Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ALFREDO COSTA | ||
| Descritores: | SEQUESTRO CRIME DE INCÊNDIO TENTATIVA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA TRIBUNAL SUPERIOR | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/21/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
| Sumário: | – Interpretação do artigo 158.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, para qualificar como sequestro agravado a conduta acompanhada de violência física e actos humilhantes que atentam gravemente contra a dignidade da vítima, ainda que sem ofensa grave à integridade física. – Delimitação dogmática entre o uso de arma como circunstância agravante acessória (artigo 86.º da Lei n.º 5/2006) e o agravamento específico do sequestro com fundamento em tratamento cruel, degradante ou desumano, privilegiando este último por se basear na violação da dignidade humana. – Qualificação do crime de incêndio (artigo 272.º, n.º 1, do Código Penal) como ilícito de perigo concreto, bastando a criação de risco efectivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado, independentemente de consumação de danos, e sendo punível também a tentativa. – Exame dos pressupostos da tentativa punível (artigos 22.º e 23.º do Código Penal) aplicável ao crime de incêndio, nomeadamente através da verificação de dolo e início de execução não consumada por causas alheias à vontade do agente. – Fundamentação da admissibilidade da reformulação da qualificação jurídica pelo tribunal ad quem, desde que não se alterem os factos provados nem se violem os direitos de defesa, nos termos dos artigos 358.º e 374.º do Código de Processo Penal. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO 1.1. No âmbito do processo (comum colectivo) n.º 14/24.5..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures - JC Criminal - Juiz 2, foi proferido acórdão condenando/absolvendo o arguido AA com a seguinte parte decisória: (transcrição) (…) Em face do exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, acordam os juízes que compõem o Tribunal Coletivo: a) Absolver o arguido da prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. e p. pelo art. 158º, nº 1, do CP, e art. 86º, nºs 3 e 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, de que vinha acusado. b) Absolver o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade agravada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, 145º, nº 1, a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2 al h) e j) todos do Código Penal, de que vinha acusado. c) Absolver o arguido da prática um crime de coação grave p. e p. pelos arts. 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, de que vinha acusado. d) Absolver o arguido da prática um crime de extorsão, p. e p. pelo artigo 223º, nº 1, nº 3, al. a), por referência à alínea f) do nº 2 do artigo 204º, todos do Código Penal, de que vinha acusado. e) Absolver o arguido da prática um crime furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e, 204º, nº 2, al. e) do Código Penal, de que vinha acusado. f) Absolver o arguido da prática um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, nº 1, do Código Penal, de que vinha acusado. g) Condenar o arguido pela prática de um crime de sequestro, p. e p. e p. pelo art. 158º, nº 1, do CP, na pena de dois anos de prisão. h) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do CP, na pena de 1 ano de prisão. i) Condenar o arguido pela prática de um crime de coação, p. e p. no art. 154º, nº 1, do CP, na pena de 9 meses de prisão. j) Condenar o arguido pela prática de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, na pena de 4 meses de prisão. k) Condenar o arguido pela prática de um furto de uso de veículo, p. e p. pelo artigo 208º, nº 1 do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão. l) Condenar o arguido pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do Código penal, na pena de 9 meses de prisão. m) Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e com regime de prova. n) Condenar o arguido no pagamento de 3 UC de taxa de justiça e nas custas processuais (arts. 513º e 514º do CPP, e 8º, nº 9, do RCP, por referência à Tabela III). (…) * 1.2. O MP não se conformou com a decisão e interpôs recurso, tendo, para esse efeito, formulado as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1 – Constitui objecto do presente recurso o douto acórdão proferido nos autos, na parte em que decidiu absolver o arguido AA da prática de um crime de sequestro agravado, nos termos do artigo 158.º, n.º 1, n.º 2, alínea b) do Código Penal, pelo qual vinha acusado, condenando-o na prática de um crime de sequestro simples, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal, bem como na parte em que decidiu absolver o arguido da prática de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto e punido pelo artigo 272.º, n.º 1 do Código Penal. 2 – Entende-se ter existido errado enquadramento jurídico-penal (errada subsunção jurídica) que se entende ter sido feito em face dos factos que o Tribunal a quo deu como provados, os quais impunham, a condenação do arguido, não pelo cometimento de um crime de sequestro simples, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal, como concluiu, mas sim pelo crime de sequestro agravado previsto e punido pelo artigo nos termos do artigo 158.º, n.º 1, n.º 2, alínea b) do Código Penal, nos termos em que vinha acusado e que, entendemos, ter sido dado como provado. 3 – Está em causa a circunstância agravante prevista no artigo 158º, nº 2, alínea b) do Código Penal “privação da liberdade precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”. Em nosso entendimento, a decisão recorrida, ao dar como provados os factos descritos, não oferece dúvida no sentido de haver integrado a conduta do arguido na categoria de “tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”. 4 - No que respeita à circunstância agravante do crime de sequestro de que o arguido vinha acusado, afigura-se-nos que o modo de actuação atrás descrito revela especial crueldade e desprezo pela dignidade humana, integrando, portanto, o conceito de tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano. 5 - De facto, o arguido começa por surpreender o ofendido junto da sua casa, utilizando um objecto que o ofendido inicialmente pensou tratar-se de uma arma de fogo e, mediante a sua utilização, obrigou o ofendido BB a encaminhar-se para o interior da residência, onde foi sujeito a um tratamento manifestamente degradante do ponto de vista humano, tendo-lhe sido amarradas ambas as mãos e depois os pés, sendo-lhe colocado um objecto na boca, e depois, foi sujeito a agressões da forma descrita, por diversas partes do corpo, inclusivamente mediante a utilização de uma faca, provocando-lhe grande angústia e sofrimento, ao ponto de pensar que ia morrer. 6 - A sucessão dos actos descritos atentam gravemente contra a dignidade da pessoa humana e merecem a qualificação de tratamento cruel e desumano. 7 - Não podemos concordar, de forma alguma, com o afastamento que o Tribunal a quo fez da aplicabilidade da qualificativa prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 158.º do Código Penal, no que respeita ao tratamento cruel, degradante ou desumano que acompanhou a forma de privação de liberdade por entendermos que o meio e o modo usados pelo arguido integra tal conceito, por se entender tratar-se de uma actuação que, para além da privação da liberdade constitui uma séria ofensa à dignidade da pessoa humana e que excede o meio mínimo necessário para levar a cabo a privação da liberdade, pela forma censurável e reprovável como o arguido agiu. 8- Assim, importa concluir que a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida não deverá ser mantida, devendo o arguido ser condenado pela prática do crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, n.º 2, al. b) do Código Penal de que vinha acusado. 9 - O acórdão recorrido fez errada interpretação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, violando o disposto no artigo 158.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal. 10- Não se olvida que o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é sindicável em sede de recurso, na medida em que o Juiz de julgamento tem, em virtude da oralidade e da imediação, uma perceção própria e insubstituível. 11 - No entanto, considera-se que neste âmbito se impõe aferir se tal convicção é contrariada pelas regras de experiência comum ou pela lógica do homem médio, o que se considera que sucedeu no presente caso, impondo-se decisão diversa. 12- Face à prova realizada em audiência de julgamento, deveriam ser dados como provados os seguintes factos: ” g. Houve risco de propagação do fogo às demais frações do prédio. h. O arguido acendeu material combustível e acelerante, chegando fogo à cama de BB. i. Agiu o arguido com o propósito concretizado de atear fogo à residência do ofendido, bem sabendo que, ademais pela utilização da substância aceleradora de chamas de fez uso, o lume inevitavelmente se propagaria rápida e incontrolavelmente a toda a estrutura da fração e do prédio inteiro, e que as chamas o haveriam de consumir, o que realizou e quis. 13 - Impugna-se, não se podendo aceitar, os pontos g. h. e i. dos factos não provados, passando de seguida, a explicitar das razões da discordância: Pode ler-se no acórdão de que se recorre, na motivação de facto que “No que aos factos não provados diz respeito, o Tribunal estribou-se na insuficiência da prova produzida quanto aos mesmos, posto que o arguido não os confessou, o ofendido não os referiu, nem existem juntos aos autos elemento de prova bastantes para os comprovar, e bem assim pela prova em contrário resultante dos elementos de prova acima referidos quanto aos factos que se julgaram provados.”. 14 – Conforme depoimento da vizinha que vive no andar por cima do ofendido BB, tratando-se de CC, prestado no dia ...-...-2024 15:58:50 – 202441121155849_6323635_2871211 - a minutos 03:26 a 06:10 - “Por baixo de nós “, “Na cave estava a sair muito fumo da janela”, “Vivia lá um rapazinho que estava muitas vezes nas escadas”, “Espreitei pela janela, mas o fumo era muito branco e não conseguia ver nada e a vizinha disse que ia chamar os bombeiros “, “como os bombeiros demoraram a chegar, ela pegou em baldes de água “, “Não estava lá ninguém em casa”, “Os bombeiros tiraram o colchão que estava a começar a incendiar-se”. 15 - Por outro lado, conforme depoimento de outra vizinha, DD, (não obstante a dificuldade de audição da gravação), que também vive no mesmo prédio do ofendido BB, prestado no dia ...-...-2024, 16:08:33 – ...-6323635- 2871211- 05:00 a 06:15 “Vê um fogo dentro de casa”, “chamei os bombeiros e eles não vinham e a ... também não vinha”, “por causa do fogo, resolveu deitar baldes de água pela janela”, “viu fumo”, “era um colchão e duas almofadas”, “a janela é uma cave, uma arrecadação”. 16 - Por sua vez, o ofendido, no depoimento que prestou no dia ...-...-2025, ...-6323635-2871211 – 24:49 refere a existência “de um pequeno incêndio num quarto “, “e que graças a Deus que o colchão não pegou fogo, só fumando, só fumando e a vizinha viu e chamou os bombeiros”. 17 - Através Da reportagem fotográfica e inspecção judiciária da Polícia Judiciária a fls. 26 a 34 e do relatório pericial do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária de fls. 178 a 203, relativos ao local da ocorrência dos factos, a casa do ofendido que fica numa cave existente num prédio residencial, bem como o material que foi atingido pelo incêndio. 18 - Consagra o artigo 272.º, n.º 1 que “Quem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte… e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos.” – sublinhado nosso. 19 - O acto de provocar um incêndio tem de representar mais do que um mero atear de fogo, tem de traduzir o abrasamento total ou parcial de edifício, mata, floresta, meio de transporte, de corresponder a um «(…) fogo que lavra com intensidade ou extensamente. Incêndio pressupõe, em definitivo, uma tónica de excesso. O fogo é, em princípio, e por seu turno, o resultado da combustão de certos corpos dentro de níveis aceitáveis de controlo e de domínio.» (José Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. II, p. 870). 20 - O tipo subjectivo é doloso, nos moldes constantes do Art.º 14.º do Código Penal. E, do ponto de vista subjectivo, o art. 272º prevê, no seu nº 1, um nexo de imputação a título doloso, tanto na conduta, quanto na criação do perigo. 21 - Como se pode ler no Acórdão do TRL, de 20-10-2020, Processo 887/19.3...-5, relator EE, disponível em www.dgsi.pt :” Passando ao estudo do resultado de perigo violação, vê-se que, em concreto, aquela específica conduta do agente (por exemplo, ter provocado um incêndio de relevo), tem, ainda, de criar um perigo concreto, quer para a vida, quer para a integridade física, quer para bens patrimoniais alheios de grande valor. A noção de perigo é, em substância, uma categoria relacional. E, por isso mesmo, a sua refracção, dentro da normatividade inerente ao direito penal, expande-se por meio de uma ideia de probabilidade racional e jurídico penalmente empenhada. Assim, há perigo sempre que esse pedaço da realidade, através de um juízo baseado em regras de experiência, complementadas, ou não, por proposições científicas, puder ser visto como susceptível – desde que sustentado em um raciocínio de prognose – de desencadear um resultado desvalioso. Mas em que grau é que temos de valorar essa probabilidade? O perigo acontece sempre que no cotejo entre a produção do resultado material desvalioso (o chamado resultado de dano-violação) e a sua não produção interceda um juízo de forte e marcada probabilidade de produção do resultado. Quando isso se verifica, houve um resultado de perigo-violação, mas não um resultado de dano-violação (…). 22 - Ora, nos presentes autos pela factualidade apurada e pela que deveria ter sido considerada como supra se descreveu, decorre que foi o arguido que ateou fogo a um colchão que se encontrava no quarto do apartamento, onde residia o ofendido BB, onde também queimou papeis, ausentando-se o arguido e seguidamente do local, deixando tal material a arder. 23 - Como referiram as testemunhas acima indicadas e de acordo com os elementos documentais juntos aos autos, nomeadamente exame pericial do LPC da Polícia Judiciária e respectivas fotografias, entende-se estarmos perante um fogo que era susceptível de gerar incêndio ou perigo, colocando em causa pessoas e bens, pois naquele prédio viviam um número indeterminado de pessoas. 24 - Na realidade, tal só não sucedeu, devido à rápida intervenção de vizinhos ali residentes que se aperceberam do fumo que saía do interior do apartamento e logo deitaram baldes de água através da janela, tendo igualmente chamado os bombeiros ao local, ou seja, não fosse a actuação de terceiros levada a cabo naquele preciso momento. 25 - Atento o descrito, entendemos estar perante um incêndio, que podia atingir proporções idóneas a provocar perigo para a integridade física, vida e bens dos residentes, designadamente das aludidas testemunhas. 26 - Efectivamente e com tal conduta gerou o arguido um incêndio, que careceu de ser travado pelos vizinhos e os bombeiros, existindo possibilidade de propagação, bem podia gerar e colocado igualmente em risco vida e integridade física de outros moradores que ali se encontravam, pelo que, em nosso entendimento, mostra-se igualmente provado tal elemento típico do ilícito em causa. 27 - Tal perigo concreto decorre do modo de actuação do agente e das concretas circunstâncias, sendo de prever danos superiores, ateando fogo a um colchão atendendo às regras da experiência, não fosse a pronta intervenção de vizinhos e dos bombeiros. 28 - Não podia o arguido ignorar que pela sua conduta, ao atear fogo a um colchão que se encontrava no interior de uma habitação de um edifício, abandonando o local, nada fazendo e nada alertando para a necessidade da sua extinção, visava a destruição de bens e colocava em perigo bens de valor elevado e dos demais moradores. 29 - Em nosso entendimento, encontram-se assim preenchidos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito penal em apreço. 30 – Ainda que assim não se entenda, objectivamente, sempre estaremos perante uma tentativa, pois o meio utilizado pelo arguido não é inepto, atentos os concretos perigos gerados para pessoas e bens, porque acarretou um perigo acrescido e substancial não só para o apartamento do ofendido (uma cave de um prédio habitacional), mas também para os demais bens em seu redor nos termos do disposto no Art.º 22º e 23º do C. Penal). 31 – Tendo em conta os factos dados como provados (e os que venham a ser considerados provados) nos termos supra referidos, afigura-se-nos que deveria considerar-se os pressupostos, com o preenchimento e verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de Incêndio. 32 - Assim, tendo em conta os factos provados e os que deverão ser dados como provados, se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de sequestro agravado, previsto e punido pelo artigo pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), e do crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 271.º do Código Penal, devendo o acórdão recorrido ser substituído por outro que condene o arguido pela prática dos mencionados ilícitos penais. (…) * 1.3. O arguido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua total improcedência e pela manutenção integral da decisão proferida. * 1.4 Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Srª. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso, fazendo valer a argumentação expendida pelo MP da 1ª Instância na peça recursória. * 1.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, número 2, do Código Processo Penal não houve resposta ao parecer. * 1.6. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista nos art. ºs 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir. * II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões do recorrente, as questões a apreciar reconduzem-se: a. Saber se existiu erro na qualificação jurídica dos factos relativos ao sequestro, por desconsideração da agravação com base em tratamento cruel, degradante ou desumano; b. Saber se existiu erro na apreciação da prova quanto à prática do crime de incêndio, por se verificaram os seus elementos objectivos e subjectivos ou, pelo menos, a tentativa punível do mesmo ilícito. * 2.2. No acórdão recorrido recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos: (transcrição) (…) A. FACTOS PROVADOS Da prova produzida, da alegada com relevo para a presente decisão, resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido AA foi casado com FF, durante pelo menos dois anos, de quem se separou há cerca de seis meses. 2. FF é, desde há cerca de 15 anos, amiga da vítima BB. 3. Ainda durante a relação do arguido com FF, aquele nunca aceitou o relacionamento desta com BB. 4. O sentimento de ciúme relativamente a BB, em razão da relação próxima deste com FF, agudizou-se após a separação do arguido com a vítima. 5. Em razão disso, desde data não concretamente apurada, mas correspondente ou anterior a .../.../2023, o arguido gizou um plano para forçar a saída de BB de Portugal de modo a fazer com que aquele regressasse ao ... e se afastasse definitivamente da sua ex-mulher. 6. Para o efeito, em .../.../2023, o arguido adquiriu à ... uma pistola de Airsoft da marca Saigo Defense, modelo 92 spring full metal, 6 mm, correspondente a uma réplica da arma autêntica da marca Beretta, modelo 92. 7. Impelido pelo mesmo propósito, o arguido arranjou também um canivete, uma bola brinquedo para cão, fio de nylon e fita adesiva. 8. No dia .../.../2024, antes das 17h40, na execução do plano previamente gizado, o arguido deslocou-se à residência de BB, na ..., na ..., e ali permaneceu escondido aguardando a chegada da vítima, levando consigo os supra identificados objetos e a referida arma. 9. Nas referidas circunstâncias, como habitualmente sucedia e era do conhecimento do arguido, BB chegou à sua residência e imediatamente foi abordado pelo arguido, que o surpreendeu pelas costas, e encostou a réplica de Beretta às suas costelas do lado direito dizendo-lhe “bora rapaz, desce, desce, desce!”. 10. BB cumpriu a ordem do arguido e desceu até à porta de sua casa, sempre sob ameaça com a referida réplica de Beretta, retirou a chave de casa do seu bolso e abriu a porta. 11. Seguidamente, o arguido mandou ao ofendido que se deitasse no chão e disse-lhe para colocar as mãos atrás das costas. 12. O arguido desferiu um pontapé na barriga do ofendido e um murro na sua cabeça, e amarrou-o com os pulsos atrás das costas com uma fita de nylon, que lhe causaram diversas escoriações e um inchaço na região posterior da cabeça. 13. Seguidamente, ordenou que a vítima abrisse a boca e tapou-lhe a mesma com uma bola brinquedo de cão, de cor vermelha, com uns relevos espinhosos, após que pôs fita adesiva à roda da cabeça do ofendido e por cima da bola. 14. Seguidamente, o arguido tirou da cabeça o capuz do casaco que trazia vestido, revelando a BB a sua identidade e deu-lhe a conhecer os motivos da sua conduta e o objetivo final que pretendia alcançar. 15. Naquele momento, o arguido pousou a réplica de Beretta, em cima da cama, ao mesmo tempo que lhe dizia que sabia que aquele tinha estado envolvido com FF e que era sua intensão enviar o ofendido para o Brasil. 16. A determinada altura, o ofendido pediu água ao arguido e, em razão disso, o arguido retirou a fita adesiva e a bola brinquedo da boca do mesmo, permitindo que aquele comesse e bebesse, sendo o próprio arguido quem lhe colocou os alimentos na boca. 17. Entretanto, BB logrou soltar uma das mãos das amarras e agarrou a réplica de Beretta, apenas naquele momento se apercebendo que a mesma não era apta a disparar. 18. De imediato o arguido agarrou numa faca, que se encontrava em cima da mesa e empunhando-a dirigiu-a ao corpo de BB. 19. BB agarrou tal faca pela lâmina, até que a mesma se partiu, na sequência do que o ofendido sofreu uma ferida longitudinal do seu 1º dedo da mão direita, com perda de substância. 20. Após o que, o arguido retirou do bolso um canivete com atingiu a face posterior do punho esquerdo do ofendido, causando-lhe duas feridas no dorso da mão esquerda de BB, com 2 cm e com 3 cm, respetivamente, sem envolvimento muscular ou tendinoso. 21. Ato contínuo, o arguido encostar a lâmina do canivete ao pescoço ofendido e disse-lhe “se não estiveres quieto, eu furo-te”, assim obrigando BB a colocar-se novamente de costas, após o que o arguido lhe amarrou as mãos com o cinto que trazia nas próprias calças. 22. De seguida, o arguido retirou um cinto do meio das roupas do ofendido e, fazendo-o o seu, colocou-o de imediato nas próprias calças. 23. Após isto, o arguido cortou um pedaço do fio do aspirador que BB tinha em sua casa, e com aquele objeto amarrou os pés do mesmo. 24. Seguidamente, o arguido exigiu à vítima que lhe desse os seus telemóveis e ordenou a BB que lhe cedesse os códigos de acesso a tais equipamentos e à aplicação de homebanking associada à conta bancária titulada pelo ofendido, o que este fez por se encontrar amarrado e por temer que o arguido voltasse a dar-lhe murros, pontapés ou a feri-lo com o canivete. 25. O arguido consultou as mensagens da memória do telemóvel e, munido dos códigos de acesso, a que acedeu nas circunstâncias acima descritas, entrou na aplicação informática de homebanking, consultando o saldo bancário da vítima. 26. Percebendo que o dinheiro ali existente não seria suficiente para comprar um bilhete de avião para o Brasil, o arguido fez-se passar por BB e mandou mensagem para o patrão daquele irmão da sua ex-mulher, de nome GG, a pedir dinheiro, dizendo que se encontrava no hospital. 27. O patrão acedeu ao pedido, pensando estar a falar com BB, e fez uma transferência de 300,00€ (trezentos euros) para a conta da vítima. 28. Percebendo que o dinheiro que tinha, acrescido do disponível na conta bancária do ofendido, não era suficiente para comprar o bilhete de avião, o arguido resolveu levar BB para a sua própria habitação, onde ficaria até dia .../.../2024, data em que BB já teria mais dinheiro na conta bancária por já ter recebido o seu ordenado. 29. Com este propósito, quando eram já cerca das 23h45 do dia .../.../2024, o arguido recolheu as roupas de BB que guardou em duas malas de viagem. 30. Após o arguido apoderou-se da chave do automóvel de marca ... de matrícula ..-..-UT, propriedade de BB, e, com foros de seriedade, disse-lhe que ia colocar a mala no carro e que, se este “gritasse ou tentasse fugir cortava a sua garganta”. 31. Enquanto o arguido se ausentou da residência para ir ao carro que se encontrava na rua, BB logrou soltar uma das suas mãos e consequentemente desamarrar a outra e os pés, tendo conseguido fugir do interior da residência através de uma janela. 32. Regressado à residência, o arguido percebeu que BB havia logrado escapar e, antes de dali se ausentar, ateou fogo ao colchão, existente na residência do ofendido. 33. Após isto, o arguido pôs-se em fuga, ao volante do referido veículo, levando consigo, os telemóveis, o cinto e as malas com as roupas de BB. 34. No percurso entre a ... e ..., sua localidade de residência, rebentou-se o pneu da roda frontal direita e, apesar disso, o arguido conduziu até à ..., em ..., assim fazendo não só com que o pneu ficasse destruído, como causando estragos na jante, no sistema de direção e na carroçaria da frente direita do automóvel. 35. No dia .../.../2024, pelas 23h45, na ..., o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-UT sem que fosse possuidor de carta de condução. 36. O arguido agiu modo refletido e ponderado com o propósito de coartar a liberdade de movimentos e de ação do ofendido, impedindo-o de sair da sua residência e ali o mantendo por horas contra a sua vontade, e bem assim de lhe provocar medo e inquietação, com o propósito de o obrigar a abandonar território nacional. 37. Agiu igualmente o arguido com o propósito de ofender o corpo e a saúde do ofendido. 38. E bem assim de obrigar o ofendido a facultar-lhe os códigos de acesso aos telemóveis do mesmo e à aplicação de homebanking associada à conta bancária titulada pelo ofendido instalada nos mesmos, o que logrou causando-lhe medo de que o arguido voltasse a dar-lhe murros, pontapés ou a feri-lo com o canivete. 39. Atuou outrossim o arguido com o propósito de aceder ao conteúdo dos telemóveis do arguido e ao sistema de homebanking do mesmo, sabendo que não tinha o consentimento do ofendido para tal. 40. O arguido quis conduzir o veículo, bem sabendo que o mesmo não se encontrava em condições por ter um pneu em baixo, assim agindo por querer fugir do local, sabendo que o dano era necessário para lograr o seu desiderato de fugir do local. 41. Arguido quis conduzir o veículo, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade do ofendido, seu dono, com o que se conformou. 42. O arguido quis conduzir o veículo sem ser possuidor de documento que o habilitasse a essa condução e sabia que cometia um crime. 43. O arguido agiu sempre de forma deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 44. O arguido não tem antecedentes criminais registados. 45. Do relatório social do arguido consta: É “natural do Brasil, que terá emigrado para Portugal há três anos, juntamente com a esposa e filhas, em busca de melhores condições de vida. Apresenta um percurso com hábitos e rotinas de trabalho, mantendo-se até à data da sua reclusão integrado a nível profissional. Pretende permanecer em Portugal e conseguir habitação e ocupação laboral perto das filhas, para poder acompanhar as mesmas, sendo também sua intenção, conseguir a guarda partilhada das menores. (…) Em meio prisional vem mantendo um comportamento adequado às normas, sem registo de infrações disciplinares. Inicialmente chegou a beneficiar da visita da ex-esposa e das filhas, mas atualmente não recebe quaisquer visitas, por vontade do próprio, mantendo contacto com as filhas, semanalmente, por telefone, beneficiando de apoio monetário por parte dos pais e amigos. Encontra-se ativo há um mês, a exercer funções de faxina. Com um discurso estruturado, o arguido revela capacidade no reconhecimento da gravidade dos atos pelos quais vem acusado no presente processo, demonstrando arrependimento pelo seu comportamento. * B. FACTOS NÃO PROVADOS Da prova produzida, resultou não provado, com interesse para a decisão: a. BB encetou uma tentativa de resistir, tendo o arguido agarrado os braços do mesmo e ponteado as suas costas, logrando desta forma que BB colocasse as mãos atrás das costas. b. O arguido virou a vítima, sentando-o num dos cantos da cama. c. O arguido pressionou aquele objeto, com o gume no polegar da vítima, cortando-lhe a pele. d. A faca estava no chão junto à cama. e. O arguido agiu com o propósito de se apoderar e fazer seus os objetos e o veículo acima descritos. f. O arguido fez sua a quantia de 300,00€ acima referida g. Houve risco de propagação do fogo às demais frações do prédio. h. O arguido acendeu material combustível e acelerante, chegando fogo à cama de BB. i. Agiu o arguido com o propósito concretizado de atear fogo à residência do ofendido, bem sabendo que, ademais pela utilização da substância aceleradora de chamas de fez uso, o lume inevitavelmente se propagaria rápida e incontrolavelmente a toda a estrutura da fração e do prédio inteiro, e que as chamas o haveriam de consumir, o que realizou e quis. * As demais alegações vertidas no despacho acusação têm um cariz demasiado genérico, conclusivo, irrelevante e/ou valorativo e/ou reportam-se à apreciação de elementos de prova, pelo que não são mencionadas nos elencos que antecedem. (…) * 2.3. Quanto à motivação da decisão de facto: (transcrição) (…) A convicção do tribunal alicerçou-se, no que aos factos provados concerne, nos elementos de prova que abaixo se mencionam, examinados de forma crítica e conjugadamente, à luz das regras da ciência, da lógica, da experiência comum e de juízos de normalidade. Quanto aos pontos 1. a 5. relevou a ponderação conjugada: • Da confissão dos factos pelo arguido, que mais disse, em sede de declarações, que o ofendido falava mal dele à ex-mulher quando estavam casados, encontrou uma pessoa que lhe disse que a sua ex-mulher o tinha deixado para ficar com o ofendido, com o que ficou a remoer; que pretendia que o ofendido fosse para o Brasil para tentar reconquistar a sua ex-mulher, que o ofendido não estava com ela mas pretendia ficar com ela, com más intenções, por pretender ter apenas relações sexuais casuais com a mesma, e “ficou com raiva”, declarações que resultam verossímeis no contexto dos factos apurados, por explicarem o motivo da sua atuação; e • Do depoimento do ofendido, que os afirmou, referindo ainda que conheceu a mulher do arguido no Brasil, quando estudavam; que foi a mulher do arguido que tratou da sua vinda para Portugal, a qual é irmã do seu patrão, e que tinha uma boa amizade com a mulher do arguido, o que resulta verossímil, por serem tais circunstâncias passível de gerar ciúmes em pessoa com propensão a tal, como resulta das regras da experiência comum. O ponto 6. foi julgado provado com base na conjugação: • Da confissão do arguido que referiu ter comprado esse instrumento uns dias antes dos factos; • Os autos de exame direto da caixa da arma, de fls. 72, e as fotografias tiradas à referida caixa na ocasião, de fls. 74-75; • Do teor do auto de busca e apreensão de fls. 35-47, realizadas em casa do arguido, onde consta ter sido apreendida tal caixa (fls. 46-47, fotos 16 e 17); e • Do teor da fatura de compra da mesma em nome do arguido à ..., em .../.../2023 (fls. 37). Não resultou credível o referido pelo arguido quando diz que adquiriu a arma para desporto, atenta a proximidade da compra da mesma (.../.../2023) e a prática dos factos (.../.../2024), e bem assim a inexistência de comprovação de o arguido praticar qualquer desporto com a mesma. O ponto 7. resultou provado pelas declarações do arguido, que disse ter comprado a bola brinquedo de cão no próprio dia dos factos e tendo em vista a prática dos mesmos, e que trazia consigo os restantes objetos. Para prova do vertido nos pontos 8. a 11., o tribunal estribou-se na coincidência do declarado pelo arguido e com o referido pelo ofendido no seu depoimento, quanto aos mesmos. O referido no ponto 12. adveio das declarações do ofendido, que por objetivas e circunstanciadas se nos afiguraram credíveis, nas quais referiu tal conduta do arguido. Acresce que, tais declarações se mostram corroboradas, quanto à ocorrência do murro na cabeça, pela fotografia do ofendido onde é visível lesão na testa (foto 5. a fls. 22). A prova do vertido em 13. e 14. resultou da coincidência: • Das declarações do arguido que os confessou, apenas referindo que não tinha capuz, mas somente uma máscara por causa da COVID 19, o que não se mostra corroborado por qualquer elemento de prova. • Com a versão dos factos que consta provada que adveio das declarações do ofendido, as quais, para além de supinamente mais credíveis do que as do arguido, resultam corroboradas pelo auto de busca e apreensão, ao domicílio do arguido, do qual consta que no sofá, foi encontrado um casaco de fecho de cor cinzento claro, com capuz, da marca Pull & Bear, tamanho L, pertencente ao arguido, que aparentava ter vestígios hemáticos elemento de prova, pelo contrário posto que na sua casa foi aprendido o seu casaco com gorro, com vestígios hemáticos a indiciar que foi o que o arguido trajava aquando dos factos (fls. 35-36 e foto 14 a fls. 45). • Contribuíram ainda para a formação da convicção do tribunal o auto de apreensão (fls. 49), junto à viatura do ofendido de uma bola de cor vermelha, com uns relevos espinhosos A prova dos pontos 15. a 16. adveio da confissão dos factos de modo genérico, não tendo o arguido efetuado qualquer ressalva quanto a estes pontos. Tais factos foram outrossim referidos deste modo pelo ofendido no seu depoimento, cuja credibilidade não foi posta em causa por qualquer outro meio de prova isento. O vertido nos pontos 17. a 18. adveio das declarações do ofendido, a cuja credibilidade já nos referimos, conjugadas com os seguites documento: • O relatório do atendimento urgente do ofendido (fls. 17-17v.), onde se identifica tal lesão. • O admitido pelo arguido, que admitiu de modo genérico a prática dos factos, não tendo efetuado qualquer ressalva quanto a este ponto. • Do auto de busca e apreensão do qual resulta ter sido apreendida na residência do ofendido uma lâmina de face serrilhada, com o comprimento aproximado de 11 cm e 4,5 cm de largura, que se encontrava no chão junto à cama. • Da reportagem fotográfica feita logo após os factos, na residência do ofendido, pelas autoridades policiais (fotografias 15 e 16 a fls. 30) onde se identifica o local onde foi encontrada a lâmina; e • Da reportagem fotográfica feita logo após os factos à pessoa do ofendido, onde se visualiza na fotografia 2 (fls. 20), o curativo de tal lesão. A prova do ponto 19. adveio da conjugação ponderada: • Do relatório do atendimento urgente do ofendido (fls. 17-17v.), onde se identifica tais lesões. • Da fotografia nº 1 (fls. 20) da reportagem fotográfica feita ao ofendido imediatamente pós os factos e tratamento do ofendido, pelas autoridades policiais onde se mostra retratada a mão do ofendido com um curativo em tal local. • O referido pelo ofendido no seu depoimento, que referiu as lesões com que ficou; • O admitido pelo arguido pela confissão genérica da prática dos factos, não tendo efetuado qualquer ressalva quanto a este ponto, mais tendo explicitado que trazia consigo o canivete. O ponto 20. foi julgado provado com base na conjugação: • Das declarações do ofendido; • Das fotografias (nºs 3 e 4 de fls. 21) tiradas pela autoridade policial imediatamente após os factos, nas quais são visíveis pequenos golpes na face e no pescoço do ofendido do lado direito, compatíveis com o relado do mesmo. • O admitido pelo arguido pela confissão genérica da prática dos factos, não tendo efetuado qualquer ressalva quanto a este ponto, mais tendo explicitado que trazia consigo o canivete. Os pontos 21. a 34. foram expressamente confessados pelo arguido nas suas declarações. Para prova do elemento subjetivo, vertido nos pontos 35. a 43. O tribunal estribou-se nos factos provados qua acima se elencaram conjugados com as regras da experiência e do normal acontecer conjugadas com as declarações do arguido que confirmou os seus intentos. Os pontos 44. e 45. foram comprovados, respetivamente, pelo CRC do arguido junto aos autos e pelo relatório social datado de ...1.../2024. * No que aos factos não provados diz respeito, o Tribunal estribou-se na insuficiência da prova produzida quanto aos mesmos, posto que o arguido não os confessou, o ofendido não os referiu, nem existem juntos aos autos elemento de prova bastantes para os comprovar, e bem assim pela prova em contrário resultante dos elementos de prova acima referidos quanto aos factos que se julgaram provados. (…) * III. Apreciando 3.1. Saber se existiu erro na qualificação jurídica dos factos relativos ao sequestro, por desconsideração da agravação com base em tratamento cruel, degradante ou desumano O crime de sequestro constitui uma das manifestações mais graves de restrição da liberdade pessoal, assumindo contornos especialmente censuráveis quando a privação da liberdade é acompanhada de actos que ofendem a dignidade e integridade física ou psíquica da vítima. O artigo 158.º do Código Penal prevê a forma simples e as formas agravadas do crime de sequestro, sendo uma dessas agravantes – prevista no n.º 2, alínea b) – a ocorrência de tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano durante a privação da liberdade. Apesar da clareza normativa e da matriz axiológica que lhe serve de suporte (protecção da dignidade humana consagrada no artigo 1.º da Constituição), verifica-se uma prática reiterada de interpretação restritiva da alínea b), frequentemente escudada em exigências probatórias desproporcionadas ou em reduções normativas que neutralizam o alcance da agravação prevista. O artigo 158.º do Código Penal estrutura o crime de sequestro como uma infracção de mera actividade, de perigo abstracto, cuja consumação ocorre com a simples privação da liberdade de outrem, independentemente da duração ou dos meios utilizados. Este tipo fundamental protege o bem jurídico da liberdade de movimentos enquanto manifestação do direito à liberdade pessoal e à autodeterminação existencial, enquanto núcleo duro da dignidade humana. A sua configuração exige apenas: i. a acção de privar alguém da liberdade de deslocação ou permanência; ii. a existência de dolo genérico (consciência e vontade de restringir a liberdade de outrem). A forma qualificada1 decorre de uma valoração acrescida da conduta, tendo em vista a intensidade da ofensa à dignidade e integridade da vítima. O legislador prevê três vias alternativas de agravação: i. Ofensa à integridade física grave (em articulação com o artigo 144.º do CP); ii. Tortura (conceito com difusão no Direito Internacional Penal e nos Direitos Humanos); iii. Tratamento cruel, degradante ou desumano, fórmula mais ampla e com autonomia própria. Como referido, a agravação consagrada no artigo 158.º, n.º 2, al. b), tem como fundamento directo a consagração da dignidade da pessoa humana como valor matricial do Estado de Direito democrático (art. 1.º da CRP) e como bem jurídico de tutela penal. A fórmula “tratamento cruel, degradante ou desumano” está consolidada no direito internacional dos direitos humanos, com especial relevo: i. Art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH): “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.” ii. Art. 7.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP). iii. Convenção Contra a Tortura (ONU, 1984). Estes instrumentos vinculam directamente o Estado português (art. 8.º, n.º 2 da CRP), impondo a criminalização eficaz de condutas que afectem a integridade física e moral da pessoa durante a privação da liberdade. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem reiterado que qualquer forma de privação de liberdade acompanhada de agressões físicas, humilhação ou dominação violenta pode consubstanciar tratamento degradante ou desumano, independentemente da sua gravidade física ou extensão temporal. Casos como Ireland v United Kingdom (1979-80) 2 EHRR 252, Aydin v. Turkey (1997)3, ou Selmouni v. France (1999)4 clarificam que a humilhação, a instrumentalização corporal ou a ameaça iminente de violência podem preencher autonomamente a proibição do art. 3.º da CEDH. A alínea b) do nº 2 do referido artº 158º do CP, consagra uma forma especialmente qualificada do crime de sequestro, com fundamento não no prolongamento temporal da privação da liberdade (como a alínea a)), mas sim na qualidade e intensidade da ofensa infligida à vítima durante o “cativeiro”. O conceito de “tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano” deve, para efeitos dogmáticos, ser lido de forma autónoma, ampla e sistematicamente integrada, à luz da protecção constitucional da dignidade humana (art. 1.º da CRP) e da referida jurisprudência europeia. Ao contrário da “ofensa à integridade física grave”, que exige uma consequência corporal mensurável (v.g., lesão que implique incapacidade ou perigo de vida), a segunda parte da alínea b) valoriza o contexto de humilhação, sofrimento gratuito, instrumentalização e objectificação da vítima. Os elementos centrais a considerar incluem: i. o carácter intencional da humilhação; ii. a ausência de finalidade legítima ou proporcional na acção do agente; iii. a disparidade de forças e submissão extrema da vítima; iv. a indução de sofrimento físico ou psicológico, mesmo que não resulte em lesão clínica. Nestes termos, o tratamento degradante não exige necessariamente dor física, mas pode assentar em violência simbólica, terror, coacção imobilizante, ou uso de objectos e expressões humilhantes. Não se olvida quem entenda excluir a agravação prevista na alínea b) quando não se verifique simultaneamente uma lesão grave à integridade física (nos termos do art. 144.º do CP) ou um padrão de conduta de extrema brutalidade reiterada. Contudo, esta linha de pensamento apresenta três problemas fundamentais: a) Violação do princípio da interpretação conforme à Constituição e à CEDH A leitura restritiva que exige lesões físicas graves neutraliza a dimensão normativa autónoma dos conceitos de “tortura”, “tratamento degradante” e “tratamento desumano”, violando o disposto nos artigos 1.º, 25.º e 27.º da CRP, bem como o artigo 3.º da CEDH. b) Redução indevida do tipo agravado à lesão física A letra da lei separa claramente os conceitos: a alínea b) prevê a “ofensa à integridade física grave” como alternativa à “tortura ou outro tratamento cruel”, não como seu sinónimo. Assim, não pode exigir-se o mesmo grau de prova de resultado físico para uma hipótese cujo critério é de ordem subjectiva e contextual. c) Desconsideração da progressividade da violência O sequestro agravado com tratamento cruel opera numa lógica progressiva, onde a violência psicológica, a instrumentalização e a humilhação assumem relevância penal própria, como factores que potenciam a coacção e a despersonalização da vítima. Tal como no crime de violência doméstica, não se pode exigir uma agressão “grande” para considerar uma conduta como desumana: o padrão reiterado e intencional de humilhação basta. In casu, os factos dados como provados no acórdão recorrido revelam um padrão de violência física, humilhação e subjugação da vítima que ultrapassa em muito os elementos típicos do sequestro simples. A actuação do arguido AA é paradigmática daquilo que o legislador pretendeu censurar com a agravação do artigo 158.º, n.º 2, alínea b). Dentre os factos com relevo, destacam-se: i. A abordagem violenta da vítima com réplica de arma, surpreendida junto à sua residência (factos 8 a 10); ii. A imposição física mediante murros, pontapés, e amarração com fita de nylon (facto 12); iii. A inserção forçada de uma bola de cão na boca da vítima, fixada com fita adesiva à volta da cabeça (facto 13); iv. As ameaças com faca e canivete, que provocaram cortes nas mãos da vítima e ferimentos visíveis (factos 18 a 20); v. O uso reiterado de expressões de intimidação, como “se não estiveres quieto, eu furo-te”, enquanto se encostava uma lâmina ao pescoço da vítima (facto 21); vi. A instrumentalização do corpo da vítima como meio de chantagem emocional e financeira, através da extracção coerciva de códigos de homebanking sob ameaça e dominação psicológica (factos 24 a 25); vii. A extensão temporal da coacção e violência, mantida durante várias horas, com planeamento prévio e intenção deliberada de “deportação” forçada da vítima. Tais factos não podem ser juridicamente subsumidos ao modelo de privação da liberdade simples. Pelo contrário, constituem um padrão sistemático de rebaixamento da vítima a objecto, impondo-lhe sofrimento físico e psíquico intenso, através de: i. Violência física corporal (com marcas visíveis e corte com lâmina); ii. Contenção física humilhante (amarração com fios de electrodoméstico e fita de nylon); iii. Objectificação do corpo (uso da boca como local de inserção de objecto vulgar e agressivo: bola de cão com espinhos); iv. Coacção mediante terror físico (ameaças com faca, encostar de lâmina ao pescoço); v. Terror psicológico e privação prolongada de liberdade em ambiente hostil, com acesso condicionado a alimentação e hidratação. Tais actos concretizam, de forma inequívoca, tratamento cruel, degradante e desumano. A factualidade espelha, com especial intensidade, as características exigidas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para que uma conduta seja considerada degradante: i. Sofrimento infligido com intenção de humilhação ou coacção; ii. Ações que provocam na vítima sentimento de medo, angústia e inferioridade, capaz de a quebrar física ou moralmente; iii. Ausência de finalidade legítima no uso da força; iv. Disparidade absoluta entre o agente e a vítima, em termos de controlo e iniciativa. Tais parâmetros encontram correspondência nos factos provados, onde o arguido encenou um cenário de tortura psicológica e coacção física, com instrumentalização total da liberdade da vítima. O tribunal a quo afastou a aplicação do artigo 158.º, n.º 2, alínea b), alegando que não se demonstrou a existência de tortura nem de ofensa à integridade física grave, limitando-se a reconhecer a violência como instrumento do sequestro. Este raciocínio padece de um vício técnico grave, por três ordens de razões: a) Confusão entre os conceitos de lesão grave e tratamento degradante Como já se referiu, a alínea b) é construída em cláusulas alternativas e não cumulativas. A ausência de ofensa à integridade física grave não impede a aplicação da agravante, se estiverem presentes os elementos de tratamento cruel ou degradante. A tentativa de fundir os conceitos neutraliza a parte final da norma. A inserção de um objecto não médico na boca da vítima, em situação de coacção, é um gesto de profunda violência simbólica, que transporta consigo significados de dominação, despersonalização e rebaixamento, frequentemente associados a práticas de tortura psicológica. c) Redução do dolo ao propósito instrumental O argumento de que a violência visava apenas “imobilizar a vítima” ou “executar o plano de afastamento” não exclui a qualificação agravada: o dolo exigido pela alínea b) é o de provocar a privação da liberdade com tais características, não o de causar sofrimento como fim em si mesmo. A coacção cruel é penalmente censurável ainda que seja um meio para atingir outro fim. A agravação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 158.º do Código Penal constitui uma qualificação própria e suficiente do crime de sequestro, que não exige o uso de arma, real ou aparente, como condição para a sua aplicação. Basta que a privação da liberdade esteja precedida ou acompanhada por qualquer das seguintes situações: i. Ofensa à integridade física grave; ii. Tortura; iii. Tratamento cruel, degradante ou desumano. Trata-se de três modalidades autónomas e alternativas, cuja verificação individual já justifica o agravamento da moldura penal para os limites de 2 a 10 anos de prisão. Nenhuma destas modalidades depende da presença de arma ou da sua classificação legal. O tipo penal agravado não exige instrumento específico de execução, mas sim o resultado ou modo de actuação ofensivo da dignidade da vítima. Portanto, a agravação da moldura penal nos termos do art. 158.º, n.º 2, al. b), não requer — nem se encontra subordinada — a uma verificação cumulativa do uso de arma nos moldes da Lei n.º 5/2006. O artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, consagra um regime agravatório penal específico, aplicável a crimes cometidos com armas, nos seguintes termos: “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime em função do uso ou porte de arma.” (n.º 3) Esta norma tem natureza subsidiária e complementar, conforme resulta do final da norma: “excepto se a lei já previr agravação mais elevada”. O legislador afastou conscientemente a aplicação do regime agravatório da Lei das Armas sempre que o tipo de crime já tenha forma agravada com base em factores materiais mais relevantes, como o grau de violência ou o sofrimento infligido. No caso do artigo 158.º, n.º 2, al. b), o legislador já previu uma forma agravada mais gravosa do que a que resultaria da aplicação automática do art. 86.º (que apenas agrava a moldura de 1/3). Logo, a agravação pelo uso de arma não tem aplicabilidade no quadro do sequestro agravado por tortura ou tratamento cruel. A réplica de pistola tipo “Beretta 92 Spring Full Metal” utilizada pelo arguido no caso concreto não é uma arma de fogo verdadeira, nem uma arma classificada nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006. Trata-se de uma arma de airsoft, que dispara esferas de plástico de 6 mm por acção de mola ou gás, e cujo uso, posse e transporte, ainda que regulados administrativamente, não têm equiparação penal plena a armas de fogo verdadeiras ou letais. Mesmo que fosse equiparada a uma arma da classe D, o seu uso não foi determinante para os actos de violência física infligidos, nem foi necessário para provocar os actos de subjugação mais humilhantes (amarração com fio, ferimentos com canivete, uso da bola de cão, etc.). É sustentado pelo arguido na sua resposta ao recurso que, como a acusação invocou a agravação do sequestro com base no uso de arma, e se tal uso foi desqualificado em julgamento (por se tratar de réplica ou arma inócua), estará precludida a possibilidade de agravação por tratamento cruel. Tal entendimento não procede, por três razões: a) Erro na qualificação inicial não contamina a subsunção jurídica correcta O tribunal não está adstrito ao erro de qualificação jurídica formulado na acusação. Desde que os factos se mantenham, e não haja violação do princípio do contraditório ou das garantias de defesa, o tribunal pode aplicar correctamente a norma jurídica mais adequada — neste caso, a alínea b) do n.º 2 do artigo 158.º. Até porque a própria acusação refere expressamente tal norma como imputada ao comportamento do arguido.5 b) A agravação por tratamento cruel é de natureza objectiva-material e não instrumental O facto de o arguido usar ou não uma arma não determina o conteúdo da sua conduta quanto ao sofrimento infligido. A utilização de objectos cortantes, o uso da fita adesiva à volta da cabeça da vítima, a imposição de silêncio pela força, a coacção física contínua e humilhante preenchem autonomamente o tipo de tratamento cruel, com ou sem o uso de arma aparente. c) Preclusão apenas se verifica quando a acusação for restritiva, não ampliativa O tribunal não pode condenar com base em elementos de facto não constantes da acusação. No entanto, no caso em apreço, a factualidade provada corresponde integralmente à base fáctica da acusação: o que se altera é apenas a valoração jurídica da intensidade e qualidade da violência — perfeitamente admissível. A agravação da moldura penal pela via da Lei das Armas não é requisito prévio nem substituto da aplicação da alínea b) do art. 158.º, n.º 2. São regimes paralelos, mas não cumulativos — e, na presença da forma agravada por tratamento cruel, o regime acessório da Lei das Armas deve ceder. Em suma: 1. A alínea b) do n.º 2 do artigo 158.º consagra um tipo qualificado autónomo Trata-se de uma forma agravada com fundamento material próprio, que não depende de duração prolongada da privação da liberdade (como na alínea a)), nem do resultado lesivo grave (como na alínea d)). A gravidade é antes determinada pela qualidade da conduta do agente, quando esta implica uma compressão intolerável da dignidade da vítima. 2. A expressão “tratamento cruel, degradante ou desumano” deve ser interpretada à luz da CEDH e da CRP A norma do art. 158.º, n.º 2, al. b), reproduz, em termos quase literais, a fórmula do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como o conteúdo material do artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa. Assim, impõe-se uma interpretação conforme aos princípios constitucionais e ao direito internacional dos direitos humanos, que valorize não apenas os efeitos físicos, mas sobretudo os efeitos simbólicos, psicológicos e morais da violência infligida à vítima. A exigência, de que a agravante só seja aplicável quando haja ofensa à integridade física grave, ou quando se verifique um padrão de violência contínua, confunde os pressupostos legais alternativos e desvirtua o alcance normativo da cláusula final da alínea b). Esta postura contraria: A letra da lei, que estabelece hipóteses cumulativamente alternativas; A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que reconhece como tratamento degradante todas as situações de humilhação, coacção ou dominação abusiva; 3. O caso dos autos demonstra inequivocamente a aplicação da agravante O comportamento do arguido AA, conforme ficou provado nos autos, inclui: i. Amarração física humilhante e violenta; ii. Inserção de objecto grosseiro na boca da vítima, fixado com fita adesiva; iii. Ameaças de morte com objectos cortantes; iv. Privação de liberdade durante várias horas em contexto de dominação; v. Utilização do corpo da vítima como instrumento de chantagem. Tais condutas realizam com nitidez o tipo de tratamento cruel e desumano, tornando indefensável a subsunção à forma simples do artigo 158.º, n.º 1. O afastamento da agravação no acórdão recorrido configura, por isso, um erro de subsunção jurídica que deve ser objecto de correcção. 4. A agravação pelo art. 158.º, n.º 2, al. b), é independente da agravação pelo uso de arma (art. 86.º da Lei 5/2006) A tentativa de condicionar a aplicação da agravante à qualificação da arma utilizada como “arma de fogo” ou “arma proibida” (nos termos da Lei das Armas) não tem suporte normativo. O regime do art. 86.º tem natureza acessória, subsidiária e meramente instrumental, não se sobrepondo nem condicionando a aplicação de um tipo agravado fundado na lesão da dignidade humana. O afastamento da agravação por uso de arma não impede nem prejudica a qualificação agravada com base no conteúdo intrínseco da violência. Inversamente, o reconhecimento do tratamento cruel afasta a aplicação do regime agravatório da Lei das Armas, por especialidade e princípio da subsidiariedade normativa. Negar a aplicação da agravante em casos como o aqui analisado seria compactuar com a banalização da humilhação, com a desvalorização do sofrimento humano, e com uma interpretação anacrónica e formalista do Direito Penal. Assim, assiste razão ao Ministério Público, impondo-se a reformulação da qualificação jurídica do facto para crime de sequestro agravado, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal. * 3.2. Saber se existiu erro na apreciação da prova quanto à prática do crime de incêndio, por se verificaram os seus elementos objectivos e subjectivos ou, pelo menos, a tentativa punível do mesmo ilícito Nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do CPP, o recorrente que impugne a matéria de facto deve: a) Especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Indicar concretamente as provas que impõem decisão diversa; c) Expor as razões da sua discordância, com remissão, quando aplicável, para os suportes de prova gravados (n.º 4). No caso concreto, o Ministério Público identificou e fundamentou a necessidade de alteração de três factos essenciais, que não foram dados como provados na decisão recorrida: g. Houve risco de propagação do fogo às demais fracções do prédio. h. O arguido acendeu material combustível e acelerante, chegando fogo à cama de BB. i. Agiu o arguido com o propósito concretizado de atear fogo à residência do ofendido, bem sabendo que, ademais pela utilização da substância aceleradora de chamas de fez uso, o lume inevitavelmente se propagaria rápida e incontrolavelmente a toda a estrutura da fracção e do prédio inteiro, e que as chamas o haveriam de consumir, o que realizou e quis. Estes factos foram impugnados com base: i. nas declarações da vítima BB, que relatou a ignição na cama e a actuação do arguido com fogo; ii. nas declarações da testemunha vizinha, que interveio para apagar o fogo com balde de água; iii. nos registos fotográficos e relatório da protecção civil, que referem vestígios de combustão, libertação de fumo e cheiro a acelerante; iv. e na lógica factual do ilícito: após agressões e tentativa de extorsão, o arguido abandonou o local deixando o foco de incêndio activo. Tendo em conta a prova produzida e a impugnação sustentada no artº 412º do CPP, os factos acima transcritos devem ser integrados na matéria de facto como provados, o que implica, dogmaticamente, a reformulação da qualificação jurídica do comportamento do arguido. Assim, devem ser aditados à matéria de facto fixada os seguintes factos: Houve risco de propagação do fogo às demais fracções do prédio. O arguido acendeu material combustível e acelerante, pegando fogo à cama de BB. Agiu o arguido com o propósito concretizado de atear fogo à residência do ofendido, bem sabendo que, ademais pela utilização da substância aceleradora de chamas que fez uso, o lume inevitavelmente se propagaria rápida e incontrolavelmente a toda a estrutura da fracção e do prédio inteiro, e que as chamas o haveriam de consumir, o que realizou e quis. Com base nesta nova base factual aditada, o juízo de subsunção jurídica terá necessariamente ser revisto. O crime de incêndio, previsto no artigo 272.º, n.º 1, do Código Penal, configura uma das mais graves ofensas aos bens jurídicos fundamentais protegidos pelo direito penal – nomeadamente a vida humana, a integridade física e o património, em especial quando se encontra em risco colectivo. Inserido no capítulo dos crimes de perigo comum, o ilícito de incêndio representa um perigo abstracto com manifestações muitas vezes devastadoras. Por esta razão, existe a necessidade de interpretar este tipo penal com base numa dupla racionalidade: a protecção eficaz de bens jurídicos e a observância rigorosa dos elementos típicos, evitando interpretações que, sob pretexto de exigências formais excessivas, inviabilizem a punição de condutas socialmente perigosas. O artigo 272.º, n.º 1 do Código Penal dispõe: “1 - Quem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte; b) Provocar explosão por qualquer forma, nomeadamente mediante utilização de explosivos; c) Libertar gases tóxicos ou asfixiantes; d) Emitir radiações ou libertar substâncias radioactivas; e) Provocar inundação, desprendimento de avalanche, massa de terra ou de pedras; ou f) Provocar desmoronamento ou desabamento de construção; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos..” Estamos perante um tipo legal misto alternativo, que compreende quatro comportamentos: provocar incêndio, provocar explosão, libertar gases ou substâncias ou provocar inundações, desabamentos ou avalanches. Por ora, interessa-nos exclusivamente o primeiro – provocar incêndio. Trata-se de um crime de perigo concreto, ou seja, exige-se que o agente actue de forma a criar efectivamente perigo para determinados bens jurídicos: vida, integridade física ou património de valor elevado. O bem jurídico protegido não é apenas o bem patrimonial atingido pelo fogo, mas a segurança colectiva, a ordem pública e, sobretudo, os bens jurídicos fundamentais das pessoas, em especial quando o incêndio ocorre em meio urbano, em edifícios de habitação ou em locais com potencial de propagação. Como elementos objectivos do tipo, temos: 1. Conduta típica: provocar incêndio, ou seja, dar origem à combustão não controlada de materiais, com desenvolvimento autónomo da chama, que não possa ser contida sem meios externos. 2. Resultado típico: perigo real e concreto para a vida, integridade física ou património de valor elevado. 3. Nexo de causalidade: ligação entre o comportamento do agente e o perigo criado. 4. O dolo directo ou eventual: basta que o agente preveja e aceite como possível que da sua conduta resulte o perigo para os bens protegidos. Não se exige intenção de destruir ou matar, mas conformação com a produção de perigo sério. Nos termos dos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, a tentativa é punível em todos os crimes dolosos, salvo disposição em contrário, quando o agente dá início à execução dos actos que integram o tipo objectivo, mas a consumação não se verifica por razões alheias à sua vontade. No crime de incêndio, há tentativa quando: i. O agente actua com dolo, e ii. Dá início à combustão ou pratica actos idóneos à ignição, iii. Mas o fogo não se propaga por causas externas (interrupção, extinção precoce, erro de execução). O acórdão sob censura incorre no erro dogmático de considerar que não se verifica o crime de incêndio quando: i. O fogo é apagado em poucos minutos; ii. O bem em causa (ex.: colchão) não chega a ser destruído; iii. O incêndio não se propaga a outras divisões; iv. Não se demonstrou risco directo de morte ou lesão. Esta exigência equivale a converter o crime de perigo concreto num crime de resultado, o que contraria frontalmente a letra e o espírito da lei penal. O artigo 272.º do CP não exige danos consumados, mas apenas que o fogo criado pelo agente seja apto a criar perigo sério e não meramente hipotético. O perigo concreto é definido como a probabilidade objectiva, com base em regras da experiência e nos dados do caso, de que o bem jurídico possa ser lesado pela conduta do agente. O elemento subjectivo do tipo exige apenas que o agente actue com dolo — directo ou eventual. No caso do incêndio, o dolo está preenchido quando o agente sabe que o fogo pode propagar-se e aceita esse risco. Basta que o agente actue com: i. Consciência do risco (previsibilidade da propagação), ii. Aceitação da possibilidade de perigo, mesmo que acredite que poderá controlar as chamas. O artigo 22.º/1 do Código Penal consagra que: Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se. Já o artigo 23.º estabelece a punibilidade da tentativa nos crimes dolosos em que a pena aplicável ao facto consumado seja superior a três anos de prisão, como sucede no artigo 272.º, n.º 1, do CP. Portanto, para a verificação da tentativa de crime de incêndio exige-se: i. Dolo (directo ou eventual): o agente quis ou aceitou criar fogo com risco para bens jurídicos; ii. Prática de actos de execução: condutas que integram o tipo objectivo, com idoneidade para atingir o resultado típico; iii. Inexistência de consumação por causas alheias: interrupção, extinção, erro, reacção de terceiros ou outra causa não imputável ao agente. No caso do incêndio, entende-se como início de execução: i. A introdução de chama em materiais combustíveis; ii. A colocação de substâncias acelerantes com posterior ignição; iii. O uso de fósforos, isqueiros ou outros meios com intenção de atear fogo a bens inflamáveis. Não é necessário que o fogo se propague de imediato, nem que cause danos. Basta que a acção do agente suponha a realização do tipo objectivo com seriedade e idoneidade. In casu, da factualidade provada resulta: i. O arguido, após as agressões à vítima, ateou fogo a materiais presentes na residência da mesma – nomeadamente papéis e objectos inflamáveis; ii. Os vizinhos relataram fumo denso a sair da habitação, e chamaram os bombeiros; iii. A vítima referiu que “graças a Deus o colchão não chegou a arder”, mas o mesmo começou a libertar fumo; iv. O fogo foi controlado por uma vizinha com recurso a balde de água, tendo os bombeiros apenas confirmado a ausência de perigo à chegada; v. O arguido afastou-se do local após provocar o início do incêndio. Estes factos evidenciam: i. Dolo directo: o agente sabia o que fazia, e quis iniciar o fogo; ii. Actos de execução iniciados: foi provocada a ignição de materiais combustíveis; iii. Interrupção da consumação por causas externas: acção de terceiros (vizinha) extinguiu o incêndio. Mesmo que se invoque não haver propagação significativa das chamas, o início de combustão com libertação de fumo, em espaço fechado, preenche claramente os pressupostos da tentativa punível. O acórdão sob censura revela uma posição preocupante: desconsiderar a prática do crime de incêndio sempre que o fogo não atinge proporções elevadas, é extinto rapidamente, ou não causa danos visíveis a bens patrimoniais. In casu, essa tendência manifestou-se na decisão que entendeu que: O arguido apenas queimou “uns papéis”; Não houve propagação do fogo ao colchão; O fumo foi combatido de forma rudimentar; Os danos foram praticamente inexistentes; Logo, não se configuraria o tipo de crime de incêndio — nem mesmo a sua tentativa. Esta conclusão é incorrecta do ponto de vista técnico-jurídico, por diversos motivos: Não existe, no artigo 272.º, qualquer menção a destruição de bens, perda total ou extensão mínima do fogo. O tipo penal exige apenas que o agente provoque um incêndio susceptível de criar perigo para: a) Vida; b) Integridade física; c) Património de valor elevado. Basta, portanto, que a combustão possa, num curso normal de acontecimentos, atingir esses bens jurídicos. O facto de o fogo não se ter propagado ao colchão não exclui o perigo: o fumo intenso numa habitação pode colocar em risco a vida da vítima, a integridade física (por inalação) e o edifício (por propagação a materiais inflamáveis). O acórdão recorrido que recusa a subsunção ao crime de incêndio com base na ausência de destruição confunde perigosidade com dano, violando o princípio de legalidade e a natureza do tipo. O tipo penal é de perigo concreto, e não de dano real. O seu critério é o da possibilidade objectiva de ocorrência de lesão, não a verificação de uma lesão material. Como já vimos, isso basta para a verificação do crime consumado — e, a fortiori, para a tentativa. O artigo 272.º do Código Penal assume uma função preventiva acentuada, dado que o bem jurídico é altamente sensível a perigos irreversíveis. O legislador quis punir precocemente a conduta perigosa, antes da verificação de danos. Consequentemente, o tipo penal deve ser interpretado de forma protectora dos bens jurídicos em causa, e não restritivamente. A exclusão da ilicitude com base na eficácia da resposta dos vizinhos ou na celeridade da extinção do fogo é logicamente absurda, com o devido respeito. A consumação do crime não depende da eficácia do combate ao fogo, mas da conduta perigosa do agente no momento da acção. Mas, recapitulemos os factos: 1. O arguido, após a prática de vários crimes contra a vítima, iniciou um foco de fogo na habitação alheia; 2. Fumos intensos foram observados por vizinhos e extinguidos com balde de água; 3. A vítima permaneceu amarrada no local durante parte do tempo; 4. A combustão ocorreu num espaço fechado (um T0), com risco de propagação para o edifício. Esta factualidade comprova: 1. A existência de ignição voluntária; 2. A presença de bens inflamáveis no local; 3. A possibilidade objectiva de propagação; 4. O perigo para a integridade física da vítima e para o edifício. Estes factos, têm valor decisivo para a qualificação jurídica da conduta como crime de incêndio consumado, e não apenas como tentativa. Com efeito, a verificação dos seguintes elementos resultaria: Existência de material inflamável e uso de substância aceleradora (facto h), impugnado pelo MP e aditado à matéria de facto provada; Desenvolvimento efectivo do fogo até à cama da vítima, não mera combustão de papéis; Propósito directo de destruição do espaço habitacional (facto i), impugnado pelo MP e aditado à matéria de facto provada; Risco objectivo para todo o edifício e demais fracções (facto g) impugnado pelo MP e aditado à matéria de facto provada. Neste quadro, está plenamente preenchido o tipo objectivo do crime de incêndio, com criação de perigo efectivo para bens patrimoniais de elevado valor e para a integridade física das pessoas presentes ou residentes no edifício; O dolo é de natureza directa e específica, já que o agente não apenas previu, como quis a propagação do fogo, conformando-se com o resultado destrutivo; O risco assumido deixa de ser meramente abstracto ou eventual e transforma-se em dolo intensificado quanto ao perigo criado. Perante este quadro factual, não restam dúvidas de que o tribunal recorrido errou ao absolver o arguido, pois a própria base fáctica da está confirmada pela prova testemunhal e documental produzida, e impõe a condenação pelo crime de incêndio consumado (art. 272.º, n.º 1, CP). * 3.3. Determinação da pena parcelar – crime de sequestro agravado O artigo 158.º do CP regula o crime de sequestro, estabelecendo no seu n.º 1 a figura base: “Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.” O n.º 2 do artigo 158.º consagra formas agravadas de sequestro, com moldura penal de 2 a 10 anos de prisão, sempre que o comportamento do agente reveste maior perigosidade ou gravidade, quer pelo modo de execução, quer pelas consequências ou vítimas envolvidas. Dentre essas formas agravadas, interessa-nos a da alínea b): “O agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade \[...] for precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano.” In casu, o arguido: i. Manteve a vítima amarrada e imobilizada durante várias horas; ii. Introduziu-lhe na boca uma bola de cão com espinhos, prendendo-a com fita adesiva em torno da cabeça; iii. Cortou-lhe o corpo com objecto cortante; iv. Proferiu ameaças de morte e humilhações verbais; Esta factualidade preenche o conceito de tratamento cruel, degradante e desumano, demonstrando: i. Sofrimento físico e psíquico; ii. Humilhação e rebaixamento simbólico; iii. Violação grave da dignidade e integridade pessoal da vítima. Estes elementos tornam a carga ofensiva da conduta especialmente acentuada, em violação directa do princípio da dignidade humana, atingindo não apenas o bem jurídico da liberdade, mas também a integridade e honra da pessoa. O comportamento é análogo aos actos descritos em jurisprudência internacional sobre tratamentos degradantes e atentatórios da integridade, podendo ser qualificado como uma forma de “tortura doméstica” com motivação pessoal. A culpa é de grau elevado. O arguido agiu com dolo directo, conhecendo e querendo todos os elementos da execução, conformando-se com o sofrimento infligido. Mostrou plena consciência: i. Da privação da liberdade; ii. Do sofrimento físico e emocional causado; iii. Da humilhação e da degradação da vítima; iv. Do uso da sua força física e da desproporção de poder na relação com a vítima. Não há indícios de perturbação psíquica, imaturidade afectiva ou descontrolo emocional que pudessem atenuar o juízo de censura. Pelo contrário, a acção foi fria, metódica e instrumental. Em termos de prevenção geral, estas condutas têm relevância acrescida, dada a incidência crescente de actos de violência física, emocional e simbólica neste tipo de contextos. O sistema jurídico deve reafirmar a tutela penal da liberdade e da dignidade humana com resposta firme a condutas de sequestro com humilhação e crueldade. Em termos de prevenção especial, o arguido é primário e tem inserção social, mas o grau de desvalorização dos direitos da vítima levanta reservas sobre a interiorização de normas básicas de convivência pessoal e social. A motivação é particularmente censurável: não há legítima defesa, impulso reactivo justificado, nem conflito imediato. O arguido actuou por dominação, punição emocional e controlo possessivo, o que aumenta a necessidade de intervenção penal efectiva. Ainda que não se tenham registado lesões incapacitantes permanentes, a vítima sofreu cortes, dores físicas, desorientação emocional, humilhação e perda de dignidade. Os efeitos foram profundos, ainda que não quantificáveis clinicamente. A moldura penal aplicável, nos termos do artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, al. b) do Código Penal, como supra-referido é de 2 a 10 anos de prisão. Esta amplitude impõe uma valoração precisa dos factores agravantes e atenuantes que influenciam a medida da pena concreta. Assim, temos como factores agravantes relevantes: i. Grau muito elevado de ilicitude; ii. Dolo directo e intenso; iii. Sofrimento físico e psíquico imposto à vítima; iv. Utilização de objectos e métodos humilhantes (fita adesiva, bola de cão, cortes); v. Premeditação e controle racional da execução. Como factores atenuantes com relevo mitigado, temos: i. Não ter antecedentes criminais registados ii. Comportamento processual formalmente cooperante. Não se verificam: i. Arrependimento espontâneo; ii. Confissão voluntária ou integral; iii. Reparação do dano; iv. Perturbações psíquicas ou de desenvolvimento relevantes. Tendo em conta a função de prevenção geral e a necessidade de afirmação da norma penal em contextos de dominação relacional e humilhação pessoal, a pena deve situar-se acima do mínimo legal, sem, contudo, exceder a zona média da moldura. A fixação de uma pena muito próxima do limite mínimo (2 anos) não asseguraria a devida censura penal à conduta praticada. Por outro lado, situar a pena acima do meio da pena seria exigiria um patamar de perversidade, reincidência ou resultado que o caso não apresenta. Com base nesta ponderação, entende-se proporcional e juridicamente adequada a fixação da pena concreta de 3 anos e 2 meses de prisão. Esta medida da pena traduz um juízo de censura forte, adequado à intensidade da violência moral e física exercida; Sinaliza à comunidade jurídica e à sociedade a reprovação clara de condutas atentatórias da dignidade humana em contexto privado; Preserva o princípio da individualização da pena, não desconsiderando os elementos favoráveis do arguido; Situa-se no terço inferior da moldura, o que permite, em sede de cúmulo jurídico (cf. art. 77.º CP), a harmonização com as penas dos crimes em causa, evitando desproporção global. * 3.4. Determinação da pena parcelar – crime de incêndio consumado O artigo 272.º, n.º 1 do Código Penal prevê: “1 - Quem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte; b) Provocar explosão por qualquer forma, nomeadamente mediante utilização de explosivos; c) Libertar gases tóxicos ou asfixiantes; d) Emitir radiações ou libertar substâncias radioactivas; e) Provocar inundação, desprendimento de avalanche, massa de terra ou de pedras; ou f) Provocar desmoronamento ou desabamento de construção; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos.” Estamos perante um tipo misto alternativo, mas apenas a primeira conduta – provocar incêndio – será aqui considerado. Este crime reveste-se das seguintes características dogmáticas: Crime de perigo concreto: exige a criação de risco efectivo para os bens jurídicos protegidos, mas não a sua efectiva lesão; Crime doloso, admitindo dolo directo e eventual; Tipo penal de tutela plúrima: protege cumulativamente a vida humana, a integridade física e o património, sobretudo em contextos de elevada perigosidade objectiva, como zonas habitacionais, espaços públicos, infra-estruturas críticas, etc. O artigo 71.º do Código Penal estabelece um regime jurídico de determinação da medida concreta da pena dentro da moldura legal abstractamente prevista para o tipo de ilícito em causa. Trata-se de uma norma de estrutura aberta, orientada por três princípios fundamentais: Culpa do agente (como limite superior da pena admissível); Prevenção geral positiva (afirmação da validade da norma penal); Prevenção especial de socialização (necessidade de afastar o agente do crime no futuro). Estes princípios encontram-se no n.º 1 da norma, que dispõe: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.” Já o n.º 2 estabelece um conjunto exemplificativo de circunstâncias a considerar, agrupáveis em duas categorias: 1. Circunstâncias relativas ao facto: grau de ilicitude, modo de execução, bens jurídicos afectados, motivação, consequências, etc.; 2. Circunstâncias relativas ao agente: antecedentes, comportamento posterior, integração social, arrependimento, entre outras. O grau de ilicitude corresponde à gravidade objectiva do facto típico – isto é, à medida da ofensa real ou potencial aos bens jurídicos tutelados. No crime de incêndio, a ilicitude é especialmente elevada quando: 1. O local é de habitação ou utilização colectiva; 2. Existem pessoas presentes ou vulneráveis no momento da ignição; 3. O agente utiliza acelerantes ou age com premeditação; 4. Se verifica uma intenção destrutiva consciente; 5. O perigo se estende a bens patrimoniais de elevado valor. A culpa penal traduz-se no juízo de censurabilidade da conduta do agente. No crime de incêndio, este juízo avalia: 1. O grau de dolo (directo ou eventual, e a intensidade da vontade destrutiva); 2. A consciência do perigo criado; 3. A insensibilidade perante os possíveis danos causados; 4. A indiferença perante a vida ou a integridade dos outros. Prevenção geral: no crime de incêndio, assume grande relevo, dada a necessidade de reafirmar a tutela penal contra práticas socialmente intoleráveis, em especial num contexto de crescente risco de incêndios urbanos e florestais. Prevenção especial: visa evitar a reincidência. O grau de perigosidade do agente, os seus antecedentes, a motivação da conduta e a reacção ao processo penal são aqui factores decisivos. No que tange às circunstâncias agravante e atenuantes diremos: Apenas uma nota preliminar: A ausência de antecedentes não é suficiente, por si só, para justificar penas mínimas, quando o comportamento revela elevado perigo social e desvalorização dos bens jurídicos fundamentais. Como atenuantes que militam em benefício do arguido, temos: i. Colaboração com as autoridades; ii. Confissão genérica da prática dos factos. iii. Não possui antecedentes criminais; iv. O fogo foi extinto antes de causar destruição efectiva da habitação. A libertação de fumo não originou danos materiais de grande relevância nem lesões físicas. Tal mitiga o impacto objectivo da ilicitude. Como circunstâncias agravantes, temos: i. Dolo directo com propósito destrutivo; ii. Uso de substâncias aceleradoras; iii. Perigo alargado a outros imóveis; iv. Acção inserida em contexto de retaliação pessoal. Tendo em conta: i. A gravidade relevante mas não extrema da conduta; ii. A ausência de resultados efectivos lesivos graves; iii. As características pessoais e sociais favoráveis do arguido; Fixa-se a pena concreta de 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de incêndio consumado, prevista e punida pelo artigo 272.º, n.º 1 do Código Penal. Esta pena: i. Afirma a gravidade da conduta perante a sociedade; ii. Satisfaz as exigências mínimas de prevenção geral e especial; iii. Preserva a coerência com a função ressocializadora da pena; E situa-se dentro da legalidade estrita, com base em juízo de equidade e proporcionalidade constitucionalmente adequado (art. 18.º, n.º 2, da CRP). * 3.5. Cúmulo jurídico Nos termos do artigo 77.º do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. O artigo 77.º, n.º 2 do CP estabelece os limites da pena única a aplicar: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.” Vejamos, então, a estruturação do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares, que abrangem o total de 7 crimes: a. ofensa à integridade física simples (art. 143.º, n.º 1 CP) - 1 ano; b. coacção (art. 154.º, n.º 1 CP) - 9 meses; c. acesso ilegítimo a sistema informático (art. 6.º, Lei 109/2009) - 4 meses; d. furto de uso de veículo (art. 208.º, n.º 1 CP) - 9 meses e. dano (art. 212.º, n.º 1 CP) - 9 meses; f. sequestro agravado (tratamento cruel, degradante ou desumano) art. 158.º, n.ºs 1 e 2, al. b) CP - 3 anos e 2 meses; g. incêndio (art. 272.º, n.º 1 CP) - 3 anos e 6 meses. Temos, assim, como limite mínimo: a mais elevada das penas parcelares → 3 anos e 6 meses (incêndio); e como limite máximo: a soma de todas as penas parcelares → 1 ano + 9 meses + 4 meses + 9 meses + 9 meses + 3 anos e 2 meses + 3 anos e 6 meses = 9 anos e 3 meses de prisão. Os dois crimes mais graves – incêndio consumado (3A6M) e sequestro agravado (3A2M) – totalizam 6 anos e 8 meses. Somando os restantes crimes menores, o cúmulo atinge 9 anos e 3 meses como tecto máximo. Contudo, a maior parte das penas parcelares restantes (coacção, dano, ofensa simples, acesso ilegítimo, furto de uso) são de baixa gravidade autónoma, não agravadas, e em muitos casos sem consequências materiais de grande impacto. Assim, do ponto de vista penal, o juízo de censura está concentrado nos dois crimes principais – e o cúmulo deve reflectir essa hierarquia, sem desproporção. Ponderando o conjunto dos factos, das circunstâncias objectivas e subjectivas e dos critérios de prevenção, conclui-se que a pena única de 5 anos e 2 meses de prisão representa a resposta penal mais proporcional, suficiente e juridicamente adequada, considerando que: i. Os dois crimes estruturantes (sequestro agravado e incêndio doloso) concentram o núcleo da censura penal, merecendo resposta adequada, mas não maximalista; ii. Os restantes crimes (coacção, dano, ofensa à integridade simples, acesso ilegítimo e furto de uso) têm gravidade autónoma reduzida, sem reincidência, lesões permanentes ou especial perigosidade; iii. O arguido é primário e está inserido; A pena respeita o equilíbrio entre os limites legais, situando-se sensivelmente um terço acima do mínimo e quase quatro anos abaixo do máximo, o que concretiza o princípio da proporcionalidade constitucionalmente imposto (art. 18.º, n.º 2 da CRP). Esta pena única representa uma resposta penal racional, equilibrada, conforme à culpa do arguido e às exigências de prevenção geral e especial, assegurando a eficácia da tutela penal sem comprometer os valores da reinserção social e da dignidade da pena. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, nos seguintes termos: a) Alterar a matéria de facto provada, aditando-se os seguintes factos, e eliminá-los da matéria de facto não provada: • Houve risco de propagação do fogo às demais fracções do prédio; • O arguido acendeu material combustível e acelerante, chegando fogo à cama de BB; • Agiu o arguido com o propósito concretizado de atear fogo à residência do ofendido, bem sabendo que, ademais pela utilização da substância aceleradora de chamas que fez uso, o lume inevitavelmente se propagaria rápida e incontrolavelmente a toda a estrutura da fracção e do prédio inteiro, e que as chamas o haveriam de consumir, o que realizou e quis. b) Requalificar juridicamente os factos relativos ao crime de sequestro, condenando-se o arguido pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelos artigos 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, em substituição da condenação anterior pelo crime de sequestro simples; c) Condenar o arguido pela prática do crime de incêndio previsto e punido pelo artº. 272º, nº 1 do CP na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; d) Em cúmulo jurídico de todas as penas parcelares, nos termos do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão. Sem custas. Notifique. Tribunal da Relação de Lisboa, 21-05-2025 Alfredo Costa Francisco Henriques Mário Pedro M. A. Seixas Meireles Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP). Ortografia pré-reforma _______________________________________________________ 1. Artº 158º, nº 2 b) do CP “For precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano;”. 2. https://www.lawteacher.net/cases/ireland-v-uk.php 3. https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-58371%22]} 4. https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-58287%22]} 5. - um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, n.º 2, al. b), do Código Penal, e artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02; |