seria a realizar com a aeronave Cessna 152, número de série 15283295 e registo CS - AVA, dotada de trem de aterragem triciclo fixo, mono piloto, com capacidade para dois ocupantes, equipada com um motor Lycoming O-235, com o valor patrimonial atribuído de €35.000,00, propriedade do Aeroclube de Torres Vedras (ACTV) e que, desde 17.09.2014 se encontrava cedida à EAA para utilização na instrução de voo.
12. A aeronave a que se aludem em 11. possuía certificado de avaliação de aeronavegabilidade com a referência PT-124/14 emitido, em 16.12.2014, pelo Instituto Nacional de Aviação Civil, I.P. (actual ANAC), com validade inicial de 12.12.2015, tendo sido prolongada aquela, por duas vezes, a última das quais para o período de 07.12.2016 a 15.12.2017.
13. O voo a que se alude em 10. fora aprovado e deveria ter tido a duração estimada de 2 horas e 45 minutos, com início no aeródromo de Cascais (LPCS) e destino o aeródromo de Évora (LPEV), o qual apenas iria sobrevoar sendo que, no voo de regresso a Cascais (LPCS) tinha prevista uma aproximação à base do Montijo (LPMT).
14. No dia 02.08.2017, pelas 14:03:00 UTC (15:03:00 hora local), o aluno GG submeteu o plano de voo na aplicação informática do Sistema de Briefing da NAV e, após, com a supervisão do arguido, procedeu à inspeção pré-voo da aeronave a que se alude em 11..
15. Pelas 15:28:15 UTC (16:28:15 hora local), o arguido e o aluno GG contactaram o controlo de tráfego aéreo de Cascais tendo recebido daquele a informação: “Escola 151, after departure, turn right, 1000 feet, Cova do Vapor, then fly route and profile’s, code 3216”, ou seja, receberam a indicação da NAV para, após a descolagem, voltarem à direita, subirem para 1.000 pés e voarem na direção da Cova do Vapor, código transponder 3216, a qual fica na rota VFR (voo visual) para aeronaves ligeiras do túnel sul (túnel de saída de Lisboa para Sul) sendo que, atento o sentido de voo que iriam imprimir à aeronave - Norte-Sul - a altitude máxima de voo autorizado é de 1.000 pés.
16. Pelas 15:42:52 UTC (16:42:52 hora local), o arguido e o aluno GG receberam autorização para a descolagem, tendo levantado voo da pista 35 do aeródromo de Cascais, de acordo com as indicações fornecidas pela torre de controlo de tráfego aéreo, sendo que o aluno GG ali seguia como o piloto a voar (sentado à esquerda) e o arguido era o piloto em comando (sentado à direita).
17. O céu apresentava-se limpo e a visibilidade era boa, com valores superiores a 10km.
18. O vento era de 20 a 30km/h (11 a 17 kt), com rumo de noroeste, rodando para norte, atingindo a intensidade máxima instantânea entre 40 a 50 km/h (22 a 27 kt).
19. A temperatura do ar variou entre 28ºC e 29ºC.
20. A humidade relativa do ar variou entre 35% e 37%.
21. Nesse dia e hora, devido à existência de turbulência e como se faziam sentir correntes de ar ascendentes, o aluno GG (piloto a voar), teve dificuldade em estabilizar na altitude autorizada a aeronave, que sofreu um movimento ascendente súbito e violento, tendo subido até aos 1200 pés AGL (“Above Ground Level”, ou seja, altura acima do nível do solo).
22. Pelas 15:46:01 UTC (16:46:01 hora local), a aeronave Cessna 152 encontrava-se a sobrevoar a vila de Oeiras, na posição estimada N 38 41 44.7 W 009 18 46.3, numa atitude de subida a cerca de 1200 pés de altitude, atingindo uma altitude máxima de 1200 pés, na posição estimada N 38 41 56.0 W 009 18 52.0, e iniciou, de seguida, um movimento descendente, alcançando os 1100 pés, pelas 15:46:31UTC (16:46:31 hora local), na posição estimada N 38 41 09.9 W009 18 05.1, já sobre o Rio Tejo, a cerca de 84,85 metros da margem Norte.
23. No circunstancialismo a que se alude nos factos provados 21. e 22., quando se encontravam a mudar de frequência de rádio para o controlo aéreo de Lisboa o motor da aeronave Cessna 152 sofreu uma falha total de potência provocado pelo bloqueio da válvula de manutenção de nível de combustível na cuba do carburador, que impediu a entrada de combustível na cuba, interrompendo assim o fluxo de combustível ao motor.
24. Após ter sido alertado pelo aluno GG para a falha de motor, o arguido assumiu a emergência de voo e instruiu o aluno a voar em frente, seguindo o sentido sudoeste, a uma velocidade de 60 KIAS (eleita melhor velocidade de planeio pelo fabricante Cessna 152), ou seja, “trocar altitude por velocidade”, o que aquele fez, seguindo a aeronave com vento de cauda (rumo quase norte).
25. O arguido instruiu o aluno a voar em frente por ter definido a extensão de praias a Sul como o local para proceder à aterragem forçada sem motor.
26. De seguida, o arguido AA iniciou os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento, sem antes avisar o aluno de qualquer lugar para a efetuar a aterragem da aeronave Cessna 152.
27. Enquanto o aluno segurou a “manche” para manter a velocidade de 60 KIAS, mantendo a rota previamente definida (túnel de saída de Lisboa para Sul), o arguido executava os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento, com limitações de espaço devido à posição das mãos e braços do aluno.
28. O arguido AA manipulou os comandos de potência do motor (“throtle”), verificou a mistura, os magnetos, o ar quente para o carburador e acionou o “primer”, de forma ininterrupta, operações que resultaram goradas porquanto não logrou colocar em funcionamento o motor da aeronave Cessna.
29. O arguido não recorreu à consulta do Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152 e/ou da checklist Cessna 152 elaborada pela EAA, os quais se encontravam no interior da aeronave, guardados em lugar acessível aos pilotos.
30. Pelas 15:47:31 UTC (16:47:31 hora local), a aeronave Cessna 152 encontrava-se, na posição estimada N 38 40 11.0 W 009 16 39.6, seguindo rumo a Sul, sobre o rio Tejo e a cerca de 1,08 milhas náuticas (1,73 Km) da praia da Cova do Vapor numa atitude de descida a cerca de 500 pés de altitude.
31. Em momento não apurado anterior ao descrito no facto provado 30., o arguido assumiu o controlo de planeio do voo da aeronave Cessna.
32. No circunstancialismo a que se alude em 30, o arguido comunicou a emergência efetuando uma chamada rádio para o controlo de tráfego aéreo de Cascais e utilizando o procedimento de sinal de voz de socorro nas comunicações rádio: “Mayday, Mayday, Mayday, aeroescola 190, falha do motor, vai aterrar na praia” e, questionado pelo controlador de tráfego aéreo “em que praia vai aterrar”, respondeu aquele “Cova do Vapor”.
33. Em seguida, pelas 15:47:52 UTC (16:47:52 hora local), o controlo de tráfego aéreo de Cascais questionou “confirme que é o aeroescola 151” e o arguido respondeu “191…51 Afirmativo”.
34. No momento da comunicação de emergência efetuada para o controlo de tráfego aéreo de Cascais, o arguido seguiu rumo a Sul, ao mesmo tempo que persistia na realização dos procedimentos referidos nos factos provados 26 a 28. com vista a colocar em funcionamento o motor da aeronave que pilotava.
35. O arguido não aterrou na praia da Cova do Vapor e, por força de tal, seguiu na direção do areal da praia de São João da Caparica.
36. Cerca das 15:48:29 UTC (16:48:29 hora local), a aeronave Cessna 152 surgiu na praia de São João da Caparica, proveniente da praia da Cova do Vapor e a sobrevoar o pontão que a separa daquela, seguindo no sentido do areal da praia de São João, numa atitude de nariz elevado e em perda de sustentação aerodinâmica.
37. Em momento não concretamente apurado de aproximação ao areal da praia de São João, foram acionados os “flaps” (dispositivos que consistem em abas na parte posterior das asas de uma aeronave que aumentam a sustentação da aeronave).
38. Aquando do surgimento da aeronave nas circunstâncias de modo e lugar a que se alude no facto provado 36, esta não fazia qualquer ruído, por força de o seu motor se encontrar parado, com exceção de um som ténue referente às diversas tentativas de arranque do motor que o arguido AA continuava a realizar, mas que não eram audíveis para a maioria das pessoas que ali se encontravam.
39. Perante a iminência da aterragem vir a ocorrer na praia de S. João da Caparica, no areal molhado, atento o número de pessoas que ali se encontravam, o aluno GG decidiu, sem que lhe tivesse sido dada qualquer indicação para tal pelo arguido AA, ligar e desligar as luzes da aeronave com o intuito de, desse modo, avisar as pessoas que ali se encontravam para que se afastassem da trajetória da mesma.
40. Nessas circunstâncias de tempo supra referidas na praia de São João da Caparica encontravam-se, pelo menos, dezenas de pessoas, algumas delas sob chapéus-de sol, outras no mar e outras na areia molhada junto do canal de agueiro que aí se havia formado, sendo que, entre as pessoas que estavam à beira-mar, encontravam-se HH, que brincava com a sua filha junto a uma poça de água, e II e JJ a passear à beira-mar, estas últimas a caminhar na direção do pontão da praia da Cova do Vapor.
41. De igual modo, a passear à beira-mar, acompanhado pela sua neta de quatro anos de idade, encontrava-se KK, nascido a 13.11.1960 e, a brincar com o seu pai, tio, irmão e primos, encontrava-se LL, nascida a 29.11.2008.
42. Apercebendo-se, através do contacto visual ou do alerta de outras pessoas, de que poderiam ser atingidos pela aeronave, algumas das pessoas que se encontravam na areia molhada começaram a correr no sentido da areia seca ou da água, sendo que HH correu na direção da sua filha, atirou-a ao chão e deitou-se sobre ela, tendo a aeronave sobrevoado as mesmas, e II correu na direção da areia seca, puxando por JJ, a qual se encontrava em pânico e, quando aí se encontravam, atirou-se para o chão levando JJ consigo, tendo a asa esquerda da aeronave passado a escassa distância da cabeça desta última.
43. A aeronave Cessna 152 embateu na areia molhada, primeiro com a roda esquerda do trem de aterragem principal, que ocasionou a rutura parcial da asa esquerda, seguindo-se o embate com a roda de nariz, hélice e trem principal direito.
44. Após o embate, por reação do trem, a aeronave elevou-se novamente e percorreu alguns metros no ar até que voltou a descer e estabilizou-se nas três rodas do trem principal, em rolagem pela areia molhada.
45. Durante esta rolagem, a aeronave passou por um canal de agueiro e, logo após, embateu com o montante da asa esquerda nas pernas de KK que corria para se afastar da trajetória da aeronave.
46. Por força deste embate, KK elevou-se e rodopiou no ar, passando por cima da aeronave e vindo cair na areia, já atrás da aeronave que continuou a rolar pela areia molhada.
47. Prosseguindo a sua marcha, poucos metros mais à frente, a aeronave embateu com a zona do patim esquerdo e da antena no corpo de LL, atingindo a sua cabeça, enquanto esta corria na direção da areia seca para fugir da trajetória daquela, projetando-a para a frente da aeronave, onde caiu.
48. Após, a aeronave continuou em rolagem até ao local em que veio a imobilizar-se no sobredito areal, em frente ao espaço concessionado pelo estabelecimento de restauração e bebidas São João Sunset Club.
49. Entre o primeiro embate no solo, que ocorreu apenas com uma das rodas, e a imobilização da aeronave, nos sobreditos termos descritos em 44., esta percorreu um total de 245 metros.
50. Após a aeronave ter estabilizado no solo, foi utilizado o sistema de travagem da aeronave.
51. Aquando da imobilização da aeronave, o arguido AA e o aluno GG não tinham o cinto de retenção para a parte superior colocado, não dispunham de colete salva-vidas no interior da aeronave e as portas da aeronave encontravam-se destrancadas.
52. Após a imobilização da aeronave, o arguido AA e o aluno GG saíram da aeronave pelos próprios meios, não tendo sofrido ferimentos.
53. Ao lançar-se sobre a areia para se proteger a si e à sua filha de serem atingidas pela aeronave, HH sofreu traumatismo no cotovelo esquerdo, tendo tal lesão demandado 6 dias para a cura, todos eles sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
54. Ao correr para se afastar da trajetória da aeronave, II sofreu traumatismo no tornozelo esquerdo, tendo tal lesão demandado 8 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional e JJ sofreu pequenas escoriações nas pernas causadas pela queda na areia.
55. Por causa do embate na aeronave Cessna 152 no seu corpo KK sofreu lesões traumáticas torácicas, abdominais, pélvicas, vertebro-medulares e dos membros, as quais de forma direta e necessária lhe provocaram a morte, no local.
56. Por causa do embate da aeronave Cessna 152 no seu corpo LL sofreu lesões tra máticas crânio-encefálicas, as quais de forma direta e necessária, lhe provocaram a morte, no local.
57. A aeronave Cessna 152, por força da aterragem forçada supra descrita, sofreu danos nas asas esquerda e direita, no berço do motor e no trem de aterragem de nariz.
58. Aquando da falha do motor não era viável o regresso da aeronave ao Aeródromo de Cascais para aterragem forçada sem potência, por ter de se proceder a uma manobra de mudança de rumo de 180º e, consequentemente, descida acentuada da aeronave, o que levaria a que esta se despenhasse antes de chegar à pista.
59. Aquando da falha do motor não era praticável a amaragem do Cessna 152, por se tratar de uma aeronave com asa alta e trem fixo, não sendo ministrada, nem simulada tal manobra, em formação, em Portugal.
60. A praia da Cova do Vapor, que é a primeira praia a Norte da extensão de areia, é constituída por um areal ladeado por dois pontões nas extremidades, posicionados a Norte e Sul, sendo menos frequentada que a praia de São João.
61. Atentas as características da praia da Cova do Vapor descritas em 60., não era exequível ao arguido AA, ao seguir todos os procedimentos de segurança previstos no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, proceder a uma aterragem forçada sem potência, atento o vento de cauda e a razão de descida da aeronave, no espaço da mesma e entre os pontões, já que a aeronave não se imobilizaria nessa extensão de areia, mesmo que fossem acionados os “flaps” na aproximação ao solo e utilizado o sistema de travagem.
62. O arguido AA, considerando a sua experiência profissional, sabia as prioridades a seguir como piloto de aviação quando confrontado com a emergência em pleno voo de falha de motor, a saber, voar o avião (usar os controlos e instrumentos de voo para direcionar a atitude, velocidade e altitude daquele); navegar o avião (perceber onde está e para onde vai voar) e, por fim, comunicar (com o controlo de tráfego aéreo ou com alguém que esteja fora do avião se, para tal, tiver tempo), o que fez, ao agir como agiu.
63. O arguido AA sabia que, numa situação de emergência como a ocorrida, devia seguir os procedimentos indicados no Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152.
64. O arguido AA sabia que, perante a falha do motor em voo, devia escolher o local para aterrar, o que fez ao assumir a emergência de voo, porquanto definiu a extensão das praias como o local para aterrar e instruiu o aluno a voar em frente nesse sentido (sudoeste) a uma velocidade de 60 KIAS, tendo consequentemente iniciado as tentativas de colocação do motor da aeronave em funcionamento, tudo conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, e que, frustrando-se tal tentativa de colocar o motor em funcionamento, devia navegar a aeronave para aquele local e proceder a uma aterragem forçada sem potência, cumprindo os procedimentos de segurança previstos naquele manual, o que efetuou, ao assumir o controlo de planeio do voo, em momento anterior à aeronave atingir 500 pés de altitude, momento em que comunicou a emergência ao controlo de tráfego aéreo de Cascais, tendo acionado os “flaps” durante a aproximação ao solo e , após ter aí estabilizado as três rodas, utilizado o sistema de travagem até à imobilização.
65. Perante a falha de motor da aeronave Cessna 152, ocorrida entre os 1200 a 1100 pés de altitude, o arguido AA podia e devia, desde logo, eleger o local para aterrar, tomando em consideração o rumo do vento, que soprava com rumo de noroeste (vento de cauda) e a melhor velocidade de planeio (60 KIAS), o que o determinou a definir a extensão de praias como o local a aterrar e instruir o aluno a voar em frente nesse sentido.
66. O arguido sabia também que, ao proceder a uma aterragem forçada sem potência, com vento de cauda, numa praia onde se encontravam pessoas, caso algumas delas se cruzasse no percurso da aeronave, a vida e integridade física das mesmas ficaria em perigo, o que confiou que não ocorreria.
67. O arguido AA, ao ser confrontado com a emergência em pleno voo de falha de motor, sabia que a sua vida e integridade física e a vida e integridade física do outro ocupante do Cessna 152 estavam em perigo, assim como a integridade da aeronave, pelo que, ao agir como agiu, executou os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, e procedeu à aterragem forçada da aeronave, que se encontrava em atitude de descida e com vento de cauda, da forma mais segura possível para si e para o outro ocupante, seu aluno, o que quis e conseguiu.
68. O arguido AA sabia, quando confrontado com a emergência de falha de motor em pleno voo, que o regresso da aeronave ao Aeródromo de Cascais para aterragem forçada sem potência da aeronave não era viável, por ter de proceder a uma mudança de rumo de 180º e, consequentemente, descida acentuada da aeronave, o que levaria a que se despenhasse antes de chegar à pista.
69. O arguido AA sabia, ao ser confrontado com a emergência em pleno voo de falha de motor, que a amaragem do Cessna 152 não era praticável, atentas as características da aeronave e por nunca ter realizado ou simulado tal manobra, nem ser ministrada essa formação em Portugal, sendo, por isso, uma manobra perigosa para a sua vida e integridade física e a vida e integridade física do outro ocupante, bem assim para a integridade da aeronave.
70. Perante a falha de motor da aeronave e seguindo os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, ao arguido AA impunha-se navegar a aeronave a 60 KIAS para a extensão das praias e aí proceder a uma aterragem forçada sem potência, por a aeronave, atenta a razão de descida e o vento de cauda, não se manter a planar até outro local onde não pusesse em risco a vida e integridade física de terceiros, a sua e a do outro ocupante, bem assim a integridade física da aeronave.
71. O arguido não tem antecedentes criminais.
72. AA vive sozinho, situação que aparenta não lhe causar desconforto, percecionando com tranquilidade a sua opção de não constituir família. Acresce que a sua atividade ocupacional implica a ausência relativamente prolongada da residência.
Relativamente à data dos factos constantes nos autos a situação, a situação era idêntica.
73. AA reside na morada destacada na capa do presente relatório, desde abril do ano 2022, contexto que vivencia como favorável no todo, salientando a identificação com a conotação positiva do meio residencial.
74. Apesar de reformado, AA continua a desempenhar funções de piloto instrutor, em regime pro bono, no Aero Club de Portugal.
75. O valor dos rendimentos líquidos do arguido ascende a 2.144 euros (reforma por invalidez) + 1.080 euros (complemento de reforma da TAP Air Portugal). O valor total das despesas/encargos fixos do agregado situa-se nos 2.166 euros, sendo habitação: 1.200 euros (arrendamento) + 60 euros (internet), amortização com empréstimos bancários: 544 euros + 312 euros (créditos pessoais) e saúde: 50 euros (seguro). AA apresenta uma situação económica confortável, indicando rendimentos que permitem fazer face aos encargos regulares e subsistir sem constrangimentos preocupantes.
76. AA retrata um estilo de vida pró-social, sendo o seu quotidiano ocupado com a rede de amigos que foi erigindo no contexto da atividade profissional.
Para além do supramencionado, AA é sócio do Aero Club de Portugal, desde 1980, integrando, também, os órgãos sociais (2.º Secretário da mesa da Assembleia Geral). Relativamente à data dos factos constantes nos autos a situação era idêntica.
B. Factos não provados:
Da audiência de discussão e julgamento, não resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
a) No momento da paragem do motor, a aeronave voava a uma altitude de 1.000 pés.
b) O arguido AA escolheu o ponto de aterragem, ou seja, esse “aiming point” com intenção de aterrar numa zona de agueiro a poucos metros de distância do local onde a aeronave se imobilizou, por lhe parecer o mais seguro e mais distante da zona onde havia maior concentração de pessoas, naquele momento.
c) O arguido AA executou os procedimentos descritos no facto provado 28. durante cerca de 50 segundos.
d) A realização destas operações de forma ininterrupta e durante o lapso temporal a que se alude em c., sem recorrer à ajuda do aluno GG, levou a que o arguido AA, sopesada a localização dos comandos do “primer” e dos magnetos (no lado esquerdo do painel de instrumentos do lado em que se encontrava sentado o aluno), perdesse o controlo das referências de navegação (altitude e posição relativa no terreno) da aeronave.
e) Nas circunstâncias descritas no facto provado 35, o arguido não logrou gerir a altitude e a velocidade da aeronave.
f) Nas circunstâncias descritas no facto provado 36, a aeronave tem ainda os “flaps” recolhidos.
g) Nas circunstâncias descritas no facto provado 43, a aeronave estava sem qualquer controlo por banda do arguido.
h) O arguido AA, ao delegar ao aluno GG o controlo de planeio do voo da aeronave, determinando-lhe que voasse em frente, mantendo o rumo e a velocidade de 60 nós e, de forma reiterada e quase até ao momento em que veio a aterrar no areal da praia de S. João da Caparica, ter tentado colocar o motor em funcionamento, não decidiu em tempo onde pretendia aterrar, perdeu o controlo situacional da aeronave (altitude e posição relativa no terreno) e, em consequência, o controlo de voo daquela.
i) Pese embora a falha do motor tivesse ocorrido quando a aeronave voava entre os 1.200 a 1.100 pés de altitude, o arguido AA somente a cerca de 500 pés de altitude, ao assumir o controlo de planeio do voo, procurou o local para aterrar, tendo a aeronave superado o seu ângulo de ataque, com consequente perda de sustentação aerodinâmica ocorrida a baixa altitude e, consequentemente, perda de controlo de voo daquela.
j) A decisão de procurar um local para aterrar apenas a 500 pés de altitude, deixou o arguido AA temporalmente limitado para efetuar uma análise de risco, o que diminuiu as suas opções na escolha de um local de aterragem, nomeadamente, para procurar um local onde pudesse aterrar em segurança para si, o aluno que transportava, a integridade da aeronave Cessna e, bem assim, todos os demais que se encontrassem naqueles possíveis locais.
k) O arguido AA deveria ter consultado no decurso da situação de emergência , como a ocorrida, os procedimentos indicados no Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152.
l) Ao determinar ao aluno GG que seguisse em frente à melhor velocidade de planeio prevista pelo fabricante da aeronave, ou seja, a 60 nós, o arguido AA podia e devia ter eleito o local seguro para aterrar, controlando a velocidade e a altitude da aeronave, o que não fez.
m) O arguido AA não elegeu um local para aterrar, bem sabendo que ao atuar como descrito violava grosseiramente as regras da aviação e o dever objetivo de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes a uma pilotagem prudente lhe impunham e que eram exigíveis atenta a sua experiência profissional.
n) O arguido AA sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente, de entre os alegados, todos os que estejam em contradição ou que tenham ficado prejudicados com a matéria de facto dade por assente e não assente.
Não se respondeu aos artigos da acusação e contestação irrelevantes para a presente decisão, conclusivos e / ou que apenas continham matéria de Direito.
O Tribunal também não respondeu a matéria que, embora com a utilização de outra linguagem, repete factualidade já constante da acusação ou acrescenta factos que não constam do despacho de acusação.
C. Motivação:
A decisão do Tribunal tem de assentar na convicção da verdade dos factos apurados em audiência de julgamento, convicção essa formada apenas com os elementos probatórios de que é lícito recorrer-se (cfr. artigos 125º, 126º e 355º do Código de Processo Penal).
O juiz deve decidir sob a impressão de quanto viu e ouviu, com o contributo dialético dos sujeitos processuais (princípio do contraditório, consagrado na lei processual penal e na Lei Fundamental). Exige-se, pois, ao tribunal, a partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a sua convicção, a enunciação das razões de ciência extraídas daquelas, os motivos porque optou por uma das versões em confronto (quando as houver), os motivos de credibilidade dos depoimentos, os fundamentos dos documentos ou exames que privilegiou na sua convicção – cfr. artigo 205º da Constituição da República Portuguesa e artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Tudo de forma a permitir a reconstituição e análise crítica do percurso lógico que seguiu na determinação dos factos como provados ou não provados (cfr. artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal), tendo por referência a valoração da prova pela credibilidade, sendo esta composta pela seriedade, isenção razão de Ciência – fonte de conhecimento dos factos e coerência lógica, tanto interna (depoimento confrontado consigo mesmo) como externa (depoimento confrontado com os demais). É que o relato de um facto, pelo ser humano, é um processo que comporta diversas etapas, a saber: a perceção dos factos, a memorização (muitas vezes acompanhada de uma racionalização dos eventos percecionados conducente à sua distorção) e a sua reprodução, sendo certo que o julgador não é apenas e tão-somente um mero recetáculo acrítico dos relatos que são produzidos em audiência.
Assim, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, linguagem silenciosa e do comportamento, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Considerando os pressupostos supra enunciados e tendo presente as regras da experiência comum, para formação da sua livre convicção (cfr. artigo 127º do mesmo diploma), o Tribunal analisou e examinou a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente:
- as declarações tomadas ao arguido, quer em audiência de discussão e julgamento, quer nos interrogatórios perante o Ministério Público, realizados no dia 03/08/2017 (cfr. auto de interrogatório de fls. 71 a 73) e 23/11/2018 (cfr. auto de interrogatório de fls. 1335 e 1336, 5.º vol.), conforme transcrição constantes do apenso X (1.º vol.);
- as declarações prestadas pelos assistentes BB, CC, DD e EE (cfr. ata datada de 09.11), que se encontravam, à data, na praia de São João;
- os depoimentos das testemunhas MM, subchefe da Polícia Marítima (cfr. ata de 30/12/2023), e NN, agente de 1.ª Classe da Polícia Marítima (cfr. ata de 21/12/2023), que se deslocaram ao local do acidente, no exercício de funções e competências;
- os depoimentos das pessoas que se encontravam, à data dos factos, no areal das praias de São João, as testemunhas HH e II (cfr. ata datada de 21/12/2023); JJ (cfr. ata de 21/12/2023), OO (cfr. ata de 30/11/2023), PP (cfr. ata de 30.11), QQ (cfr. ata de 30/11/2023), RR (cfr. ata de 30/11/2023), SS (cfr. ata de 21/12/2023), TT (cfr. ata de 21/12/2023), UU (cfr. ata de 24.01), VV (cfr. ata de 21/12/2023), WW (cfr. ata de 21/12/2023), XX (cfr. ata de 21/12/2023), YY (cfr. ata de 24/01/2024), ZZ (cfr. ata de 21/12/2023), AAA (cfr. ata de 21/12/2023); - o depoimento da testemunha GG (cfr. ata de 21/12/2023), que seguia, na qualidade de aluno, com o arguido no interior da aeronave Cessna 152, sendo estes os únicos ocupantes durante todo o percurso;
- o depoimento da testemunha BBB (cfr. ata de 24/01/2024), piloto que, à data dos factos, sobrevoou a zona do acidente, tirou as fotografias de fls. 1331 a 1334 (5.º vol.) e estabeleceu comunicação entre o arguido e a Torre de Controlo do Aeródromo de Cascais, em momento posterior ao acidente (cfr. auto de transcrição de fls. 11 e 25);
- os depoimentos das testemunhas com conhecimentos técnicos acerca do voo da aeronave, concretamente CCC (cfr. ata de 24/01/2024), DDD (cfr. ata de 24/01/2024), EEE (cfr. ata de 24/01/2024), FFF (cfr. ata de 25/01/2024), GGG (cfr. ata de 31/01/2024), bem assim HHH (cfr. ata de 25/01/2024), III (cfr. ata de 31/01/2024), JJJ (cfr. ata de 25/01/2024), KKK (cfr. ata de 12/02/2024), LLL (cfr. ata de 31/01/2024), MMM (cfr. ata de 14/02/2024), NNN (cfr. ata de 12/02/2024), OOO (cfr. ata de 12/02/2024);
- as declarações tomadas ao Perito PPP, nomeado por despacho proferido a fls. 3412 (13.ºvol.), pelo Juízo de Instrução Criminal, em 18/08/2020, em complemento ao relatório pericial de fls. 3539 e seguintes e esclarecimentos juntos a fls. 3838 e seguintes.
Dispensa-se a reprodução do teor das declarações prestadas em audiência de julgamento, uma vez que se encontram registadas pelo sistema de gravação sonoro.
Considerou-se, igualmente, o relatório de exame pericial (observação e recolha de vestígios na aeronave) de fls. 164 a 170 (1.º vol.); o relatório de exame pericial (pesquisa de vestígios biológicos, análise de ADN e estudo comparativo) de fls. 279 a 280 (2.º vol.); o relatório de exame pericial (combustível) a fls. 287 a 291 (2.º vol.); o relatório de autópsia médico-legal de KK a fls. 419 a 422 (2.º vol.) e aditamento a fls. 796 a 797 (4.º vol.); o relatório de autópsia médico-legal de LL a fls. 427 a 430 (2.º vol.) e aditamento a fls. 794 a 795 (4.º vol.); o relatório de exame químico toxicológico a fls. 557 (3.º vol.); o relatório de exame químico toxicológico a fls. 560 (3.º vol.); o relatório de ensaios (combustível) a fls. 572 (3.º vol.); o relatório de exame pericial (vestígios no nariz da hélice) a fls. 937 a 938 (4.º vol.); o relatório de exame pericial (dano no nariz da hélice) a fls. 1254 e 1255 (5.º vol.); o exame médico a II, a fls. 1847 (7.º vol.); o exame médico a HH, a fls. 1848 (7.º vol.); e o estudo da análise detalhada do mecanismo de boia do carburador da aeronave Cessna 152, com o registo CS-AVA, elaborado pelo IDMEC - Instituto Superior Técnico, que constitui o apenso VI.
Atendeu-se, também, ao teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente o auto de notícia a fls. 3 e 4; licença de tripulante técnico ATPL(A) a fls. 12 e 13; autorização de aluno ATPL(A) a fls. 18; auto de apreensão a fls. 26, auto de diligência externa com reportagem fotográfica com exame à aeronave, a fls. 28 a 40 (elaborado pela testemunha NN), auto de visionamento de imagens e CD a fls. 42 a 44; auto de diligência e reportagem fotográfica a fls. 89 a 98 (autópsias); auto de diligência de recolha de amostras de combustível do tanque de abastecimento da aeronave do posto de combustível no aeródromo de Tires a fls. 99; auto de diligência a fls. 108 e 109 com fotografias da checklist Cessna 152 Escola GAIR de fls. 110 a 120 e vista exterior e interior da aeronave de fls. 121 a 132 com simulação de embate na vítima KK); documentação clínica a fls. 187 a 189 relativa à testemunha HH; auto de diligência e reportagem fotográfica com exame ao motor a fls. 205 a 219; auto de diligência e reportagem fotográfica com testes ao motor a fls. 228 a 232; documentação clínica e CD a fls. 274 a 276 relativa à testemunha II; assento de nascimento de sofia a fls. 535 (3.º vol.); assento de nascimento de KK a fls. 541 (3.º vol.); informação da ANAC (licenças e certificados médicos) a fls. 748 a 752; certidão do IPMA a fls. 793; informação da ANAC (acerca do processo clínico e aptidão física e mental do arguido) a fls. 1197 a 1199/1269 a 1294; fotogramas de fls. 1331 a 1334; cópia do requerimento de atribuição de pensão por invalidez e da deliberação da comissão de verificação de incapacidade permanente do Centro Distrital de Lisboa do ISS,IP a fls. 1494 e 1495/1437; informação da TAP a fls. 1531; cópia da deliberação da comissão de verificação deliberação da comissão de verificação de incapacidade permanente do Centro Distrital de Lisboa do ISS,IP e relatório médico a fls. 1578 a 1584; cópia do requerimento para aprovação de ATO a fls. 1601 a 1606; informação da ANAC a fls. 1757; cópia da caderneta pessoal do arguidoAA a fls. 1824 e 1825; cópia da Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da OMS a fls. 1830 a 1832; documentos de fls. 1884, 1902, 1910, 1912 a 1914, 1918, 1922, 1926, 1927 e 1929; certidão permanente da EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A. a fls. 2082 a 2102; METARs - METeorological Aerodrome Report: informação meteorológica regular do aeródromo de Cascais (LPCS) a fls. 2114; resolução do Conselho de Ministros n.º 38-C/2015 a fls. 2115; deliberação da ANAC n.º 1745/2016 a fls. 2116 a 2118; emissão e alteração do certificado de aprovação técnica de organização de formação organizada (ATO) de fls. 2797 e seguintes; requerimento para aprovação de ATO de fls. 2836 e seguintes; relatório de aprovação, supervisão, de fls. 2850 e seguintes; relatório de inspeção ATO de fls. 2854 e seguintes; planeamento das auditorias e inspeções – fls. 2857; requerimento para emissão de certificado médico de fls. 2858; emergency checklists de fls. 3035 e respetiva tradução a fls. 3347, listas de verificação de emergência; imagem google do Forte S. Lourenço (Bugio) de fls. 3036; folhas de serviço de fls. 3037 e seguintes e respetiva tradução a fls. 3351 e seguintes; e informação remetida pelo GPIAAF e fotografias anexas de fls. 5974 a 5983 (21.º vol.).
Considerou-se, ainda, o relatório sobre a investigação de amostras de combustível elaborado pela ENMC (apenso I); informações e documentos relativos ao arguido AA e a testemunha GG (aluno) e Manuais da EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A. (apenso II, 1.º e 2.º vol.); tradução do Operations Manual (apenso II-A, 1.º vol.), do Safety Manegement System Manual (apenso II-A, 2.º vol.), tradução parcial do Operations Manual, Extendend Standard Operating Procedures e Training Manual (apenso II-A, 3.º vol.) da EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A.; documentos remetidos pela NAV e respetivo suporte digital (Plano de voo, plots radar, gravação das comunicações efectuadas), autos de transcrição das comunicações e respetiva tradução e Impressões dos plots radar e mapas GoogleEarth (apenso III); processo individual de trabalho do arguido na empresa TAP, Air Portugal – Transportes Aéreos de Portugal, E.P. (apenso IV); contrato de cedência da aeronave Cessna 152, com o registo CSAVA, plano de manutenção, apólice de seguro, condições gerais e particulares do seguro da aeronave (apenso VII); documentação remetida pela ANAC (apenso XII); documentos da aeronave Cessna 152, com o registo CS-AVA e da EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A. (apenso XIII); Checklist Cessna 152, elaborada pela EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A, e respetiva tradução (apenso XIV) e Pilot’s Operating Handbook (POH) da aeronave Cessna 152 e respetiva tradução (apenso XV).
Concatenando todos estes elementos probatórios entre si, torna-se evidente que a discussão da causa, em sede de audiência de julgamento, centrou-se essencialmente nos factos controvertidos relativos ao momento e referência situacional em que a aeronave Cessna 152 se encontrava quando o motor sofreu a falha total de potência; se o arguido decidiu, ou se não o fez em tempo, onde pretendia aterrar; se o arguido perdeu o controlo situacional da aeronave (altitude e posição relativa no terreno), enquanto executava os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento e, em consequência, o controlo de voo daquela; a referência situacional da aeronave Cessna 152, no momento em que o arguido assumiu o controlo de planeio do voo e, também, em que efetuou a comunicação “mayday”; as circunstâncias pelas quais o arguido aterrou a aeronave na praia de São João, nomeadamente se não geriu a altitude e a velocidade desta de modo a aterrar na praia da Cova do Vapor; se, no solo, o sistema de travagem da aeronave foi utilizado; bem assim quais os procedimentos de segurança e método no contexto aeronáutico a seguir pelo piloto em caso de aterragem forçada na sequência de falha de motor (legis artis). Concretizando.
Os factos provados de 1 a 9 resultaram das declarações tomadas ao arguido e do teor dos documentos juntos aos autos, concretamente a licença de tripulante técnico ATPL(A) a fls. 12 e 13; a informação da ANAC (licenças e certificados médicos) a fls. 748 a 752 (4.º vol.); a informação da TAP a fls. 1531 (4.º vol.), em como o arguido nos registos se encontra reformado da C/P de Oficial Piloto de Avião Turbo – hélice; a cópia do requerimento para aprovação de ATO a fls. 1601 a 1606 (4.º vol.); a informação da ANAC a fls. 1757(7.º vol.); cópia da caderneta pessoal do arguido a fls. 1824 e 1825 (7.º vol.); documentos de fls. 1884, 1902, 1910, 1912 a 1914, 1918, 1922, 1926, 1927 e 1929; certidão permanente da EAA – Escola de Aviação Aerocondor, S.A., a fls. 2082 a 2102 (8.º vol.); informações e documentos constantes do apenso II (1.º e 2.º vol.), tais como a cópia da licença do arguido de fls. 6 e 7 e cópia do contrato de trabalho de fls. 150 e ss.; o processo individual de trabalho do arguido na empresa TAP, Air Portugal – Transportes Aéreos de Portugal, E.P., que constitui o apenso IV; e a documentação remetida pela Autoridade Nacional de Aviação Civil (anteriormente INAC), que consta do apenso XII.
Os factos provados 10, 13 e 14 extraíram-se da conjugação das declarações tomadas ao arguido e do depoimento da testemunha GG (aluno) com o teor do documento de autorização de aluno ATPL(A) de fls. 18 e as informações e documentos relativos ao aluno, a testemunha GG, que constam do apenso II (1.º e 2.º vol.); e os documentos remetidos pela NAV e respetivo suporte digital, nomeadamente os planos de voo (FPL) principal e suplementar, com a respetiva descodificação constante do anexo 1, que constituem o apenso III.
Os factos provados 11 e 12 decorreram do teor da documentação relativa à aeronave Cessna 152, concretamente o contrato de cedência da aeronave Cessna 152, com o registo CS-AVA, plano de manutenção, apólice de seguro, condições gerais e particulares do seguro da aeronave, constantes do apenso VII, e documentação remetida pela Autoridade Nacional de Aviação Civil (anteriormente INAC), que constam do apenso XII, complementada pelas declarações tomadas ao arguido e pelo depoimento da testemunha GG (aluno).
O facto provado 15 extraiu-se da conjugação do teor do auto de transcrição da comunicação estabelecida, via rádio, com a torre de controlo de tráfego aéreo de Cascais, constante de fls. 8 e de fls. 22 (este com hora da referida comunicação), que constam do apenso III, com as declarações tomadas ao arguido e do depoimento da testemunha GG (aluno). Assim, pelas 15:28:15 UTC (16:28:15 hora local), o arguido e o aluno GG contactaram o controlo de tráfego aéreo de Cascais, tendo recebido a informação: “Escola 151, after departure, turn right, 1000 feet, Cova do Vapor, then fly route and profile’s, code 3216”, ou seja, receberam a indicação da NAV para, após a descolagem, voltarem à direita, subirem para 1000 pés e voarem na direção da Cova do Vapor, código transponder 3216, a qual fica na rota VFR (voo visual) para aeronaves ligeiras do túnel sul (túnel de saída de Lisboa para Sul) sendo que, atento o sentido de voo que iriam imprimir à aeronave - Norte-Sul - a altitude máxima de voo autorizado é de 1000 pés.
Assim e tal como decorre das declarações tomadas ao arguido e do depoimento da testemunha GG (aluno) conjugado com os documentos remetidos pela NAV e respectivo suporte digital, nomeadamente os planos de voo (FPL) principal e suplementar, com a respectiva descodificação constante do anexo 1, que constituem o apenso III, pelas 15:42:52 UTC (16:42:52 hora local), receberam autorização para a descolagem, tendo levantado voo da pista 35 do aeródromo de Cascais, de acordo com as indicações fornecidas pela torre de controlo de tráfego aéreo, sendo que o aluno GG ali seguia como o piloto a voar (sentado à esquerda) e o arguido era o piloto em comando (sentado à direita).
No que respeita às condições meteorológicas descritas nos factos provados 17 a 20, atendeuse ao teor da certidão do IPMA a fls. 793, de onde se extrai concretamente que, cita-se: “da análise das informações disponíveis, designadamente cartas sinópticas do tempo, imagens radar meteorológico, imagens de satélite meteorológico, dados do sistema de detecção e locação de descargas eléctricas atmosféricas e observações nas estações meteorológicas, somos de parecer que, no percurso compreendido entre o Aeródromo de Tires e a praia de S. João da Caparica: no dia 02 de agosto de 2017, entre as 16 e as 17horas:
O céu se tenha apresentado pouco nublado ou limpo;
O vento tenha sido entre 20 a 30km/h;
O rumo do vento tenha sido de noroeste, rodando para norte;
A intensidade máxima instantânea do vento tenha atingido 40 a 50 km/h;
Não tenha ocorrido precipitação;
A temperatura do ar tenha variado entre 28ºC e 29ºC;
A humidade relativa do ar tenha variado entre 35% e 37%;
A visibilidade tenha sido boa, com valores superiores a 10km.”
A factualidade descrita no facto provado 21 resultou das declarações tomadas ao arguido, em sede de primeiro interrogatório perante o Ministério Público, realizado no dia subsequente aos factos (cfr. auto de interrogatório de fls. 71 a 73), e do depoimento da testemunha GG (aluno), inquirido em audiência de julgamento, conjugado com as condições meteorológicas descritas na certidão do IPMA a fls. 793.
Com efeito, tendo mais presente os factos ocorridos no dia 02.08.2017 e sendo, por isso, mais espontâneo e pormenorizado, o arguido relatou que “quando eu ia mudar a frequência para falar com Lisboa, caímos numa espécie de poço de ar, portanto estava muito vento e muita turbulência”; “caímos naquilo que se chama um poço de ar, deu um enorme salto e depois estabilizou, nesse momento, o motor parou, exatamente nesse momento”, cfr. transcrição fls. 12 e ss. do apenso X; “a partir do momento em que caímos no tal poço de ar, aquilo parou, e a partir daí todos os sintomas era como se tivesse falta de gasolina”, fls. 22 do apenso X; e, ainda, em sede de primeiro interrogatório não judicial realizado 23/11/2018, fls. 97 do apenso X, “durante todo o percurso até chegarmos à linha de costa, havia muita turbulência e, portanto, tenho a ideia que no momento em que o motor parou, ou bocadinho antes, houve um golpe de turbulência um pouco mais forte”.
Da inquirição da testemunha GG, em audiência de julgamento, decorre que teve dificuldade em estabilizar o avião aos 1000 pés, estava com dificuldade em manter por causa da instabilidade do vento.
Assim, a conjugação dos relatos das únicas duas pessoas que seguiam a bordo da aeronave Cessna 152, com as condições meteorológicas descritas na certidão do IPMA a fls. 793, nomeadamente com vento a soprar entre 20 a 30km/h, com rumo de noroeste, rodando para norte e intensidade máxima instantânea entre 40 a 50 km/h, permitiu ao Tribunal adquirir convicção positiva que devido à existência de turbulência e como se faziam sentir correntes de ar ascendentes, o aluno GG teve dificuldade em estabilizar a aeronave na altitude autorizada, que sofreu um movimento ascendente súbito e violento, atingindo uma altitude máxima de 1200 pés (facto provado 21).
Relativamente às circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado 22, decorre objetivamente que:
- a aeronave Cessna 152 encontrava-se a sobrevoar a vila de Oeiras, na posição estimada N 38 41 44.7 W 009 18 46.3, numa atitude de subida a cerca de 1200 pés de altitude, pelas 15:46:01 UTC (16:46:01 hora local), de acordo com fls. 41 e 42, do apenso III;
- na posição estimada N 38 41 56.0 W 009 18 52.0, a aeronave atingiu uma altitude máxima de 1200 pés, tendo iniciado um movimento descendente, conforme teor de fls. 34, 35, 36 e 37 do apenso III; e
- na posição estimada N 38 41 09.9 W009 18 05.1, ou seja, a cerca de 84,85 metros da margem Norte, sobre o Rio Tejo, pelas 15:46:31UTC (16:46:31 hora local), a aeronave encontrava-se numa atitude de descida a cerca de 1100 pés de altitude, como se extrai de fls. 43/44 do apenso III.
Outrossim, objetivamente, não subsistem dúvidas acerca da causa da falha total de potência sofrida pelo motor da aeronave Cessna 152, tal como vertido no facto provado 23.
Com efeito, ficou demonstrado que o motor da aeronave Cessna 152 sofreu uma falha total de potência provocado pelo bloqueio da válvula de manutenção de nível de combustível na cuba do carburador, que impediu a entrada de combustível na cuba, interrompendo assim o fluxo de combustível ao motor, tal como decorre da conjugação do acervo probatório recolhido nos autos, nomeadamente do auto de diligência de recolha de amostras de combustível do tanque de abastecimento da aeronave do posto de combustível no aeródromo de Tires, a fls. 99 (1.º vol.); do auto de diligência de análise do motor (mecânica e elétrica) e sistema de combustível da aeronave, com reportagem fotográfica, de fls. 205 a 219 (2.º vol.); auto de diligência de vistoria e teste ao motor da aeronave, com reportagem fotográfica de fls. 228 a 232 (2.º vol.); conjugado com as conclusões do relatórios periciais, designadamente o relatório de exame pericial ao combustível recolhido na aeronave e no depósito onde a aeronave foi abastecida, sendo semelhantes, (cfr. fls. 287 a 291), e relatório de ensaios a fls. 572 (3.º vol.); bem assim o relatório sobre a investigação de amostras de combustível elaborado pela ENMC, constante do apenso I, e o teor do estudo da Análise detalhada do mecanismo de bóia do carburador da aeronave Cessna 152, com o registo CSAVA, elaborado pelo IDMEC - Instituto Superior Técnico, que constitui o apenso VI.
No que respeita ao momento em que o motor da aeronave Cessna 152 sofreu a falha total de potência, a convicção positiva do Tribunal decorre objetivamente da conjugação dos relatos das únicas duas pessoas que seguiam a bordo da aeronave Cessna152.
Em sede de primeiro interrogatório não judicial realizado no dia subsequente aos factos (cfr. auto de interrogatório de fls. 71 a 73), o arguido afirmou que “quando eu ia mudar a frequência para falar com Lisboa, caímos numa espécie de poço de ar, portanto estava muito vento e muita turbulência”; “caímos naquilo que se chama um poço de ar, deu um enorme salto e depois estabilizou, nesse momento, o motor parou, exatamente nesse momento”, cfr. transcrição fls. 12 e ss. do apenso X; e em sede de primeiro interrogatório não judicial realizado 23/11/2018, o arguido declarou “no momento em que eu ia esticar o braço para mudar a frequência do rádio, o motor parou, o aluno disse-me “o motor parou”, no momento em que eu ia trocar a frequência, portanto isso foi mais ou menor na linha de costa, mais ou menos já a entrar no Tejo”, cfr. fls. 96 do apenso X.
Tais declarações são consentâneas com o depoimento prestado pelo aluno, a testemunha GG, em audiência de julgamento, ao afirmar ter avisado o instrutor que “o motor está esquisito”.
Assim, da conjugação deste acervo probatório, não subsistem quaisquer dúvidas que, devido à existência de turbulência e como se faziam sentir correntes de ar ascendentes, o aluno GG teve dificuldade em estabilizar a aeronave na altitude autorizada, tendo esta sofrido um movimento ascendente súbito e violento, momento em que o motor da aeronave Cessna 152 sofreu uma falha total de potência, enquanto o arguido se encontrava a mudar de frequência de rádio para o controlo aéreo de Lisboa (facto provado 23 e facto não provado a.).
Tão-pouco subsistem dúvidas, muito menos dúvidas razoáveis, desde logo, por ter sido assumido pelo arguido, nos termos supra consignados, que o aluno GG alertou-o para a falha de motor (facto provado 24).
No que respeita ao “startle effect”, ficou demonstrado em audiência de julgamento que se trata do tempo de não reação de um piloto quando confrontado com uma situação de emergência, tendo natureza subjetiva e, por isso, variável.
Neste particular, o arguido afirmou não ter perceção de ter consumido um único segundo com o “startle effect”, o que não se mostra verosímil, uma vez que, como decorre das regras da experiência comum, o efeito surpresa existirá sempre.
Em audiência de julgamento, ficou demonstrado que o “startle effect” é comum e normal, tendo sido avançados lapsos temporais em termos genéricos e variáveis (entre três e vinte segundos), quer pelas testemunhas com conhecimentos técnicos de voo de aeronave, nomeadamente HHH, NNN e DDD, GGG, quer pelo Perito PPP.
Assim, por ter natureza subjetiva e variável, não tendo tal circunstância sido esclarecida pelo arguido, o que é natural por se tratar de uma perceção momentânea, desconhece-se o tempo de reação, ou não reação, no caso concreto, por não ter sido demonstrado, em audiência de julgamento, a eventual duração do mesmo.
Ficou provado que o arguido assumiu a emergência de voo e delegou ao aluno GG o controlo de planeio do voo da aeronave, tendo instruído este a voar em frente a uma velocidade de 60 KIAS, ou seja, na gíria, “trocar velocidade por altitude”, seguindo o sentido sudoeste, o que o mesmo executou.
Sendo um dos primeiros procedimentos de emergência a executar em caso de paragem do motor em voo, a velocidade de 60 KIAS foi reputada quer pelo Perito PPP (cerca de 111 km/h, cfr. relatório pericial de fls. 3539 e seguintes), quer pelo arguido e pelas testemunhas com conhecimentos técnicos acerca do voo da aeronave, concretamente os pilotos CCC, DDD, JJJ, HHH, GGG, LLL, NNN, MMM, como sendo a melhor velocidade de planeio por ser a indicada pelo fabricante Cessna 152, tal como resulta da extensa prova documental junta aos autos relativa a esta aeronave.
Este comando, tal-qualmente determinado pelo arguido ao aluno, corresponde a uma divisão de tarefas, sendo adotada em situações de emergência, tal como esclarecido pelo Perito PPP e pelas testemunhas, na qualidade de pilotos, CCC, DDD, FFF, JJJ, HHH, GGG e KKK.
Esta divisão de tarefas em situações de emergência é também descrita no Manual de Operações da Escola de Aviação Aerocondor, cuja tradução Operations Manual da EAA, S.A., constitui apenso II-A (1.º vol.), sob o ponto B.3.Procedimentos de Emergência, página B.6.: “São consideradas emergências os acontecimentos relacionados com a operação de uma aeronave que podem colocar em risco a tripulação e / ou a aeronave ou bens de terceiros.
Para a resolução de situações de emergência, devem ser seguidos os procedimentos estabelecidos no Manual de Voo da aeronave e nas listas de verificação de emergência aplicáveis.
O que se segue estabelece os requisitos específicos a serem levados em consideração, na ocorrência e durante a resolução de emergência relacionadas com a operação da aeronave, bem como as ações a serem seguidas pelo Piloto no Comando.
B.3.1. Acções a tomar pelo piloto no comando
Em caso de emergência, o Piloto no Comando deverá tomar todas as medidas que julgar necessárias para eliminar ou reduzir tanto quanto possível os riscos para a tripulação e a aeronave, mesmo que tais acções envolvam o não cumprimento de procedimentos prescritos, tais como regras mínimas de controlo de tráfego aéreo e / ou meteorológicas.
B.3.2. Tarefa de Coordenação
Tal como acontece na operação normal, uma acção eficiente durante uma emergência dependerá da capacidade de agir de maneira coordenada.
Ao enfrentar a emergência, o Piloto no comando (o Instrutor) deve ter uma atitude de comando firme, comunicar claramente ao aluno quais são as suas intenções e determinar as tarefas a serem executadas.
Em caso de emergência, deverão ser seguidas as seguintes acções:
B.3.3. Controlo da Aeronave
O piloto que executa o voo deve concentrar-se na tarefa de piloto e controlar a aeronave. Esta acção é a acção mais importante. O instrutor é responsável por controlar a situação; no entanto, pode delegar no aluno o comando da aeronave,
NOTA: Apesar de o instrutor poder delegar no aluno a tarefa de pilotar a aeronave, o facto é que continua responsável em termos de controlo de todas as operações.”, página B.7..
Consta ainda no Manual de Operações da Escola de Aviação Aerocondor, cuja tradução Operations Manual da EAA, S.A., constitui apenso II-A (1.º vol.), está definido que “A.7. Comando da Aeronave, o piloto no comando de uma aeronave é o Instrutor Piloto que, de acordo com os requisitos legais, exerce o comando da aeronave, sendo responsável pela segurança do voo e pelo cumprimento dos regulamentos”, página A.23..
Também do Manual de Gestão de Procedimentos de Segurança, página 1-9, cuja tradução consta do apenso II-A, decorre que: “CRM - Gestão de recursos da tripulação. Método em que a tripulação constituída por, pelo menos, dois membros mantêm ações coordenadas entre os tripulantes, de forma a agir em voo, evitando duplicação ou procedimentos descoordenados.”
No caso, o arguido delegou a tarefa de planeio de voo ao aluno, de acordo com o que os manuais preconizam e o Perito PPP e as supra mencionadas testemunhas também confirmaram em audiência de julgamento. Segundo as conclusões do Perito PPP, vide relatório pericial de fls. 3539 e seguintes, “o aluno tinha à altura 120 hrs de voo o que na legis art aeronáutica é uma experiência aceitável para que essa delegação fosse efectuada”.
Assim, ficou demonstrado, além de qualquer dúvida razoável, que o arguido agiu em voo de forma coordenada com o aluno, em quem delegou a tarefa de planeio da aeronave, ou seja, manter a aeronave direita e a voar em frente a 60 nós.
Neste contexto, não se demonstrou que houvesse duplicação de tarefas ou procedimentos descoordenados. Do acervo probatório resultou que houve delegação da tarefa de voar ao aluno, tendo sido por este executada até ao momento em que o arguido assumiu o voo da aeronave Cessna 152, previamente à comunicação da emergência ao controlo de tráfego aéreo de Cascais.
Apreciado objetivamente este acervo probatório, não se suscitaram dúvidas que houve comunicação entre os dois ocupantes da aeronave, uma vez que o arguido definiu o local para aterrar e, por sua vez, o aluno voou em frente, seguindo o sentido sudoeste a uma velocidade de 60 KIAS (eleita melhor velocidade de planeio pelo fabricante Cessna), tal-qualmente lhe fora determinado por aquele, tendo apenas de seguida o arguido iniciado os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento (facto provados 24 e 27).
Assim, pese embora o arguido não tivesse avisado ou indicado ao aluno um lugar para efetuar a aterragem da aeronave Cessna 152, certo é ambos agiram de forma coordenada entre si e evitaram duplicação de procedimentos.
Por sua vez, a testemunha GG (aluno) declarou, em audiência de julgamento, que não soube onde a aeronave ia aterrar, acrescentando que até pensou que não conseguiriam alcançar o outro lado do Rio Tejo.
Assim, não se suscitaram dúvidas que o arguido não declarou ao aluno nem o local, nem a zona de aterragem. Contudo, não se conclui que, por não ter comunicado tal circunstância, o arguido não tivesse definido um local para onde voar, direcionando a aeronave para aterrar.
A aeronave Cessna 152, quando iniciou um movimento descendente, encontrava-se sobre o Rio Tejo, a cerca de 84,85 metros da margem Norte, na posição estimada N 38 41 09.9 W009 18 05.1, tendo uma visão ampla das características do terreno, atenta a altitude em que se encontrava a as condições meteorológicas (a visibilidade era boa, com valores superiores a 10km, facto provado 17).
Ao longo das declarações tomadas ao arguido, este declarou ter visto as praias à sua frente, no momento em que o motor da aeronave falha, afirmando que, por isso, a aeronave devia seguir em frente, ou seja, no sentido sudoeste.
Em particular, o arguido admitiu que, durante a emergência, não viu a praia da Cova do Vapor (primeira praia a Norte da extensão de areia), afirmando que apenas viu outras praias mais à frente, que não tinham ninguém, sendo sua intenção, que podia concretizar-se ou não, ser ali o “aiming point” ou local de aterragem, uma vez que poderia nem ser possível a aeronave alcançar, em voo de planeio, a margem Sul do rio.
Quer em sede de interrogatório não judicial, quer em sede de audiência de julgamento, o arguido afirmou ser seu propósito de aterrar no local por si indicado a fls. 1332, onde asseverou não se encontrar ali nenhuma pessoa.
Nesta parte, as declarações tomadas ao arguido foram contrariadas pelo subchefe da Polícia Marítima, MM e pelas testemunhas OO, PP, QQ, AAA, HH, II, JJ, VV, WW, XX, ZZ, SS e YY, todos presentes no areal da praia de São João da Caparica, bem assim a testemunha BBB, piloto que, à data dos factos, tirou as fotografias de fls. 1331 a 1334 (5.º vol.) tendo todos eles afirmado de forma consentânea que a praia tinha pessoas em toda a sua extensão.
Com efeito, as fotografias de fls. 1331 a 1334 (5.º vol.), onde se inclui a referenciada pelo arguido (fls. 1332), foram tiradas após o acidente pelo piloto que se encontrava a sobrevoar a zona de Cascais, a testemunha BBB, que se deslocou para a zona do acidente (identificado como CMI no auto de transcrição de fls. 26) e estabeleceu comunicação entre o arguido e a Torre de Controlo do Aeródromo de Cascais (cfr. auto de transcrição de fls. 11 e 25).
Do depoimento desta testemunha decorre que, em concreto, a praia da Cova do Vapor é avistada mais ou menos a meio do Tejo, a cerca de trezentos metros, se tiver visibilidade boa. Tal circunstância é corroborada pelo auto de transcrição de fls. 28, de onde se extrai que, pelas 15:52:03 UTC (16:52:03 hora local) do dia do acidente, “O Mike India está a passar o Bugio e ainda não o consigo ver” e do auto de transcrição de fls. 31 que, pelas 15:53:35 UTC (16:53:35 hora local), “Ok ó Cascais, eu tenho avião à vista. Ele Mike India, está mesmo junto ao mar, à rebentação, e tem realmente muitas pessoas perto pá. A praia está com muita gente.”.
Ademais, esta testemunha afirmou que, quando tirou a fotografia de fls. 1334, onde se visualiza a extensão das praias desde a Cova do Vapor até São João, se encontrava a uma distância de cerca de 2km da costa.
Da conjugação destas fotografias, em que se visualiza um aglomerado de banhistas em torno da aeronave, com os depoimentos das testemunhas supra indicadas, resulta evidente que, naquele dia, dia 02 de agosto, em plena época balnear, com temperaturas do ar a variar entre 28ºC e 29ºC (certidão do IPMA a fls. 793 - facto provado 18), encontravam-se dezenas de pessoas, algumas sob chapéus-de sol, outras no mar e outras na areia molhada junto do agueiro que aí se havia formado.
Acresce, ainda, que a testemunha CCC, na qualidade de piloto e instrutor de voo, afirmou que, nas circunstâncias em que a aeronave Cessna 152 se encontrava no momento em que o motor sofreu a falha total de potência, é visível a extensão do areal das praias (e vê-se bem), mas não se consegue precisar com pormenor o local de aterragem.
Concatenado este acervo probatório, não se mostrou plausível que o arguido, à distância e à altitude em que a aeronave se encontrava, naquelas concretas circunstâncias, tivesse visto, além da extensão de praias, a lotação de cada uma delas, escolhendo a única zona onde alegou ter visto que não se encontrava ninguém, concretamente a zona por si indicada a fls. 1332 (facto não provado b.).
Assim, o Tribunal convenceu-se apenas que o arguido, ao visualizar a extensão das praias à sua frente, instruiu o aluno a voar em frente, seguindo o sentido sudoeste, atendendo às características terrestres, tendo definido esse local para onde voar e direcionando-se para aterrar nas praias (factos provados 24 e 25), caso não conseguisse colocar novamente o motor em funcionamento (factos não provados i., j., l., m.).
Outrossim, da conjugação das declarações tomadas ao arguido com o depoimento da testemunha GG (aluno), únicas duas pessoas a bordo da aeronave Cessna 152, não subsistem dúvidas que, nesse circunstancialismo, o arguido iniciou de seguida os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento, tal como descrito nos factos provados 26 a 28.
Considerando o número de tentativas empreendidas pelo arguido, conclui-se que, numa situação de emergência como a ocorrida, este estava convencido que conseguiria reiniciar a marcha do motor, tal-qualmente por si admitido e referido pela testemunha GG, tendo ambos afirmado ter a perceção que o motor começava a funcionar cada vez que era acionado.
Neste particular, a testemunha CCC, enquanto piloto e instrutor de voo, esclareceu que, perante o caso de motor com sinal de combustível, o investimento de tempo e tentativas deve efetivamente ser superior, admitindo o investimento em concreto de 500 pés para pôr em marcha, não tendo reputado como uma situação anormal.
Também o PPP declarou, conforme consta do relatório pericial de fls. 3539 e seguintes, que “não há um número estabelecido de vezes para tentar retomar a marcha do motor pois isso depende da altitude a que está aeronave do solo e até da capacidade dos sistemas do avião permitirem essa retoma de marcha. É, no entanto, imperativo que um piloto, numa situação dessas, transite para um modo mental de aterragem forçada, desistindo de mais tentativas de retomar a marcha do motor e aterrar a aeronave de uma forma controlada, com a segurança possível. É da opinião deste perito e tendo em conta a particularidade deste acidente, que a partir dos 500/600 pés fossem concentrados todos os esforços físicos e mentais na aterragem forçada”; tal-qualmente mencionado pelas testemunhas com conhecimentos técnicos acerca do voo da aeronave, nomeadamente CCC, DDD, FFF, JJJ, HHH, GGG, LLL, III, KKK e MMM.
Deste acervo probatório decorre igualmente que a factualidade descrita em 29. Neste particular, importa salientar que da “emergency checklists”, constante das listas de verificação de emergência de fls. 3035, com a respetiva tradução a fls. 3347, extrai-se que “As situações de emergência nunca são planeadas e podem ocorrer no pior momento possível. Durante a maioria das situações de emergência, não haverá tempo suficiente para consultar uma lista de verificação de emergência. Assim sendo, é essencial que o piloto memorize os procedimentos de emergência assinalados a negrito ou apresentados com uma moldura preta na secção de procedimentos de emergência dos manuais de operações ou listas de verificação autónomas equivalentes. Estes elementos são essenciais para a continuação do voo em segurança. Quando a situação de emergência estiver sob controlo, o piloto deverá efetuar todos os passos da lista de verificação, na sequência correcta, e certificar-se que todos os passos foram cumpridos. É fundamental que o piloto reveja e conheça as listas de verificação de emergência publicadas e quaisquer outros procedimentos de emergência. A familiarização com o avião e os seus sistemas e um elevado nível de proficiência do piloto são ativos valiosos em caso de emergência.”
Retém-se, para o que ora nos importa, que o próprio fabricante da aeronave refere que, perante uma situação de emergência não haverá tempo de consultar e ler a checklist, tal como foi esclarecido pelo PPP e pelas testemunhas FFF e KKK, ambos com conhecimentos técnicos (facto não provado k.)
Relativamente às circunstâncias descritas no facto provado 30, consta objetivamente de fls. 46, 47 e 48 do apenso III que a atitude de descida da aeronave Cessna 152, iniciada no facto provado 22, se mantinha, porquanto, pelas 15:47:31 UTC (16:47:31 hora local), já se encontrava a cerca de 500 pés de altitude, na posição estimada N 38 40 11.0 W 009 16 39.6, seguindo rumo a Sul, sobre o rio Tejo e a cerca de 1,08 milhas náuticas (1,73 Km) da praia da Cova do Vapor.
Outrossim, a atitude de descida mantinha-se, ainda, no momento em que foi declarada a emergência, na posição estimada N 38 40 01.8 W 009 16 25.9, tal como decorre de fls. 34 e 35 do apenso III.
Do auto de transcrição de fls. 9 e de fls. 23 (este documento com a hora das comunicações - 15:47:31 UTC (16:47:31 hora local), ambos constantes do apenso III, extrai-se que o arguido comunicou a emergência efetuando uma chamada rádio para o controlo de tráfego aéreo de Cascais, cita-se: “Mayday, Mayday, Mayday, aeroescola 190, falha do motor, vai aterrar na praia” e, questionado pelo controlador de tráfego aéreo “em que praia vai aterrar”, aquele respondeu “Cova do Vapor” – facto provado 32.
Do auto de transcrição de fls. 10 e de fls. 24 (este documento com a hora das comunicações - 15:47:52 UTC (16:47:52 hora local) do apenso III, consta que, pelas 15:47:52 UTC (16:47:52 hora local), o controlo de tráfego aéreo de Cascais questionou “confirme que é o aeroescola 151” e o arguido respondeu “191…51 Afirmativo” – facto provado 33.
No que respeita as circunstâncias em que o arguido assumiu o controlo de planeio do voo da aeronave Cessna, em sede de audiência de julgamento, o arguido declarou que, quando comunicou o “mayday” à torre de controlo, sobrevoava uma praia, afirmando ter visto nesse momento um pontão do lado esquerdo com pessoas a passear.
Ora, tal versão, além de ser contrária à explanada em sede de interrogatório não judicial, é manifestamente inconsistente com os elementos objetivos extraídos do acervo probatório supra
mencionado, sendo ademais infirmada pelo relato do aluno em audiência de julgamento.
Com efeito, a testemunha GG (aluno) afirmou que, no momento da comunicação com a torre, encontravam-se a dois terços do Rio Tejo e, ao ouvir “Cova do Vapor”, pensou que era onde o arguido fosse aterrar a aeronave, até porque era a praia com menos pessoas, só depois é que percebeu que não iam para lá.
Daqui decorre, de forma consentânea com as declarações tomadas ao arguido, em sede de interrogatório não judicial, que o arguido assumiu o controlo do planeio de voo da aeronave Cessna 152, em momento anterior ao descrito no facto 30, o que permitiu ao Tribunal considerar assente o facto 31.
No que respeita ao momento da comunicação de emergência ao controlo de tráfego aéreo de Cascais, importa salientar que ficou demonstrado que, tal como esclarecido pelo Perito, em audiência de julgamento e em sede de relatório pericial a fls. 3539 e seguintes, “o momento de reporte à torre é perfeitamente adequado. Segundo as melhores práticas mesmo que não fosse avisada a torre seria aceitável pois, a prioridade é voar, depois navegar e só depois comunicar”.
Ainda relativamente às comunicações com o controlo de tráfego aéreo, o arguido esclareceu, em sede de audiência de julgamento, que, ao mencionar “Cova do Vapor”, pretendia referir-se ao ponto de reporte aeronáutico, não à praia em si, acrescentando que, caso não fizesse a comunicação deste modo, estaria a omitir uma regra.
Neste particular, da comunicação estabelecida com a torre de controlo, nos termos supra consignados, decorre que o arguido declarou a emergência “mayday”, identificou a “falha do motor” e mencionou “vai aterrar na praia” (facto provado 32). Por não ter sido compreendido pelo controlador de tráfego aéreo, foi por este questionado onde ia aterrar, ao que o arguido respondeu “Cova do Vapor”. Neste curto diálogo, é apenas referida, quer pelo arguido, quer pelo controlador de tráfego aéreo, a localização de aterragem da aeronave, que declarou a emergência de voo.
Como foi confirmado pelas testemunhas com conhecimentos técnico de voo, DDD, MMM, HHH, a declaração “mayday” tem subjacente uma regra lógica de segurança, ou seja, em situação de comunicação de emergência “mayday” quanto mais preciso se for melhor de modo a que, aquando da receção de tal expressão, sejam imediatamente acionados e disponibilizados meios de auxílio e socorro à aeronave (existe para busca e salvamento).
Neste sentido, note-se o teor do auto de transcrição da comunicação estabelecida, pelas 15h49, entre a torre de controlo e CMI (testemunha BBB), constante de fls. 26 ao apenso III: “CMI: “Cascais! Cascais! É o Mike India. Está a copiar o aeroescola que aterrou na praia?”; Torre controlo: “Negativo. Neste momento não consigo copiar. CMI: “Eu estou a fazer relé.
Eles preci.. Eles feriram pessoa na praia, pedem uma ambulância para a zona com urgência. É na Cova do Vapor. Eu tou de qualquer forma a caminho para ver a zona certa.” Torre controlo: “Já está os meios, todos os meios já estão a ser accionados. CMI: ele está a reportar que tem feridos na praia. Aeroescola, está a escutar o Mike India? São pessoas da praia, portanto vocês do avião tão bem? Já estão os sistemas todos ativados aqui com Cascais, eu confirmei agora. Tou no Mike India, só para ver a vossa posição, tou aqui a caminho, ainda na baia de Cascais.”
Em momento algum da comunicação estabelecida entre o arguido e a torre de controlo, foi por aquele mencionada a localização onde a aeronave se encontrava, nem lhe foram solicitadas tais coordenadas, que são fornecidas em tempo real pelo radar ao controlador de tráfego aéreo, como mencionado pela testemunha DDD, comandante da TAP.
A testemunha GG (aluno) relatou, igualmente, que, após o arguido assumir o voo da aeronave Cessna 152, este persistia na tentativa de colocar o motor da aeronave em funcionamento, esclarecendo que este o fez várias vezes mesmo depois da comunicação ter sido efetuada, pois dava à ignição e parecia que queria funcionar.
O barulho decorrente das tentativas de colocar o motor da aeronave em funcionamento foi igualmente mencionado por algumas pessoas que se encontravam na praia, tendo ficado com essa perceção as testemunhas VV (“barulho intermitente”), XX (“barulho estranho” e “não era barulho normal, não era constante”), ZZ (“barulho de motor”) e TT (“barulho do motor a tentar ligar o motor”), que se encontravam, à data dos factos, no areal das praias de São João.
Assim, conjugados estes relatos entre si, conclui-se que, enquanto o arguido tinha a direcção efetiva do avião, tal como descrito no facto provado 31, continuava a realizar sucessivas tentativas de colocar em funcionamento o motor da aeronave que pilotava, nas circunstâncias descritas nos factos provados 34 e 38. Não ficou, por isso, demonstrado que o arguido tenha persistido na realização de tais procedimentos durante cerca de 50 segundos (facto não provado c).
Tão-pouco resultou demonstrado, de acordo com o acervo probatório supra elencado, que, ao tentar colocar repetidamente o motor da aeronave em funcionamento, o arguido tenha focado apenas atenção nessa tarefa, nem que tal o tivesse determinado a alhear-se do solo, perdendo o controlo das referências de navegação (altitude e posição relativa no terreno) da aeronave (facto não provado d.).
Neste particular, a testemunha GG (aluno) afirmou que, no interior da cabine da aeronave Cessna 152, teve de desviar-se ligeiramente para permitir ao arguido fazer a manobra de rodar a chave da ignição.
Ora, da localização dos comandos do primer e dos magnetos, no lado esquerdo do painel de instrumentos existente na cabine da aeronave, onde se encontrava sentado o aluno (cfr. auto de diligência a fls. 108 e 109 e fotografias da aeronave de fls. 121 a 132, nomeadamente o interior de fls. 124, 131 e 132) não se extrai, sem mais, que o arguido, ao inclinar-se para a esquerda e manuseá-los na tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento, tivesse perdido a perceção/consciência situacional (facto não provado h.).
Neste particular, ficou demonstrado à saciedade em audiência de julgamento que a aeronave Cessna 152 é um “single pilot engine” com monomotor de asa alta, toda em metal, tendo dois lugares e equipado com trem de aterragem fixo, do estilo triciclo (facto provado 11.).
Do Manual de Gestão de Procedimentos de Segurança, que constitui o Apenso II-A (vol. 2), página 1-13, consta que a “aeronave mono piloto: significa uma aeronave certificada para operação por um piloto”, ou seja, é uma aeronave dirigida por um só piloto, tornando-se exigível que este saiba executar os procedimentos de emergência de forma autónoma e independente.
Neste particular, o PPP esclareceu, conforme consta dos esclarecimentos ao relatório pericial de fls. 3838 e seguintes, que é possível a um instrutor, manusear a maioria desses instrumentos sem necessidade de olhar para eles e efetuar os procedimentos para colocar o motor em funcionamento sem olhar para os mesmos e, consequentemente, sem perder, de forma permanente a perceção/consciência situacional.
Outrossim, a testemunhas CCC, na qualidade de piloto e instrutor de voo, afirmou que o piloto tem a sua atenção dividida, não perde totalmente o controlo da navegabilidade, e um instrutor experiente consegue fazer as duas coisas ao mesmo tempo; conseguem fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo, tudo feito ao mesmo tempo, habitualmente num avião destes.
Com efeito, concatenada a prova produzida em audiência de julgamento, nos termos supra expostos, resultou provado que o arguido executou essas operações de forma ininterrupta entre os factos provados 26 e 31, bem assim como ficou demonstrado que as executou posteriormente, após ter assumido o controlo do planeio de voo da aeronave, mantendo a rumar a sul até quase tocar o solo (facto provado 34).
No que respeita ao facto provado 35, não se suscitam dúvidas que o arguido não aterrou na praia da Cova do Vapor e, por força de tal, seguiu na direção do areal da praia de São João da Caparica.
As circunstâncias descritas no facto provado 36 decorrem das declarações do arguido e do depoimento das testemunhas GG (aluno), QQ, RR, AAA, II, VV, WW, XX , ZZ, SS, JJ, HH, TT, UU e YY, estes presentes no areal das praias de São João, bem assim da visualização do vídeo constante do CD e auto de visionamento de imagens, de fls. 42 a 44, de onde se extrai que pelas 15:48:29 UTC (16:48:29 hora local), a aeronave Cessna 152 surgiu na praia de São João da Caparica, proveniente da praia da Cova do Vapor, tendo em momento imediatamente anterior sobrevoado o pontão que as separa, seguindo no sentido do areal daquela praia.
Neste particular, importa considerar que não existem registos do radar, pelo que se desconhece em concreto quer a altitude, quer a velocidade da aeronave, no momento final da aproximação da aeronave ao solo.
Outrossim, quer o arguido, quer a testemunha GG (aluno) descreveram a aeronave com atitude de nariz elevado. Neste sentido, também a testemunha ZZ, que além de possuir conhecimentos técnicos (obteve o brevet de piloto, embora não exerça), encontrava-se no areal da praia de São João, relatou de modo espontâneo e claro que a aeronave vinha com atitude de nariz para cima. Assim, não se suscitam dúvidas acerca da atitude da aeronave.
No que respeita a utilização dos “flaps”, quer o arguido, quer a testemunha GG (aluno) confirmaram terem sido colocados por aquele em momento anterior à aterragem da aeronave.
Por sua vez, a testemunha RR, ex-mecânico da força aérea, que também se encontrava no areal da praia de São João, afirmou de forma clara e segura que, quando se abeirou da aeronave, imobilizada no chão, verificou que os “flaps” se encontravam acionados.
Neste sentido, também a testemunha DDD, enquanto piloto a exercer funções como comandante na TAP, que além de esclarecer que os “flaps” são superfícies que aumentam a asa da aeronave que permite voar mais devagar, quer na aterragem, quer na descolagem, confirmou, mediante a visualização de fls. 35, que os “flaps” da aeronave Cessna 152 estavam acionados, asseverando que se encontravam posicionados na configuração que é suposto.
Assim, pese embora se suscitem dúvidas acerca do concreto momento do acionamento dos “flaps” da aeronave, os depoimentos consentâneos destas duas testemunhas permitem ao Tribunal concluir que, quando a aeronave aterrou no areal da praia de São João, o arguido acionara os “flaps” em momento anterior (facto provado 37 e facto não provado f.).
A factualidade descrita em 39 resultou do depoimento prestado pela própria testemunha GG (aluno), que admitiu ter ligado e desligado as luzes da aeronave com o intuito de, face à iminência da aterragem, avisar as pessoas que ali se encontravam para se afastarem da trajectória desta. Tal circunstância foi mencionada pelo arguido e, também, pela testemunha HH, que se encontrava no areal da praia de São João.
A factualidade descrita como provada em 40 e 42 resultou dos depoimentos das testemunhas OO, PP, QQ, AAA, HH, II, JJ, VV, WW, XX, ZZ, SS e YY, todos presentes no areal da praia de S. João da Caparica, bem assim das testemunhas que se deslocaram ao local do acidente pouco depois, nomeadamente o subchefe da Polícia Marítima, MM, que se encontra no exercício de funções e competência, tendo elaborado o auto de notícia de fls. 3, e a testemunha BBB (piloto identificado como CMI nos autos de transcrição, nos termos supra mencionados), que tirou as fotografias de fls. 1331 e ss..
A factualidade considerada provada em 41 foi relatada pelos assistentes BB, CC, DD e EE, bem assim as testemunhas OO e PP, que se encontravam na praia com as vítimas. Atendeu-se, igualmente, ao teor do assento de nascimento de LL a fls. 535 (3.º vol.) e do assento de nascimento de KK a fls. 541 (3.º vol.).
A dinâmica dos factos considerados provados de 43 a 48 foi relatada pelo arguido e pelos assistentes BB, CC, DD e EE, bem assim pelas testemunhas OO, PP, QQ, II, VV, WW, XX, HH (afirmou que estava próxima da primeira vítima, viu este embate, após o que o avião subiu), TT, UU e YY, que se encontravam, todos, no areal da praia de São João. A testemunha GG (aluno) confirmou ter a perceção que a aeronave saltou, subiu e depois ficaram.
Do relatório de exame pericial (vestígios no nariz da hélice) a fls. 937 a 938 (4.º vol.) e do relatório de exame pericial (dano no nariz da hélice) a fls. 1254 e 1255 (5.º vol.) extrai-se a rutura parcial da asa esquerda, decorrente do embate com a roda de nariz, hélice e trem principal direito (facto provado 43).
Contudo, a conjugação deste acervo probatório não permite concluir, sem mais, que a aeronave estava sem qualquer controlo por banda do arguido (facto não provado g.), atentas as concretas condições da aterragem forçada, designadamente o tipo de superfície/solo e o vento de cauda (rumo de noroeste), que era de 20 a 30km/h (11 a 17 kt), atingindo a intensidade máxima instantânea entre 40 a 50 km/h (22 a 27 kt).
Atendeu-se, igualmente, ao auto de visionamento de imagens e CD, constante de fls. 42 a 44, onde se verifica que, cerca das 15:48:29 UTC (16:48:29 hora local), a aeronave Cessna 152 surgiu na praia de São João da Caparica, proveniente da praia da Cova do Vapor, em perda de sustentação aerodinâmica, embateu na areia molhada, passou por um canal de agueiro e continuou a rolar até imobilizar-se (factos provados 45 e 46).
Neste particular, importa salientar que, ao longo da audiência de julgamento, procedeu-se à visualização do vídeo constante do CD e auto de visionamento de imagens, de fls. 42 a 44, algumas das quais no decurso da inquirição das testemunhas com conhecimentos técnicos acerca do voo da aeronave.
De forma consentânea, as testemunhas afirmaram ter muitas dúvidas acerca do que teriam feito de diferente em circunstâncias idênticas, atenta a posição situacional da aeronave (altitude e posição relativa no terreno) e tendo sido executado o planeio de voo desta com vento de cauda com a intensidade estimado, para de seguida admitir que procederia da mesma forma.
Da conjugação do teor do relatório de autópsia médico-legal de KK a fls. 419 a 422 (2.º vol.) e aditamento a fls. 796 a 797 (4.º vol.) e auto de diligência externa com reportagem fotográfica com exame à aeronave, a fls. 28 a 40, elaborado pela testemunha NN, , agente de 1.ª Classe da Polícia Marítima; auto de diligência de fls. 108 e 109 com fotografias da vista exterior e interior da aeronave de fls. 121 a 132 com simulação de embate na vítima KK; o relatório de exame pericial (observação e recolha de vestígios na aeronave) de fls. 164 a 170 (1.º vol.); o relatório de exame pericial (pesquisa de vestígios biológicos, análise de ADN e estudo comparativo) de fls. 279 a 280 (2.º vol.), decorrem as circunstâncias em que a aeronave embateu na vítima KK.
Outrossim, do relatório de autópsia médico-legal de LL a fls. 427 a 430 (2.º vol.) e aditamento a fls. 794 a 795 (4.º vol.) e auto de diligência externa com reportagem fotográfica com exame à aeronave, a fls. 28 a 40, elaborado pela testemunha NN, , agente de 1.ª Classe da Polícia Marítima; o relatório de exame pericial (observação e recolha de vestígios na aeronave) de fls. 164 a 170 (1.º vol.); o relatório de exame pericial (pesquisa de vestígios biológicos, análise de ADN e estudo comparativo) de fls. 279 a 280 (2.º vol.), decorre que a factualidade relativa ao embate da aeronave no corpo da vítima LL.
Do depoimento da testemunha NN, agente da Polícia Marítima, conjugado com o auto de diligência externa, por si elaborado, de fls. 28 a 30, e reportagem fotográfica com exame à aeronave de fls. 31 a 40, bem assim a última informação remetida pelo GPIAAF e fotografias anexas de fls. 5974 a 5983 (21.º vol.) decorre que entre o primeiro embate no solo, que ocorreu apenas com uma das rodas, e a imobilização total da aeronave, esta percorreu um total de 245 metros (factos provados 48 e 49).
Neste particular, talqualmente esclarecido pelo PPP e pelas testemunhas DDD, FFF e NNN, com conhecimentos técnicos, o sistema de travagem da aeronave Cessna 152 só funciona no solo, ou seja, quando as três rodas da aeronave tocaram o solo.
Ademais, na senda da explicação elaborada pelas testemunhas GGG e KKK, também com conhecimentos técnicos, a distância percorrida pela aeronave no solo depende de múltiplos fatores, entre os quais, o tipo de superfície/solo, as condições meteorológicas (e.g. vento, que segunda a testemunha MMM, piloto e instrutor, esclareceu que o vento de frente diminui, enquanto o vento de cauda aumenta muito mais do que os outros factores conseguem reduzir), o peso da aeronave e a capacidade de travagem do aparelho, não apenas da intensidade do seu acionamento.
“As tabelas de corrida de aterragem são estabelecidas no manual, entrando em linha de conta com uma pista “normal” de aterragem, ou seja, de alcatrão. Na prática, quanto mais irregular e maior o atrito, menor será a distância de aterragem e quanto menor irregularidade e menor atrito maior será a distância de aterragem. As duas situações apontadas atrás, conjugam-se com o factor vento assim, caso aterre com o vento de frente menor será a distância de aterragem e com vento de 43 de 66Processo: 48/17.6MCLSB cauda (como foi o caso) maior será a distância de aterragem. O atrito/resistência extra, causada por areia molhada, poças de água e/ou consistência da areia também influenciará a corrida de aterragem.”, conforme mencionado pelo PPP (vide relatório pericial de fls. 3539).
Em sede de audiência de julgamento, quer o arguido AA, quer a testemunha GG (aluno), enquanto únicos ocupantes da aeronave, admitiram que os travões da aeronave foram utilizados.
Esta circunstância não resultou contrariada em audiência de julgamento, porquanto nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento logrou esclarecer, mediante a observação dos rastos de travagem visualizados nas imagens de fls. 31 e ss., e infirmar que o sistema de travagem tivesse sido acionado. Assim, o Tribunal considerou provado o facto vertido em 50.
No que respeita os factos provados 51 e 52, atendeu-se às declarações tomadas ao arguido e ao depoimento da testemunha GG. Neste particular, importa salientar que a testemunha III, instrutor e examinador de pilotos, esclareceu que a aeronave Cessna 152 não tem hipótese de trancar portas.
Os factos provados 53 a 57 resultaram do auto de diligência externa com reportagem fotográfica com exame à aeronave, a fls. 28 a 40, elaborado pela testemunha NN, agente de 1.ª Classe da Polícia Marítima; o exame médico e a documentação clínica e CD a fls. 274 a 276 relativa a II, a fls. 1847 (7.º vol.) e o exame médico e a documentação clínica a fls. 187 a 189, ambos relativa a HH, a fls. 1848 (7.º vol.), bem assim o relatório de autópsia médico-legal de KK a fls. 419 a 422 (2.º vol.) e aditamento a fls. 796 a 797 (4.º vol.); o relatório de autópsia médico-legal de LL a fls. 427 a 430 (2.º vol.) e aditamento a fls. 794
a 795 (4.º vol.).
Relativamente à factualidade assente em 58 e 59, não se suscitaram dúvidas, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, que aquando da falha do motor não era viável o regresso da aeronave ao Aeródromo de Cascais para aterragem forçada sem potência, nem era praticável a amaragem do Cessna 152.
Neste particular, em audiência de julgamento, quer o PPP (cfr. Relatório pericial de fls. 3539 e seguintes), que define a hipótese da aeronave proceder a uma mudança de rumo equivalente a 180º ou 90º como sendo contra natura pois estaria em descida acentuada, devido à volta, e a prosseguir para uma zona fortemente habitada e com muito poucas probabilidades de, após a volta, encontrar um local adequado para uma aterragem forçada), quer os depoentes na qualidade de pilotos, foram unânimes em asseverar que o regresso ao Aeródromo de Cascais para aí proceder a aterragem forçada seria impossível de concretizar, considerando o vento de cauda e a altitude em que ocorreu a falha do motor daquela aeronave.
A testemunha DDD, piloto e comandante da TAP, afirmou, em audiência de julgamento, que a Norte do Rio Tejo, é muito habitacional, é um desastre certo.
Neste sentido, também, a testemunha III, instrutor e examinador de pilotos, confirmou que o comandante não podia manobrar a aeronave na zona norte, tinha de direcionar o avião em linha reta, pedindo ajuda ao aluno, ou seja, manter-se em linha direita e com as asas direitas.
Assim, resultou provado que o regresso da aeronave ao Aeródromo de Cascais para aterragem forçada sem potência da aeronave não era viável, por ter de proceder a uma mudança de rumo de 180º e, consequentemente, descida acentuada da aeronave, o que levaria a que se ndespenhasse antes de chegar à pista (facto provado 58).
Outrossim, o PPP esclareceu que “a morfologia deste tipo de aeronave com asa alta e trem fixo em nada é “amiga” de uma amaragem, pois há uma tendência de capotar ao tocar na água assumindo uma posição invertida ou, se por casualidade, isso não acontecesse iniciar-se-ia o seu afundamento rápido até as asas mergulhando os ocupantes.”, vide relatório pericial de fls. 3539 e seguintes.
Como mencionado pela testemunha III, instrutor e examinador, a aeronave Cessna 152 não está feita para amarar.
Dos depoimentos das testemunhas com conhecimentos técnicos de voo resultou que, em Portugal, a manobra de amaragem não é ensinada nas escolas de aviação, nem é realizada a simulação da mesma nas formações.
Da conjugação deste acervo probatório decorre que, por se tratar de uma aeronave com asa alta e trem fixo, não sendo ministrada, nem simulada tal manobra, em formação, a amaragem do Cessna 152 não era praticável, sendo reputada como uma manobra perigosa (facto provado 59).
As características da praia da Cova do Vapor, descritas no facto provado 60, encontram-se evidenciadas nos documentos remetidos pela NAV e respetivo suporte digital (Plano de voo, plots radar, gravação das comunicações efetuadas) e mapas GoogleEarth, constantes do apenso III, bem assim das tirou fotografias de fls. 1331 a 1334 (5.º vol.) tiradas pela testemunha BBB, piloto que à data dos factos, sobrevoou a zona do acidente, complementadas pelo relato do próprio em audiência de julgamento e do depoimento da testemunha PP.
Ora, provou-se que a aeronave Cessna 152, que tinha previamente definida a rota pelo túnel de saída de Lisboa para Sul, continuou a seguir rumo a Sul, sobrevoando o rio Tejo em direção à extensão das praias numa atitude de descida, atentas as leis da física.
Ficou igualmente demostrado que, naquele dia, o vento soprava com rumo de noroeste, rodando para norte, atingindo a intensidade máxima instantânea entre 40 a 50 km/h, ou seja, 22 a 27 kt.
O mesmo é afirmar que o vento soprava com rumo de noroeste, ou seja, na direção do voo da aeronave (“vento de cauda”), em relação à superfície da terra, o que determinava o aumento da velocidade desta em relação ao solo.
Tal como explicado pelas testemunhas com conhecimentos técnicos de voo da aeronave, designadamente LLL, III, KKK, MMM, uma aterragem com vento de cauda exige mais distância de pista de pouso, porquanto leva a que a aeronave toque a pista com velocidade mais elevada.
Assim, naquelas circunstâncias, atenta a razão de descida, as características terrestres do local e as condições meteorológicas, a extensão de praias existente a Sul são o único local elegível para aterragem forçada da aeronave Cessna 152 pilotada pelo arguido, permitindo colocar em prática os procedimentos de emergência, na sequência da falha total de potência do motor.
Como mencionado pelo PPP, era possível efectuar um volta (correção de rumo) para qualquer zona na linha de costa (Sul) que acabou por ser a hipótese escolhida e dessa forma, pela altitude em que se encontravam (mesmo baixa) era viável tentar por o motor em marcha e logo de seguida escolher um local apropriado para uma aterragem forçada.
A testemunha GGG afirmou que a uma altitude de 1000 pés, na escolha do sítio para proceder a aterragem forçada, ao olhar à volta e ver qual é a melhor opção que se tem, e conhecendo a área é mais fácil, a praia, indo em frente, será mais fácil.
A testemunha CCC declarou que, segundo critérios de avaliação rápida, atendendo às características do terreno, a aterragem forçada na praia é muito mais segura.
A testemunha DDD confirmou que, em caso de aterragem forçada, deve ser sempre escolhido o local menos acidentado possível, atendendo às características do terreno, pela falta de obstáculos, “o lugar perfeito é a praia”.
A testemunha KKK confirmou que, naquele lugar, na margem sul, são as praias.
A testemunha MMM asseverou que, considerando o campo nesse ponto, o local de aterragem forçado está praticamente escolhido, é a praia.
A concatenação deste acervo probatório permitiu ao Tribunal considerar provado que, perante a falha de motor da aeronave e seguindo os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, ao arguido AA impunha-se navegar a aeronave a 60 KIAS para a extensão das praias e aí proceder a uma aterragem forçada sem potência, por a aeronave, atenta a razão de descida e o vento de cauda, não se manter a planar até outro local onde não pusesse em risco a vida e integridade física de terceiros, a sua e a do outro ocupante, bem assim a integridade física da aeronave (facto provado 70).
A este respeito, importa considerar que, na elaboração do relatório pericial de fls. 3539 e seguintes e esclarecimentos de fls. 3838 e seguintes, o PPP laborava em erro acerca da localização da praia da Cova do Vapor, pelo que as respostas aí insertas, no que respeita à aterragem forçada ser executada na praia da Cova do Vapor, ficam objetivamente prejudicadas, à exceção da resposta ao quesito 8, cuja resposta foi reformulada, em audiência de julgamento.
Então, o PPP declarou que, na posição N38 40 01.8 W 009 16 25.9, a 500 pés de altitude, com o vento de cauda estimado, persistindo a falha de motor, mostrava-se teoricamente possível ao piloto instrutor navegar a aeronave Cessna 152 para a Praia da Cova do Vapor e aí aterrá-la, mediante a execução de uma manobra de “glissada”, ou seja, comandos deliberados do piloto de modo a apontar o nariz do avião para a esquerda e virar a asa para baixo, leme em sentido contrário.
Esta manobra, realizada através do estado aerodinâmico de uma aeronave mover-se para o lado, em vez de ir a direito, foi descrita pelo PPP como complicada, atenta as condições meteorológicas e a existência, no caso concreto, de um pontão na extremidade sul da praia da Cova do Vapor.
Neste mesmo sentido, também depuseram, na qualidade de pilotos, as testemunhas LLL, III e MMM.
A testemunha LLL afirmou que não é possível aterrar na praia da Cova do Vapor, porque tem dois pontões em cada extrema, sendo uma praia muito curta para uma aeronave a navegar com vento de cauda.
A testemunha III declarou não ser exequível tecnicamente a aterragem naquela praia, por ser curta e a velocidade.
A testemunha MMM confirmou a dificuldade de aterrar na praia da Cova do Vapor.
Deste depoimento decorre que, sendo o vento de cauda, desde logo a perigosidade de sobrevoar o molhe de pedras do primeiro pontão, porquanto, como não tem motor, o avião pode afundar com o vento; se sobrevoar mais alto, encurta a distância no solo disponível para proceder à aterragem, sendo certo que esta praia tem menos terreno do que a praia de São João, onde a aeronave veio a aterrar, pelo que por ser demasiado curta, embateria nas pedras dos pontões. Esta testemunha ademais esclareceu que os dados inseridos nos manuais e previstos pelo fabricante da aeronave da aeronave Cessna têm como valor de referência vento de 10 KIAS, sendo que, à data, o vento que se fazia sentir era muito superior (facto provado 18).
Ademais e como supra se deixou exposto, da visualização do vídeo constante do CD e auto de visionamento de imagens de fls. 42 a 44, no decurso da inquirição das testemunhas com conhecimento técnicos acerca do voo da aeronave, foi evidenciado pelas testemunhas, com conhecimentos técnico de voo deste tipo de aeronave monomotor, que não seria possível, atento o planeio desta com vento de cauda, considerando que soprava com rumo de noroeste, rodando para norte, atingindo a intensidade máxima instantânea entre 40 a 50 km/h, ou seja, 22 a 27 kt, proceder à aterragem forçada na praia da Cova do Vapor, considerando a distância entre os dois pontões nas extremas Norte e Sul.
Concatenado este acervo probatório, não se suscitam dúvidas que, atentas as características da praia da Cova do Vapor descritas em 60., não era exequível ao arguido AA, ao seguir os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, proceder a uma aterragem forçada sem potência, atento o vento de cauda e a razão de descida da aeronave, no espaço da mesma e entre os dois pontões, já que a aeronave não se imobilizaria nessa extensão, mesmo que fossem acionados os “flaps” na aproximação ao solo e aí utilizado o sistema de travagem (facto provado 61).
Confrontado em audiência de julgamento com as características da praia da Cova do Vapor (facto provado 60), o arguido afirmou que não compaginou proceder à aterragem forçada na praia da Cova do Vapor, por não a ter visto, tendo sobrevoado a mesma.
Contudo, atentos os elementos probatórios supra referidos, mesmo que o arguido tivesse equacionado proceder à aterragem forçada sem motor na praia da Cova do Vapor, tal aterragem não se mostraria possível, nos termos supra referidos.
No que respeita à convicção acerca da atitude interna do arguido, a prova dos factos atinentes ao elemento subjetivo e à culpa decorrem, por dedução, daqueles que forem demonstrados e que concernem aos factos objetivos considerados como provados, analisados conjunta e criticamente segundo os princípios da experiência comum.
Desde logo, o arguido admitiu conhecer as prioridades a seguir como piloto de aviação quando confrontado com a emergência em pleno voo de falha de motor, a saber, voar o avião (usar os controlos e instrumentos de voo para direcionar a atitude, velocidade e altitude daquele); navegar o avião (perceber onde está e para onde vai voar) e, por fim, comunicar (com o controlo de tráfego aéreo ou com alguém que esteja fora do avião se, para tal, tiver tempo), o que, considerando a sua experiência profissional, não podia deixar de saber e admitir (facto provado 62).
O arguido admitiu, também, saber que, numa situação de emergência como a ocorrida, devia seguir os procedimentos indicados no Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152 (facto provado 63).
Ademais, o arguido admitiu saber que, perante a falha do motor em voo, devia escolher o local para aterrar e tentar o arranque do motor conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, e que, frustrando-se tal tentativa de colocar o motor em funcionamento, devia navegar a aeronave para aquele local e proceder a uma aterragem forçada sem potência, cumprindo os procedimentos de segurança naquele manual, nos termos descritos no facto provado 64.
Igualmente o arguido confirmou ter definido a extensão de praias como o local a aterrar e instruir o aluno a voar em frente nesse sentido, por ter conhecimento que, perante a falha de motor da aeronave Cessna 152, ocorrida entre os 1200 a 1100 pés de altitude, podia e devia, desde logo, eleger o local para aterrar, tomando em consideração o rumo do vento, que soprava com rumo de noroeste (vento de cauda) e a melhor velocidade de planeio (60 KIAS) (facto provado 65).
Assim, ao definir a extensão das praias como o local para aterrar a aeronave e determinar o aluno a voar em frente, nesse sentido, aí procedendo a uma aterragem forçada sem potência, com vento de cauda, onde se encontravam pessoas, o arguido sabia, como não podia deixar de saber, que, caso algumas delas se cruzasse no percurso da aeronave, a vida e integridade física das mesmas ficaria em perigo, o que confiou que não ocorreria (facto provado 66).
A factualidade descrita como provada em 68 e 69, resultou das declarações tomadas ao arguido, ao declarar saber, por um lado, que não lograria proceder a uma manobra de mudança de
rumo de 180º e alcançar a pista do Aeródromo de Cascais para aí proceder à aterragem forçada sem potência da aeronave; e por outro que a amaragem do Cessna 152 não era praticável, atentas as características da aeronave e por nunca ter realizado ou simulado tal manobra, nem ser ministrada essa formação em Portugal, sendo, por isso, uma manobra perigosa para a sua vida e integridade física e a vida e integridade física do outro ocupante, bem assim para a integridade da aeronave.
Das declarações tomadas ao arguido resultou evidente que sabia que a sua vida e integridade física e a vida e integridade física do outro ocupante do Cessna 152, seu aluno, estavam em perigo, bem assim como a integridade da aeronave, pelo que, ao agir como agiu, executando os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, o arguido quis executar a aterragem forçada da aeronave, que se encontrava em atitude de descida e com vento de cauda, da forma mais segura possível para si e para o outro ocupante, seu aluno (facto provado 67).
Relativamente ao facto não provado a., considerou-se negativamente tal circunstância alegada pela defesa em sede de contestação, uma vez que ficou demonstrado que se situava entre os 1100 e 1200 pés de altitude, no circunstancialismo considerado provado nos factos 21 e 22 (facto provado 23).
Tão-pouco se demonstrou, como alegado pela defesa, também em sede de contestação, que, a essa altitude, o arguido AA tivesse escolhido o ponto de aterragem, ou seja, esse “aiming point” com intenção de aterrar numa zona de agueiro a poucos metros de distância do local onde a aeronave se imobilizou, por lhe parecer o mais seguro e mais distante da zona onde havia maior concentração de pessoas, naquele momento (facto não provado b.). Atentos os argumentos supra aduzidos, na sustentação do facto provado 25, esse relato do arguido não colheu verosimilhança.
Relativamente ao facto não provado c., ficou demonstrado em audiência de julgamento que o arguido iniciou os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento, nas circunstâncias provadas em 26, 27 e 28, tendo continuado a realizar sucessivas tentativas de colocar em funcionamento o motor da aeronave que pilotava, nas circunstâncias descritas nos factos provados 34 e 38, sendo o lapso temporal superior a cinquenta segundos (facto não provado c).
No que respeita ao facto não provado d., tal como supra se deixou consignado, nem o arguido admitiu tal circunstância, nem foi mencionada pela testemunha GG (aluno), não tendo estes relatos dos únicos ocupantes da aeronave sido objetivamente contrariados em audiência de julgamento.
Assim e uma vez que ficou demonstrado que o arguido executou os procedimentos de tentativa de colocação do motor em funcionamento, nas circunstâncias consideradas provadas em 26, 27, 28, 34 e 38, ou seja, em momento anterior e posterior a assumir o controlo do planeio de voo da aeronave, que tem natureza de “single pilot engine” (facto provado 11), resultou como não provado que aquele tivesse perdido o controlo das referências de navegação (altitude e posição relativa no terreno) da aeronave (facto não provado d.).
A factualidade considerada não provada em e. resultou de se ter concluído que, perante a falha de motor da aeronave e seguindo os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, não era viável ao arguido navegar a aeronave a 60 KIAS e proceder a uma aterragem forçada sem potência na praia da Cova do Vapor, atento o vento de cauda e a razão de descida da aeronave, que não se imobilizaria na extensão de areia dessa praia, ladeada por pontões, ainda que fossem acionados os “flaps” na aproximação ao solo e aí utilizado o sistema de travagem.
No que concerne aos factos não provado f. e g., respondeu-se negativamente na senda da argumentação supra aduzida quanto aos factos provados 36, 37 e 43, respetivamente.
Os factos não provados h., i., j., l. e m. assim se consideraram por ausência de prova que, de forma conclusiva e inequívoca, os sustentasse, tal-qualmente decorre dos argumentos supra evidenciados a respeito dos factos provados 25., 26, 27, 28, 30, 31, 32, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68 e 69.
Com efeito, ficou demonstrado, em audiência de julgamento, que perante a falha do motor àquela altitude e, consequentemente, iniciando a aeronave uma atitude de descida a partir desse momento, o arguido (piloto no comando) definiu a extensão das praias como o local para aterrar (navegar o avião) e determinou ao aluno que voasse em frente, mantendo o rumo no sentido sudoeste, a uma velocidade de 60 KIAS (eleita melhor velocidade de planeio pelo fabricante Cessna 152), após o que iniciou os procedimentos de tentativa de colocação do motor da aeronave em funcionamento (voar o avião), o que não logrou, tendo de seguida assumido o controlo de planeio do voo da aeronave Cessna 152 e comunicado a emergência com o controlo de tráfego aéreo, na sequência do que procedeu a uma aterragem forçada, nos sobreditos termos e em cumprimento dos procedimentos indicados no Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152.
Ficou, igualmente, assente que o arguido AA sabia que, numa situação de emergência como a ocorrida, devia seguir os procedimentos indicados no Manual Operacional do Piloto (POH) da aeronave Cessna 152, que executou, ao agir como agiu, porquanto, perante a falha de motor da aeronave Cessna 152, ocorrida entre os 1200 a 1100 pés de altitude, o arguido AA podia e devia, desde logo, eleger o local para aterrar, tomando em consideração o rumo do vento, que soprava com rumo de noroeste (vento de cauda) e a melhor velocidade de planeio (60 KIAS), o que o determinou a definir a extensão de praias como o local a aterrar e instruir o aluno a voar em frente nesse sentido.
O arguido AA, ao ser confrontado com a emergência em pleno voo de falha de motor, sabia que a sua vida e integridade física e a vida e integridade física do outro ocupante do Cessna 152 estavam em perigo, bem assim como a integridade da aeronave, pelo que, ao agir como agiu, executou os procedimentos conforme previsto no Manual Operacional do Piloto (POH) do Cessna 152, e procedeu à aterragem forçada da aeronave, que se encontrava em atitude de descida e com vento de cauda, da forma mais segura possível para si e para o outro ocupante, seu aluno, o que quis e conseguiu, nos sobreditos termos, considerando que não era viável o regresso da aeronave ao Aeródromo de Cascais (facto provado 58) ou a amaragem do Cessna 152 em segurança (facto provado 59), nem a aterragem forçada sem potência na praia da Cova do Vapor (facto provado 61)
Nesta senda, não se provou que o arguido AA sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
A ausência de antecedentes criminais decorre do certificado de registo criminal e a situação pessoal e social do arguido resultou do teor do respetivo relatório social elaborado pela DGRSP junto aos autos, que antecede.
No despacho que declarou aberta a instrução, foi julgado procedente o incidente de recusa de perito - QQQ - e, em consequência, declarada nula a perícia por aquele realizada em 22.11.2018, denominada de “junto “Auto de reconstituição”, constante de fls. 1402 a 1405, bem como os esclarecimentos por si prestados posteriormente. Assim, não se podem atender a tal meio de prova.
No despacho de pronúncia (fls. 4036 e seguintes, 15º vol.), foi igualmente declarado método proibido de prova o relatório final elaborado pelo GPIAAF, o qual constitui o apenso IX), porque elaborado, ainda que apenas parcialmente, mediante recurso a prova obtida com manifesta compressão do direito à não auto incriminação ínsito no princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
(…)
3.3. INTRODUÇÃO
a). Recurso do Ministério Público
O Ministério Público (MP) sustenta a existência de erros de facto e de direito na decisão de absolvição, fundamentando seu recurso em pontos-chave que considera essenciais para uma decisão condenatória.
. Erro na valoração da prova testemunhal e pericial
Posição do MP: O MP argumenta que o tribunal de primeira instância incorreu em erro ao valorar as provas testemunhais e periciais, atribuindo valor indevido a algumas declarações e desconsiderando outras provas que deveriam, na visão do MP, ter conduzido a uma condenação.
Acórdão e fundamentação: O acórdão de primeira instância fundamenta a absolvição do arguido na sua actuação em conformidade com os procedimentos de emergência, interpretando as acções do arguido como razoáveis e prudentes, à luz das provas e testemunhos apresentados.
. Normas de cuidado e responsabilidade por omissão das Leges Artis
Argumentação do MP: O MP sustenta que o arguido falhou no cumprimento das normas de cuidado previstas nos manuais da aeronave e nos regulamentos de aviação ao tentar religar o motor durante mais de 50 segundos em vez de imediatamente decidir o local de aterragem.
Prejudicialidade: A aceitação desta argumentação pode, desde logo, prejudicar a apreciação de outras questões do recurso do MP e dos Assistentes, pois a condenação pelo não cumprimento das normas de cuidado pode ser suficiente para reformar a decisão.
b). Recurso dos Assistentes
Os assistentes apresentaram um recurso paralelo ao do MP, igualmente com a intenção de reverter a absolvição do arguido, focando-se em alegados vícios e insuficiências na fundamentação do acórdão.
. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, al. a) do CPP)
Alegações dos Assistentes: Os assistentes alegam que a acórdão carece de fundamentação suficiente para justificar a absolvição, sendo omissa quanto a determinados factos que, se tivessem sido considerados, poderiam ter levado à condenação do arguido.
Fundamentação do acórdão: O acórdão defende a posição de que a escolha do arguido foi a melhor possível em função das condições e que a tentativa de reiniciar o motor foi legítima.
. Erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP)
Fundamento dos Assistentes: Os assistentes consideram que o tribunal cometeu um erro notório ao desconsiderar o depoimento do perito que, segundo eles, atestou que o arguido podia e devia ter optado por outro local de aterragem. O acórdão teria, assim, ignorado o quadro fático e técnico que indicava uma conduta negligente.
Fundamentação no acórdão: O acórdão confere legitimidade à tentativa de reactivação do motor, desconsiderando que essa opção foi contra os manuais e procedimentos padronizados, que recomendam a escolha imediata do local para aterragem.
. Prejudicialidade do pedido alternativo e do dano causado pela conduta do Arguido
Caso os argumentos de insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório sejam acolhidos, não haverá necessidade de examinar outros pontos do recurso dos assistentes, pois uma eventual reforma do acórdão para condenação, com base nesses argumentos, esgotaria o objecto do recurso.
3.4. APRECIANDO
3.4.1. ESTRUTURA DA APRECIAÇÃO
i. Introdução Geral e Enquadramento Processual
. Contextualização dos recursos apresentados (MP e assistentes).
. Resumo da decisão de primeira instância e fundamentação da absolvição.
ii. Delimitação das normas de cuidado na Aviação
. Conceitos doutrinários sobre as normas de cuidado e “leges artis” aplicáveis.
. Análise detalhada dos regulamentos internacionais e nacionais que estabelecem as normas específicas (Convenção de Chicago, Regulamento (UE) n.º 923/2012, entre outros).
. Contextualização das normas de segurança aplicáveis ao caso em análise, como a importância dos manuais técnicos e das práticas de segurança na decisão imediata de aterragem em caso de falha do motor.
iii. Ações do Arguido e interpretação das normas de cuidado
. Descrição detalhada das acções do arguido durante a emergência.
. Contraposição da conduta do arguido aos manuais e normas de cuidado, com referência aos procedimentos estabelecidos para situações de emergência em aviação.
. Argumentação que possa demonstrar a violação das normas pela insistência na tentativa de reanimação do motor, em detrimento da escolha imediata de um local de aterragem seguro.
iv. Erro de julgamento da primeira instância: valoração probatória e motivação
. Análise crítica da decisão da primeira instância, centrada na valoração da prova testemunhal e pericial.
. A decisão ignorou as conclusões técnicas que recomendavam a escolha imediata do local de aterragem?
. Exploração da doutrina e da jurisprudência quanto à relevância de seguir as normas técnicas específicas.
v. Doutrina e jurisprudência relevante sobre normas de cuidado em contexto de risco e negligência na aviação
. Recolha e desenvolvimento de doutrina nacional e internacional sobre responsabilidade objectiva e normas de cuidado.
. Apresentação de jurisprudência para a condenação em casos de negligência na aviação (ex. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça em casos de falha de cumprimento das normas de segurança).
vi. Responsabilidade objectiva e elementos de negligência no Direito Penal Português
. Discussão doutrinária e análise de jurisprudência quanto à responsabilidade objectiva e os elementos constitutivos da negligência.
. Aplicação ao caso, no sentido de saber se o arguido, ao não observar as normas de segurança, incorreu em uma responsabilidade penal.
vii. Conclusão e síntese argumentativa para uma decisão
. Recapitulação dos principais argumentos.
. Fundamentação, se for caso disso, para uma decisão que sustente a responsabilidade do arguido à luz da doutrina e da jurisprudência aplicáveis, destacando a importância do cumprimento das normas de cuidado em aviação como imperativo legal e moral.
*
3.4. Apreciação II
1. Introdução Geral e Enquadramento Processual
A) Contextualização dos recursos apresentados pelo Ministério Público e Assistentes
Os recursos interpostos no presente processo criminal revelam uma impugnação consistente e bem fundamentada à decisão de absolvição proferida em primeira instância, que absolveu o arguido, um piloto instrutor, da prática dos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa de meio de transporte por ar, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 137.º, n.ºs 1 e 2, e 289.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código Penal Português (CP). O Ministério Público (MP) e os assistentes sustentam que a decisão recorrida incorreu em erros de facto e de direito, não só ao desvalorizar provas essenciais, mas também ao adoptar uma interpretação indevida das normas de cuidado e de segurança exigíveis na aviação, fundamentais para a prevenção de riscos.
Em suma, ambos os recorrentes (MP e assistentes) convergem em afirmar que a sentença da primeira instância falhou ao valorar as acções do arguido em um contexto de emergência, considerando-as prudentes e justificadas. No entanto, sustentam os recorrentes que a conduta do arguido demonstra, pelo contrário, um afastamento das práticas recomendadas e das normas de segurança técnica, especificamente previstas em situações de emergência aeronáutica. Argumentam que o arguido, ao insistir em tentar reactivar o motor após a falha mecânica, desconsiderou as orientações dos manuais e regulamentos de aviação, que exigem uma avaliação rápida e segura do local para aterragem forçada, de forma a minimizar os riscos para pessoas e bens.
B) Resumo da Fundamentação da Decisão de Primeira Instância
A decisão da primeira instância adoptou uma posição que, ao absolver o arguido, considerou que as tentativas de reactivação do motor, ainda que prolongadas, seriam justificáveis pela natureza imprevisível da emergência e pela complexidade da situação em voo. O tribunal de primeira instância concluiu que o arguido agiu segundo as suas melhores capacidades, pautando-se por uma interpretação favorável da prova que, em sua visão, considerou suficiente para demonstrar a ausência de negligência grave.
Todavia, os recorrentes consideram que a sentença:
a. Ignorou aspectos fundamentais das normas de segurança e dos manuais de voo (Pilot’s Operating Handbook – POH).
b. Desvalorizou o depoimento de peritos e testemunhas, que indicaram a necessidade de decidir rapidamente o local de aterragem em caso de falha do motor.
c. Atribuiu um valor desproporcional à tentativa de reactivação do motor, interpretando-a como uma escolha técnica válida, sem atender ao risco acrescido para terceiros que a mesma implicou.
C) Objectivo dos recursos e estrutura da argumentação
Com base nos argumentos apresentados pelos recorrentes, a nossa apreciação visa explorar de forma exaustiva o cumprimento das normas de cuidado específicas em aviação, que definem a responsabilidade e os limites da actuação do arguido em situações de emergência. A estrutura será orientada no sentido de:
a. Saber se o arguido tinha, efectivamente, normas de cuidado bem definidas a seguir.
b. Se a violação dessas normas comprometeu a segurança de terceiros.
c. Apresentar a doutrina e a jurisprudência relevante que sustentem as respostas a apresentar de acordo com os dois elementos a anteceder.
2. Delimitação das normas de cuidado na aviação
A) Conceitos doutrinários sobre normas de cuidado e “Leges Artis”
As normas de cuidado na aviação são expressões técnicas daquilo que a doutrina jurídica descreve como “leges artis”, ou seja, o conjunto de regras técnicas e de precauções que devem ser observadas por profissionais ao realizarem actividades de alto risco, como é o caso da aviação civil. Em situações de emergência, a observância das “leges artis” é ainda mais exigente, pois as decisões tomadas devem, em segundos, reflectir os procedimentos previamente estabelecidos para minimizar riscos a todos os envolvidos — especialmente a terceiros.
A doutrina portuguesa, representada em autores como Jorge de Figueiredo Dias e Eduardo Correia, estabelece que a violação das “leges artis” pode configurar responsabilidade penal, caso sejam verificáveis a previsibilidade e a evitabilidade do resultado. Neste contexto, é fundamental que as decisões do profissional em momentos de crise estejam alinhadas com as práticas convencionadas no seu campo de actuação.
B) Análise das normas de cuidado na aviação: Regulamentos e Manuais
Convenção de Chicago (1944) e Normas Internacionais:
A Convenção de Chicago estabelece os princípios de segurança aérea e, através da Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO), emite orientações específicas para as operações aeronáuticas. A Convenção inclui disposições de segurança que orientam as práticas de aviação civil, recomendando que as normas de cuidado sejam seguidas à risca para proteger a vida e a propriedade de terceiros, especialmente em operações em regiões densamente povoadas, como é o caso deste incidente.
Regulamento de Execução (UE) n.º 923/2012:
Este regulamento estabelece regras gerais para a aviação civil na União Europeia, incluindo a obrigação de operação segura e a prevenção de riscos a terceiros. Em casos de falha de motor, o regulamento prescreve que o piloto deve escolher o local de aterragem mais seguro possível, uma prioridade que está acima de tentativas de reactivação mecânica que possam comprometer a segurança de terceiros. O regulamento salienta que o piloto é responsável por mitigar os riscos para todos os ocupantes e para as pessoas em solo.
Manual do Piloto e Checklists Operacionais (POH do Cessna 152):
O Pilot’s Operating Handbook (POH) do modelo Cessna 152, utilizado pelo arguido, especifica procedimentos claros para casos de falha total de motor. Estes manuais operacionais são documentos normativos e determinam que o piloto deve focar-se em controlar a aeronave e determinar o local de aterragem mais seguro, deixando a tentativa de religação do motor apenas para situações em que o tempo o permita sem colocar em risco a segurança. A checklist operacional do Cessna 152 reforça que, em caso de falha de motor, a prioridade é "ENCONTRAR LOCAL PARA ATERRAR", com a reactivação do motor classificada como secundária e permitida apenas se o tempo e a segurança o autorizarem.
C) Conclusão sobre as normas de cuidado e a expectativa legal
Essas normas de cuidado estabelecem um padrão claro e objectivo para os pilotos em emergência: o local de aterragem deve ser prioritariamente escolhido para garantir a segurança. A doutrina jurídica portuguesa interpreta o não cumprimento dessas normas como uma violação das “leges artis”, que, quando resulta em dano a terceiros, pode configurar negligência grave. No presente caso, a decisão de primeira instância foi contrária ao entendimento doutrinário, pois desconsiderou a prioridade objectiva das normas de segurança em favor de uma interpretação subjectiva da conduta do arguido.
3. Ações do arguido e interpretação das normas de cuidado
A) Descrição das acções do arguido durante a emergência
Com base nas provas documentais, testemunhais e periciais, os factos essenciais indicam que, no momento da falha do motor da aeronave, o arguido:
Iniciou uma série de tentativas de reanimação do motor, que se prolongaram por mais de 50 segundos, desviando-se das orientações de segurança que determinam o foco imediato na escolha de local de aterragem seguro.
Instruiu o aluno a manter a velocidade de 60 KIAS (melhor velocidade de planeio para o modelo Cessna 152), mas sem definir antecipadamente o local onde iriam aterrar.
Persistiu em tentar religar o motor mesmo após ter passado por um ponto onde poderia, segundo a perícia, ter optado pela Praia da Cova do Vapor como área segura de aterragem. Esta decisão ignorou o risco crescente para terceiros na Praia de São João da Caparica, onde a aeronave acabou por aterrar em circunstâncias fatais.
As acções descritas demonstram um afastamento claro das práticas estabelecidas nos manuais operacionais e nas normas de aviação, que, em situações de falha de motor, recomendam ao piloto que priorize a escolha de um local seguro para aterragem, deixando a tentativa de religação do motor para um segundo plano e apenas se as condições o permitirem.
B) Contraposição da conduta do arguido às normas de cuidado e de segurança técnica
Ao analisar as acções do arguido, observa-se uma violação directa e grave das normas de cuidado descritas no Pilot’s Operating Handbook (POH) da aeronave Cessna 152 e nos regulamentos europeus e internacionais sobre segurança em aviação. As normas do POH, que constituem um guia de referência para o piloto, são claras ao definir a prioridade no caso de falha de motor:
a. Escolha do Local de Aterragem como Prioridade: A checklist de emergência do POH do Cessna 152 instrui o piloto a, imediatamente após a constatação da falha de motor, escolher um local de aterragem seguro. Essa prioridade visa mitigar riscos tanto para os ocupantes da aeronave quanto para terceiros em solo, já que uma tentativa prolongada de religação do motor pode comprometer a capacidade de manobra e a escolha de um local seguro.
b. Condições para tentar a reactivação do motor: A reactivação do motor é permitida apenas em condições que não comprometam a segurança, sendo considerada uma acção opcional, que deve ser realizada somente caso a aeronave esteja em uma altitude e situação que permitam ao piloto manter controle e assegurar uma aterragem em local seguro.
c. Decisão no caso concreto: No caso em análise, o arguido ignorou essa ordem de prioridades, ao insistir na tentativa de religar o motor durante um tempo significativo, comprometendo a segurança e a escolha do local de aterragem. Esta conduta, segundo os manuais técnicos, representa uma violação das “leges artis”, pois o arguido tomou uma decisão contrária às normas de segurança, colocando em risco directo as vidas de terceiros.
C) Crítica à fundamentação do acórdão: atribuição de justificativa à conduta do arguido
O acórdão sob censura justificou a decisão do arguido, interpretando a tentativa de religação do motor como uma resposta razoável e prudente. Todavia, essa interpretação contraria directamente o conteúdo dos manuais técnicos e as normas da aviação civil, que têm como objectivo precípuo a protecção de terceiros em solo em casos de falha de motor. Abaixo, destacam-se os principais pontos que demonstram o erro de julgamento no acórdão:
a. Valoração subjectiva da conduta do arguido: O acórdão considerou que o arguido agiu dentro de suas capacidades técnicas ao tentar reactivar o motor, mas essa análise desconsiderou o carácter normativo das checklists operacionais. O tribunal deveria ter avaliado a conduta à luz das “leges artis” — normas que determinam objectivamente o que se espera de um piloto numa situação de emergência. Ao ignorar essa interpretação objectiva, o acórdão adoptou uma visão subjectiva que não condiz com o rigor necessário na valoração de uma conduta em situações de risco.
b. Desconsideração dos riscos para terceiros: A insistência do arguido em tentar religar o motor ignorou o risco crescente para terceiros, que aumentava na medida em que a aeronave se aproximava de áreas densamente povoadas. A sentença omitiu-se em avaliar a necessidade de se proteger as pessoas em solo, conforme é exigido pela doutrina e pela jurisprudência na interpretação das normas de cuidado em actividades de alto risco.
c. Falha na apreciação do nexo causal entre a conduta e o resultado fatal: O acórdão não observou que o prolongamento da tentativa de reactivação do motor comprometeu a capacidade de escolha de um local de aterragem seguro, resultando, assim, na tragédia ocorrida na Praia de São João da Caparica. Ao desconsiderar o nexo causal entre a conduta e o resultado fatal, a decisão de primeira instância omitiu-se quanto ao ponto central da análise sobre a responsabilidade do arguido.
D) Doutrina e jurisprudência sobre o cumprimento das normas de cuidado
A doutrina e a jurisprudência nacionais e internacionais reforçam que a violação das normas de segurança técnica, em especial quando as mesmas são claras e objectivas, como nos manuais de aviação, implica responsabilidade objectiva e culpa grave do agente, se o resultado era previsível e evitável. Abaixo, apresentam-se algumas referências de apoio:
a. Doutrina Portuguesa: Eduardo Correia e Figueiredo Dias destacam que, no campo da negligência, o agente incorre em responsabilidade penal quando age de forma que desconsidera o cuidado objectivo que é exigido pela sua função. Nas actividades de alto risco, como a aviação, essa responsabilidade é ainda mais rígida, pois a falha em observar as normas de segurança pode resultar em consequências irreparáveis.
b. O Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 12/09/2019 (Processo n.º 253/17.4PFLRS), sustentou que a falha em observar normas de segurança específicas para a protecção de terceiros em actividades perigosas, como na aviação, configura negligência grave e deve ser apreciada de forma objectiva. Neste caso, o Tribunal entendeu que o incumprimento das normas de cuidado, quando estas são claras e direccionadas à mitigação de riscos a terceiros, justifica a condenação do agente.
c. Jurisprudência internacional e doutrina comparada: Em casos semelhantes, como o decidido pelo Tribunal Supremo de Espanha (STS n.º 874/2007), foi considerado que a violação de normas técnicas objectivas constitui elemento suficiente para a condenação por negligência, especialmente em profissões de alto risco. A decisão destaca que o agente é responsável por quaisquer danos que resultem do não cumprimento das normas de cuidado, mesmo que não haja intenção directa de causar o resultado.
Em suma, à luz da doutrina, da jurisprudência e das normas técnicas aplicáveis, a conduta do arguido mostra-se negligente por violar as directrizes de segurança estabelecidas nos manuais e regulamentos. A decisão de primeira instância falhou ao interpretar de forma subjectiva uma conduta que deveria ser analisada objectivamente, desconsiderando as obrigações normativas que o arguido tinha de seguir.
4. Doutrina e jurisprudência relevante sobre normas de cuidado em contexto de risco e negligência na aviação
A) Fundamentos doutrinários sobre a responsabilidade por violação das normas de cuidado em actividades de alto risco
Na doutrina, há um consenso consolidado de que actividades de alto risco, como a aviação, exigem um elevado grau de responsabilidade e observância das normas de cuidado específicas. A violação dessas normas técnicas e das “leges artis” configura uma culpa que, embora não seja intencional, é qualificada pela gravidade da consequência previsível e evitável que decorre da conduta. Dois grandes princípios subjacentes a essa fundamentação doutrinária são a responsabilidade objectiva e a culpa consciente ou inconsciente, que elucidaremos a seguir.
. Responsabilidade objectiva e o princípio da protecção de terceiros
a. Segundo a doutrina portuguesa, representada por autores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias e Germano Marques da Silva, a responsabilidade objectiva, ainda que limitada no direito penal português, é um princípio aplicável em actividades que envolvem risco elevado, como a aviação. Estes doutrinadores defendem que a responsabilidade em actividades de risco deve ser dimensionada pela observância de padrões de segurança estabelecidos, ou seja, de normas cuja violação resulta em presunção de culpa. Esta abordagem visa proteger terceiros, que podem ser directamente prejudicados pela inobservância das normas de cuidado.
b. A ideia é que, em actividades de risco, a mera violação de normas de segurança pré-estabelecidas já indica uma falha nas “leges artis” que são exigíveis ao profissional. No caso da aviação, isso significa que o incumprimento dos procedimentos padronizados em manuais e checklists, como os previstos no POH da Cessna 152, constitui uma violação suficiente para configurar a negligência grave.
. Culpa consciente e inconsciente em contextos de perigo previsível
a. A doutrina diferencia entre culpa consciente e inconsciente. A culpa consciente ocorre quando o agente prevê a possibilidade de um resultado danoso, mas acredita, de forma leviana, que o mesmo não ocorrerá. Já na culpa inconsciente, o agente não prevê o resultado, mas poderia e deveria tê-lo feito. Em ambos os casos, a negligência é penalmente relevante, mas a culpa consciente, como parece ocorrer no caso do arguido, é considerada mais grave, uma vez que ele optou por prosseguir numa conduta que sabia ser arriscada.
b. No contexto da aviação, essa distinção é central, pois as normas de segurança impõem uma observância rigorosa, que não admite a negligência quanto aos riscos previsíveis para terceiros. A doutrina sustenta que o piloto deve manter o controle da aeronave e adoptar medidas que minimizem o risco, optando pelo procedimento mais seguro, especialmente em situação de emergência.
B) Aplicação das normas de cuidado na aviação: Jurisprudência Portuguesa e Internacional
A jurisprudência, tanto em Portugal quanto em tribunais estrangeiros, consolidou o entendimento de que a violação das normas de cuidado na aviação deve ser interpretada objectivamente, sendo suficiente a demonstração de que o profissional desrespeitou normas técnicas específicas para configurar a negligência grave. Abaixo, apresentam-se precedentes jurisprudenciais que reforçam esta posição.
a. Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 12/09/2019, Processo n.º 253/17.4PFLRS - Este acórdão é relevante para o presente caso, pois decidiu que a violação de normas técnicas objectivas, como as de segurança em actividades de risco elevado, configura negligência grave, ainda que o agente tenha actuado com boa-fé subjectiva. O Tribunal da Relação de Lisboa afirmou que “a responsabilidade em contexto de risco não depende da intenção do agente, mas sim do seu dever de adoptar as medidas de segurança necessárias e previstas nos manuais e regulamentos aplicáveis”. Este entendimento legitima uma abordagem objectiva e refuta qualquer justificação subjectiva da conduta. No caso em análise, essa decisão aplica-se directamente, pois o arguido, ao violar o procedimento prioritário de escolha do local de aterragem, desconsiderou um dever normativo claro, justificando, assim, a imputação de negligência grave.
b. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão n.º 315/16.0GALSB.S1- O Supremo Tribunal de Justiça português, neste acórdão, reforça o entendimento de que as normas de segurança técnica, quando claras e objectivas, dispensam uma análise subjectiva da intenção do agente. O Tribunal considerou que, em actividades de alto risco, a responsabilidade penal decorre da infracção de normas de segurança que têm como finalidade a prevenção de danos a terceiros. Esse entendimento se aplica de forma directa ao presente caso, pois o desrespeito ao POH da aeronave pelo arguido é, em si, uma infracção da segurança exigida, não sendo necessário demonstrar que ele tinha intenção de causar o resultado.
c. Tribunal Supremo de Espanha, Acórdão n.º 874/2007 - Em contexto comparado, o Tribunal Supremo de Espanha tem um entendimento consolidado sobre a responsabilidade em actividades de risco. Em casos envolvendo acidentes de aviação, o Tribunal Espanhol considerou que o incumprimento dos protocolos de segurança e dos manuais técnicos é suficiente para fundamentar uma condenação, uma vez que estes documentos estabelecem as “leges artis” que devem ser seguidas. Este acórdão é importante, pois reforça que a segurança em aviação é regulamentada por normas objectivas, cuja violação justifica a imputação de responsabilidade penal.
d. Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), Caso Vo v. França (2004) - Embora não seja um caso de aviação, o TEDH, neste acórdão, abordou a importância da segurança em actividades médicas e de outras áreas de alto risco, decidindo que a inobservância das normas de cuidado técnico constitui um desrespeito aos direitos de segurança dos indivíduos, reforçando o princípio da protecção da integridade física de terceiros. Este princípio é transponível para o caso da aviação, na medida em que os manuais de voo e regulamentos de aviação se destinam a proteger terceiros, e não somente os ocupantes da aeronave.
C) Responsabilidade em caso de emergência: procedimento estrito e prioridades na acção do piloto
A doutrina internacional e a jurisprudência nacional reforçam que, em situação de emergência, o piloto deve seguir um procedimento estrito, dando prioridade absoluta à escolha de um local de aterragem seguro, ao invés de insistir na tentativa de reactivação do motor. Esse entendimento visa garantir que, em situações imprevistas, a segurança de terceiros em solo seja preservada em primeiro lugar. Abaixo estão os elementos doutrinários e regulamentares que sustentam essa prioridade na acção do piloto:
. Norma prioritária de segurança em aterragem de emergência:
a. A escolha do local de aterragem é a norma prioritária em qualquer emergência com falha de motor. Esta norma é claramente exposta no POH da Cessna 152 e nas regulamentações da ICAO e da UE, que prevêem que, ao constatar a falha do motor, o piloto deve, imediatamente, determinar o local mais seguro possível para aterragem, evitando colocar em risco vidas humanas em solo.
b. Em doutrina, tal norma é justificada pela natureza do risco e pela impossibilidade de prever com exactidão a reacção do motor, que, em caso de falha, já se apresenta como um mecanismo ineficaz. Desta forma, qualquer tentativa de reanimação prolongada do motor compromete a capacidade do piloto de realizar uma aterragem controlada e segura.
. Valoração do risco e decisão pela opção mais segura:
a. Em doutrina comparada, especialmente nos Estados Unidos e na União Europeia, a falha em escolher a opção mais segura de aterragem é considerada uma negligência grave que não pode ser justificada pela boa-fé do piloto. A expectativa é que o piloto, como profissional treinado, execute a opção de menor risco, evitando comprometer terceiros, conforme estabelecido em diversos casos de acidentes aéreos analisados pela Comissão Nacional de Aviação Civil (CNAC) e pela Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA).
b. O princípio da segurança prevalente é essencial no entendimento doutrinário e jurídico, exigindo que o piloto submeta sua decisão às normas técnicas previstas, especialmente em situações onde a escolha errada pode ter consequências fatais.
Dando continuidade, passaremos agora à análise dos elementos constitutivos da negligência criminal, com ênfase no nexo causal e na previsibilidade do resultado como fundamentos para a responsabilização do arguido. Esta secção trará um suporte técnico adicional à argumentação, mostrando que o desrespeito às normas de segurança criou um risco que era previsível e evitável.
5. Responsabilidade objectiva e elementos de negligência no direito penal português
No Direito Penal português, a responsabilidade penal por negligência é delineada por um conjunto de elementos fundamentais, com destaque para a previsibilidade do resultado e o nexo causal entre a conduta negligente e o evento lesivo. A interpretação desses elementos é rigorosa em actividades de risco, como a aviação, onde se exige um elevado grau de diligência e observância das normas técnicas. Analisaremos a seguir cada um desses elementos e sua aplicação ao caso em questão.
A) Previsibilidade e dever de cuidado no contexto da aviação
O conceito de previsibilidade no direito penal português remonta ao princípio segundo o qual o agente deve actuar com um padrão de diligência que permita prever os riscos associados à sua actividade. Esta previsão exige que o agente, ao exercer uma actividade de risco, como a pilotagem de aeronaves, adopte comportamentos preventivos e siga as normas de cuidado consagradas, que visam evitar a ocorrência de eventos danosos. Segundo Jorge de Figueiredo Dias e Eduardo Correia, a previsibilidade do resultado é elemento central para a culpa, e a sua verificação implica avaliar se o agente agiu em conformidade com os cuidados exigidos pela actividade desenvolvida.
. Previsibilidade no caso concreto
a. No caso em análise, a previsibilidade do resultado fatal decorrente da conduta do arguido é manifesta. Ao insistir na tentativa de reactivação do motor sem escolher um local seguro para aterragem, o arguido ampliou o risco de que a aeronave viesse a colidir com pessoas em solo, especialmente em uma zona densamente frequentada. Como piloto e instrutor, o arguido tinha o dever técnico de prever que a falha em seguir o procedimento correcto poderia resultar em danos a terceiros, e o risco decorrente da sua decisão foi devidamente descrito no manual da aeronave, que prioriza a escolha do local de aterragem sobre a tentativa de reactivação do motor.
b. A doutrina portuguesa defende que a previsibilidade deve ser analisada com base no “standard do homem médio”, ajustado, no entanto, à qualificação profissional do agente. Neste sentido, o arguido, com a sua formação e experiência, tinha a obrigação de antecipar o perigo para terceiros, razão pela qual a sua conduta é qualificada como negligente.
. Aplicação do Princípio da Previsibilidade às Normas de Cuidado
a. O princípio da previsibilidade é frequentemente utilizado em casos de negligência em actividades de risco, como acidentes de trabalho e incidentes médicos, e é totalmente aplicável ao campo da aviação. Nos manuais de voo, as normas são expressamente detalhadas para que os pilotos possam prever e evitar riscos, especialmente em situações de emergência. Este padrão de cuidado reflecte-se também na jurisprudência portuguesa, que interpreta a previsibilidade como um elemento central para a responsabilidade em actividades que demandam conhecimento técnico, como ocorre no caso do arguido.
b. No presente caso, a desconsideração da previsibilidade dos riscos para terceiros reforça a argumentação pela negligência grave do arguido, uma vez que os regulamentos e manuais eram claros ao determinar as acções prioritárias a serem adoptadas.
B) Nexo causal entre a conduta do arguido e o resultado fatal
O nexo causal, segundo o artigo 10.º do Código Penal português, é a relação directa entre a conduta do agente e o resultado ocorrido, devendo esta relação ser materialmente verificável. Em casos de negligência em actividades de alto risco, como na aviação, o nexo causal é aferido através da análise de como a violação das normas de segurança contribuiu directamente para o desfecho trágico. Abaixo, exporemos como a conduta do arguido — caracterizada pela inobservância das normas técnicas — se conecta causalmente ao resultado fatal.
. A conduta do Arguido como causa directa do resultado
a. O nexo causal entre a decisão do arguido e o resultado trágico é claro, pois foi a insistência em tentar religar o motor, em vez de escolher imediatamente um local de aterragem seguro, que conduziu à situação de risco em que ocorreu a colisão com as pessoas em solo. Esse comportamento afastou-se das normas de cuidado exigidas, criando um risco directo e imediato para terceiros que, como foi demonstrado no processo, estavam na área de impacto.
b. A doutrina de Figueiredo Dias considera que o nexo causal em contextos de risco é aferido pela pergunta: “a conduta omissiva ou activa do agente foi condição sine qua non para a ocorrência do resultado?” No presente caso, a resposta é afirmativa, pois o arguido, ao não observar as normas prioritárias de segurança, permitiu que a situação culminasse num acidente evitável.
. Nexo causal na jurisprudência portuguesa sobre responsabilidade em acidentes aéreos
a. A jurisprudência portuguesa tem diversos precedentes que estabelecem o nexo causal em casos de acidentes aéreos, considerando a responsabilidade dos pilotos por falhas no cumprimento de procedimentos. Em casos semelhantes, como no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/10/2015, Processo n.º 105/14.1GBACB.C1, o tribunal concluiu que a violação de normas de segurança aeronáutica estabelecia um nexo causal directo com o resultado, independentemente da intenção do piloto.
b. Esse entendimento é central para fundamentar a responsabilidade do arguido no presente caso, pois, ao violar as normas técnicas e insistir numa tentativa de religação do motor que desviou a prioridade de escolha do local seguro para aterragem, o arguido criou as condições que levaram ao acidente. Assim, o nexo causal entre sua decisão e o resultado fatal é directo e verificável.
C) Conclusão sobre a previsibilidade e o nexo causal na configuração da negligência grave
A violação das normas de cuidado, associada à previsibilidade do resultado e à relação causal directa entre a conduta e o evento trágico, confirma a negligência grave do arguido. Em actividades de risco, como a aviação, o padrão de diligência é absoluto, e o agente deve assegurar-se de que suas acções estejam sempre orientadas para a minimização dos riscos. No presente caso, o arguido não só deixou de cumprir com o dever de cuidado, como também, ao optar pela tentativa prolongada de religação do motor, desconsiderou os riscos imediatos para terceiros.
A doutrina e a jurisprudência nacional, bem como o conteúdo normativo específico da aviação, conferem uma base jurídica sólida para a responsabilização penal do arguido, e o nexo causal entre a sua conduta e o resultado demonstra que o acidente poderia ter sido evitado se o mesmo tivesse seguido as normas previstas.
6. Conclusão e síntese argumentativa para uma decisão condenatória
Concluindo, a análise dos elementos de previsibilidade e nexo causal, conjuntamente com a violação das normas de cuidado, fornecem elementos suficientes que permitem sustentar uma decisão condenatória, ao invés do entendimento incorrecto efectuado pelo Tribunal a quo. Efectivamente, como supra-referido, o arguido, ao desconsiderar as normas prioritárias de segurança e adoptar uma conduta arriscada e imprudente, violou directamente as “leges artis” da aviação, contribuindo para um resultado fatal que era previsível e evitável.
Termos em que o recurso obtém provimento no que concerne à revogação da decisão absolutória, devendo o arguido ser condenado pela prática dos crimes (de homicídio negligente e condução perigosa de meio de transporte) pelo que foi pronunciado.
Todas as outras questões suscitadas nos recursos deduzidos pelo MP e Assistentes ficam prejudicados na sua apreciação.
*
Segundo o artigo 431.º do CPP, o Tribunal da Relação pode reformar a decisão da primeira instância em matéria de facto e de direito, mas sua intervenção directa na condenação está limitada a casos em que:
Não seja necessário proceder a nova produção de prova ou valoração de provas adicionais.
As provas produzidas na primeira instância sejam claras e suficientes para sustentar uma decisão condenatória, sem que seja necessária a produção de prova adicional para confirmar ou infirmar os factos.
A situação fática esteja suficientemente delimitada para permitir a condenação com base nos elementos existentes.
No presente caso, analisando as provas e os argumentos apresentados, temos que a matéria de facto, incluindo os depoimentos periciais e os manuais técnicos, está bem documentada. A nossa apreciação baseia-se em normas de cuidado já estabelecidas nos autos, permitindo a este tribunal ad quem uma reformulação da decisão directamente. Isso porque a matéria de facto prova suficientemente a negligência do arguido e a previsibilidade dos riscos decorrentes de sua conduta, não exigindo um reexame da prova produzida em audiência4.
Em suma, os factos e as provas nos autos são suficientes e bem delimitados.
A fundamentação já permite a verificação da negligência grave e da previsibilidade do resultado.
Não há necessidade de nova produção de prova ou valoração adicional dos factos.
Esta opção garante maior eficiência e economia processual, alinhando-se ao princípio da celeridade, já que evita uma remessa desnecessária à primeira instância.
Vamos, pois, prosseguir nas escolhas e medidas das penas adequadas à gravidade da negligência demonstrada pelo arguido.
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3.5. Da escolha e medida da pena
I. Introdução: enquadramento dos crimes e critérios de determinação das penas
O arguido foi pronunciado pela prática de um crime de condução perigosa de meio de transporte por ar e dois crimes de homicídio por negligência, em concurso real e efectivo. Este enquadramento obriga-nos a determinar uma pena individualizada para cada crime, tendo em conta o disposto nos artigos 71.º e 77.º do Código Penal (CP), e, em seguida, aplicar o cúmulo jurídico para fixar uma pena única proporcional à totalidade dos factos e à situação pessoal do arguido.
II. Escolha e medida da pena para o crime de condução perigosa de meio de transporte por ar
O crime de condução perigosa de meio de transporte por ar, previsto no artigo 289.º, n.ºs 1 e 3, do CP, é punido com pena de prisão até cinco anos. Este crime tem por objectivo a protecção da segurança pública, prevenindo a criação de perigo elevado para a vida e integridade física de terceiros.
. Critérios para escolha da pena
A escolha da pena de prisão é justificada pela gravidade dos factos e pelo risco directo criado pelo arguido para terceiros ao ignorar normas básicas de segurança em situação de emergência. Em contexto de aviação, onde o risco é elevado, a pena de prisão reflecte a necessidade de censura penal e de prevenção geral e especial.
. Determinação da medida concreta da pena de prisão
Para a determinação da medida concreta da pena de prisão, consideram-se os seguintes factores:
Grau de perigo e culpa do arguido: A culpa do arguido é significativa, dado que, como piloto instrutor, ele tinha pleno conhecimento das normas de cuidado que exigem a escolha imediata de local seguro para aterragem em caso de falha do motor. Ao insistir na tentativa de religação do motor, o arguido criou um perigo objectivo e evitável para a vida de terceiros.
. Exigências de prevenção geral e especial:
Prevenção Geral: A pena deve servir de exemplo para profissionais da aviação, enfatizando a seriedade das normas de segurança e a obrigatoriedade de sua observância.
Prevenção Especial: No caso do arguido, a pena de prisão visa incutir maior responsabilidade na execução das normas de cuidado, prevenindo a reincidência de condutas negligentes.
. Circunstâncias atenuantes e agravantes:
Atenuantes: O arguido não possui antecedentes criminais e colaborou com o processo.
Agravantes: A natureza do perigo criado e a sua função de instrutor de voo, que exige um nível acrescido de responsabilidade.
Em função destes critérios, fixa-se a pena de 3 anos de prisão para o crime de condução perigosa de meio de transporte por ar.
III. Escolha e medida da pena para os crimes de homicídio por negligência
O arguido é também responsável por dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do CP, que prescrevem pena de prisão até três anos ou pena de multa.
. Critérios para escolha da pena
A escolha da pena de prisão é justificada pela gravidade das consequências do comportamento negligente do arguido, que resultou na morte de duas pessoas. A aplicação de uma pena de prisão responde tanto à necessidade de reprovação da conduta quanto às exigências de prevenção geral, dado o efeito letal e evitável da acção.
. Determinação da medida concreta da pena de prisão para cada crime de homicídio por negligência
Grau de culpa e nexo com o resultado letal: O comportamento do arguido demonstra uma negligência grave. Sua conduta de desconsiderar o procedimento técnico de escolha de local seguro para aterragem em favor da tentativa de religação do motor criou uma situação de risco letal que se concretizou nas mortes ocorridas. Esta gravidade exige uma pena que reflecte a culpa, em consonância com a previsibilidade e evitabilidade do resultado.
. Exigências de prevenção geral e especial:
Prevenção Geral: A sociedade exige uma resposta penal que desestimule a desconsideração das normas de cuidado em contextos de risco, como a aviação.
Prevenção Especial: No contexto do arguido, a pena visa reforçar sua consciência sobre a gravidade dos efeitos de uma conduta negligente e fomentar uma prática profissional mais segura e rigorosa.
Circunstâncias atenuantes e agravantes:
Atenuantes: Colaboração processual e inexistência de antecedentes criminais.
Agravantes: A perda de duas vidas humanas e o incumprimento do dever de cuidado associado à sua função profissional.
Tendo em conta estes factores, fixa-se a pena de 2 anos e 6 meses de prisão para cada um dos crimes de homicídio por negligência, totalizando, assim, uma pena de prisão distinta para cada uma das duas vítimas.
IV. Cúmulo Jurídico das Penas (Artigo 77.º do Código Penal)
De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do CP, cabe ao tribunal proceder ao cúmulo jurídico das penas, fixando uma pena única proporcional à totalidade dos factos e à situação pessoal do arguido. Esta pena única deve considerar os três crimes em concurso real, reflectindo a gravidade global das condutas e o efeito acumulado das infracções.
. Critérios para a fixação da pena única
Totalidade dos factos e conexão entre as condutas: A actuação negligente do arguido resultou em três crimes distintos que ocorreram na mesma situação, mas com efeitos específicos e independentes: o perigo criado para terceiros e a efectiva perda de duas vidas. Assim, a pena única deve representar a censura pela totalidade das condutas.
Personalidade e situação do arguido: A pena deve ser ajustada à realidade pessoal do arguido, considerando que se trata de um profissional que, até então, não apresentava antecedentes e agiu com colaboração durante o processo, o que indica uma potencial adequação da medida de prevenção especial.
Necessidade de prevenção geral e especial: A fixação da pena única tem o propósito de reafirmar a importância das normas de segurança em actividades de risco e desestimular a desconsideração das “leges artis” que regem a aviação.
Tendo em conta os elementos expostos e o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do CP, fixa-se uma pena única de 4 anos de prisão, que reflecte a gravidade acumulada dos três crimes em concurso real e a necessidade de prevenção geral e especial.
V. Substituição da pena única pela suspensão da execução
À luz do artigo 50.º do CP e considerando as condições pessoais do arguido e a colaboração durante o processo, opta-se pela suspensão da execução da pena única de 4 anos de prisão, pelo mesmo período de quatro anos. Esta suspensão é subordinada à frequência de um programa de formação em segurança aeronáutica, visando reforçar o conhecimento do arguido sobre as normas de segurança.
A suspensão da pena é adequada para a prevenção de condutas futuras e para o desenvolvimento de uma prática profissional mais responsável, sem descurar as exigências de prevenção geral e especial que se impõem.
A pena única de 4 anos de prisão, com suspensão da execução condicionada à frequência de programa formativo em segurança aeronáutica, oferece uma resposta proporcional à gravidade acumulada dos crimes em concurso e adequada às necessidades de reintegração do arguido, mantendo a função preventiva e educativa da sanção.
*
IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em revogar o acórdão absolutório e, em consequência:
a. Condenam o arguido, pela prática, em concurso real, dos seguintes crimes:
i. Um crime de condução perigosa de meio de transporte por ar, previsto e punido pelo artigo 289.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
ii. Dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um dos crimes.
iii. Em aplicação do disposto no artigo 77.º do Código Penal, e considerando a gravidade acumulada das condutas, procede-se ao cúmulo jurídico das penas, fixando-se a pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
b. Nos termos do artigo 50.º do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena única de 4 anos de prisão, por igual período de 4 (quatro) anos, condicionada à frequência, durante o período de suspensão, de um programa de formação em segurança aeronáutica, a ser promovido por entidade competente.
Sem tributação.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 06-11-2024
Alfredo Costa
Francisco Henriques
Ana Rita Loja

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (art.º 94º, n.º 2 do C.P.P.)
O relator escreve de acordo com a anterior grafia
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1. Decisões de tribunais superiores que tratam do cumprimento do ónus de concretização dos factos em pedidos de audiência de julgamento em segunda instância, conforme o artigo 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal (CPP). Estas decisões são frequentemente utilizadas como referência em matérias semelhantes.
Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 04/03/2020, Processo n.º 125/20.5JAPRT.P1
Este acórdão aborda a exigência de concretização de factos específicos para a realização de audiência em sede de recurso, sustentando que a referência a temas genéricos ou matérias amplas não cumpre o ónus legal de indicação de factos concretos, conforme o artigo 411.º, n.º 5, do CPP. Neste caso, o Tribunal concluiu pela improcedência do pedido de audiência, pois os recorrentes remeteram-se a matérias temáticas, como uma discordância com a avaliação probatória, sem delimitar pontos de facto individualizados.
Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 13/12/2018, Processo n.º 10/17.2JALSB.L1-9.
O Tribunal da Relação de Lisboa destacou neste acórdão a distinção entre factos concretos e temas amplos ou conclusivos. Argumenta-se que uma mera remissão para conceitos ou temas abstractos não satisfaz o ónus de concretização e que a indicação de pontos de facto específicos é indispensável para justificar a necessidade de uma audiência. A falta dessa especificidade levou o Tribunal a considerar desnecessária a realização da audiência.
Tribunal da Relação de Coimbra, Acórdão de 17/10/2017, Processo n.º 23/16.5GCBRG.C1.
Neste acórdão, o Tribunal abordou a aplicação do artigo 411.º, n.º 5, salientando que a finalidade da audiência em recurso é a discussão de pontos de facto delimitados e não de meros temas ou questões genéricas. O Tribunal considerou que a audiência só se justifica quando o recorrente identifica concretamente os pontos de facto que pretende discutir, concluindo pela improcedência do pedido de audiência ao verificar a ausência dessa concretização.
Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 20/09/2017, Processo n.º 234/17.6JAPRT.S1.
Este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça estabelece a necessidade de o pedido de audiência se basear em factos claramente delimitados, que exigem um reexame preciso em sede de recurso. O Tribunal sublinhou que a realização de audiência para discutir temas de forma genérica não cumpre o propósito do artigo 411.º, n.º 5, e que a omissão de factos específicos é motivo para indeferir a audiência.
Estes acórdãos fornecem um entendimento claro e uniforme sobre a interpretação do artigo 411.º, n.º 5, do CPP, enfatizando a necessidade de indicar pontos de facto específicos para justificar a realização de uma audiência em segunda instância.

2. Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005.

3. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061.

4. A jurisprudência portuguesa tem permitido que o Tribunal da Relação substitua directamente uma decisão absolutória por uma condenatória quando os elementos probatórios são claros e robustos, dispensando nova produção de prova. O Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acórdão n.º 104/15.1GALSB.G1.S1) tem sustentado que, quando a matéria de facto está completa e não há necessidade de nova apreciação probatória, o Tribunal da Relação pode, sim, proceder à condenação, assegurando a celeridade processual e evitando remessas desnecessárias à primeira instância.