Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
111/23.4YUSTR.L1-PICRS
Relator: ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA
Descritores: SUPERVISÃO
PROVA PROIBIDA
CONTRA-ORDENAÇÃO
DIREITO À NÃO AUTO INCRIMINAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–A sentença recorrida não enferma de vícios de nulidade por falta de fundamentação ou excesso de pronúncia (artigo 379.º, n.º 1 alíneas a) e c), do Código do Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO).

2.–No procedimento administrativo de supervisão, nenhuma dúvida haverá quanto à possibilidade de utilização dos elementos coligidos pela Autoridade da Concorrência, no âmbito dos poderes de supervisão, em ulterior procedimento contraordenacional.

3.–Resultando, pois, que a prova recolhida pelo Banco de Portugal em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da Recorrida CGD, foi obtida no uso de poderes legítimos de supervisão, não se vislumbra qualquer objeção à utilização ou valoração de tais meios de prova no plano sancionatório, o que equivale a dizer que, contrariamente à sentença recorrida, não se entende estar perante qualquer proibição de prova por violação do direito contra a autoincriminação.


SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa



I.–RELATÓRIO


Recorrente/ Entidade Supervisora: Banco de Portugal
Recorrida/ arguida: Caixa Geral de Depósitos, S.A. (doravante, CGD)

1.–A CGD impugnou judicialmente a decisão do Banco de Portugal que a condenou nas seguintes coimas:
i.-3 000,00 euros por cada uma das quatro contraordenações praticadas a título negligente em violação do disposto no art. 11º, nº1 do DL nº 184/2007, de 10 de maio, consubstanciadas na prestação de informação incorreta, incompleta ou omissa no que diz respeito à recirculação de moedas metálicas;
ii.-3 000,00 euros por cada uma das vinte e uma contraordenações praticadas a título negligente em violação do disposto no art. 12º, nº3 do DL nº 195/2007, de 15 de maio, consubstanciadas na prestação de informação incorreta, incompleta ou omissa no que diz respeito à recirculação de notas de euro;
iii.-3 000,00 euros por uma contraordenação praticada a título negligente em violação do disposto nos art. 6º, nº1 e 8º, nº2, ambos do DL nº 195/2007, de 15 de maio, conjugados com o ponto 6.1 da Instrução nº 35/2012 do BdP e art. 13º, nº2, alín. b) daquele Decreto-Lei, consubstanciada na atividade manual de recirculação de numerário por funcionário sem habilitação para o efeito;
iv.-3 000,00 euros por uma contraordenação praticada a título negligente em violação do art. 8º, nº1 e 10º, nº1, alín. c) da Lei nº 5/98, de 31 de janeiro (Lei Orgânica do Banco de Portugal – LOBP), consubstanciada no incumprimento de normas sobre retenção de notas de euro contrafeitas;
v.-3 000,00 euros por cada uma das quatro contraordenações praticadas a título negligente em violação do art. 4º, nº2 e 6º, nº1, ambos da Instrução nº19/2021 do BdP, conjugados com o art. 210º, alín. m) do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras – RGICSF), consubstanciadas no incumprimento dos procedimentos a seguir em caso de retenção de notas de euro contrafeitas ou suspeitas de contrafação;
vi.-Cumuladas numa coima única de 60 000,00 euros.

2.–O tribunal a quo,após receber o recurso de impugnação judicial e realizar audiência de julgamento, proferiu sentença em 25-01-2024 (ref.ª 447831), onde, em sede de questões prévias, conheceu de alegada nulidade invocada pela Impugnante e relativa à violação do princípio da não autoinculpação, julgando-a procedente.

3.–O teor do dispositivo da referida sentença é o seguinte:
Em conformidade, julgando procedente a questão prévia deduzida pela arguida, ao abrigo do disposto nos art. 20º, nº 4 e 32º da Constituição da República Portuguesa; 126º, nº 2, alín. a) e 417º, nº 7, alín. b) do Código de Processo Penal (ex vi, art. 41º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas), declaro nula toda a prova produzida no presente processo contraordenacional por violação do princípio Nemo Tenetur se Ipsum Accusare, pelo que determino a remessa dos autos ao Banco de Portugal para renovação da prova produzida nos termos acima expostos, e consequente tramitação posterior, como seja a notificação à arguida nos termos e para efeitos do art. 50º do RGCOC.”.

4.–De tal decisão vieram recorrer o Banco de Portugal (ref.ª 47921503) e o Ministério Público (ref.ª Citius n.º 78525).
5.–Sobre uma questão prévia suscitada pela CGD, relativa à admissibilidade dos recursos, foi proferida decisão pelo Relator em 31-05-2024 (ref.ª 21657074), decidindo pela admissibilidade dos recursos ao abrigo do disposto no artigo 73.º, n.º 2, do RGCO.

6.–Nas alegações de recurso do Ministério Público foram formuladas as seguintes conclusões e pedido:

1.–Nos termos do dispositivo da decisão ora recorrida pode ler-se o seguinte: «julgando procedente a questão prévia deduzida pela arguida, ao abrigo do disposto nos art. 20º, nº4 e 32º da Constituição da República Portuguesa; 126º, nº 2, alín. a) e 417º, nº7, alín. b) do Código de Processo Penal (ex vi, art. 41º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas), declaro nula toda a prova produzida no presente processo contraordenacional por violação do princípio Nemo Tenetur se Ipsum Accusare, pelo que determino a remessa dos autos ao Banco de Portugal para renovação da prova produzida nos termos acima expostos, e consequente tramitação posterior, como seja a notificação à arguida nos termos e para efeitos do art. 50º do RGCOC.
2.–Tal solução assim encontrada pelo tribunal recorrido determinou, na prática, o arquivamento dos presentes autos em sede jurisdicional, nos termos do artigo 73º nº 1 al. c) do RGCOC, pelo que, mesmo atendendo ao valor da coima aplicada à recorrida, esta mesma sentença é recorrível, devendo ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso uma vez que do dispositivo constam determinações susceptíveis de afectar a validade dos actos subsequentes – cfr. artigo 408º nº 3 do CPP.
3.–Contudo, mesmo quando assim não se entenda, e sem prejuízo da inserção sistemática e unitária que por ora aqui se reitera, é entendimento do Ministério Público que o recurso ora interposto – nos termos do requerimento logo no início lavrado – deverá ser acolhido nos termos do artigo 73º nº 2 do RGCOC, uma vez que urge dar melhor Direito à questão concretamente tratada pelo tribunal recorrido.
4.–Na verdade, e salvo o devido respeito, o tribunal recorrido optou por um juízo decisório que apenas lhe pareceu «mais justo», revelando somente uma inclinação – não apoiada em qualquer previsão legal expressa – para um entendimento erróneo acerca do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, dos poderes de supervisão que ao Banco de Portugal assistem, e da natureza e autonomia do processo contraordenacional.
5.–Pelo que, num primeiro momento, em vez de meras aparências – ainda que legítimas porque derivadas de um processo de formação de vontade lógico – cumprirá conferir certezas sobre os valores em causa no presente processo.
6.–Para tanto, não basta um qualquer exercício «aristotélico» em que se colocam de lados opostos as opiniões «contra» e a «favor» do que seja o aparente «aproveitamento» dos elementos probatórios recolhidos em sede de supervisão num processo contraordenacional, que, em boa verdade, só surge, dada a constatação da prática de uma infracção.
7.–A ser excogitável a opção proposta pelo tribunal recorrido, nomeadamente no sentido de ter de se proceder à imediata constituição de arguido aquando da aquisição da notícia da infracção, sempre se pergunta, então, quem irá proceder à validação da mesma, e qual o destino das provas anteriormente obtidas, caso tal validação não ocorresse – artigo 58º do CPP, em especial o seu nº 7.
8.–Dito de outro modo, não bastava ao tribunal recorrido defender a imediata constituição de arguido de qualquer visado (o que, no caso da fiscalização de pessoas colectivas como a recorrida, sempre dúvidas surgiriam sobre quem a deveria representar em tal acto), e estabelecer uma proibição, tout court, de utilização de todos os meios probatórios até então recolhidos.
9.–De igual modo, o tribunal recorrido também não deu resposta – não fundamentando a decisão proferida – sobre que tipo de impedimento, previsto no próprio Código de Processo Penal, a que parece ter dado preferência, poderia impender sobre os inspectores do Banco de Portugal em obterem dos trabalhadores dos balcões da recorrida esclarecimentos sobre os procedimentos de reporte aí adoptados, face ao que era comunicado, bem como à concreta identificação e localização das máquinas ATM disponíveis para depósito de numerário, sem antes comunicarem a estes últimos uma qualquer faculdade de não responder a tais perguntas – por exemplo, à semelhança do disposto no artigo 134º nºs 1 al. c) e 2 do Código de Processo Penal;
10.–Sendo sempre certo, reitera-se que, no âmbito de um procedimento de supervisão, não se vê sequer como possível a antecipação da garantia prevista no artigo 52º nº 2 do RGCOC.
11.–A sentença ora posta em crise padece, pois, não só de falta de fundamentação – nulidade que desde já se invoca nos termos do artigo 379º nº 1 al. a) do CPP, tendo por referência o disposto no artigo 374º nº 2 do mesmo diploma legal – mas também de um erro crasso de julgamento, advindo da interpretação operada pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 126º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, nomeadamente no tocante ao seu alcance e interpenetração com o princípio da não auto-incriminação.
12.–Com efeito, tal proibição de prova existe no âmbito de um processo em que se está perante factos susceptíveis da prática de um crime e onde o suspeito da sua autoria, constituído arguido, goza de um estatuto próprio, garantístico da sua integridade e dignidade pessoal que são notas essenciais da própria presunção de inocência e da rejeição de ver tal sujeito como um «objecto» do próprio processo e não um membro, uma pessoa, integrante de uma comunidade de Direito.
13.–Ou seja, perante as consequências verdadeiramente dramáticas que subjazem ao juízo de censura ético-jurídica de um comportamento desconforme à normatividade vigente e agressor de bens que se vêem como básicos e acessíveis a todos quantos pretendem coexistir pacificamente numa mesma sociedade, não será realmente admissível – desatendendo intencionalmente à possibilidade de ocorrência de um qualquer erro ou à existência da sempiterna dúvida, que se quer razoável – extrair do presumível autor da prática do crime todo e qualquer tipo de prova, como que a forçar um resultado e uma convicção pré-definidos.
14.–Deste modo, quanto ao direito contraordenacional as valorações axiológicas não podem ser exactamente as mesmas que presidem à existência de garantias no processo criminal.
15.–Como dizia Eduardo Correia, citado no Parecer da PGR de 10/07/2013, «“as contraordenações, no ponto em que exprimem apenas uma censura de natureza social e se traduzem num mal com o sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica, devem «enquadrar-se, não no ilícito criminal, mas no ilícito administrativo e, portanto, em vez de penas criminais, só podem corresponder-lhes reacções desprovidas dos sinais que caracterizam aquelas sanções”»;
16.–Pelo que, continua o mesmo Autor, «“as contraordenações, no ponto em que exprimem apenas uma censura de natureza social e se traduzem num mal com o sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica, devem «enquadrar-se, não no ilícito criminal, mas no ilícito administrativo e, portanto, em vez de penas criminais, só podem corresponder-lhes reacções desprovidas dos sinais que caracterizam aquelas sanções”».
17.–De resto, mesmo quanto à própria culpa, e ainda pelo mesmo é dito que «em vez de uma culpa fundamentada eticamente, só pode a seu respeito falar-se de uma censura social. A expressão desta censura não envolve, portanto, um sentido de retribuição ou de expiação ética, ligado a uma finalidade de recuperação do delinquente, mas exprime, apenas, a ideia de uma advertência de que está ausente o pensamento de qualquer mácula ético-social”».
18.–Deste modo, qualquer transposição directa do artigo 126º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal – até pela gravidade dos métodos que aí surgem como proibidos – ultrapassa os limites da aplicação subsidiária, antes se substituindo ao direito contraordenacional, e falhando assim os propósitos básicos deste último.
19.–De resto, convirá igualmente não esquecer que no âmbito da supervisão bancária – tomada a mesma como a necessidade lógica de garantir a eficácia das regras que dão forma a todo um sector que se pretende regulado a fim de prevenir disparidades sociais e desequilíbrios na distribuição da riqueza disponível – não cabe apenas ao Banco de Portugal o exercício de tais atribuições.
20.–Na verdade, muito antes de se poder colocar a questão dos limites do dever de colaboração das próprias entidades bancárias e instituições de crédito, convirá não esquecer que são estas últimas que chamam a si, desde o início, parte dessa mesma regulação, garantindo o cumprimento das regras estabelecidas.
21.–E esta «vocação» por parte de tais operadores económicos não deverá causar qualquer estranheza, a partir do momento em que for vista como o mínimo exigível em termos de contrapartida devida pela actuação num sector e numa actividade que é altamente lucrativa.
22.–Nessa mesma medida, o dever de colaboração assume-se como elemento essencial de uma relação dialógica, estabelecida de boa-fé, entre supervisor e entidades sujeitas à fiscalização;
23.–Tendo sempre estas últimas a consciência de quais as regras a cumprir – e que elas próprias adoptam logo à partida como sua atribuição – e as implicações de uma infracção às mesmas.
24.–Dito isto, não será difícil aceitar que uma das qualidades imanentes das acções inspectivas efectuadas ao abrigo dos poderes de supervisão será, justamente, a verificação de eventuais infracções praticas no exercício da actividade regulada e a sua respectiva documentação.
25.–Deste modo, para lá de qualquer ideia de «transporte» de provas ou meios de prova a partir de um contexto inspectivo para o domínio da punição, o que o tribunal a quo não reconheceu foi a susceptibilidade natural de tal conjunto de elementos constituir um «corpus» indiciário que estará sempre sujeito, no processo contraordenacional, ao contraditório por parte dos visados – a quem nada é escondido, a quem nada é sonegado, reconhecendo-se, aí sim com toda a obrigatoriedade, o direito à não auto-incriminação.
26.–Por sua vez, o tribunal recorrido mal andou ao mobilizar conceitos como «engano» ou «confiança», para, no final de contas, denunciar um pré-juízo, salvo o devido respeito, insustentável;
27.–O de que «por detrás» de qualquer acção inspectiva está sempre – mesmo que “em potência” e não “em acto” – uma intenção punitiva prévia.
28.–Toda a solução proposta pelo tribunal a quo violou – sem qualquer razão ponderosa de discordância que deveria ter sido sempre exposta, em nome da boa fundamentação das decisões – a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional que ele próprio citou.
29.–Sendo certo que, mesmo no caso do Acórdão nº 279/2022, de 26/04, estava até em causa a prática de um crime, e não de uma contraordenação;
30.–E onde, mesmo assim não foi julgada inconstitucional a norma que possibilitava o aproveitamento dos elementos recolhidos em sede inspectiva no âmbito do processo criminal.
31.–De resto, a tão propalada constituição formal como arguido – e aquisição de um estatuto próprio como o previsto no artigo 58º do CPP – não tem qualquer respaldo legal expresso, quer no RGCOC, em especial se olharmos para o disposto no artigo 50º, quer no RGICSF.
32.–E face ao que acima já foi exposto sobre a verdadeira natureza da figura da contraordenação e das necessidades, de mera ordenação social, que presidem à sua punição, não se poderá considerar estarmos perante uma qualquer lacuna, carente de integração pelo direito subsidiário, mas sim uma realidade distinta
33.–Nesse mesmo sentido e ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, não se poderá ver no fornecimento de esclarecimentos prestados por funcionários da recorrida ou de documentos recolhidos durante uma acção inspectiva qualquer violação das regras da prova aplicáveis apenas em processo penal.
34.–A solução encontrada pelo tribunal recorrido para a questão prévia levantada pela recorrida causa uma «entorse» em todo o processo de supervisão que, como já foi sendo dito, apenas consegue atingir a sua máxima efectividade no cumprimento das normas de regulação de um sector se, perante a verificação de uma infracção, a puder documentar e sustentar nos próprios suportes onde a mesma está clamorosamente patente.
35.–De resto, mesmo no tocante aos esclarecimentos prestados por funcionários da recorrida durante as acções inspectivas em causa nos presentes autos foram meras explicações espontâneas dadas no seguimento «da constatação directa efectuada pelos agentes da autoridade administrativa» (cfr. sentença recorrida, página 10), de uma dada realidade de facto, susceptível de configurar a prática de uma contraordenação.
36.–De facto, não se pode aceitar que a uma pergunta sobre a aptidão formativa de uma determinada trabalhadora em poder fazer conferências diferidas de numerário – quando observada a exercer tais funções (sendo um dever da supervisão indagar de tal qualidade), ou sobre a correcta identificação e concreta localização dos terminais automáticos aptos a receber depósitos de numerário, a resposta seja vista como uma confissão de uma infracção;
37.–Até porque os próprios sujeitos muito antes de estar a confessar algo, perante o tal engano – que, repita-se, não existe! – tinham consciência daquela mesma realidade, à mostra de todos.
38.–Desta forma, mesmo ao acolher o artigo 52º nº 2 do RGCOC no âmbito de um procedimento de supervisão, o tribunal a quo incorreu no erro de antecipar garantias, num exercício hermenêutico que não tem qualquer respaldo legal.
39.–Por fim, e em jeito de resumo, note-se que é a própria Lei, no artigo 116º nº 1 al. g) do RGICSF que confere, ainda no âmbito dos procedimentos de supervisão, «sancionar as infracções» que venham a ser constatadas, o que tem correspondência com o estatuído no artigo 213º do mesmo diploma legal;
40.–Em lado algum se falando em constituições formais de arguido, validação das mesmas, ou até mesmo casos de prova proibida.
41.–Pelo que face a tudo quanto assim se expõe, haverá que convir que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, conforme o acima referido.
42.–Contudo, tem-se por certo que o tribunal a quo violou ainda o disposto no artigo 64º nº 3 – não ganhando aqui relevo o facto de ter sido realizado julgamento, uma vez que a sentença se ficou pela análise de uma questão prévia, que poderia ter sido resolvida por tal despacho ali referido – ao ter ordenado, para lá do que constitui um verdadeiro arquivamento do processo jurisdicional, a remessa do mesmo para o Banco de Portugal, tendo em vista a suposta renovação da prova e a notificação da aqui recorrida nos termos do artigo 50º do RGOC (o mesmo que não prevê qualquer constituição prévia e formal de arguido).
43.–Tal parte do dispositivo viola igualmente o princípio da separação de poderes, talqualmente previsto na Constituição, na justa medida em que não se entrevê de que forma pode o poder jurisdicional emitir injunções acerca de procedimentos próprios das autoridades administrativas;
44.–As mesmas que gozam da prerrogativa da discricionariedade na condução da sua actividade, enquanto parte integrante do poder executivo, e relativamente às quais a sindicância, quanto ao cumprimento da Lei, no âmbito da prática de actos procedimentais, em geral – e excluídos aqueles que, por via recursiva específica (a qual não abrange por exemplo a impugnação de actos na sua versão clássica) se enquadram na cognoscibilidade do TCRS –, cabe aos Tribunais Administrativos.
45.–Pelo que, tal comando assim exposto no dispositivo da sentença recorrida deverá, quando muito, ter-se como não escrito e, no máximo, ser revogado.
46.–Melhor dito, ao tribunal recorrido apenas lhe assistia o poder de arquivar o processo que lhe foi apresentado nos termos do artigo 64º nº 3.
47.–Pelo que também aqui se verifica a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 379º nº 1 al. c) ao ter conhecido de uma questão – o subsequente andamento do processo administrativo perante a decisão proferida – que não lhe cabia conhecer.
48.–Nulidade que igualmente aqui se invoca.
49.–Face a tudo quanto assim é exposto, tem-se por certo que a sentença ora recorrida deverá ser substituída por outra que julgue improcedente, por falta de fundamento legal, a questão prévia suscitada pela recorrida e decida do mérito do recurso apresentado.
50.–Foram violadas, entre outras, quer por erro de interpretação, quer por erro de aplicação - e bem assim por falta de cumprimento dos requisitos previstos ou por vícios cominados com a nulidade – as normas dos artigos 116º nº 1 al. g), 213º nº 3 do RGICSF, 64º nº 3, 52º nº 2, e 50º do RGCOC, 126º nº 2 al. a), e 374º nºs 1 al. c) e 2 do Código de Processo Penal (conhecimento de questão sobre o subsequente andamento do processo administrativo em termos para os quais o tribunal a quo não era competente e falta de fundamentação da sentença).
Termos em que deve o presente recurso proceder, por provado, e a sentença ora recorrida ser substituída por Acórdão que declare a nulidade da mesma, face aos erros e vícios apontados, e ordene a decisão sobre o mérito do recurso apresentado pela ora recorrida.

7.–Por seu turno, nas alegações de recurso do Banco de Portugal, foram formuladas as seguintes conclusões e pedido:
I.–Na sentença recorrida, foram utilizados os seguintes argumentos para se decidir que a prova obtida nos presentes autos seria nula, por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare:
a.-a prova obtida consiste em documentos apresentados por funcionários da arguida nos balcões onde tiveram lugar as ações inspetivas ou declarações pelos mesmos prestadas, o que fizeram por a tal estarem obrigados;
b.-não foi comunicado aos funcionários em causa a possibilidade de as suas declarações e documentos entregues poderem ser utilizados como meio de prova contra a arguida;
c.-se tal tivesse sucedido, estes funcionários assumiriam a qualidade de testemunhas, pelo que poderiam recusar-se a depor, ainda que sujeitos à sanção pecuniária prevista no artigo 52.º, n.º 2, do RGCO;
d.-as informações prestadas e os documentos obtidos foram utilizados como prova no processo instaurado contra a arguida pelo Banco de Portugal;
e.-deste modo, o que foi dito e apresentado para o cumprimento de um dever de colaboração foi utilizado para uma finalidade sancionatória, sendo que se o tivesse sido para esta finalidade tal dever não existiria e poderia a arguida recusar-se a prestar as informações solicitadas;
f.-em consequência, as declarações e documentos foram obtidos por um meio enganoso, pelo que não poderiam ser utilizados pelo Banco de Portugal para efeitos sancionatórios, constituindo prova proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP;
g.-razão pela qual o processo deveria ser remetido novamente ao Banco de Portugal para renovação dos meios de prova obtidos e eventual produção de outros meios de prova.

II.–Esta argumentação, para além de incorrer em diversas contradições, assenta numa conceção equivocada dos termos em que o princípio nemo tenetur pode ser invocado no âmbito contraordenacional.
III.–Na sentença recorrida alarga-se o âmbito do direito à não autoinculpação, que passaria também a abranger as meras testemunhas, no que traduz, na perspetiva do Banco de Portugal e pelas razões que se enunciam, uma intolerável e inadmissível confusão entre a posição e o estatuto processual do arguido e das testemunhas.
IV.–A arguida nos presentes autos é uma pessoa coletiva, cuja representação compete a quem legal ou estatutariamente a deva representar, mormente os seus administradores (artigo 57.º, n.º 5, do CPP), pelo que os funcionários do balcão, assim como a generalidade dos seus trabalhadores, não a representam.
V.–O comum trabalhador da arguida, que não tem poderes para determinar o exercício dos direitos dos seus direitos de defesa, também não pode exercer ou determinar o direito de a pessoa coletiva não declarar contra si própria, porque a esfera da pessoa coletiva não se confunde com a esfera individual dos seus trabalhadores.
VI.–A asserção, contante da sentença recorrida, de que tais trabalhadores podiam, no limite, recusar-se a depor caso assumissem a qualidade de testemunhas constitui também, salvo o devido respeito, uma falácia: a douta sentença confunde a (i)legitimidade da recusa com a sanção aplicável em consequência de uma recusa ilegítima (nos termos do artigo 218.º, n.º 1, do RGICSF, até ao limite de € 10.200,00).
VII.–As testemunhas em processo contraordenacional – tal como em processo penal – estão vinculadas ao dever de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 132.º do CPP, aplicável neste âmbito por força do disposto no artigo 41.º do RGCO, bem como do 52.º, n.º 1, do RGCO.
VIII.–A única diferença traduz-se nas consequências do incumprimento deste dever, uma vez que, tratando-se de processo crime, esta recusa faz a testemunha incorrer na prática do crime p.p. no n.º 2 do artigo 360.º do Código Penal, enquanto a mesma recusa no âmbito de processo de contraordenação da competência do Banco de Portugal tem a consequência prevista artigo 218.º, n.º 1, do RGICSF, acima referida.
IX.–Aliás, existe norma expressa na alínea c) do n.º 1 do artigo 134.º do CPP que apenas permite a recusa de depoimento ao membro do órgão da pessoa coletiva, no processo em que a mesma seja arguida, pelo que tal recusa não assiste, por norma expressa, aos seus trabalhadores.
X.–A sentença recorrida interpretou os artigos 52.º, n.º 1, do RGCO, 132.º, n.º 1, alínea d), 134.º, n.º 1, alínea c) e 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, procedendo a um alargamento infundado e inadmissível do âmbito do direito à não autoinculpação, incluindo no seu âmbito os funcionários da arguida.
XI.–Na interpretação correta destes preceitos o direito à não inculpação apenas pode ser invocado pelo arguido e não por meras testemunhas, que estão legalmente vinculadas ao dever de responder com verdade às perguntas que lhes foram formuladas.
XII.–Ao decidir nos termos referidos a sentença recorrida violou os artigos 52.º, n.º 1, do RGCO, 132.º, n.º 1, alínea d), 134.º, n.º 1, alínea c) e 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, razão pela qual deve ser revogada e substituída por acórdão que julgue não ter ocorrido qualquer violação do direito à não inculpação, sendo lícitas as provas obtidas pelo Banco de Portugal.
XIII.–Sem prejuízo do que se invocou, ao contrário do decidido na sentença recorrida, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare não impede a utilização dos meios de prova obtidos no decurso de uma inspeção no processo contraordenacional instaurado em virtude das infrações apuradas.
XIV.– A primeira premissa incorreta em que assenta a sentença recorrida, a este respeito, é a seguinte: a prova recolhida numa ação inspetiva conduzida pelo Banco de Portugal não poderia, salvo advertência expressa, ser transferida e utilizada em processo de contraordenação que fosse instaurado e tramitado por este Supervisor, para investigação das infrações constatadas naquela inspeção.
XV.–Ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, a questão não chega a ser controversa; antes pelo contrário está – ou estava, até à douta sentença recorrida – resolvida e era pacífica.
XVI.–A doutrina e a jurisprudência maioritária atuais entendem que o acesso ao mercado financeiro gera, como proporcional contrapartida, uma restrição ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que legitima a transferência dos elementos recolhidos em sede de supervisão para o processo sancionatório que seja instaurado para esclarecimento e averiguação do relevo contraordenacional dos factos apurados, daí resultando para as entidades supervisionadas um fundamental dever de colaboração.
XVII.–Todos os elementos obtidos ao abrigo dos poderes inspetivos que competem ao Banco de Portugal, designadamente os previstos no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 184/2007 ou no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 195/2007, na medida em que possam constituir indícios da prática de uma infração, podem – aliás, ao abrigo do princípio da legalidade, devem – ser avaliados em sede contraordenacional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 184/2007 e do n.º 4 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 195/2007, para que se averigue nessa sede a existência (ou não) de indícios suficientes da prática de um ou vários ilícitos que determinem a instauração de processo de contraordenação ao abrigo dos poderes sancionatórios que igualmente competem ao Banco de Portugal.
XVIII.–Assim, quando Banco de Portugal, ao abrigo dos referidos preceitos legais, bem como do n.º 4 do artigo 10.º da sua Lei Orgânica ou do n.º 1 do artigo 213.º do RGICSF, entre 02.03.2022 e 29.04.2022, realizou um conjunto de 13 (treze) ações inspetivas a agências bancárias da CGD, estava a atuar simplesmente no exercício dos seus poderes inspetivos, na sua vertente de acompanhamento da atividade dos seus supervisionados.
XIX.–Mostra-se, assim, desprovido de sentido apelar a direitos inerentes ao estatuto jurídico de arguido quando, à data da verificação dos factos, a CGD não tinha, nem tinha de ter, esse estatuto.
XX.–Não há nenhuma regra específica, nem poderia existir, que imponha a constituição de arguido no âmbito de uma ação de fiscalização realizada pelo Banco de Portugal, que afastasse o seu dever de colaboração com o supervisor a coberto de uma extensão absoluta do seu direito ao silêncio como decidido, entre outros, pelo acórdão da Relação de Lisboa, de 30.10.2008, processo n.º 2140/08.9, decisão confirmada nos acórdãos posteriores deste Tribunal, nos processos n.º 3839/06.0TFLSB.L1, n.º 5523/07.8TFLSB.L1 ou n.º 1724/09.2TFLSB.L1.
XXI.–A aplicação do direito à não autoinculpação dos arguidos aos ilícitos de mera ordenação social terá de ser adaptada à existência dos deveres legalmente previstos sobre as entidades supervisionadas e, em consequência, não valerá aquele direito geral à não autoincriminação neste tipo de processos com toda a sua extensão, mas apenas com o sentido de que a entidade supervisionada não pode ser obrigada a prestar depoimento contra si própria, como decidido no acórdão da Relação de Lisboa, no acórdão de 30.10.2008, processo n.º 2140/08.9.
XXII.–Esta atividade do Banco de Portugal e o dever de colaboração dos supervisionados em nada contrariam a Constituição da República Portuguesa (nomeadamente o n.º 10 do artigo 32.º) nem o direito ao silêncio, uma vez que a garantia de defesa dos arguidos não pode significar a existência de atividades e mercados desregulados ou imunes, por natureza, à ação sancionatória em caso de incumprimento.
XXIII.–Neste caso, os direitos e garantias constitucionais de defesa são limitados (mas sem atingir o seu núcleo essencial) por força da coexistência com determinadas incumbências do Estado que também têm consagração constitucional – cfr., desde logo, o interesse público da estabilidade do sistema financeiro, que se extrai do disposto no artigo 101.º da Constituição – como decidido pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 461/2011.
XXIV.–Na jurisprudência podem-se destacar, aliás, um conjunto vasto de outros precedentes que, consistentemente, têm perfilhado por idêntico entendimento, muitos deles já citados em sede de demonstração da verificação dos requisitos de admissibilidade do presente recurso, fixados no n.º 2 do artigo 73.º do RGCO, entre os quais: sentença proferida pelo Tribunal recorrido no processo n.º 182/16.0YUSTR; sentença proferida pelo Tribunal recorrido no processo n.º 127/19.5YUSTR; acórdão da Relação de Lisboa, de 30.10.2008, processo n.º 2140/08.9, decisão reafirmada recorrentemente em Acórdãos posteriores daquele Tribunal, designadamente proferidos nos processos n.º 3839/06.0TFLSB.L1, n.º 5523/07.8TFLSB.L1 e n.º 1724/09.2TFLSB.L1; acórdão da Relação de Évora, de 11.07.2013, processo n.º 35/12.0YQSTR.E1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.07.2009; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.12.2009; acórdão da Relação de Lisboa, de 06.04.2011; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.06.2012; acórdão da relação de Lisboa, processo 379/21.0YUSTR.L1-PICRS, de 21.12.2022; e acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 461/2011 e n.º 340/2013.
XXV.–A averiguação tendente ao sancionamento de infrações consiste numa competência do Banco de Portugal que coexiste com a função de acompanhamento da atividade de recirculação de notas e moedas, o que bem se compreende que assim seja, pois será fundamentalmente através do exercício destas atividades que o Banco de Portugal tomará conhecimento da generalidade das infrações que são praticadas e, posteriormente, sancionará os respetivos incumprimentos, como sucedeu na sequência das 13 (treze) ações de inspeção dos presentes autos.
XXVI.–Não restam, pois, dúvidas de que a consagração de uma irrestrita conceção do princípio nemo tenetur se ipsum accusare na fase de supervisão constituiria um verdadeiro impedimento ao exercício das funções de supervisão do Banco de Portugal, conclusão que, para além de se fundar numa análise aturada da dogmática do direito sancionatório, assenta na compreensão de um corolário da própria função de supervisão: não há supervisão sem possibilidade de sancionar e não há possibilidade de sancionar sem supervisão (crf. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel Costa Andrade, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, 2009).
XXVII.–Em síntese e por tudo o exposto, a averiguação tendente ao sancionamento de infrações consiste numa competência que coexiste com e é indissociável da função supervisão atribuída a uma dada autoridade.
XXVIII.–Com efeito, é fundamentalmente através do exercício destas atividades – necessariamente concomitantes e complementares – que o Banco de Portugal toma conhecimento da generalidade das infrações que são praticadas e, a jusante, simultaneamente promove a reposição da legalidade (supervisão stricto sensu) e sancionará os respetivos comportamentos (supervisão sancionatória).
XXIX.–Admitir, como o faz a douta sentença recorrida, que “tudo quanto foi dito e apresentado para um determinado fim (ao abrigo de um dever de colaboração), foi utilizado para uma outra finalidade (sendo que para esta finalidade tal dever não existia, e poderia a arguida optar por não prestar informações)” equivaleria a inviabilizar a função de supervisão vista como um todo.
XXX.–Por outro lado, caso se assuma que as informações e documentação recolhidas através de ações de supervisão não poderão ser futuramente utilizadas como prova das infrações detetadas, tal significará que o ciclo supervisivo não se poderá completar, ficando as autoridades de supervisão coartadas quanto à possibilidade de recorrerem à sua função sancionatória, em claro prejuízo de uma lógica de prevenção geral e especial que deve presidir a tal função.
XXXI.–Portanto, o entendimento ora sustentado na douta sentença recorrida, não só constitui um retrocesso e uma aproximação inadmissível ao processo penal, como desconsidera as regras próprias do processo de contraordenação e, sobretudo, a dialética própria inerente a este concreto mercado regulado, bem como os comandos normativos que regem a relação entre a entidade supervisora e a entidade supervisionada, mormente, o artigo 120.º, n.º 3, do RGICSF.
XXXII.–Sendo que a Arguida, enquanto entidade sujeita à supervisão, aceitou, voluntariamente – não podendo ignorar as inerentes contrapartidas quando requereu autorização para exercer atividade – participar num mercado altamente regulado, aceitando sujeitar-se às respetivas regras (e, portanto, também, a um dever de colaboração mais intenso).
XXXIII.–A prevalecer a posição firmada na sentença recorrida, não só estaríamos a retroceder várias décadas de progresso essencial à sobrevivência do sistema financeiro, como estaríamos a prejudicar irremediavelmente a eficácia da supervisão, com consequências potencialmente desastrosas, já que esta ficaria impossibilitada de cumprir cabalmente a sua função, promovendo ou o desconhecimento da real situação das entidades supervisionadas por parte do supervisor ou uma supervisão inconsequente, porque inviabilizaria a possibilidade de se assacarem consequências sancionatórias às infrações apuradas em sede de ações de supervisão.
XXXIV.–A arguida é uma instituição de crédito significativa, que está a operar no mercado há muitas décadas, estando, inclusivamente, sob a supervisão direta do Banco Central Europeu (entidade que dispõe dos mesmos poderes de intrusão que são conferidos – até por legislação europeia – ao Banco de Portugal); e perante funcionários que integram uma cultura organizacional que têm naturalmente consciência dessa relação entre entidade sujeita à supervisão e supervisor.
XXXV.–É, pois, evidente, que qualquer colaborador da Caixa Geral de Depósitos sabe, ou tem o dever de saber, que a instituição para a qual trabalha está inserida num modelo de supervisão específico e que quaisquer documentos ou informações que sejam prestados, em interações com o Supervisor, podem ter relevância para a supervisão sancionatória, tal como resulta de forma clara do regime enquadrador da sua atividade (RGICSF).
XXXVI.–Os termos em que a prova foi obtida nos presentes autos não configuram, pois, qualquer engano, nem tal engano é suscetível de existir em abstrato, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
XXXVII.–Só o absoluto desconhecimento da dinâmica própria deste mercado e, em concreto, da supervisão levada a cabo pelo Banco de Portugal, permite sequer equacionar que a Caixa Geral de Depósitos e os seus funcionários ignoravam as consequências possíveis das interações com o Banco de Portugal numa ação inspetiva.
XXXVIII.–A sentença recorrida interpretou os artigos 11.º e 12.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 184/2007, 12.º e 13.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 195/2007, 52.º, n.º 1, do RGCO, 132.º, n.º 1, alínea d), 134.º, n.º 1, alínea c) e 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP no sentido de que a prova obtida em sede de inspeção da atividade de uma entidade supervisionada, traduzida em informações prestadas e documentos facultados pelos seus funcionários, não pode ser utilizada no processo contraordenacional que venha a ser instaurado em virtude das infrações detetadas, sob pena de violação do princípio nemo tenetur, constituindo prova proibida.
XXXIX.–Na interpretação correta destes preceitos a aplicação do direito à não autoinculpação dos arguidos aos ilícitos de mera ordenação social terá de ser adaptada à existência dos deveres legalmente previstos sobre as entidades supervisionadas e, em consequência, não valerá neste tipo de processos com toda a sua extensão, mas apenas com o sentido de que a entidade supervisionada não pode ser obrigada a prestar depoimento contra si própria, pelo que a prova obtida mediante a colaboração dos seus funcionários em sede de inspeções a entidades supervisionadas pode ser utilizada no processo contraordenacional que venha a ser instaurado para investigação dos factos apurados, não constituindo prova proibida.
XL.–Deste modo, a sentença recorrida padece de erro de julgamento, por violação dos artigos 11.º e 12.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 184/2007, 12.º e 13.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 195/2007, 52.º, n.º 1, do RGCO, 132.º, n.º 1, alínea d), 134.º, n.º 1, alínea c) e 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, e bem assim dos artigos 116.º e 120.º do RGICSF e 17.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, devendo, em consequência, ser revogada e substituída por acórdão que julgue que a prova obtida nos presentes autos pelo Banco de Portugal não enferma de qualquer vício.
XLI.–Aliás, a norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º e 12.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 184/2007, 12.º e 13.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 195/2007, 52.º, n.º 1, do RGCO, 132.º, n.º 1, alínea d), 134.º, n.º 1, alínea c) e 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, nos termos da qual que a prova obtida em sede de inspeção da atividade de uma entidade supervisionada, traduzida em informações prestadas e documentos facultados pelos seus funcionários, não pode ser utilizada no processo contraordenacional que venha a ser instaurado em virtude das infrações detetadas, sob pena de violação do princípio nemo tenetur, constituindo prova proibida, é inconstitucional, por violação do princípio da estabilidade do sistema financeiro, que se extrai do disposto no artigo 101.º da Constituição, inconstitucionalidade que expressamente se invoca.
XLII.–Ao contrário do decidido na sentença recorrida, não é viável que se proceda, em sede de processo administrativo, à determinada “renovação da prova, porquanto este instituto, como resulta do artigo 430.º do CPP, é de aplicação exclusiva aos recursos criminais perante as relações, que tenham por objeto matéria de facto e de direito e desde que a decisão recorrida padeça dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, traduzindo-se esta renovação na repetição em sede de audiência perante as relações da prova produzida em primeira instância.
XLIII.–Para além de constituir convicção do Banco de Portugal de que o Tribunal não pode, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, formular injunções dirigidas à autoridade administrativa que proferiu a decisão de aplicação de coima, razão pela qual o artigo 64.º, n.º 3, do RGCO não prevê, entre as modalidades de decisão a proferir em sede de impugnação judicial, a prolação de uma injunção que determine à Autoridade administrativa o modo como deve atuar.
XLIV.–Pelo exposto, a sentença recorrida, ao ter determinado a devolução dos autos ao Banco de Portugal, para que proceda à “renovação da prova”, violou ainda os artigos 417.º, n.º 7, alínea b) e 430.º. do CPP, bem como os artigos 62.º, n.º 1, e 64.º, n.º 3, do RGCO, razão pela qual, também, deve ser revogada e substituída por acórdão que determine a prolação de sentença em que sejam conhecidas as demais questões objeto dos presentes autos de impugnação judicial.
Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por acórdão que julgue que a prova obtida nos presentes autos não enferma de qualquer vício e determine a prolação de nova sentença para conhecimento das restantes questões objeto dos presentes autos de impugnação judicial.
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8.–A CGD respondeu aos recursos pugnando pela manutenção do decidido, além do mais, porque “impõe-se considerar que, ao abrigo dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, conjugados com o artigo 126.º, n.os 1 e 2, al. a) do CPP, a prova obtida em sede do exercício das competências de supervisão prudencial do Banco de Portugal, por meio de uma inspeção como a dos presentes autos – em que esta entidade (i) já antecipa a instauração de um processo contraordenacional, (ii) não informa a visada e seus agentes das respetivas garantias de defesa nem tão pouco dos fins possíveis (e prováveis) para os elementos que deles exige, (iii) não confirma ou esclarece os factos com os serviços centrais da Caixa Geral de Depósitos e (iv) não procede ao registo das diligências realizadas nem das declarações colhidas (onerando o posterior exercício da defesa) – não pode ser utilizada em processo contraordenacional por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, constituindo prova proibida, sob pena da sua inconstitucionalidade, que expressamente se invoca.”.
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II.–QUESTÕES

9.–Nestes termos, cumpre ao presente tribunal responder às seguintes questões:

Do recurso do Ministério Público
a.-A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação?
b.-A sentença recorrida é nula por ter conhecido de questão de que não podia?

Em ambos os recursos
c.-A prova utilizada pelo Banco de Portugal para imputar as 31 contraordenações, recolhida em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da recorrente, deve ser considerada prova proibida por violação do direito contra a autoincriminação?
Do recurso do Banco de Portugal
d.-A devolução dos autos ao Banco de Portugal, para que proceda à “renovação da prova”, violou ainda os artigos 417.º, n.º 7, alínea b) e 430.º. do CPP, bem como os artigos 62.º, n.º 1, e 64.º, n.º 3, do RGCO?
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III.–FUNDAMENTAÇÃO

10.–O presente recurso segue a tramitação prevista no CPP, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do RGCO.
11.–No âmbito de processos de contraordenação, em recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, como estatui o n.º 1, do art.º 75.º, do RGCO.
12.–Podem, ainda, ser conhecidos os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal. Acresce a possibilidade de conhecer de nulidades que não devam considerar-se sanadas ao abrigo do n.º 3 deste preceito.
13.–Importa também não esquecer, e constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação de recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
14.–De notar, por último, que os referidos preceitos do Código do Processo Penal, quando necessário, devem ser “devidamente adaptados” ao processo contraordenacional (artigo 41.º, n.º 1, do RGCO).
15.–Expostos os limites cognoscentes deste tribunal vejamos, pois, as questões suscitadas nos recursos.

A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação?

16.–Alega o Ministério Público que a sentença é nula por falta de fundamentação, invocando o disposto nos artigos 379.º n.º 1 al. a) e 374.º n.º 2 do Código do Processo Penal.
17.–Da nossa parte, entendemos que a falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há-de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório ou por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira” (cf. Ac. STJ de 26-03-2014, proc. n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1).
18.–Ora, analisado o despacho recorrido, é manifesto que não padece do alegado vício.
19.–Conforme resulta da sentença recorrida “[a] prova utilizada pelo BdP para imputar as 31 contraordenações foi recolhida em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da recorrente. Tais ações inspetivas foram realizadas no exercício dos poderes de supervisão das instituições de crédito conferidos por lei ao BdP. Não foi, por isso, prova recolhida no âmbito de um processo contraordenacional” (p. 5). Mais adiante esclarece a sentença que a “grande maioria da prova das infrações imputadas à arguida foi obtida mediante documentos apresentados por funcionários da arguida nos balcões desta onde foram efetuadas as ações inspetivas, e/ou mediante declarações prestadas por esses funcionários nas mesmas situações. O que fizeram por a tal estarem obrigados.” (p. 9).
20.–Mais afirma a sentença recorrida que “[o] BdP vem utilizando tais poderes de supervisão para obter provas contra a recorrente e instaurar subsequentes processos contraordenacionais. Porém, as competências de supervisão não podem confundir-se com as competências sancionatórias, porquanto, perante cada uma delas, as entidades supervisionadas têm direitos e deveres distintos: se no âmbito da atividade de supervisão do BdP as entidades possuem os deveres de colaboração, informação, comunicação, entre outros, já no que respeita ao âmbito da atividade sancionatória beneficiam aquelas entidades de direitos processuais e múltiplas garantias de defesa, nomeadamente, o direito ao silêncio e à não autoinculpação.”.
21.–Após citar diversa doutrina e jurisprudência sobre o direito à não autoincriminação, donde resulta existirem posições divergentes, a sentença recorrida considera que na determinação do âmbito de proteção daquele direito deve ter-se “uma visão finalista do ato auto-incriminador: sendo o ato praticado com a finalidade de colaborar com os poderes de supervisão da autoridade (no âmbito do dever de colaboração), havendo uma mudança de finalidade e passando aquele a ser usado como meio de prova em processo sancionatório, deixaria de ser válida tal utilização. Seria, assim, a mudança de fim, a determinar a invalidade probatória de certo ato ou documento com conteúdo incriminador” (p. 9 da sentença recorrida).
22.–Conclui, pois, com base neste entendimento e ao abrigo do disposto nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa; 126.º, n.º 2, al. a) e 417.º, n.º 7, al. b) do Código de Processo Penal (ex vi, art. 41º do RGCO), no sentido da nulidade da prova.
23.–Perante estas considerações as razões que sustentam a decisão de nulidade da prova resultam manifestamente inteligíveis.
24.–Outra questão bem diversa da alegada nulidade é a de saber se se deve concordar com o entendimento expresso na sentença recorrida, questão que naturalmente abordaremos infra.

A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação por ter conhecido de questão de que não podia?

25.–Nesta sede, alega o Ministério Público que “se verifica a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 379º nº 1 al. c) [do Código do Processo Penal] ao ter conhecido de uma questão – o subsequente andamento do processo administrativo perante a decisão proferida – que não lhe cabia conhecer” (conclusão 47 do respetivo recurso).
26.–E isto porque, no entender do Ministério Público, ao “tribunal recorrido apenas lhe assistia o poder de arquivar o processo que lhe foi apresentado nos termos do artigo 64º nº 3” (conclusão 46 do respetivo recurso), sendo certo que foi determinado na sentença recorrida a remessa dos autos ao Banco de Portugal para renovação da prova produzida … e consequente tramitação posterior, como seja a notificação à arguida nos termos e para efeitos do art. 50º do RGCOC”.
27.–Como é sabido, haverá excesso de pronúncia quando o tribunal conhece de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objeto do recurso (cf. Ac. STJ de 27-10-2010, proc. 70/07.0JBLSB.L1.S1).
28.–Ora, no caso concreto, o tribunal a quo conheceu de uma questão que foi suscitada pela CGD no recurso de impugnação judicial que intentou junto do TCRS, a saber, a nulidade da prova recolhida em determinadas ações inspetivas realizadas no âmbito dos poderes de supervisão do Banco de Portugal.
29.–Tanto basta para considerarmos não verificada a alegada nulidade.

A prova utilizada pelo Banco de Portugal para imputar as 31 contraordenações, recolhida em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da recorrente, deve ser considerada prova proibida por violação do direito contra a autoincriminação?

30.–Neste sede, escusamos de repetir aqui as conclusões dos Recorrentes, já reproduzidas no Relatório.
31.–Por seu turno, a Recorrida, alega aqui que “[n]o caso dos autos, a prova utilizada pelo Banco de Portugal para imputar à Caixa Geral de Depósitos a prática de 31 contraordenações foi recolhida em 13 ações inspetivas realizadas, por aquele regulador, em 11 agências bancárias daquela instituição, entre março e abril de 2022 (a saber, estão em causa as agências de Abrantes, Mação, Lagos, Praia da Vitória, Vale de Cambra, Oliveira de Azeméis, Redondo, Bragança, Buarcos, Paços de Ferreira e Damaia).” (conclusão L das alegações de Resposta).

32.–Mais alega a Recorrida, no que é aqui especialmente pertinente, a partir da respetiva conclusão R:
R.–Em matéria de recirculação de numerário, o Banco de Portugal tem vindo a sistematicamente utilizar ações inspetivas no âmbito das suas competências de supervisão para (pouco mais do que) recolher prova para a instrução de processos contraordenacionais contra a Caixa Geral de Depósitos.
S.–Essa atuação obedeceu a um modus operandi que já é conhecido pela Caixa Geral de Depósitos e que é possível descrever em seis breves pontos.
T.–Em primeiro lugar, o Banco de Portugal acedeu às agências da Caixa Geral de Depósitos ao abrigo dos seus poderes de supervisão, recolheu informação in loco e questionou os funcionários das agências também in loco.
U.–Em segundo lugar, o Banco de Portugal não informou os funcionários da Caixa Geral de Depósitos ou a própria Caixa, previamente, durante ou depois das ações inspetivas, sobre a possibilidade de essa informação, declarações e documentação vir a ser utilizada no âmbito de um processo contraordenacional.
V.–Em terceiro lugar, o Banco de Portugal realizou as ações inspetivas em causa sem elaborar um registo minimamente detalhado das questões que dirigiu aos funcionários da Caixa Geral de Depósitos presentes nas agências.
W.–Em quarto lugar, o Banco de Portugal realizou as ações inspetivas sem pedir informações ou esclarecer eventuais dúvidas com os serviços centrais da Caixa Geral de Depósitos (com os quais, saliente-se, frequentemente contacta no âmbito dos seus poderes de supervisão e concretamente sobre os problemas identificados na atividade de recirculação) ou dar a oportunidade aos funcionários das agências inspecionadas de o fazer.
X.–Em quinto lugar, o Banco de Portugal realizou e concentrou a maioria das suas ações inspetivas em agências da Caixa Geral de Depósitos sitas em localidades do interior do país que, tipicamente, não lidam com montantes avultados nos quais a generalidade das questões relevantes se suscitam e que, não estando habituados a lidar com ações inspetivas, poderão não se aperceber com exatidão das consequências da interpretação errada das perguntas que são colocadas pelos inspetores do Banco de Portugal.
Y.–Em sexto lugar, o Banco de Portugal, beneficiando do dever de colaboração da Caixa Geral de Depósitos, obteve a informação que entendeu diretamente das agências em causa (e sem nada esclarecer com os serviços centrais da Caixa) com o objetivo específico de instruir o processo de contraordenação em causa nos presentes autos.
Z.–Este modus operandi do Banco de Portugal, no âmbito do qual as ações inspetivas a agências funcionam, na prática, como espoleta de decisões em processos contraordenacionais, tem sido recorrente e já foi utilizado, pelo menos, por 5 vezes, tal como o próprio regulador reconhece na sua decisão (cf. parágrafo 141 da decisão final do Banco de Portugal).”.
33.–Por seu turno, tal como já deixamos supra consignado em n.ºs 19-21, resulta da sentença recorrida que “[a] prova utilizada pelo BdP para imputar as 31 contraordenações foi recolhida em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da recorrente. Tais ações inspetivas foram realizadas no exercício dos poderes de supervisão das instituições de crédito conferidos por lei ao BdP. Não foi, por isso, prova recolhida no âmbito de um processo contraordenacional”(p.5).Mais adiante esclarece a sentença que a “grande maioria da prova das infrações imputadas à arguida foi obtida mediante documentos apresentados por funcionários da arguida nos balcões desta onde foram efetuadas as ações inspetivas, e/ou mediante declarações prestadas por esses funcionários nas mesmas situações. O que fizeram por a tal estarem obrigados.” (p. 9).
34.–Mais afirma a sentença recorrida que “[o] BdP vem utilizando tais poderes de supervisão para obter provas contra a recorrente e instaurar subsequentes processos contraordenacionais. Porém, as competências de supervisão não podem confundir-se com as competências sancionatórias, porquanto, perante cada uma delas, as entidades supervisionadas têm direitos e deveres distintos: se no âmbito da atividade de supervisão do BdP as entidades possuem os deveres de colaboração, informação, comunicação, entre outros, já no que respeita ao âmbito da atividade sancionatória beneficiam aquelas entidades de direitos processuais e múltiplas garantias de defesa, nomeadamente, o direito ao silêncio e à não autoinculpação.”.
35.–Após citar diversa doutrina e jurisprudência sobre o direito à não autoincriminação, donde resulta existirem posições divergentes, a sentença recorrida considera que na determinação do âmbito de proteção daquele direito deve ter-se “uma visão finalista do ato auto-incriminador: sendo o ato praticado com a finalidade de colaborar com os poderes de supervisão da autoridade (no âmbito do dever de colaboração), havendo uma mudança de finalidade e passando aquele a ser usado como meio de prova em processo sancionatório, deixaria de ser válida tal utilização. Seria, assim, a mudança de fim, a determinar a invalidade probatória de certo ato ou documento com conteúdo incriminador” (p. 9 da sentença recorrida).
36.–Conclui, pois, com base neste entendimento e ao abrigo do disposto nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa; 126.º, n.º 2, al. a) e 417.º, n.º 7, al. b) do Código de Processo Penal (ex vi, art. 41º do RGCO), no sentido da nulidade da prova.

Apreciação deste tribunal

37.–É isento de controvérsia que a prova declarada nula pelo tribunal a quo foi recolhida em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da Recorrida CGD, efetuadas no exercício dos poderes de supervisão das instituições de crédito conferidos por lei ao Banco de Portugal.
38.–Mais resulta incontroverso que estão em causa coimas aplicadas por violação de deveres da CGD enquanto sociedade financeira, essencialmente por contraordenações previstas no DL. n.º 184/2007, de 10/05 (que regula a atividade de recirculação de moeda metálica de euros desenvolvida por todas as entidades que operem profissionalmente com numerário, acolhendo na ordem jurídica nacional a Recomendação da Comissão Europeia de 27 de Maio de 2005, relativa à autenticação das moedas em euros e do tratamento das moedas em euros impróprias para circulação), no DL. n.º 195/2007, de 15/05 (lei que regula a atividade de recirculação das notas de euro, desenvolvida por todas as entidades que operem profissionalmente com numerário) e no DL n.º 298/92, de 31/12 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira).
39.–Como é sabido o direito ou “privilégio” contra a autoincriminação, também conhecido pelo princípio nemo tenetur se ipsum accusare, não se encontra expressamente previsto na CRP, nem mesmo quanto ao direito ao silêncio (artigos 61.º, n.º 1 al. d), 141.º, n.º 4, al. b) e 343.º, n.º 1, do CPP).
40.–Em sede de Direito Processual Penal, tal falta de consagração expressa foi constatada, nomeadamente, pelo nosso Tribunal Constitucional, no Ac. TC n.º 298/2019, proferido em 15-05-2019, nos seguintes termos “[a] Constituição não consagra expressis verbis o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, mas tal não impede o seu reconhecimento como um princípio constitucional implícito a que corresponde um direito fundamental não escrito…”.
41.–Aquele mesmo acórdão do Tribunal Constitucional constatou também que “[e]ste direito à não autoincriminação em sentido amplo abrange, na sua área nuclear, o direito ao silêncio propriamente dito e desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que esteja em causa a prestação de informações, a entrega de documentos ou outras formas de colaboração e que correspondem a zonas de proteção mais periféricas”.
42.–Naquele caso estava em causa criminalidade tributária e documentos fornecidos pelo contribuinte visado à Autoridade Tributária ao abrigo de dever de colaboração, sancionado, em caso de incumprimento, com coima entre 375,00 € e 75.000,00 € (artigo 113.º, n.º 1, do RGIT).
43.–O reconhecimento do direito em sede penal pelo nosso Tribunal Constitucional mostra-se em harmonia, no âmbito do direito a um processo equitativo (artigo 6.º, CEDH), com jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), desde logo com o acórdão Saunders c. Reino Unido, de 17 de dezembro de 1996 (app. 19187/91) e o seu famoso parágrafo 69, que afirmou que o direito contra a autoincriminação está principalmente focado no respeito da vontade do arguido e no seu direito ao silêncio, não se estendendo a meios de prova obtidos do arguido através de meios legais de coerção, cuja existência é independente da vontade .
44.–A referência expressa à independência da vontade (do visado) constitui um corolário do axioma moral da autonomia do Homem (vontade livre ou free will), inerente à dignidade humana (artigo 1.º, da CRP), leia-se, da pessoa física.
45.–O direito contra a autoincriminação e a possibilidade de obter meios de prova do arguido, cuja existência é independente da vontade do mesmo, foram, inclusive, vertidos, no âmbito de garantias de processo penal, para a Diretiva (UE) n.º 2016/343, de 9 de março de 2016, no artigo 7.º, n.º 2 e 3 (veja-se, ainda o respetivo considerando 29).
46.–Quanto a este Diretiva, aliás, é interessante notar que, tal como esclarece o respetivo considerando 11, é excluído do respetivo âmbito objetivo “os processos administrativos que possam resultar na imposição de sanções, tais como processos em matéria de concorrência, em matéria comercial, em matéria de serviços financeiros, de trânsito, em matéria fiscal ou de impostos adicionais, e aos inquéritos realizados pelas autoridades administrativas em relação a esses processos” .
47.–Ou seja, em sede de processos administrativos sancionatórios, o Legislador da União não consagrou o direito à não autoincriminação, diferentemente do que sucede no plano do direito processual penal.
48.–Já no plano do direito interno e em sede contraordenacional, o direito à não autoincriminação foi reconhecido pelo nosso Tribunal Constitucional no Ac. n.º 461/2011, de 11-10-2011, onde se afirmou que o “direito à não auto-incriminação, nomeadamente na vertente de direito ao silêncio, tendo o seu campo de eleição no âmbito do direito criminal, estende-se a qualquer processo sancionatório de direito público”.
49.–Interessantemente, apesar de admitir que o entendimento defendido na sentença recorrida é controverso e de citar inúmera doutrina e jurisprudência, a mesma sentença olvida o Ac. TC n.º 461/2011.
50.–Aquele acórdão, apesar de reconhecer que o direito à não autoincriminação se estende ao domínio contraordenacional, reconheceu que aqui “o peso do regime garantístico é menor” e que no “contexto distintivo do direito de mera ordenação social, justifica-se que o conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação sofra significativa compressão, face à consagração de deveres de colaboração impendentes sobre as entidades sujeitas ao regime da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.”.
51.–Recorde-se que naquele caso a entidade administrativa em causa era a Autoridade da Concorrência, estando em causa a obrigação de prestação de informações e entregar documentos àquela, obrigação esta fortalecida pela cominação com uma coima. Em tal contexto, o dito acórdão concluiu “julgar não inconstitucional a interpretação normativa que resulta da conjugação dos artigos l7.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43.°, n.º 3, da Lei n.º 18/2003 [Regime Jurídico da Concorrência], no sentido de obrigar o Arguido, em processo contra-ordenacional, a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de coima, informações e documentos à Autoridade da Concorrência”.

52.–Daquele acórdão do Tribunal Constitucional pode, ainda, ler-se o seguinte com especial relevância para o presente caso:
“A competência sancionatória cometida à Autoridade da Concorrência funciona como condição de eficácia da própria função de supervisão, pelo que o legislador optou por ligar intimamente o âmbito dos dois domínios de actuação da referida entidade.

Demonstrativos da íntima ligação entre os poderes sancionatórios e de supervisão são os artigos 17.º e 18.º do diploma em referência, que associam os mesmos indiscriminadamente, quer quanto à equiparação do regime de direitos e deveres dos órgãos de polícia criminal, quer quanto à faculdade de obter informações e documentos.
(…)
Numa fase inicial, ainda no procedimento administrativo de supervisão, nenhuma dúvida haverá quanto à possibilidade de utilização dos elementos coligidos pela Autoridade da Concorrência, no âmbito dos poderes de supervisão, em ulterior procedimento contra-ordenacional.

A proibição de tal utilização – como refere F. Lacerda da Costa Pinto, a propósito de outra entidade reguladora: a CMVM – “seria mesmo algo de iníquo e contraditório, porque acabaria por criar uma zona franca de responsabilidade: qualquer elemento entregue à supervisão que viesse mais tarde a ser relacionado com uma infracção não poderia ser usado como prova. Como não há processo sancionatório sem prova, as competências contra-ordenacionais das autoridades de supervisão ficariam inutilizadas através de uma espécie de imunidade antecipada conseguida na fase de supervisão.
(…)
Não será procedente o argumento de que, sendo as informações e documentos recolhidos sob a justificação da utilização de poderes de supervisão, a entidade obrigada a prestá-las, que vê, posteriormente, utilizados tais elementos em ulterior processo contra-ordenacional, é induzida em erro.
De facto, encontrando-se a Autoridade da Concorrência vinculada, de acordo com um princípio de legalidade de promoção, a investigar as infracções cometidas no âmbito do regime da concorrência, não pode deixar de considerar-se expectável que qualquer informação que indicie a prática de uma infracção contra-ordenacional terá de desencadear investigação destinada a apurar do seu efectivo cometimento, circunstância conhecida ou cognoscível por qualquer agente económico sujeito à actividade reguladora (em sentido paralelo, J. de Figueiredo Dias,M. da Costa Andrade e F. Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 34)”.
(sublinhados nossos)
53.–Resulta, pois, claro da jurisprudência do Tribunal Constitucional, especificamente emitida no domínio contraordenacional e dos poderes de regulação, supervisão e sancionatórios atribuídos a determinadas entidades administrativas, que inexiste qualquer proibição constitucional, nomeadamente por aplicação direta do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, que obsta à ulterior utilização no plano sancionatório, de prova recolhida no plano da supervisão.
54.–É certo, como alega a Recorrida no ponto 77 da motivação do recurso, que o acórdão do Tribunal Constitucional ora em referência, também deixou consignado que:
“Já importa realçar contudo que, sendo certa a existência, na fase do exercício de poderes de supervisão, de vinculação das entidades reguladas a amplos deveres de colaboração, numa lógica de transparência e de máxima lealdade para com o Estado, é igualmente indesmentível que, a partir do momento em que se dá início ao procedimento contra-ordenacional, confrontando-se o arguido com a infracção indiciada, o paradigma de relacionamento altera-se, assumindo presença o direito à não auto-incriminação, refracção do próprio estatuto de arguido”.
55.–Ou seja, resulta do acórdão do Tribunal Constitucional que a partir do início do procedimento contraordenacional o arguido poderá invocar o privilégio contra a autoincriminação.
56.–Omite a Recorrida, contudo, o desenvolvimento deste ponto no dito acórdão:
“Ainda assim, a justificação de tal exigência [de colaboração] mantém-se, pois – como desenvolveremos Infra - tal direito, no âmbito contra-ordenacional sobre o qual nos debruçamos, apenas pode conter a vertente do direito ao silêncio, enquanto possibilidade de não prestar declarações ou responder a perguntas sobre os factos imputados.
A compressão do conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação, exercida pela protecção constitucional do princípio da concorrência, implica que o domínio de abrangência de tal direito não abarque, assim, a possibilidade de o arguido, em processo contra-ordenacional por práticas anticoncorrenciais, recusar a prestação de informações e a entrega de documentos, que estejam em seu poder e lhe sejam solicitados pela Autoridade da Concorrência, pressuposta a dimensão objectiva desses elementos, desprovidos de conteúdo conclusivo ou juízo valorativo, no sentido auto-incriminatório.”.
57.–Ou seja, segundo o Tribunal Constitucional, mesmo no âmbito de um processo contraordenacional já instaurado, o direito à não autoincriminação do arguido apenas abrange o direito ao silêncio enquanto possibilidade de não prestar declarações ou responder a perguntas sobre os factos imputados. Mais esclarece o acórdão que o direito em causa não abarca a possibilidade do arguido recusar a prestação de informações e entregar documentos, desde que desprovidos de conteúdo conclusivo ou juízo valorativo, no sentido autoincriminatório.
58.–O Ac. TC. n.º 461/2011 mostra-se próximo de jurisprudência do TJUE que, aliás, cita, em especial o conhecido acórdão Orkem. Neste domínio do Direito da União, porque mais recente, salienta-se também o Acórdão de 28-01-2023, C-466/19 P, Qualcomm (ECLI:EU:C:2021:76), donde se retira que “as empresas não podem ser obrigadas a admitir que cometeram uma infração, mas são, em todo o caso, obrigadas a responder a questões de facto e a apresentar documentos, mesmo que essas informações possam servir para demonstrar a existência de uma infração contra elas ou contra outra empresa” (parágrafo 142) .
59.–O Ac. TC 461/2011, mais esclarece, no que concerne ao confronto entre o direito à não autoincriminação e os deveres de colaboração com as entidades supervisoras/sancionatórias, os requisitos constitucionalmente impostos às restrições de direitos fundamentais: 1) previsão prévia em diploma de carácter geral e abstrato, suficientemente densificada; 2) obediência ao princípio da proporcionalidade, nas suas três vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
60.–Ora, segundo artigo 17.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Banco de Portugal (Lei n.º 5/98, de 31/01) “[c]ompete ao Banco de Portugal exercer a supervisão das instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades que lhe estejam legalmente sujeitas, nomeadamente estabelecendo diretivas para a sua atuação e para assegurar os serviços de centralização de riscos de crédito, bem como aplicando-lhes medidas de intervenção preventiva e corretiva, nos termos da legislação que rege a supervisão financeira.”.
61.–Resulta, por sua vez, do artigo 11.º do DL. n.º 184/2007, de 10/05, e que regula a atividade de recirculação de moeda metálica de euros desenvolvida por todas as entidades que operem profissionalmente com numerário, acolhendo na ordem jurídica nacional a Recomendação da Comissão Europeia de 27 de Maio de 2005, relativa à autenticação das moedas em euros e do tratamento das moedas em euros impróprias para circulação:
“Acompanhamento pelo Banco de Portugal
1-As entidades sujeitas ao presente decreto-lei devem fornecer ao Banco de Portugal, com a periodicidade por este estabelecida, informação relativa à respetiva atividade de recirculação.
2-O Banco de Portugal realiza inspeções periódicas às máquinas de triagem de moedas, podendo, em caso de desconformidade do seu funcionamento com as regras e critérios aplicáveis, ordenar a imediata suspensão do seu funcionamento, o qual só pode ser retomado após a realização de testes que atestem a conformidade do seu funcionamento com os critérios aplicáveis.
3-As entidades sujeitas ao presente decreto-lei devem assegurar as condições adequadas ao exercício, pelo Banco de Portugal, das competências que lhe sejam conferidas pelo presente artigo, designadamente no que respeita ao acesso aos locais onde se encontrem instaladas as máquinas de triagem de moedas ou onde decorram as operações relacionadas com o processo de recirculação das moedas.

62.–Por seu turno, o artigo 12.º do DL. n.º 195/2007, de 15/05, lei esta que regula a atividade de recirculação das notas de euro, desenvolvida por todas as entidades que operem profissionalmente com numerário, diz-nos o seguinte:
“Acompanhamento pelo Banco de Portugal
1-Cabe ao Banco de Portugal acompanhar a evolução do nível de qualidade das notas de euro em circulação em Portugal.
2-Em caso de deterioração do nível de qualidade das notas de euro de determinada denominação, o Banco de Portugal, após informar o Banco Central Europeu, pode estabelecer, por instrução, orientações para o ajustamento dos parâmetros utilizados nos sistemas de aferição de qualidade.
3-As entidades sujeitas ao presente decreto-lei devem fornecer ao Banco de Portugal, com a periodicidade por este estabelecida nos termos de instrução, informação relativa à respetiva atividade de recirculação das notas de euro.
4-O Banco de Portugal realiza inspeções periódicas às máquinas de tratamento de notas de euro, podendo, em caso de desconformidade do seu funcionamento com as regras e critérios aplicáveis, ordenar a imediata suspensão do seu funcionamento, o qual só pode ser retomado após a realização de testes que atestem a conformidade do seu funcionamento com os critérios aplicáveis.
5-O Banco de Portugal verifica a conformidade, com os critérios adotados no âmbito do Eurosistema, da aferição manual da qualidade e autenticidade das notas.
6- As entidades sujeitas ao presente decreto-lei devem assegurar as condições adequadas ao exercício, pelo Banco de Portugal, das competências que lhe são conferidas pelo presente artigo, designadamente no que respeita ao acesso aos locais onde se encontrem instaladas as máquinas de tratamento de notas ou onde decorram as operações relacionadas com o processo de recirculação das notas.

63.–A competência do Banco de Portugal para aplicar coimas no âmbito dos referidos decretos-leis está prevista, respetivamente, nos artigos 12.º e 13.º (cf., ainda, artigo 10.º, n.º 4, da Lei Orgânica do Banco de Portugal).
64.–De notar, por sua vez, que os poderes sancionatórios gerais do Banco de Portugal estão previstos no Decreto-Lei n.º 298/92, de 31/12, ou seja, no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, precisamente no artigo 116.º, n.º 1, al. g), localizando-se, portanto, dentro dos próprios “procedimentos de supervisão” (epígrafe daquele artigo), tal como salienta o Ministério Público (conclusão 39 do respetivo recurso). Mais resulta, desde logo do artigo 213.º deste diploma legal, a previsão das competências sancionatórias do Banco de Portugal.
65.–Resulta, pois, de forma bastante clara deste tecido normativo, os poderes de supervisão e sancionatórios atribuídos ao Banco de Portugal, encontrando-se os mesmos, tal como ocorre no Direito da Concorrência e os poderes atribuídos à Autoridade da Concorrência, intimamente ligados.
66.–Por sua vez, os deveres de colaboração dos supervisionados do Banco de Portugal, nos quais obviamente se inclui a aqui Recorrida CGD, estão estabelecidos de forma muito clara, salientando-se aqui o dever de prestarem informações e de se sujeitarem a “inspeções periódicas”.
67.–Por fim, estando em causa diplomas que se ligam diretamente à própria proteção da moeda oficial do nosso país e, em importante medida, da União Europeia, versando a legislação em causa, além do mais, sobre a autenticação das moedas em euros e do tratamento das moedas em euros impróprias para circulação e da recirculação das notas de euro, dúvidas não podem existir quanto à proporcionalidade daqueles deveres.
68.–Neste contexto não se compreende sequer o argumento da CGD no sentido de censurar a atuação do Banco de Portugal porquanto “acedeu às agências da Caixa Geral de Depósitos ao abrigo dos seus poderes de supervisão, recolheu informação in loco e questionou os funcionários das agências também in loco.”.
69.–Por outro lado não resulta da lei qualquer obrigação da entidade administrativa informar “os funcionários da Caixa Geral de Depósitos ou a própria Caixa, previamente, durante ou depois das ações inspetivas, sobre a possibilidade de essa informação, declarações e documentação vir a ser utilizada no âmbito de um processo contraordenacional”. Nem tal obrigação, salvo melhor entendimento, teria de constar da lei. Com efeito, como vimos, os poderes de supervisão e os poderes sancionatórios estão intimamente ligados, sendo certo, segundo o citado Ac. TC 461/2011 “[n]ão será procedente o argumento de que, sendo as informações e documentos recolhidos sob a justificação da utilização de poderes de supervisão, a entidade obrigada a prestá-las, que vê, posteriormente, utilizados tais elementos em ulterior processo contra-ordenacional, é induzida em erro”.
70.–Também não resulta da lei que a entidade administrativa tenha de proceder a um registo das questões que dirigiu aos funcionários da CGD presentes nas agências, nem se vislumbra como poderá tal falta influir na validade da prova em causa.
71.–Também não se vislumbra a pertinência, no âmbito da problemática de proibições de prova, do facto do Banco de Portugal realizar as ações inspetivas sem pedir informações ou esclarecer eventuais dúvidas com os serviços centrais da CGD ou dar a oportunidade aos funcionários das agências inspecionadas de o fazer. Nada impede que na fase contraditória do processo sancionatório as informações prestadas no momento das ações inspetivas possam ser contraditadas por outros meios de prova na disponibilidade de outros serviços da CGD. Contudo, a ser assim, tal será uma questão de credibilidade da prova e não de validade da prova.
72.–Também não se vislumbra pertinência no argumento da CGD de que o Banco de Portugal realizou e concentrou a maioria das suas ações inspetivas em agências da CGD sitas em localidades do interior do país que, tipicamente, não lidam com montantes avultados nos quais a generalidade das questões relevantes se suscitam e que, não estando habituados a lidar com ações inspetivas, poderão não se aperceber com exatidão das consequências da interpretação errada das perguntas que são colocadas pelos inspetores do Banco de Portugal. Esta linha argumentativa, para além de poder ser interpretada em sentido pejorativo das agências em causa, fazendo parecer que os seus funcionários são menos atentos do que funcionários de outras agências da CGD, não assume qualquer relevância no âmbito da problemática das proibições de prova.
73.–Por fim, quanto ao argumento de que “o Banco de Portugal, beneficiando do dever de colaboração da Caixa Geral de Depósitos, obteve a informação que entendeu diretamente das agências em causa (e sem nada esclarecer com os serviços centrais da Caixa) com o objetivo específico de instruir o processo de contraordenação em causa nos presentes autos”, remete-se para o já supra descrito no n.º 71.
74.–Resultando, pois, que a prova recolhida pelo Banco de Portugal em 13 ações inspetivas realizadas em diversas agências bancárias da Recorrida CGD, foi obtida no uso de poderes legítimos de supervisão, não se vislumbra qualquer objeção à utilização ou valoração de tais meios de prova no plano sancionatório, o que equivale a dizer que, contrariamente à sentença recorrida, não se entende estar perante qualquer proibição de prova.
75.–Em suma, julga-se que a sentença recorrida incorreu, de forma manifesta, em erro de julgamento.
76.–Este entendimento, pelos motivos supra expostos, não enferma de qualquer inconstitucionalidade.
77.–Nestes termos, os recursos devem ser julgados procedentes.
78.–Por fim, refere-se que a questão suscitada pelo Banco de Portugal, relativa a saber se a devolução dos autos à mesma para que proceda à “renovação da prova”, violou ainda os artigos 417.º, n.º 7, alínea b) e 430.º. do CPP, bem como os artigos 62.º, n.º 1, e 64.º, n.º 3, do RGCO, considera-se prejudicada.
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IV.– DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar não verificada as nulidades da sentença recorrida alegadas pelo Ministério Público, julgando, no mais, os recursos procedentes, anulando-se, em consequência, a sentença recorrida e declarando-se que a prova obtida nos presentes autos não trata de prova proibida por violação do direito à não autoincriminação, determinando-se a prolação de nova sentença pelo tribunal a quo, para conhecimento das restantes questões objeto do recurso de impugnação judicial.

Custas pela Recorrida (artigo 94.º, n.º 4, do RGCO).
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Lisboa, 03-07-2024

Alexandre Au-Yong Oliveira - (Relator)
Carlos M. G. de Melo Marinho - (1.º Adjunto)
Bernardino Tavares - (2.º Adjunto)