Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | LAURINDA GEMAS | ||
Descritores: | CONTRATO DE EMPREITADA SÓCIO GERENTE LEGITIMIDADE PASSIVA ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO INDEMNIZAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – O Réu, sócio gerente da sociedade demandada (1.ª Ré) não pode ser considerado titular da relação material controvertida, a qual consiste numa relação jurídica de natureza contratual, atinente ao contrato de empreitada celebrado entre Autores, como donos da obra, e a 1.ª Ré, como empreiteira, não se descortinando na Petição Inicial, quanto ao Réu, uma pretensão indemnizatória (muito menos correspondente à totalidade da quantia peticionada) fundada em qualquer outra relação material controvertida, mormente uma (suposta) responsabilidade civil extracontratual nos termos dos artigos 78.º e 79.º do CSC. II – Apesar de não poder deixar de ser considerado parte ilegítima, estando verificada a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva, de conhecimento oficioso, em sede de recurso, por não ter sido antes apreciada [cf. artigos 6.º, 30.º, 33.º, 260.º a 262.º, 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. e), 578.º e 590.º, n.º 1, do CPC], importa ter em atenção o previsto no art. 278.º, n.º 3, do CPC, pelo que, não estando provados quaisquer factos constitutivos de uma obrigação por parte do Réu indemnizar danos decorrentes do incumprimento do contrato de empreitada, não lhe poderá ser imputada a responsabilidade contratual discutida nos autos, sendo de concluir pela sua absolvição do pedido. III – Não questionando a sociedade Ré, na alegação de recurso, a qualificação jurídica do contrato de empreitada de consumo em apreço, nem sequer pondo em causa que o mesmo foi por si definitivamente incumprido, apenas discordando da quantificação dos danos, há que calcular o montante da indemnização devida, tendo em atenção o disposto nos artigos 562.º, 564.º e 566.º do CC, considerando que a situação descrita causou danos patrimoniais aos Autores, face ao preço da empreitada acordado e os pagamentos que efetuaram, bem como a circunstância de terem ficado por concluir os trabalhos respeitantes às 2.ª e 5.ª fases do orçamento da Ré, e por realizar os trabalhos das duas últimas fases da obra, e que para a conclusão de todos esses trabalhos os Autores tiveram de contratar um novo empreiteiro, que os orçou em 16.350,00 € e 108.168,38 €, respetivamente; e que, além disso, o Autor teve de pagar a quantia de 12.000,00 € respeitante aos móveis de cozinha e armários, que estavam incluídos no orçamento da obra que foi adjudicada à Ré. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados I - RELATÓRIO AA, Lda. e BB, Réus na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, contra estes (e EE, mulher do Réu) foi intentada por CC e DD, interpuseram o presente recurso de apelação da sentença que aí foi proferida, na parte em que julgou a ação procedente. Na Petição Inicial, apresentada em 24-08-2023, os Autores peticionaram que os Réus fossem condenados solidariamente a pagar-lhes a quantia de 145.428,38 €, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, após a citação e até efetivo e integral pagamento, e ainda a indemnização que se venha a apurar a título de danos não patrimoniais. Alegaram, para tanto e em síntese, que: - No início de 2019, os Autores celebraram com a Ré AA, Lda., de que o Réu e a Ré mulher são os únicos sócios, sendo o Réu também gerente, um contrato de empreitada para construção de moradia, pelo valor global de 209.101,13 € já com IVA, dos quais seriam pagos 20.910 € aquando do início da obra e o remanescente em 9 prestações iguais, conforme solicitações da Ré e as fases definidas no orçamento, devendo a obra ficar concluída no prazo de 10 meses após adjudicação; - Os Autores efetuaram o pagamento inicial de 20.910 € em julho de 2019, vindo a pagar mais 7 prestações, no total de 167.280,88 € correspondentes a 80% do valor da obra, apenas faltando pagar a verba de 20.910 €; - A Ré só iniciou os trabalhos em setembro de 2019 e atrasou-se na sua conclusão; - O último pagamento foi feito em 21-07-2021, a pedido do Réu, alegando que necessitava dessa antecipação para acelerar a respetiva execução, combinando até uma deslocação às instalações do fornecedor do pavimento de madeira, dizendo que iria ser prontamente colocado; - Além da correção de algumas pinturas do exterior, nada mais foi realizado, vindo a sociedade Ré a abandonar a obra em finais de julho de 2021; - Em 29-06-2022, os Autores enviaram à referida Ré uma carta, interpelando-a para concluir os trabalhos até 30-08-2022; - Os Autores ainda requereram a notificação judicial da Ré nesse sentido, tendo esta sido notificada em 12-09-2022, mas, como nada fez, operou-se a rescisão do contrato de empreitada; - Os Autores tiveram de contratar outro empreiteiro para concluir a obra, importando o custo total dos respetivos trabalhos em 124.518,38 €; - A este valor acresce a quantia de 20.910 € paga em 21-07-2021, em antecipação da 8.ª fase (perfazendo a soma dessas importâncias o montante peticionado de 145.428,38 €); - Os Autores necessitavam de mudar de habitação por condicionantes da vida pessoal e familiar e devido a compromissos assumidos, tendo sofrido danos não patrimoniais. Indicaram como valor da causa 125.000 €. Os Réus apresentaram Contestação, articulado este que, no seguimento de convite expresso do Tribunal, veio a ser aperfeiçoado conforme consta do requerimento apresentado em 21-02-2024. Defenderam-se por exceção, arguindo a ilegitimidade processual da Ré mulher (pelo facto de ter deixado de ser sócia gerente da Ré AA, Lda.), bem como por impugnação motivada e por reconvenção, peticionando a condenação dos Autores a pagar-lhes o valor de 41.820,22 €, relativo ao valor da 8.ª e da 9.ª fases; requereram ainda que os Autores fossem condenados como litigantes de má fé; em sua defesa, os Réus alegaram, em síntese, que: - Foi celebrado um contrato de empreitada (verbal) entre os Autores e a 1.ª Ré, conforme orçamento junto aos autos, tendo sido acordado que os Autores não pagariam o IVA de 23% sobre os valores correspondentes às 1.ª, 3.ª, 5.ª e 7.ª fases da obra; - Foi pago pelos Autores à Ré empreiteira o valor correspondente a 80% do orçamento, mediante cheque, no total de 83.640,44 € [designadamente, com (a) a adjudicação o valor de 20.910,11 €, (b) na 2.ª fase o valor de 20.910,11 €, (c) na 4.ª fase o valor de 20.910,11 €, (d) na 6.ª fase o valor de 20.910,11 €] e em dinheiro o total de 68.000 € [designadamente, na 1.ª fase, o valor de 17.000 €, na 3.ª fase o valor de 17.000 €, na 5.ª fase o valor de 17.000 € e na 7.ª fase o valor de 17.000 €], faltando o pagamento do total de 41.820,22 € relativos à 8.ª e à 9.ª fase; - A 1.ª Ré nunca abandonou a obra, apenas suspendeu a sua execução, com o conhecimento dos Autores, para acerto de contas com a 1.ª Ré a respeito do fornecimento de água, combustível para o gerador, pedras de granito aplicadas, porta e janela na garagem e ampliação do sótão. Os Autores replicaram, pugnando pelo desentranhamento da reconvenção ou pela improcedência do pedido reconvencional. Em 09-07-2024, realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido: - Despacho saneador, em que foi fixado o valor da causa em 166.820,22 € (125.000 + 41.820,22), admitida a reconvenção e determinada a notificação da Ré para juntar certidão do registo comercial atualizada a fim de ser apreciada a exceção de ilegitimidade invocada na Contestação; - Despacho de identificação do objeto do litígio (“Do alegado incumprimento do contrato de empreitada por parte da Ré e das legais consequências”) e enunciação dos temas da prova (“ Se a Ré deixou por concluir os trabalhos descritos no art. 21º da petição inicial; 2. Se a obra deveria ter sido concluída até junho de 2020 (cf. retificação em audiência de julgamento); 3. Se a Ré abandonou a obra em julho de 2021; 4. Mas continuou a trabalhar noutras obras; 5. Se a A teve de adjudicar a conclusão da obra a outro empreiteiro; 6. Se essa adjudicação foi orçamentada em 124.518,00 euros; 7. Se existem valores em dívida à Ré e a sua quantificação”]. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com a prestação de declarações de parte e a produção de prova testemunhal, tendo na sessão realizada em 08-10-2024 sido proferido despacho que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual da Ré mulher. Após, foi proferida a Sentença (recorrida), cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “O tribunal considerando a ação procedente porque provada decide: a) Condenar os RR a pagarem aos Autores a quantia total de € 124.518,38, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, contabilizados desde a citação para contestar até integral e efectivo pagamento; b) Considerar o pedido reconvencional parcialmente procedente porque parcialmente provado condenando os AA a pagar aos RR a quantia de 8.918, 17 euros, também acrescidos de juros moratórios à taxa legal em vigor, contabilizados desde a notificação da contestação aperfeiçoada até integral e efetivo pagamento. As custas serão suportadas na proporção dos respetivos decaimentos, sendo que, a cargo dos AA será de 25% e a cargo dos RR no valor de 75%. Não dispenso o pagamento da taxa de Justiça excecional, atento o número de sessões de julgamento e a complexidade da causa nos termos do art. 530º, 7 al.c) do C.P.C. Registe e Notifique.” É com esta decisão que os Réus não se conformam, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões (retificámos os lapsos de escrita): 1. Vem o presente Recurso interposto da decisão que condenou o R. a um valor exorbitante que quase corresponde ao valor total da obra e não ao valor do que faltava que não foi calculado pelo facto de o A. ter afirmado que já estava concluída quando se verificou que afinal não estava. 2. E não existe qualquer cálculo feito que faça corresponder o que falta fazer a um qualquer valor. 3. Por isso toda a prova que possa ter existido, com o devido respeito tem por base apenas a intenção do R. devolver quase a totalidade do total da obra quando ela estava quase realizada faltando apenas alguns acabamentos suprarreferidos e especificados. 4. Deve, pelo exposto, a presente decisão ser substituída por douto Acórdão que considere improcedente o pedido formulado pelo Autor. Terminaram os Apelantes requerendo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a Sentença recorrida e decidindo-se no sentido das alegações e conclusões supra. Foi apresentada alegação de resposta, em que os Apelados defenderam que deve ser negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos: A) Os rtes. não têm qualquer razão material ou formal, de direito ou de facto, no recurso que apresentam, devendo a douta sentença do tribunal “a quo” ser mantida in totum por não merecer qualquer censura na parte que condenou os ora rtes.. B) A argumentação que os rtes. desenvolvem esquece o pecado original das suas omissões processuais, e desde logo o da falta de impugnação dos dois orçamentos apresentados pelos ora rdos.. C) E aliás nem mesmo nas alegações de recurso se dão ao trabalho de contrariar, para lá da mera proclamação, os fundamentos daquela douta sentença, pedagogicamente desenvolvidos e de fácil compreensão, e solidamente arrimados no plano de facto e de direito, da doutrina e da jurisprudência. D) Os rctes. apresentaram alegações e conclusões mas não indicaram o fundamento específico da recorribilidade, não identificaram nas conclusões as normas jurídicas violadas e nem impugnaram a matéria de facto (nos termos exigidos pelo art. 640.º do CPC). Neste Tribunal da Relação as partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre a exceção da ilegitimidade processual do Réu (cf. despacho de 14-07-2025). Os Apelantes apresentaram requerimento em que invocaram a ilegitimidade do Réu, pedindo a sua absolvição da instância, ao abrigo dos artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, al. e), do CPC. Os Apelados, por sua vez, apresentaram requerimento em que defenderam que o 2.º Réu tem legitimidade, por ser sujeito da relação material controvertida, considerando que: - Os Autores deduziram a ação contra o gerente e sócios da sociedade, na medida em que tiveram uma intervenção pessoal em violação do contrato e lesiva dos interesses daqueles; - E na PI alegaram expressamente o seguinte a este respeito, nos arts. 16.º, 17.º, 19.º, 20.º, 36.º, 40.º e 43.º, que se transcrevem: “...16.º - O último pagamento feito pelos AA., a pedido do gerente da 1.ª R. e 2.º R. varão, BB, ocorreu em 21.07.2021 e respeitaria à conclusão da 8.ª fase. 17.º - O 2.º R., gerente da 1.ª R., para receber o pagamento correspondente a essa 8.ª fase, iniciou as pinturas do exterior, e induziu em erro os AA., alegando que para imprimir grande aceleração à respectiva execução necessitaria que os AA. antecipassem o inerente pagamento 19.º - O 2.º R., para dar credibilidade ao seu suposto propósito, combinou logo com os AA. uma deslocação conjunta às instalações de um fornecedor para que escolhessem o pavimento de madeira porque iria ser prontamente colocado. 20.º - Os AA. cederam a esse pagamento antecipado da 8.ª fase mas a partir do momento em que o fizeram, os RR. limitaram-se a mandar concluir algumas pinturas do exterior, nada mais tendo realizado. 36.º - Os RR. quiseram, pois, deliberadamente incumprir a empreitada firmada com os AA., depois de os terem induzido em erro para receber antecipadamente o pagamento correspondente à 8.ª fase, e conformaram-se com indiferença perante os prejuízos que sabiam estar a causar a estes. 40.º - Os RR. actuaram concertada e dolosamente com o propósito de não concluírem a empreitada e assim se apropriarem da verba adiantada de € 20.910,00, além das demais recebidas por trabalhos não concluídos, indiferentes às consequências do seu incumprimento. 43.º - E constituíram-se os 2.ºs réus, solidariamente com a 1ª R., na obrigação de indemnizar os AA. de todos os prejuízos sofridos...” - Todos os Réus contestaram e deduziram reconvenção, e apenas a 2.ª Ré excecionou a sua ilegitimidade. - O 2.º Réu, assumindo a qualidade de sujeito da relação material controvertida, e daí a sua contestação, tomou igualmente expressa posição sobre a matéria nos artigos 44.º, 48.º, 49.º, 51.º, 52.º e 63.º. - A sentença proferida alude nos pontos 7, 15, 16 e 29 o envolvimento dos Réus e não apenas da Ré sociedade; - Mais, no ponto 12 da matéria fáctica deu-se como provada a existência de pagamentos em dinheiro que não reverteram para a sociedade Ré mas para os seus sócios e gerente, na medida em que esta não emitiu faturas e muito menos recibos; - O gerente da Ré teve sempre uma intervenção a título pessoal, para proveito próprio e em prejuízo dos AA., ora recorridos, em violação de disposições legais e contratuais. - Mercê disso e já nos termos dos arts. 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, o 2.º Réu tornou-se responsável pelos danos causados aos Autores, enquanto terceiros e credores sociais; - E daí que o tribunal de 1.ª instância tenha proferido uma sentença condenatória contra o 2.º Réu e daí também que este, no seu recurso, se tenha conformado com isso e não tenho questionado a sua legitimidade, nem tenha impugnado validamente a matéria de facto dada como provada que pessoalmente o compromete. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II - FUNDAMENTAÇÃO Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC). São as seguintes as questões a decidir: 1.ª) Se o Réu é parte ilegítima; 2.ª) Se os Réus não estão obrigados a pagar aos Autores a quantia indemnizatória fixada. Factos provados Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos o que consta entre parenteses retos, por estar plenamente provado, por documento e acordo das partes): 1 - A 1.ª Ré (Ré) é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto, entre outras, a atividade de construção civil de edifícios, compra e venda de materiais de construção, instalações elétricas, isolamentos, canalizações, estucagem, climatização, carpintaria, caixilharia, revestimento de pavimentos e paredes, pinturas e colocação de vidros. 2 - O Réu marido é o sócio gerente daquela sociedade. 3 - Entre a 1.ª Ré, no âmbito do seu objeto social, e os Autores foi ajustada a construção de uma moradia, a edificar no lote denominado pelo n.º 11, sito na Rua 1, da União das freguesias de Santa Iria de Azóia, São João da Talha e Bobadela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., propriedade dos Autores. Foi celebrado entre as partes, no início de 2019, um contrato de empreitada tendo por base o descritivo, preços e fases constantes do orçamento da 1.ª Ré, de 06-10-2018, pelo valor global de 209.101,13 €, já com IVA à taxa de 23% incluído. 4 - Os pagamentos referentes à empreitada foram acordados serem feitos nos seguintes moldes: a) 10%, correspondente a 20.910,00 €, seriam pagos aquando do início da obra; b) O remanescente pago em 9 prestações iguais, conforme as solicitações da 1.ª Ré e ao ritmo das fases definidas no orçamento (cf. doc. 1 [estando incluído, além do mais, o fornecimento e montagem dos móveis da cozinha no valor de 5.068,80 €, e constando o seguinte (sic): “DE ACORDO COM O ORÇAMENTO, A QUANDO O INICIO DA OBRA 10% , DO VALOR TOTAL DA OBRA, O RESTANTE VALOR COM O DECORRER DA OBRA ABAIXO DESCRIMINADA POR FASES. 1-ª FASE TODAS AS FUNDAÇÕES PLACA DO TECTO R/C 10% 20 910,11€ 2-ª FASE PLACA DO 1-º ANDAR PLACA DA COBERTURA 10% 20 910,11 € 3-ª FASE ASSENTAMENTO TODO O TIJOLO E TELHADO 10% 20 910,11 € 4-ª FASE ASSENTAMENTO DE TODAS AS CANTARIAS E REBOCO EXTERIOR 10% 20 910,11 € 5-ª FASE CANALIZAÇÃO, E LECTRICIDADE 10% 24 910,11 € 6-ª FASE ASSENTAMENTO DO AZULEJO E ESTUQUE 10% 20 910,11 € 7-ª FASE ASSENTAMENTO DOS PAVIMENTOS CERÂMICOS E BETONILHAS 10% 20 910,11 € 8-ª FASE PINTURAS EXTERIORES, ALUMINIOS E ESTORES PAVIMENTO DE MADEIRA 10% 20 910,11 € 9-ª FASE MONTAGEM DAS LOIÇAS SANITARIAS PORTAS INTERIORES, ROUPEIROS LIMPEZAS 10% 20 910,11 €]). 5 - Os Autores fizeram o pagamento inicial, no montante de 20.910,00 €, em julho de 2019, através de cheque (n.º 62603878), que foi apresentado a pagamento e cobrado, tendo a 1.ª Ré emitido, em 12-09-2019, a fatura n.º 0/129, e dado quitação. 6 - Conforme previsto no Orçamento apresentado pela Ré (vide doc. 1 junto com a petição inicial), a obra deveria estar concluída no prazo de 10 meses. 7 - Os Autores, por condicionantes da sua vida pessoal e familiar e mercê de compromissos assumidos, tinham necessidade de mudar de habitação, facto de que o empreiteiro tinha conhecimento. 8 - A 1.ª Ré iniciou os trabalhos apenas em setembro de 2019, dado que, a planta do loteamento fora alterada e as medidas do Lote 11 não correspondiam às da planta de implantação do projeto de arquitetura apresentado para construção da Moradia, pelo que, o mesmo teve que ser reformulado. 9 - A pedido dos Autores, que não queriam pagar a totalidade do IVA, ficou acordado entre a 1.ª Ré e os Autores que só se cobrava o IVA a 23% em 6 fases de pagamentos; na adjudicação; na 2.ª fase, na 4.ª fase, na 6.ª fase, na 8.ª fase e na 9.ª fase, no valor de 17.000,09 € mais IVA 23% (o qual perfaz o valor de 3.910,02 €), isto num valor total de 20.910,11 € cada fase já com IVA incluído. 10 - Em cheque foram pagos os seguintes montantes: a) a adjudicação no valor de 20.910,11 €; b) a 2.ª fase no valor de 20.910,11 €; c) 4.ª fase no valor de 20.910,11 €; d) 6.ª fase no valor de 20.910,11 €; 11 - O que faz um valor total de 83.640,44 €. 12 - Em dinheiro foi pago: 1.ª fase no valor de 17.000,00 €; 3.ª fase no valor de 17.000,00 €; 5.ª fase no valor de 17.000,00 €; 7.ª fase no valor de 17.000,00 €. 13 - O que faz um valor total de 68.000,00 €. 14 - Os Autores pagaram à Ré o total de 151.640,44 €. 15 - Os pagamentos eram e foram feitos à medida que os Réus os iam solicitando e após a execução de cada uma das precedentes fases fixadas. 16 - O último pagamento feito pelos Autores, a pedido do gerente da 1.ª Ré BB, ocorreu em 21-07-2021 e respeitava à conclusão da 8.ª fase. 17 - Em 08-09-2021 foram aplicadas na obra, pela Ré, os gradeamentos e os portões no muro exterior. 18 - A Ré deixou de trabalhar na obra em causa, pelo menos, a partir de setembro de 2021. 19 - Nessa altura, encontravam-se por concluir, nomeadamente, os pavimentos em madeira, a colocação da cozinha e os armários dos quartos, ainda estavam por acabar os trabalhos de eletricidade, tais como os cabos, as tomadas, os disjuntores e o quadro relativos à 5.ª fase, bem como o roofmate e as ripas em pvc na cobertura, cuja aplicação estava prevista para a 2.ª fase. 20 - Com exceção de uma vez em que o 1.º Autor conseguiu falar com a 2.ª Ré mulher, expondo-lhe a situação, ninguém atendia na sede da 1.ª Ré, presencial ou telefonicamente, e por sua vez, o seu gerente, o 2.º Réu varão, BB, deixou de atender o telemóvel depois de setembro de 2021. 21 - Os Autores decidiram escrever uma carta à 1.ª Ré, em 29-06-2022, concedendo-lhe um derradeiro prazo até 30 de agosto de 2022 para concluir a obra, ou seja, concedendo-lhe mais 2 meses para o efeito, sob pena de perda de interesse dos Autores na prestação da 1.ª Ré (cf. doc. 3 que junta e aqui dá por reproduzido para todos os efeitos legais e que se acha anexo à notificação judicial avulsa que constitui o doc. 4). 22 - A 1.ª Ré recebeu tal carta. 23 - Em 30-08-2022 a 1.ª Ré enviou uma carta aos Autores a explicar os motivos da suspensão dos trabalhos. (Doc. 3 junto com a Contestação e cujo teor se dá por reproduzido). 24 - O Autor, através de notificação judicial avulsa (cf. doc. 4) intimou a 1.ª Ré nos seguintes termos: “Em face do exposto e designadamente nos termos dos arts. 798.2 e 8042 do C.C., vem o rte. interpelar a rda. para no prazo de 15 dias adicionais, em complemento do prazo já concedido por carta, e esgotado: a) concluir a obra e b) entregar-lhe todas as facturas e recibos respeitantes aos pagamentos por si efectuados, tudo sob pena de, em consequência da mora registada, o rte. perder definitivamente o interesse na prestação e considerar-se incumprida a obrigação da rda., com todas as consequências civis daí resultantes, nomeadamente, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, danos emergentes e lucros cessantes.” 25 - Após o facto descrito em 18), os Autores procuraram outro empreiteiro que pudesse concluir a obra e os trabalhos ainda por executar. 26 - O acordo para a nova empreitada foi feito com a sociedade “FF, Lda.”, a qual, após visita à obra, elaborou 2 orçamentos: um, específico para os trabalhos em falta e respeitantes às 2.ª e 5.ª fases do orçamento da 1.ª Ré; e outro, para a conclusão da obra (cf. docs. 5 e 6 que junta). 27 - A adjudicação da empreitada a um novo empreiteiro para a conclusão da obra, realizando os trabalhos não executados, orçava, à data da propositura da ação a quantia de 124.518,38 €, somatório de 108.168,38 € (cf. doc. 5 [atinente a “Execução dos acabamentos e o que falta executar em vivenda”]) e 16.350,00 € (cf. doc. 6 [atinente a “alteração da cobertura da vivenda” / “trabalhos a executar para a rectificação da cobertura). 28 - O 1.º Réu pagou o aluguer de um gerador, para fornecer eletricidade à obra dos Autores e que teve um custo total de 1.600,00 € sendo que, o valor da eletricidade foi de 1.440,00 €. 29 - O Réu suportou despesas com as cantarias em granito no valor de 5.878,17 € (faturas doc. 9 [emitida em nome da Ré AA, Lda.] e 10). 30 - Foi o Autor quem, no dia 07-08-2021 efetuou o pedido de abastecimento de água à obra. 31 - Antes dessa data quem pagava a água era o 1.º Réu. 32 - O Autor marido pagou a quantia de 12.000,00 € respeitante aos móveis de cozinha e armários. Enquadramento jurídico Na fundamentação de direito da sentença foram tecidas, no que ora importa, posto que os Apelantes não questionam o decidido quanto à questão da litigância de má fé, as seguintes considerações (acrescentámos o sublinhado): «No âmbito dos presentes autos, ficou demonstrado que entre a 1.ª R., no âmbito do seu objeto social, e os Autores (AA.) foi ajustada a construção de uma moradia, a edificar no lote denominado pelo n.º 11, sito na Rua 1, da União das freguesias de Santa Iria de Azóia, São João da Talha e Bobadela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º GG, propriedade dos AA. Esse acordo (celebrado entre as partes, no início de 2019 e denominado contrato de empreitada) teve por base o descritivo, preços e fases constantes do orçamento da 1.ª R., de 06.10.2018, pelo valor global de € 209.101,13, já com IVA à taxa de 23% incluído. Tal contrato celebrado entre um particular e uma empresa qualifica-se como empreitada de consumo, nos termos dos artigos 1207 a 1211, 1220 a 1222 do CC e nos artigos 1-A, 1-B/-a do DL 67/2003, de 08/04, na versão do DL 84/2008, de 21/05 (uma vez que o DL 84/2021, de 18/10 apenas se aplica aos contratos celebrados após a respectiva entrada em vigor, em 01/01/2022 – cf. artigos 53 a 55). Trata-se de um contrato sinalagmático, isto é, do qual resultaram obrigações para a empreiteira, a saber: de realizar a obra, e para o dono da obra (Autores) a de pagar àquela o preço convencionado. Ora, o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato – artº 1208º -, e o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso contrário, no acto de aceitação da obra – artº 1211º, nº 2. Ao contrato de empreitada aplicam-se não só as normas especiais previstas no artº 1207º e segs., como também as regras gerais relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações que com aquelas se não revelem incompatíveis. Os contratos devem ser pontualmente cumpridos no quadro dos princípios da boa fé envolvente de ambos os contraentes – artºs 406º, nº 1, e 762º, nº 2. O devedor em geral cumpre a obrigação quando, de boa fé, realiza a prestação a que está adstrito e, a contrario, não cumpre a obrigação quando não realiza a prestação a que está vinculado. Ao credor incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento da obrigação do devedor, e a este os factos reveladores de que tal não depende de culpa sua – artº 799º, nº 1. Verificado o incumprimento do contrato por parte do devedor, assiste ao credor a faculdade da sua resolução, salvo se se tratar de mera situação de mora – artºs 432º, nº 1, 762º, nº 1, 804º, nº 2, e 801º, nº 1. Com efeito, a lei expressa, por um lado, que tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação – artº 801º, nº 1. E, por outro, se a obrigação tiver por fonte um contrato bilateral – como no caso dos autos -, independentemente do direito à indemnização, pode o credor resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a sua restituição por inteiro – artº 801º, nº 2. Daqui decorre que o direito do credor à resolução do contrato está indelevelmente ligado à impossibilidade culposa da prestação do devedor (não cumprimento definitivo). Casos há, porém, que não configurando uma verdadeira impossibilidade da prestação – casos em que a prestação devida, apesar de não ter sido efectuada no momento próprio, seria ainda possível – são, todavia, equiparados pela lei ao incumprimento definitivo. São as situações em que a prestação perdeu, com a demora, todo o interesse que tinha para o credor, e as que, depois de ter incorrido em simples demora no cumprimento, o devedor não realiza a prestação “dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor”. Nestas hipóteses, configuradas no artº 808º, nº 1, a mora do devedor é equiparada ao não cumprimento definitivo da obrigação, conferindo, por isso, ao credor o direito à resolução do contrato. No caso vertente, ficou demonstrado que a obra deveria estar concluída pelo menos até Junho de 2020 e que, tal era um elemento essencial para os AA os quais, por razões de ordem pessoal necessitavam da casa. Aliás, conforme previsto no Orçamento apresentado pela Ré (vide doc.1 junto com a petição inicial), a obra deveria estar concluída no prazo de 10 meses porquanto, os AA., por condicionantes da sua vida pessoal e familiar e mercê de compromissos assumidos, tinham necessidade de mudar de habitação. De acordo com as posições das partes, importa saber se houve abandono da obra pelo empreiteiro ou desistência pelo dono da obra e se o direito de resolução do contrato foi corretamente exercido pela autora. A jurisprudência tem entendido que o abandono da obra, atendendo às circunstâncias do tempo e do modo que o revestiu, pode ser interpretado como expressão de vontade firme e definitiva, por parte do empreiteiro, de não cumprir o contrato. E, em tal caso, o dono da obra pode resolver o contrato sem necessidade de interpelação admonitória prevista no artigo 808/1 do CC. A propósito desta figura lê-se no ac. do STJ de 14/01/2021, proc. 2209/14.0TBBRG.G3.S1: “Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de acções que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do acto de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.” Por outro lado, a desistência da empreitada pelo dono da obra é uma forma específica de extinção do contrato de empreitada prevista no art. 1229 do CC. No caso em apreciação, não só os factos indiciam o abandono da obra pelo empreiteiro, mostrando-se demonstrado que os trabalhos foram interrompidos em Setembro de 2021, e a insatisfação manifestada pelos AA na carta de 29.06.2022, que remeteram à Ré e não demonstrado que foram retomados, muito menos após a notificação judicial avulsa em que estes interpelam a ré a retomar os trabalhos, sob pena resolução, pelo que se mostra cumprido o disposto no art. 808/1 do CC. Subsumindo a factualidade apurada aos preceitos legais citados, justificada se encontra a resolução, operada pelo A., do contrato de empreitada que celebrou com a R., por incumprimento definitivo por parte desta. Os AA decidiram escrever uma carta à 1.9 R., em 29.06.2022, concedendo-lhe um derradeiro prazo até 30 de agosto de 2022 para concluir a obra, ou seja, concedendo-lhe mais 2 meses para o efeito, sob pena de perda de interesse dos AA. na prestação da 1.ª R. (cfr. doc. 3 que junta e aqui dá por reproduzido para todos os efeitos legais e que se acha anexo à notificação judicial avulsa que constitui o doc. 4). A 1.ª R. recebeu tal carta. Em 30.08.2022 a 1º R enviou uma carta aos AA a explicar os motivos da suspensão dos trabalhos. (Doc 3 junto com a contestação e cujo teor se dá por reproduzido). O A., através de notificação judicial avulsa (cfr. doc. 4) intimou a 1.9 R. nos seguintes termos: “Em face do exposto e designadamente nos termos dos arts. 798.2 e 8042 do C.C., vem o rte. interpelar a rda. para no prazo de 15 dias adicionais, em complemento do prazo já concedido por carta, e esgotado: a) concluir a obra e b) entregar-lhe todas as facturas e recibos respeitantes aos pagamentos por si efectuados, tudo sob pena de, em consequência da mora registada, o rte. perder definitivamente o interesse na prestação e considerar-se incumprida a obrigação da rda., com todas as consequências civis daí resultantes, nomeadamente, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, danos emergentes e lucros cessantes.” Esta missiva corporiza a perda definitiva de interesse na prestação da Ré e estabelece o ponto a partir do qual, está legitimada a perda de interesse dos AA na prestação da mesma. Mas quais as legais consequências desta perda de interesse? Como vimos, não podem restar dúvidas de que o contrato não chegou ao seu termo pois a obra não foi concluída pela ré. No caso, indicando os factos que o empreiteiro optou por não prosseguir a obra e nada mais se tendo apurado, há que concluir pelo incumprimento definitivo pela ré do contrato de empreitada, com a obrigação de indemnizar o dono da obra pelos prejuízos resultantes de tal incumprimento. Conforme estipula o art. 436/1 do CC a resolução é equiparada quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio (artigos 285 a 294 CC) operando retroactivamente, salvo o disposto no art. 436/1 do CC. Daqui decorre que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não se mostrar viável, como sucederá relativamente a materiais e trabalho já incorporados num imóvel, deverá ser restituído o valor equivalente. Por efeito do referido incumprimento contratual, a empreiteira tornou-se responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra, de harmonia com o princípio geral de responsabilidade do devedor consagrado no art. 798.º do CC. O prejuízo ou dano indemnizável pode compreender o dano emergente e o lucro cessante (art. 564.º, n.º 1, do CC). Neste caso, estando apenas em causa o dano emergente, questiona-se a sua medida, nomeadamente o preço que os AA tiveram de pagar para a conclusão da obra, despesas realizadas e a indemnização por danos não patrimoniais. Ficou provado que os AA tiveram que contratar um outro empreiteiro para concluir os trabalhos da moradia que o Réu não concluiu. A adjudicação da empreitada a um novo empreiteiro para a conclusão da obra, realizando os trabalhos não executados, orçava, à data da propositura da ação a quantia de € 124.518,38. Razão pela qual entendemos ser este o valor em dívida aos AA. Não fixamos qualquer valor a título de danos morais porquanto, quanto a estes não foi feita nenhuma prova.» Os Apelantes pugnam pela improcedência da pretensão dos Autores. Os Apelados defendem o acerto da decisão recorrida. Apreciando. Começamos por lembrar que a ilegitimidade processual é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, conducente ao indeferimento liminar da petição/requerimento inicial ou, findos os articulados, à absolvição da instância; no caso de se tratar da ilegitimidade singular (isto é, não decorrente da preterição de litisconsórcio necessário), tal exceção é insanável - cf. artigos 6.º, 30.º, 33.º, 260.º a 262.º, 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. e), 578.º e 590.º, n.º 1, do CPC. Por a legitimidade das partes se tratar de um pressuposto processual, de determinação prévia ao conhecimento do fundo da causa, consagrou-se, no art. 30.º do atual CPC (e já antes no CPC de 1961 – cf. art. 26.º na redação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12), o entendimento jurisprudencial maioritário (na esteira da doutrina sustentada por Barbosa de Magalhães - cf. “Gazeta da Relação de Lisboa”, vol. 32, pág. 274), de que tal pressuposto deve, em regra, ser aferido em função da forma como o autor configura a relação material controvertida: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. Nos presentes autos, não tendo antes sido apreciada, inexiste caso julgado formal que obste ao conhecimento oficioso da exceção na fase de recurso. Ora, em face da relação material controvertida, tal como foi configurada na Petição Inicial, parece-nos evidente que o Réu não pode ser considerado titular da relação material controvertida, a qual consiste numa relação jurídica de natureza contratual, atinente ao contrato de empreitada celebrado entre Autores, como donos da obra, e a 1.ª Ré, como empreiteira, não se descortinando nesse articulado, quanto ao Réu, uma pretensão indemnizatória (muito menos correspondente à totalidade da quantia peticionada) fundada em qualquer outra relação material controvertida. Nem nos parece que este Tribunal da Relação possa conhecer da suposta responsabilidade civil extracontratual do Réu agora (não na Petição Inicial) invocada pelos Apelados, ao convocarem os artigos 78.º e 79.º do CSC, tanto mais que não foi requerida, na alegação de resposta, a ampliação do âmbito do recurso a esse propósito, tratando-se mesmo de uma questão nova, que não foi sequer aflorada na sentença. Quanto à inadmissibilidade da apreciação de questões novas nos recursos, veja-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 23-03-2017, na Revista n.º 4517/06.5TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt: “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso (art. 627.º, n.º 1, do CPC).” Também Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág. 119, explica que: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto, de em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”. Assim, não podemos deixar de concluir que o Réu, no contexto dos factos alegados, é parte ilegítima e deveria ter sido absolvido da instância. No entanto, não se olvida que, conforme expressamente previsto no art. 278.º, n.º 3, do CPC, “(A)s exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.” Ora, assim sucede nos presentes autos, ante os factos provados. Apreciemos, pois, o acerto do decidido pelo Tribunal a quo quanto à obrigação de pagamento aos Autores de quantia indemnizatória. Antes de mais, importa salientar que não estão provados quaisquer factos constitutivos de uma obrigação do Réu indemnizar os Autores pelos danos decorrentes do incumprimento do contrato de empreitada, não lhe podendo ser imputada a responsabilidade contratual discutida nos autos. Sempre se diga, que, ainda que se admitisse a possibilidade de fazer um enquadramento jurídico do caso nos termos agora indicados pelos Apelados, é manifesto que os factos provados não permitem concluir pela verificação dos requisitos previstos nos artigos 78.º e 79.º do CSC. Assim, o Réu será absolvido do pedido. A Ré-Apelante não discorda da qualificação jurídica do contrato de empreitada de consumo em apreço, nem sequer põe em causa, pelo menos nas conclusões da sua alegação recursória, que o mesmo foi por si definitivamente incumprido, reconhecendo que faltava concluir a obra. Apenas parece questionar a quantificação dos danos que daí advieram para os Autores. Aliás, é evidente que a situação descrita causou danos patrimoniais aos Autores, considerando o preço da empreitada acordado e os pagamentos que efetuaram, bem como a circunstância de terem ficado por concluir os trabalhos respeitantes às 2.ª e 5.ª fases do orçamento da Ré, e por realizar os trabalhos das duas últimas fases da obra, e que para a conclusão de todos esses trabalhos os Autores tiveram de contratar um novo empreiteiro, que os orçou em 16.350,00 € e 108.168,38 €, respetivamente; além disso, o Autor teve de pagar a quantia de 12.000,00 € respeitante aos móveis de cozinha e armários, que estavam incluídos no orçamento da obra que foi adjudicada à Ré. Argumenta a Apelante, se bem se percebe a sua posição (o que não é fácil), que deveria ter sido feita uma avaliação do valor dos trabalhos em falta, o que não sucedeu, inexistindo fundamento para a atribuição aos Autores da quantia indemnizatória peticionada. Vejamos se lhe assiste razão. Está consagrado no art. 562.º do CC o princípio geral segundo o qual “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.” Preceitua o art. 564.º do CC, sob a epígrafe “Cálculo da indemnização”, que: 1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. 2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior. Ademais, estabelece o art. 566.º do CC que: “1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. 2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. 3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.” De referir que a possibilidade de recorrer à equidade nos termos previstos no citado n.º 3 do art. 566.º quando não esteja quantificado o montante dos danos, não obsta a que, conforme resulta dos termos conjugados dos artigos 564.º, n.º 2, e 566.º, n.º 3, do CC, e 358.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, do CPC, possa haver uma condenação no pagamento de quantia a liquidar em ulterior incidente. No caso em apreço, ante os factos provados, não nos parece que a solução do caso imponha uma “avaliação” nos moldes referidos pela Apelante, nem sequer que justifique uma condenação em quantia a liquidar ou o julgamento segundo a equidade. Na verdade, os factos apurados são suficientes para, seguindo a teoria da diferença consagrada nos citados artigos 562.º e 566.º, n.º 2, do CC, calcular os danos sofridos pelos Autores, considerando que, em circunstâncias normais, se não fosse a conduta ilícita e culposa da Ré, a obra teria sido concluída (com as devidas retificações) mediante o pagamento das duas últimas tranches (além do IVA devido). De salientar que, contrariamente ao alegado pelos Autores/Apelados, não ficou provado que o último pagamento que efetuaram, em julho de 2021, tenha sido no montante de 20.910 €, nem que acresça aos demais, apenas se podendo entender, da leitura do conjunto dos factos provados, que pagaram o valor correspondente a 80% da obra, ou seja, a tranche da adjudicação e outras 7 tranches adicionais. Logo, ainda deveriam ter pago à Ré, para a conclusão da obra, a quantia de 41.820,22 €. Tudo ponderado, parece-nos que os prejuízos dos Autores podem ser calculados assim: - 12.000 € relativos ao valor da cozinha que tiveram de pagar a mais, pois estava incluída no orçamento; - 16.350 € relativos ao valor dos trabalhos ditos de “retificação do telhado”, que deveriam ter sido realizados na 2.ª fase; - 66.348,16 €, correspondente à diferença entre o montante de 108.168,38 €, que os Autores tiveram de pagar ao novo empreiteiro pela conclusão dos trabalhos, e o valor de 41.820,22 € que teriam de pagar à Ré pela conclusão da obra. Tudo somado, os danos sofridos ascendem a 94.698,16 €, sendo esta a quantia indemnizatória que a Ré (e não também o Réu) está obrigada a pagar aos Autores. Assim, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido parcial provimento. Vencidos em parte, tanto os Autores-Apelados, como a Ré-Apelante, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais, da ação e do recurso, na proporção do decaimento, que se fixa, na ação, em 65% para a Ré-Apelante e 35% para os Autores-Apelados, e, no recurso, em 76% para a Ré-Apelante e 24% para os Autores-Apelados (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). *** III - DECISÃO Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que julgou a ação totalmente procedente, decidindo-se, em substituição julgar a ação parcialmente procedente: a. Absolvendo o Réu BB do pedido; b. Condenando a Ré AA, Lda. a pagar aos Autores CC e DD a quantia indemnizatória de 94.698,16 € (noventa e quatro mil, seiscentos e noventa e oito euros e dezasseis cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado; Mais se decide condenar os Autores-Apelados e a (1.ª) Ré-Apelante no pagamento das custas da ação e do recurso, na proporção do decaimento, que se fixa (i) na ação em 65% para a Ré-Apelante e 35% para os Autores-Apelados, e (ii) no recurso em 76% para a Ré-Apelante e 24% para os Autores-Apelados. Atendendo aos factos provados atinentes à falta de emissão de faturas e pagamento de IVA, determina-se que seja extraída certidão do presente acórdão e remetida à Autoridade Tributária para os fins tidos por convenientes, D.N. Lisboa, 25-09-2025 Laurinda Gemas Rute Sobral Susana Mesquita Gonçalves |