Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12225/21.0T8SNT.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
PROCURAÇÃO
FALSIDADE
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: I - A nulidade da sentença a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão ininteligível, não se estando aqui o legislador a referir à decisão da matéria de facto. Com efeito, quando esta última seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, que até pode ser oficiosamente determinada em certas situações, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC.
II - O conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, nos termos conjugados dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), e 608.º, n.º 2, ambos do CPC, relaciona-se com a definição do âmbito do caso julgado, devendo o juiz apreciar (sucessivamente) os pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte (a menos que a apreciação de um esteja prejudicada) e as várias causas de pedir invocadas, bem como as exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade).
III - Não determinam a nulidade da sentença as objeções que se traduzem na invocação de erros de julgamento de facto e de direito que, a verificarem-se, poderão determinar a modificação da decisão da matéria de facto e/ou a revogação (total ou parcial) da sentença.
IV - Alegando a Autora-Apelante que o “Tribunal recorrido errou, ao dar como não provados factos e partes de factos”, mas não tendo, salvo quanto ao facto vertido em a. do elenco dos factos considerados não provados, especificado quaisquer outros concretos pontos de facto que (porventura) considerava incorretamente julgados, muito menos tendo indicado a decisão que, no seu entender, devia ser proferida a esse respeito, é forçoso rejeitar a impugnação que foi feita salvo quanto àquele ponto.
V - Discordando a Apelante da decisão da matéria de facto, por considerar que o tribunal recorrido não analisou criticamente tais provas, tendo decidido de forma arbitrária, e invocando, como fundamento do (suposto) erro de julgamento de facto, diversos meios probatórios, incluindo os depoimentos que foram gravados, impunha-se que tivesse observado o ónus consagrado no art.º 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o que não fez, sendo inevitável rejeitar a impugnação daquela decisão quanto ao dito ponto.
VI - Apesar de a Procuração em apreço nos autos ter sido outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Luanda, em Angola, são aplicáveis, no plano do direito substantivo, as normas do direito interno português (cf. art.º 39.º do CC), pois mediante aquela veio o falecido pai da Autora conferir à 1.ª Ré os poderes necessários para “Confessar o Mandante devedor, a si própria procuradora, da quantia de quatrocentos mil euros, podendo para o efeito assinar qualquer documento legalmente válido para formalizar essa confissão de dívida, praticando, assinando e requerendo tudo o que se mostre necessário aos indicados fins; Outorgar e assinar, em seu nome e representação, a escritura, título outorgado no Casa Pronta ou documento particular autenticado, de dação em cumprimento, pela qual o Mandante dá em cumprimento à aqui procuradora – à qual são por isso conferidos igualmente poderes para fazer negócio consigo mesma – o prédio urbano (...) descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras (…) dação essa destinada a extinguir integralmente a dívida de quatrocentos mil euros supra referida, praticando e assinando tudo o que se mostre necessário para os indicados fins”.
VII - Vindo a 1.ª Ré a declarar, em documento particular (autenticado por solicitadora), denominado Dação em Cumprimento, por si, como segunda outorgante, e em representação daquele, como primeiro outorgante, que “O Primeiro Outorgante é devedor à Segunda Outorgante da quantia total de €400.000,00 (quatrocentos mil euros), o que expressamente constava através da procuração, celebrada (…) no 1º Cartório Notarial de Luanda (...) A quantia (...) foi emprestada pela Segunda Outorgante ao Primeiro Outorgante (…) através de empréstimos não titulados por escritura públicas, os quais não vencem juros. (...) O Primeiro Outorgante dá em cumprimento à Segunda Outorgante o prédio urbano (...) descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, (…) a Segunda Outorgante aceita a presente Dação em Cumprimento, nos presentes termos, declarando assim integralmente extinta a dívida do Primeiro Outorgante, indicada na Cláusula Primeira do presente Documento Particular, dando desde já a respetiva quitação para os devidos e legais efeitos”, não se pode considerar verificada a falsidade intelectual da Procuração quando não se provaram as alegações de facto em que se baseou a sua invocação, designadamente a de não ter existido qualquer empréstimo.
VIII - Não há nenhuma norma que estabeleça, quanto a esse facto - que é integrante da causa de pedir e constitutivo do direito que a Autora invocou -, uma presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, tão pouco se podendo considerar, no caso dos autos, que as Rés, em especial a 1.ª Ré, tenham culposamente tornado impossível a prova do facto em apreço. Ao invés, face àquela confissão de dívida, com indicação da respetiva causa ou fonte da obrigação assumida, ainda que feita por procurador, estamos perante uma declaração confessória do devedor perante o credor, nos termos do art.º 358.º, n.º 2, do CC, incumbindo ao devedor (no caso, à Autora, sua única herdeira) o ónus de ilidir a força probatória plena dessa confissão, provando não ser verdadeira a causa ali indicada, conforme resulta do disposto no art.º 347.º do CC, ou ainda provar, nos termos gerais, factos tendentes a descaracterizar a própria natureza confessória dessa declaração.
IX - Não se podendo considerar verificada uma falsidade intelectual da procuração, ou seja, uma falsidade sobre o conteúdo do documento (traduzida na desconformidade desse conteúdo com a verdade dos factos que se encontram provados), não merece censura a sentença recorrida quando considerou não ser possível concluir pela existência de “representação sem poderes, até porque nenhum facto se provou concernente a uma eventual exclusão da vontade do mandante ao emitir a procuração”.
X - Tão pouco podem ser declarados inválidos os negócios feitos “a coberto” da procuração com fundamento na caducidade da mesma, pois o representado conferiu poderes à 1.ª Ré para, além do mais, realizar dação em cumprimento, configurando a celebração de “Negócio consigo mesmo”, sendo assim manifesto que se trata de procuração conferida no interesse daquela Ré, procuradora, não se podendo considerar que caducou com a morte do representado (cf. artigos 265.º, 1175.º e 1178.º, n.º 1, do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

EM interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou improcedente a ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra AT (1.ª Ré) e AJEPN – LOCAÇÃO DE IMÓVEIS, S.A. (2.ª Ré).
Na Petição Inicial, apresentada em 23-08-2021, a Autora peticionou que fosse(m):
a) Decretado que a 1.ª Ré não emprestou (mutuou) a JM (falecido pai da Autora) o valor total de 400.000,00€ (quatrocentos mil euros), entre 01-01-2015 e 31-05-2017, através de empréstimos não titulados por escritura pública, por transferências, depósitos bancários ou em numerário, sendo falsas as declarações prestadas neste sentido constantes da procuração outorgada em 17-06-2019, pelo falecido no Primeiro Cartório Notarial de Luanda (Angola) e no Documento Particular de Dação em Cumprimento (do imóvel em causa) com termo de autenticação feito em 18-11-2020 em escritório de Solicitadora de Lisboa, com as legais consequências;
b) Decretado que a 1.ª Ré usou de artifícios decorrentes de fraqueza de carácter e da doença que então começou a afetar o estado mental do falecido JM (pai da Autora), a quem enviara, de Portugal, a minuta de procuração que viria a ser outorgada por este no Primeiro Cartório Notarial de Luanda (Angola), com produção de falsas declarações feitas com dolosa intenção e consciência de o enganar e induzir em erro e para esta se apropriar, para si própria (através de negócio consigo mesma) do imóvel em causa nestes autos, com as legais consequências;
c) Decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação da Procuração outorgada pelo falecido JM (pai da Autora), a favor da 1.ª Ré em 17-06-2019 no Primeiro Cartório Notarial de Luanda (Angola), com as legais consequências;
d) Decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação do documento particular de dação em cumprimento, com termo de autenticação feito em 18-11-2020, no escritório da Sra. Solicitadora LR, em Lisboa, no qual a 1.ª Ré, munida da procuração atrás referida, fazendo negócio consigo mesma e numa altura em que o mandante já falecera antes, adquiriu a propriedade, para si própria em nome pessoal, alegando ser para sua habitação própria e permanente o imóvel objeto destes autos, com as legais consequências;
e) Decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação da escritura pública de entrega de prestações acessórias outorgada pela 1.ª Ré a favor da 2.ª Ré (que foi constituída nessa altura pela 1.ª Ré, e da qual é dona e acionista) em 04-03-2021 no Cartório Notarial sito na Estrada da Luz, em Lisboa, da Notária em substituição Dra. MA, pelo qual o imóvel objeto desta ação foi transferido para a sociedade (2.ª Ré) a título de prestação acessória realizada em espécie pela 1.ª Ré, tudo com as legais consequências;
f) E, no caso de assim se não entender, subsidiariamente, condenadas as Rés a restituírem à Autora o imóvel objeto desta ação que injustamente e sem causa justificativa adquiriram, enriquecendo-se à custa de outrem (Autora, única e universal herdeira de JM), por aplicação supletiva do instituto de “Enriquecimento sem causa”, com as legais consequências;
g) Canceladas e removidas todas as inscrições registrais, na competente 2.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, na descrição n.º … da freguesia de Carnaxide, pelas quais a 1.ª Ré e a 2.ª Ré passaram a constar como proprietárias desse imóvel com fundamento nos títulos (ilegais, nulos ou anuláveis) atrás referidos nas alíneas c), d) e e) deste pedido, mercê das alíneas a) e b) deste pedido, com as legais consequências.
Alegou a Autora, para tanto e em síntese, que a 1.ª Ré, aproveitando-se da fragilidade do pai da Autora e com vista a fazer seu o imóvel acima identificado, pertença do mesmo, fê-lo outorgar uma procuração que a 1.ª Ré posteriormente usou para dar tal imóvel a si mesma em dação em cumprimento de dívida inexistente, vindo posteriormente transmiti-lo, a título de prestação acessória realizada em espécie, à 2.ª Ré, sociedade criada para o efeito de tornar mais difícil à Autora reaver o imóvel, na qualidade de única herdeira de seu pai.
A Autora juntou documentos, requereu a prestação de depoimento de parte da 1.ª Ré, arrolou testemunhas, requereu que fossem solicitadas informações à Autoridade Tributária e que fosse ordenado o levantamento do sigilo bancário relativamente às contas do falecido e da 1.ª Ré, ordenando-se ao Banco de Portugal o levantamento do sigilo bancário junto de todos os Bancos e Entidades Financeiras em Portugal para informarem sobre os movimentos bancários daqueles a partir de 01-01-2015 e até 2021, em face de “fundadas suspeitas de Branqueamento de Capitais”.
 Em 30-08-2021, a Autora apresentou articulado superveniente, pedindo que fosse também decretada, quanto à viatura automóvel identificada no art.º 3.º desse articulado, a ilegalidade, nulidade ou anulação da declaração automóvel que deu azo à transmissão da sua propriedade para a 1.ª Ré e que foi registada a favor desta, no Registo Automóvel em 16-11-2020 (apresentação n.º 11164), e, no caso de assim se não entender, que fosse subsidiariamente aplicado o Instituto do “Enriquecimento sem causa” nos termos constantes da alínea f) do pedido constante da Petição Inicial.
Citadas as Rés (cf. a/r de 30-08-2021 e 06/09/2021), apresentaram, cada uma, a sua Contestação, em que se defenderam por impugnação motivada, de facto e de direito, pugnando pela validade dos atos praticados e concluindo pela improcedência da ação, e deduziram reconvenção, mais se pronunciando pela inadmissibilidade do articulado superveniente.
Notificada a Autora, apresentou Réplica, impugnando os factos alegados pelas Rés nas respetivas contestações em reconvenção.
Em 15-11-2021, foi proferido despacho saneador - no qual se decidiu não admitir o articulado superveniente, nem as reconvenções deduzidas pelas Rés -, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. O Tribunal pronunciou-se então sobre os requerimentos probatórios, tendo, além do mais, decidido o seguinte: “Indefiro o requerido levantamento de sigilo bancário, uma vez que o mesmo apenas pode ser desencadeado por recusa de informação com tal alegação e em incidente próprio”.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida a sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Face ao exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente, por totalmente não provada e consequentemente absolvo as RR. do peticionado pela A..
Custas a cargo da A., com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Valor: 489.554,80€.
Registe e notifique.”
Inconformada com esta decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Devem anular-se as decisões do Tribunal recorrido que deram como não provado na sentença proferida que a 1ª Ré, ora apelada, não emprestou a JM a quantia de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros);
2. Deve, por sua vez, ser decidido pela Relação de Lisboa dar como Provado que a 1ª Ré, ora apelada não emprestou a JM a quantia de €400.000,00 (quatrocentos mil euros);
3. Deve revogar-se a sentença recorrida e, em consequência, julgar a presente ação totalmente procedente, por totalmente provada, condenando-se as RR. no pedido, pois dos autos mostra-se indubitavelmente que é falso que a 1 Ré, ora apelada tenha emprestado ao falecido JM, de forma não titulada (em numerário) a quantia de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) entre 1-1-2015 e 31-5-2017;
4. O Tribunal recorrido deu crédito à testemunha AB no sentido de que o falecido, em 2017/2018 estava a tentar obter um empréstimo em Portugal, no valor de €800.000,00 (oitocentos mil euros), bem como à testemunha MM, empregado do falecido que, também, referiu que, em 2017/2018 a empresa do mesmo passou por dificuldades para, depois, o Tribunal recorrido entrar em “contradição” ao referir que o recurso ao crédito não é, por si só, comprovativo de falta de fundos próprios, podendo tratar-se, como amiúde se passa, tão somente, de estratégia comercial e, mais à frente, o Tribunal recorrido dá como provado a encomenda, pelo falecido, de uma viatura Mercedes E – 250 CDI, matrícula …-…-… e que esta aquisição seria a “pronto pagamento” mas nada permitindo comprovar se acabou por ser efetivamente assim;
5. Da sentença recorrida se alcança que a 1ª Ré – recorrida era, pelo menos desde 2013 a 2019, consultora REMAX “nº 1 da Remax de Carnaxide”,
6. Da sentença recorrida se alcança, ainda, decorrente de informação da A.T. Portuguesa, que a 1ª Ré- Recorrida, não apresentou declarações anuais de rendimentos/IRS, por nos anos de 2016 e 2017, sendo que apresentou rendimentos nas declarações anuais que apresentou perante a A.T. no ano de 2015 (€756,20), no ano de 2018 (€1.229,48 + €43.612,70) e, no ano de 2020 (€1.511,56 + €3.600,00);
7. E, estranhamente, apesar da factualidade objetiva da conclusão anterior (6), o Tribunal recorrido escreve na sentença recorrida que como a 1ª Ré – recorrida era “Consultora nº1 da Remax de Carnaxide”, como trabalha à comissão, consoante as vendas que logra fazer, pelo que resulta altamente provável que a situação fiscal da 1ª Ré/recorrida não espelha a sua situação real financeira;
8. Contudo, nos termos do art.º 75º nº 1 da LGT., presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na Lei, bem com os dados e apuramento inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutabilidade de gastos, pelo que este normativo legal / fiscal foi violado pelo Tribunal recorrido ao descrever, como o fez, a matéria constante na cláusula anterior (7) que esta sim é ilegal e insustentável num estado de Direito organizado;
9. Com efeito, o artigo 63º nº 1 da LGT., prevê que os órgãos competentes podem, nos termos da Lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua atividade ou com a dos demais obrigados fiscais, examinar e visar os seus livros e registos de contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecerem a sua situação tributária, também este normativo legal – fiscal foi completamente olvidado ( e violado) na sentença recorrida;
10. É que, das comissões recebidas a 1ª Ré terá de passar recibos à “REMAX” para esta entidade incluir na sua própria contabilidade (como custos) quer para o vendedor, para efeitos da sua própria declaração anual fiscal de rendimentos (IRS anual, para efeitos fiscais de dedução em eventuais mais valias (ganhos e incrementos financeiros) – Anexo G da declaração fiscal anual de IRS;
11. O Tribunal recorrido, ao seguir na sentença recorrida, esta linha de pensamento (que daria “cobertura” à ilegalidade da não declaração de rendimentos pela 1ª Ré/contribuinte) obstou para a Autora a realização e concretização da prova do facto negativo em causa - feita pela conclusão 6 anterior – da inexistência do empréstimo de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) feito pela 1ª Ré/recorrida ao falecido JM, entre 1-1-2015 a 31-5-2017, em numerário (não titulado);
12. Aliás, o Tribunal recorrido, de forma “rígida e insensível” escreve que a eventual dificuldade da A. em provar o facto negativo não é obstáculo à atribuição à mesma da prova do respetivo direito, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova (art.º 344º do C.C.);
13. Mais, apesar do “Piloto – Aviador” (AB), piloto pessoal do falecido JM, ter dito que este não entendeu o conteúdo da procuração que subscreveu, o que lhe contou posteriormente, sendo que, para o Tribunal recorrido tal não é consentâneo, por que o falecido não iria partilhar tal a um empregado (apesar de ser o seu piloto aviador pessoal e com quem convivia diariamente ... ), contrariando as regras das experiências comum “in casu”, por este reunir as condições para ser um ouvinte / confidente do falecido .
14. A livre apreciação da prova, não é o livre arbítrio, para onde o Tribunal recorrido “extrapolou” nos seus “considerandos” e interpretações “sui generis” ao longo da sentença proferida, ora recorrida – sendo que este princípio, existente “ao longo” do C.P.C. (artigos 3º nº1, 410º, 423º, 418º nº1, 466º nº3 e 607º nº4 CPC), foi manifestamente violado pelo Tribunal recorrido;
15. Porque o princípio da livre apreciação da Prova nunca atribui ao Juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios (como o fez o Tribunal recorrido) sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”;
16. A 1ª Ré – recorrida era uma simples vendedora/comissionista da “Remax de Carnaxide”, que nada provou deter ou angariar, de substancial a nível patrimonial, para além das retro referidas declarações anuais de rendimentos apresentadas perante a A.T. em sede de IRS (ou falta delas) entre os anos de 2015 a 2020, sendo certo que:
- O JM faleceu em 9-10-2020;
- Em 6-11-2020 o imóvel ainda se encontrava em nome do falecido na A.T. / S. Finanças Oeiras 2 (Algés), com a morada deste na casa onde, então, vivia a 1ª Ré (Rua …, nº … – r/c – Direito – Alto dos Barronhos – Carnaxide);
- Em 5-1-2021 já o imóvel em causa passou a estar em nome da 1ª Ré na A.T. /S. F. Oeiras – 2 (Algés) porque,
- Em 18-11-2020 a 1ª Ré, munida da procuração outorgada pelo falecido para fazer negócio consigo mesma – no escritório da Solicitadora LR – outorgou documento particular de Dação em Cumprimento desse imóvel, para si mesma, declarando ser para sua habitação própria permanente;
- 4-3-2021, a 1ª Ré, após constituir a 2ª Ré, outorga escritura de Entrega de Prestações Acessórias – da 1ª Ré a favor da 2ª Ré – do Imóvel em causa nestes autos e realizou esta entrega em espécie, a título definitivo e gratuito, por não ser reembolsável, nem originadora de qualquer contraprestação no momento da sua realização ou no futuro;
17. A 1ª Ré adquiriu em 18-11-2020 o imóvel (casa) afirmando ser para sua habitação própria permanente para, em 4-3-2021, o transmitir à 2ª Ré, da qual é acionista, constituindo o capital desta por esta realização/entrada em espécie (casa/Imóvel dos autos), tendo a 1ª Ré obtido benefícios fiscais indevidos, nomeadamente, a título de I. Selo, IMT, IMI, entre outros, em manifesta violação de várias disposições fiscais no âmbito destes Códigos Tributários;
18. Acresce que, quanto à viatura Mercedes Benz de matrícula …-…-…, já descrita na conclusão 4 “in fine” anterior, a 1ª Ré, em 16-11-2020 registou-a a seu favor na C. R. Automóvel competente – registo de apresentação nº 11.164 de 16-11-2020 – automóvel online), tendo-lhe sido transmitida pelo falecido, sem quaisquer encargos e sem comprovação do meio de pagamento e – mais importante – sem demonstrar quem assinou a respetiva declaração de venda da mesma porque o JM falecera em 9-10-2020 (mais de 1 mês antes desta transmissão .... ) também aqui foi violada a Lei nº 83/2017 de 18-8, a Lei 92/2017 de 22-8 e o artigo 63ºE da L.G.T.;
19. Quanto ao valor de €400.000,00 (quatrocentos mil euros) alegadamente emprestado pela 1ª Ré ao falecido entre 1-1-2015 a 31-5-2017 (e, como resulta da conclusão 6 anterior, a “matemática não bate certo”, porque a 1ª Ré não ganhou dinheiro, nesse período, nem o tinha sequer, para lhe permitir tal liberalidade descrita neste “embuste que é esta alegação”) não deixa de ser “curioso” que o termo ocorra em 31-5-2017, pouco tempo antes da entrada em vigor da Lei nº 83/2017 de 18-8, e da Lei nº 92/2017 de 22-8 que aditou o art.º 63º - E à LGT (Proibição de pagamento em numerário) e, com certeza, esta data (31-5-2017) não foi aleatória, face aos demais elementos probatórios dos autos;
20. O Tribunal recorrido errou, ao dar como não provados factos e partes de factos, descontextualizados de toda a dinâmica envolvente desta causa, na sentença recorrida, motivo porque o Tribunal recorrido, na sua motivação da sentença proferida, não apreciou e não valorou, como devia, a prova existente nos autos (essencialmente Prova Documental) segundo as regras da experiência comum e as boas regras da livre apreciação da prova, motivo porque existe, claramente, erro notório na apreciação da prova dos autos, por parte do Tribunal recorrido;
21. Que, pelas razões constantes das anteriores conclusões, contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido, resulta indubitavelmente como provado que a 1ª Ré não emprestou €400.000,00 (quatrocentos mil euros) ao falecido JM no período compreendido entre 1-1-2015 e 31-5-2017;
22. O art.º 342º do Código Civil não impõe à Autora a prova dos factos integradores da causa de pedir, mas sim dos factos constitutivos do direito invocado e, este artigo, não dá relevância à distinção entre factos positivos e negativos (como entendeu o Tribunal recorrido) na distribuição do ónus da prova, só podendo admitir-se que a natural dificuldade de prova dos factos negativos torne aconselháveis menos exigências quanto à prova dos mesmos factos, o que o Tribunal recorrido olvidou, de todo;
23. Quando a prova não for possível ou se tornar muito difícil aquele que, segundo as regras do artigo 342º do C.C. teria de a fazer, então, o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte. Ora, nos termos do artigo 344º nº2 do C.C. há inversão de ónus da Prova, quando a parte contrária tiver, culposamente, tornado impossível a prova do onerado ..., sendo certo que “in casu” o requerido levantamento do sigilo bancário da 1ª Ré foi indeferido por despacho proferido em 15-11-2021 (Ref.ª -1338344149);
24. A procuração outorgada em 17-6-2019 no 1º Cartório Notarial de Luanda, não observou o disposto na legislação fiscal Portuguesa, quanto ao pagamento, em simultâneo com a mesma de IMT (à taxa de 6,50%) face aos poderes nela conferidos (negócio consigo mesma – art.º 261º C.C.), tendo sido violado, entre outros, o artigo 2º nº3 alíneas c) e d) do Cod. do IMT;
25. Aquando da transmissão do imóvel para a 1ª Ré (18-11-2020) o JM já tinha falecido (em 9-10-2020), apesar da Direção Nacional de Identificação dos Registos e Notariados de Luanda – Angola, em 6-1-2021, por motivos burocráticos próprios, ainda não ter averbado ao respetivo assento de nascimento do mesmo o facto em causa (o seu óbito em 9-10-2020), o que possibilitou à 1ª Ré dissipar as dúvidas registrais do contrato, em Portugal;
26. Com a morte do JM (em 9-10-2020) caducou a procuração que outorgou à 1ª Ré (em 17-6-2019), motivo porque nos termos do artigo 1174º al. a) do C.C. esta procuração não poderia ter sido usada após esta data (da morte do mandante), como a 1ª Ré usou e fez (em 18-11-2020) o que ora se invoca expressamente;
27. O Tribunal recorrido não se pronunciou fundadamente sobre questão que deveria apreciar  (Declarações fiscais de rendimentos apresentados pela 1ª Ré/recorrida perante a A.T./S. Fin. Oeiras -2 (Algés), no ano de 2015 (já que os anos de 2018 e 2020 estariam excluídos do período temporal em causa: 1-1-2015 a 31-5-2017, sendo certo que nos anos de 2016 e 2017 a 1ª Ré, nem sequer apresentou declarações fiscais de rendimentos, destes anos, perante a A.T./S. F. Oeiras – 2 – Algés), por ser crucial, de particular e especial importância para a boa decisão desta causa, tal como a mesma se encontra configurada;
28. A sentença recorrida reduziu toda a complexidade factual destes autos, legal, jurisprudencial e doutrinária, a dar como não provado que a 1ª Ré não emprestou ao falecido a quantia em causa, com base na dificuldade da A. em provar tal facto negativo (inexistência do empréstimo de €400.000,00) e que tal não é obstáculo à atribuição à A. do ónus da prova respetivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos não foi considerada legislativamente relevante ...;
29. O Tribunal recorrido errou, foi por demais “fundamentalista” na sua posição e “leviano” na decisão (errada) que proferiu porque, o Tribunal devia, pelo menos, ter interpretado os factos com a capacidade de um cidadão médio e proferir decisão entendível, para o comum dos mortais o que “in casu” não aconteceu;
30. O Tribunal recorrido violou, pois, o disposto no artigo 615º nº1 alíneas c) e d) do CPC., pelo que a sentença proferida está ferida de Nulidade porquanto:
- Os fundamentos da sentença recorrida, estão em oposição com a decisão, tendo ocorrido ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível;
- O Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conhece de (outras) questões de que não devia tomar conhecimento;
31. As nulidades supra referidas ocorreram porque o Tribunal recorrido não proferiu pronúncia fundamentada sobre pontos fáctico – jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente por se prenderem com a causa de pedir e pedido e não só por mera ausência de discussão das “razões” “ou argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas;
32. Sendo certo que “in casu” também ocorreu, na sentença recorrida, erro de julgamento, traduzido numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo e adjetivo) aplicável. Aqui o Tribunal apesar de fundamentar (mal) a decisão, decidiu (mal), resolvendo num sentido as questões colocadas (improcedência por não provada a ação), porque interpretou mal o direito;
33. Por fim, verifica-se nulidade da sentença prevista na al. c) do nº1 do art.º 615º do CPC quando (como aconteceu na decisão, ora recorrida) os fundamentos invocados pelo Juiz conduzem logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto;
34. Foram, pois, violados, pelo Tribunal recorrido, entre outros: Os artigos 9º e 10º do Cod. IRS., os artigos 63º nº 1, 63º-E e 75º nº1 nº 1 da L.G.T., art.º 2º nº3 alíneas c) e d) do Cod. de IMT, os artigos 240º e segs. 261º, 286º, 289º, 295º, 341º, 342º e 344º nº2 todos do Código Civil, artigos 3º nº1, 410º, 413º, 418º nº1, 466º nº3, 607º nº4 e 615º nº1 alíneas c) e d) todos do C.P.C., a Lei nº 83º/2017 de 18-8, o art.º 38º da Lei nº 89/2017 de 21-8, a Lei nº 92/2017 de 22-8, o artigo 129º nº3 da Lei nº 15/2001 de 5-6 (redação da Lei nº 58/2020 de 31-3), o art.º 368º - A nº 1 al. j) e nºs. 2 a 6 do Cód. Penal, os artigos 103º nº 1 als. a), b) e c) e 104º nº 1 alíneas a), d), f), g) e nº 3 do R.G.I.T..
Terminou a Apelante pugnando pela revogação da sentença recorrida e substituição por “outra decisão que contemple as conclusões das presentes alegações”.
Foi apresentada alegação de resposta, em que as Apeladas concluíram nos seguintes termos:
Quanto às questões prévias
a) A Recorrente não cumpriu a norma prevista no art.º 640º, nº 2, a), do CPC, quando a ela estava obrigada;
Pelo que,
b) Deve o presente recurso ser rejeitado, na parte em que a Recorrente considera ter havido erro na apreciação das provas que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto.
c) Não se verificam os pressupostos legais para a arguição da ambiguidade e da obscuridade; Pelo que,
d) Deve o presente recurso ser, liminarmente, rejeitado, por falta da verificação dos pressupostos legais para a arguição da ambiguidade e da obscuridade.
Quanto à alegada incapacidade do mandante no momento da outorga da procuração
e) Resultou como não provado que, em princípios de 2019, tenha sido diagnosticada, a JM, a doença de Alzheimer, bem como resultou não provado que este apresentasse sinais de demência e confusão mental;
f) Resultou como não provado que a Recorrida tenha aproveitado qualquer debilidade do JM, com o intuito de fazer seu o imóvel ou o tenha enganado ou induzido em erro;
g) Resultou como não provado que o JM não tenha entendido o que consta da procuração;
h) Ficou provado que, à data da procuração, o JM encontrava-se em Luanda, i.e., a milhares de quilómetros de distância da Recorrida;
i) Ficou provado que a procuração foi outorgada por documento autêntico – instrumento notarial, no Primeiro Cartório Notarial de Luanda, em Luanda, cfr. pág. 7 da sentença.
j) O notário é um oficial de fé pública, a quem compete o controlo da legalidade, sendo que, com vista ao controlo da legalidade, compete-lhe detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, assim como reservas mentais e simulações;
k) São autênticos os documentos exarados por notário nos respetivos livros ou em instrumentos avulso;
l) Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos dele constantes;
m) Os documentos autênticos passados em país estrangeiro, em conformidade com a respetiva lei, têm o mesmo valor probatório que têm os documentos da mesma natureza exarados em Portugal;
n) A força probatória dos documentos autênticos só pode ser afastada com base na sua falsidade; e
o) A Recorrente não arguiu a falsidade da procuração; Pelo que,
p) A procuração outorgada pelo JM é válida e válidos são os poderes de representação conferidos à Recorrida pelo mandante, para que aquela o representasse no contrato de dação em cumprimento;
Quanto à alegada caducidade da procuração
q) A Recorrente reconheceu que não comunicou à Recorrida o óbito do mandante;
r) A Recorrente não provou que a Recorrida conhecesse do óbito do mandante à data da dação em cumprimento;
s) A procuração foi conferida no interesse da Recorrida, enquanto mandatária;
t) Ainda que, à data da dação em cumprimento, a Recorrida conhecesse do óbito do mandante (que não conhecia), a procuração manter-se-ia válida;
Uma vez que,
u) A morte do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário;
Pelo que,
v) A procuração não caducou com a morte do mandante;
Quanto ao alegado não cumprimento das normas fiscais e de combate ao branqueamento de capitais
w) Foram cumpridas todas as disposições legais aplicáveis ao contrato de dação em cumprimento;
Em particular,
x) No contrato de dação em pagamento e no respetivo termo de autenticação foram, expressamente, observadas as normas previstas na Lei n° 83/2017, de 18 de agosto;
y) No âmbito daquele negócio não se verificaram transferências de fundos provenientes de Angola;
Pelo que,
z) No tangente à legislação sobre o combate ao branqueamento de capitais, foram cumpridas todas as obrigações legais;
Contudo, ainda que assim não fosse entendido, o que se admite, apenas, academicamente,
aa) Os empréstimos concedidos pela Recorrida ocorreram em data anterior a 31 de maio de 2017;
bb) A Lei nº 83/2017, de 18 agosto, entrou em vigor em 17.09.2017; e
Pelo que,
cc) A Lei nº 83/2017, de 18 agosto, não é aplicável à dação em cumprimento em apreço;
E, ainda, que se se entendesse de forma distinta,
dd) O Código do Notariado não sanciona a validade do acto notarial pela não observância das normas impostas pela Lei nº 83/2017, de 18 agosto;
Uma vez que,
ee) O não cumprimento das obrigações impostas pela Lei nº 83/2017, de 18 agosto, são sancionadas nos termos do art.ºs 160º e ss, desta lei.
Pelo que, em qualquer dos casos e dos entendimentos,
ff) O contrato de dação em cumprimento sub judice não sofre de qualquer ilegalidade, no tangente às normas legais destinadas ao combate ao branqueamento de capitais;
gg) Da procuração outorgada pelo JM não consta qualquer renúncia ao direito de revogação ou cláusula semelhante;
Pelo que,
hh) Aquando da sua outorga não se verificou qualquer facto gerador de imposto, designadamente de IMT;
Contudo,
ii) Ainda que a procuração fosse irrevogável e não tivesse sido pago o IMT;
jj) Verificar-se-ia o incumprimento de uma obrigação tributária, decorrente do não pagamento do imposto, cuja sanção se encontra estabelecida no art.º 114º do RGIT;
Tal facto,
kk) Em nada afetaria a validade do contrato de dação em cumprimento;
Pelo que,
ll) Um eventual incumprimento tributário não constitui vício contratual.
Contudo,
mm) O IMT foi pago aquando da transmissão do imóvel para a Recorrida, i.e., no momento próprio;
Quanto à alegada simulação da dação em pagamento
nn) A Recorrida emprestou 400.000€ ao JM;
Pelo que,
oo) É válido o negócio jurídico celebrado entre o JM e a Recorrida – dação em cumprimento;
Contudo,
pp) A simulação de negócio que oculte outro negócio (como sucede no caso de se ficcionar uma venda no lugar de uma doação) não afeta a validade do negócio dissimulado, sendo-lhe aplicável o regime que lhe corresponderia se fosse celebrado sem simulação;
Pelo que,
qq) Ainda que o negócio celebrado entre o JM e a Recorrida fosse simulado (que não é), por se entender que pretenderiam realizar uma doação remuneratória em vez de uma doação em cumprimento, o negócio continuaria válido, aplicando-se-lhe o regime da doação remuneratória;
Quanto à celebração do negócio consigo mesmo
rr) Da procuração consta que o mandante conferiu à mandatária poderes para celebrar negócio consigo mesmo;
ss) É válido o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, quando o representado tenha especificadamente consentido na celebração;
Pelo que,
tt) É válido o negócio de dação em cumprimento celebrado entre o JM e a Recorrida;
Em consequência,
uu) A Recorrida adquiriu o imóvel por título válido;
vv) A transmissão do imóvel para a sociedade AJEPN – Locação de Imóveis, S.A. foi feita por título válido;
Pelo que,
ww) A sociedade AJEPN – Locação de Imóveis, S.A. é a atual legitima proprietária do imóvel em causa;
Quanto aos fundamentos do presente recurso
xx) As alegações da Recorrente são um mero repositório da pi.
Pelo que, resta concluir que,
yy) Aos factos, quer os provados quer os que resultaram como não provados, o Tribunal a quo aplicou, correctamente, o direito.
E, em consequência,
zz) Bem decidiu o Tribunal a quo, ao ter decidido como decidiu.
Terminaram defendendo que:
a) Deve o presente recurso ser, liminarmente, rejeitado;
E, caso assim não seja entendido,
b) Deve o presente recurso ser considerado absolutamente improcedente.
No despacho que admitiu o recurso, o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade da sentença nos seguintes termos (omitimos as citações de acórdãos e as notas de rodapé):
«Vem a A. recorrente invocar na sua alegação que a sentença recorrida é nula por os fundamentos estarem em oposição com a decisão e por se verificarem deficiências e obscuridades na sentença.
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. c) do CPC que: “É nula a sentença quando: (...) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
É o que acontece quando há “vícios na própria decisão em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam. São os “errores in judicando” dos antigos” – CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 798, AAFDL, 1987.
Sendo que, “Quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete”, o que ocorre quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.” – ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 3ª edição 1952, reimpressão 2007, pág. 141.
Lendo a sentença, salvo melhor opinião, não se nos afigura que a mesma, padeça do vício da ininteligibilidade, uma vez que, é perceptível quais os factos que relevaram para a decisão, inexistindo qualquer contradição.
(…) Cremos que o sentido da decisão e os fundamentos da mesma, não se contrariam mutuamente, e bem assim que inexiste qualquer deficiência ou obscuridade na sentença, simplesmente a A. discorda do sentido da decisão que não lhe foi favorável, o que não consubstancia nulidade.
(…)
Também no caso dos autos assim ocorre.
Sendo certo que, os Meritíssimos Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa certamente melhor decidirão, ao conhecer de tal questão em sede de recurso.
Pelo exposto, julgo improcedente a nulidade arguida pela recorrente, nos termos do previsto no art.º 670º, nº 1, do CPC.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a sentença recorrida é nula por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão e existir ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível, e o Tribunal recorrido ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conhecido de questões de que não devia tomar conhecimento;
2.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto;
3.ª) Se a procuração e os ulteriores negócios são inválidos, por aquela ter conteúdo falso, ter caducado e terem sido violadas normas legais sobre impostos e branqueamento de capitais.
Obs.: No corpo da sua alegação recursória, a Autora ainda refere que o negócio celebrado entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré, resulta de um acordo destas para enganar terceiros, com manifesta divergência entre a declaração negocial e a vontade real da declarante, sendo um negócio simulado, mas tal questão não foi levada às conclusões da alegação de recurso, pelo que não nos iremos pronunciar sobre a mesma.

Factos provados

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos o que consta entre parenteses retos ao abrigo dos artigos 662.º, n.º 1, 607.º, n.ºs 3 e 4, ex vi 663.º, n.º 2, e do CPC):
1. Em 26-10-2013, pela Ap. 34 foi inscrita a aquisição por compra a favor de JM, do prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º …, da freguesia de Carnaxide, sito na Rua António José [Forte], n.ºs 18 e 18-A.
2. Em 16-06-2019, JM, por documento denominado PROCURAÇÃO, declarou no primeiro Cartório Notarial de Luanda:
“Que, pelo presente instrumento constitui sua bastante procuradora a senhora AT (...) a quem confere os poderes necessários para, com a faculdade de substabelecer, praticar os seguintes actos:
Confessar o Mandante devedor, a si própria procuradora, da quantia de quatrocentos mil euros, podendo para o efeito assinar qualquer documento legalmente válido para formalizar essa confissão de dívida, praticando, assinando e requerendo tudo o que se mostre necessário aos indicados fins;
Outorgar e assinar, em seu nome e representação, a escritura, título outorgado no Casa Pronta ou documento particular autenticado, de dação em cumprimento, pela qual o Mandante dá em cumprimento à aqui procuradora – à qual são por isso conferidos igualmente poderes para fazer negócio consigo mesma – o prédio urbano (...) descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o nº … da dita freguesia em (...) de Carnaxide (...) dação essa destinada a extinguir integralmente a dívida de quatrocentos mil euros supra referida, praticando e assinando tudo o que se mostre necessário para os indicados fins;
Mais lhe confere poderes para na Conservatória do Registo Predial requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos a descrições ou inscrições (...)”.
3. Da procuração não consta que o mandato tivesse sido conferido no interesse da 1.ª Ré ou de terceiros ou que valesse para além da morte do mandante.
4. Em 09-10-2020, faleceu JM, em Luanda.
5. JM faleceu no estado de solteiro e a Autora é sua filha e sua única e universal herdeira.
6. Em 18-11-2020, por DOCUMENTO PARTICULAR DENOMINADO DAÇÃO EM CUMPRIMENTO, autenticado por solicitador[a], a [1.ª] Ré por si, como segunda outorgante, e em representação de JM, como primeiro outorgante, declarou:
“O Primeiro Outorgante é devedor à Segunda Outorgante da quantia total de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), o que expressamente constava através da procuração, celebrada em 17-06-2019, em Luanda e no 1º Cartório Notarial de Luanda (...)
A quantia (...) foi emprestada pela Segunda Outorgante ao Primeiro Outorgante, no período compreendido entre um de Janeiro de dois mil e quinze e trinta e um de Maio de dois mil e dezassete, através de empréstimos não titulados por escritura públicas, os quais não vencem juros. (...)
O Primeiro Outorgante dá em cumprimento à Segunda Outorgante o prédio urbano (...) descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o nº … da dita freguesia em (...) de Carnaxide
[(…) a Segunda Outorgante aceita a presente Dação em Cumprimento, nos presentes termos, declarando assim integralmente extinta a dívida do Primeiro Outorgante, indicada na Cláusula Primeira do presente Documento Particular, dando desde já a respetiva quitação para os devidos e legais efeitos, e que destina o referido imóvel a sua habitação própria e permanente]”.
7. Na mesma data, apresentando tal documento perante a solicitadora LR, por si e na qualidade de procuradora, em representação de JM declarou [a Solicitadora, no Termo de Autenticação]:
“Que para fins de autenticação,[me] apresentou, um documento particular de dação em cumprimento, tendo a Signatária, nas qualidades em que intervém, declarado que já o leu, que está perfeitamente inteirada do seu conteúdo, que o rubricou e o assinou e que o conteúdo do mesmo exprime a sua vontade inequívoca, bem como a do seu representado. [Pela Signatária, nas qualidades em que intervém, foi ainda declarado que o imóvel objeto do Documento Particular anexo ao presente Termo de Autenticação, lhe foi [aliás, é] entregue livre de quaisquer ónus ou encargos e responsabilidades de quaisquer natureza, e nos exactos termos em que se encontra, e que o mesmo se destina a sua habitação própria permanente” [mais tendo a Solicitadora declarado que verificou, por exibição e arquivo, os documentos discriminados no referido termos de autenticação, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente, “g) Documento Único de Cobrança de IMT número (…) liquidado em 17.11.2020, pelo valor de €27.205,06 (vinte e sete mil duzentos e cinco euros e seis cêntimos) e pago em 18.11.2020; e h) Documento Único de Cobrança de Imposto do Selo-Verba 1.1. número (…) liquidado em 17.11.2020, pelo valor de €3.916,44 (três mil novecentos e dezasseis euros e quarenta e quatro cêntimos) e pago em 18.11.2020”].
8. Em 04-03-2021, por documento designado ENTREGA DE PRESTAÇÕES ACESSÓRIAS, a 1.ª Ré declarou que, nos termos do art.º 7.º do contrato de sociedade da 2.ª Ré, obrigou-se na qualidade de acionista, a entrar para aquela sociedade, e a título de prestação acessória a realizar em espécie, a título definitivo e gratuito, por não reembolsável nem originadora de qualquer espécie de contraprestação no momento da sua realização ou no futuro, pelo que entrega à predita sociedade e a tal título o prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º …, da freguesia de Carnaxide, em conformidade com o contrato de sociedade, a título de prestação acessória gratuita, pelo valor de 489.554,80€.
9. A 2.ª Ré foi constituída em 05-03-2021, tem o capital social de 50.000,00€ e tem como administrador único PP.
10. Em 19-11-2020, pela Ap. 675, convertida em definitiva em 02-02-2021, pelo Averb. Ap. 4179, foi inscrita a aquisição por dação em pagamento a favor da 1.ª Ré, do prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º …, da freguesia de Carnaxide.
11. Em 04-03-2021, pela Ap. 2576 foi inscrita a aquisição por entrega a favor da 2.ª Ré, do prédio descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º …, da freguesia de Carnaxide.
12. JM estava inscrito na Autoridade Tributária e Aduaneira portuguesa tendo-lhe sido atribuído o número de contribuinte … e a sua morada fiscal em Portugal era na Rua …, n.º … – R/ch Dto, Alto dos Barronhos, Carnaxide, então morada da residência da 1.ª Ré.
13. JM era sócio e gerente único, em Angola, da Sociedade “Organizações Antmuhongo – Comércio Geral, Importação e Exportação, Lda.”, com identificação fiscal n.º …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Luanda sob o n.º … e com sede em Luanda, Bairro ..., Rua ..., Zona .., Município do Cazenga, Luanda, Angola.
14. Tal sociedade dedicava-se à atividade de comércio por grosso e a retalho, agropecuária, exploração florestal, hotelaria, captura, salga, produtos pesqueiros e frutos marítimos, construção civil, transportes, aluguer de táxis venda de combustíveis e lubrificantes, importação e exportação.
15. Tal sociedade detinha o Alvará para Transportador Revendedor da Marinha “Bunking” n.º 027/2015, passado pela Direção Nacional de Comercialização de Luanda em 03-07-2015.
16. E o Alvará de Prestação de Serviços Mercantis, incluindo as classes e sub-classes: N.A. e Pequena Superfície, passado pelo Gabinete Provincial para o Desenvolvimento, do Ministério do Comércio em Angola, válido até 26-2-2020.
17. Tal sociedade era detentora de Certificado Internacional de Segurança de Navios n.º …/…, emitido pelo Instituto Marítimo e Portuário de Angola para o seu navio “SM I”.
18. A Ré [leia-se 1.ª Ré, como se retira da motivação da decisão] é consultora de empresa franchisada da Remax.
19. A Ré [leia-se 1.ª Ré, como resulta da motivação da decisão] recebia dinheiro que JM lhe enviava de Angola e pagava-lhe em Portugal os Impostos (nomeadamente os IMI’s) e as reparações e manutenção dos imóveis, bem como reparações do automóvel.
20. A minuta da procuração referida em 2. foi remetida em 03-06-2019 pela 1.ª Ré a JM.

Na sentença foram considerados não provados os seguintes factos:
a. A 1.ª Ré não emprestou a JM, a quantia de quatrocentos mil euros, entre 01-01-2015 e 31-05-2017.
b. Em princípios de 2019, foi diagnosticada a JM a doença de Alzheimer apresentando sinais de demência e confusão mental.
c. A 1.ª Ré fez o que consta descrito em 18. aproveitando a debilidade de saúde mental de JM, com o intuito de fazer seu o imóvel e de enganar e induzir em erro aquele.
d. JM não entendeu o que consta da procuração referida no ponto 2..
e. JM pagava à 1.ª Ré pelos seus serviços.
f. Aquando do referido no ponto 4. a 1.ª Ré sabia do falecimento de JM.
g. A 2.ª Ré foi constituída para que lhe fosse transmitida a titularidade do imóvel para esconder o mesmo.
h. A 1.ª e a 2.ª Rés não queriam declarar como consta do ponto 6., apenas o tendo feito com vista a enganar os herdeiros de JM.

Das nulidades da sentença

A Autora-Apelante começa por defender, em A) do corpo da sua alegação recursória, que se verifica a “Deficiência, obscuridade e contradição da Matéria de facto que o Tribunal recorrido deu como não Provada, em face de toda a Prova dos autos, sobretudo documental e aliás, em conjugação também com toda a factualidade dada como provada”.
Para tanto e em síntese, argumenta que, na motivação da decisão da matéria de facto, o Tribunal recorrido entra em “contradição” ao referir que o recurso ao crédito não é, por si só, comprovativo de falta de fundos próprios; desvaloriza a informação prestada pela Autoridade Tributária Portuguesa quanto às declarações anuais de rendimentos em IRS da 1.ª Ré, olvidando que pelas comissões recebidas a 1.ª Ré tem certas obrigações fiscais; desvaloriza o depoimento da testemunha AB, o qual, pelas regras da experiência comum, como “Piloto-Aviador” pessoal do falecido o acompanhava diariamente e “reuniria condições para ser seu confidente”; o Tribunal recorrido, na sua livre apreciação da prova, extrapolou para o “Livre Arbítrio”; assim, errou, ao dar como não provados factos e parte de factos, não tendo, na motivação da sentença, apreciado e valorado como devia, com sentido crítico e segundo regras de experiência, a prova documental e testemunhal produzida nos autos, motivo porque existiu contradição e erro notório na apreciação da prova; contrariamente ao que decidiu, existem provas nos autos que permitem sustentar que a presente ação deveria ser julgada totalmente procedente por resultar provado que a 1.ª Ré não emprestou 400.000€ ao falecido JM no período compreendido entre 01-01-2015 e 31-05-2017.
Em D) do corpo da sua alegação recursória, a Autora-Apelante pugna ainda pela “NULIDADE DA SENTENÇA apelada por enfermar das nulidades constantes nas alíneas c) e d) do nº1 do art.º 615º do CPC.”, argumentando, em síntese, que, sem qualquer fundamento factual ou legal para isso, o Tribunal recorrido considerou que a 1.ª Ré, como “consultora nº1 da REMAX de Carnaxide”, que trabalha à comissão, tinha provavelmente uma situação financeira diferente da situação fiscal, o que foi determinante para dar como não provado, na sentença, que a 1.ª Ré não emprestou a JM a quantia de 400.000,00€ e, logo, julgar improcedente a presente ação; não atendeu o Tribunal recorrido à prova documental dos autos, designadamente às declarações fiscais de rendimentos apresentadas pela 1ª Ré, não se pronunciando, assim, sobre questão que deveria apreciar, e não proferiu pronúncia fundamentada sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes; os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
Vejamos.
O artigo 615.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe, “Causas de nulidade da sentença”, preceitua, no que ora importa, que a sentença é nula quando: “c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;”.
Como resulta expressamente deste normativo, a nulidade a que se refere apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão ininteligível.
A “decisão” a que se refere este preceito legal não é, obviamente, a decisão da matéria de facto. Na verdade, a lei é muita clara, prevendo que quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, que até pode ser oficiosamente determinada em certas situações, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC.
Por outro lado, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
De salientar ser absolutamente pacífico que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que alude aquele normativo legal, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos (mormente alegações de factos e meios de prova) produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões. Neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 10-01-2012, no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Reiteramos que a “decisão” visada no art.º 615.º, n.º 1, al. c) corresponde à parte decisória da sentença. Embora este entendimento seja pacífico, citamos, pela sua clareza, a explicação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 734-737: “Também a ininteligibilidade da parte decisória da sentença, contemplada na alínea c), quando subsista após a rejeição da arguição de nulidade, pelo juiz ou pelo tribunal de recurso, ou após a falta desta arguição (ver os art.ºs 615-4 e 617-1), merece a qualificação de nulidade. Com efeito, embora a ininteligibilidade, decorrente de ambiguidade ou obscuridade, tenha o tratamento da anulabilidade, carecendo de arguição da parte, a falta desta ou a sua rejeição tem o efeito de tornar definitivamente inaproveitável a sentença, por falta de decisão compreensível (…) No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória da sentença, só releva quando gera a ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos art.ºs 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos gerais dos art.ºs 280-1 CC e 295 CC. (…)
Os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 (excetuada a ininteligibilidade da parte decisória da sentença: ver o n.º 2 desta anotação) constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade.
Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).
Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art.º 607-3). (…)
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determina consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.”
Estes autores esclarecem ainda, na obra citada, pág. 737, o conceito de questões empregado na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º em apreço, explicando que: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (ver o n.º 2 da anotação ao art.º 608).
Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.º 608-2), é nula a sentença em que o faça.”
E na anotação ao art.º 608.º, págs. 712-713, clarificam que na sentença o juiz deverá responder aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que a apreciação de um esteja prejudicada; o mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade), acrescentando que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
Sobre esta problemática, no que ora importa, a jurisprudência é unânime, citando-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ disponíveis em www.dgsi.pt:
- de 03-03-2021, no proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, como resulta do sumário com o seguinte teor:
“I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.
III. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
IV. Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento.”
- de 09-03-2022, no proc. n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, conforme se retira da seguinte passagem do respetivo sumário:
“I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no art.º 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
II - A nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. c) do nº. 1 do citado art.º 615º - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final.
- de 10-12-2020, no proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, como se alcança do respetivo sumário com o seguinte teor: “A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes”.
Atentando na sentença recorrida, que julgou a ação improcedente, constata-se que da mesma consta a decisão da matéria de facto, incluindo o elenco(s) dos factos provados e não provados e a respetiva motivação, bem como a fundamentação de direito, em que se apreciou da validade da procuração, da dação em pagamento, e das prestações acessórias, e se concluiu inexistir fundamento legal para declarar inválida a procuração e a dação em pagamento, apesar de esta última ter ocorrido após o óbito do mandante, bem como a subsequente entrega de prestações acessórias da 1.ª Ré à 2.ª Ré, mais se tendo apreciado da questão do enriquecimento sem causa, concluindo-se que não se verificavam os seus (cumulativos) pressupostos.
Assim, e tendo em atenção o sentido que a expressão “decisão” tem no art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, é por demais evidente que não se verifica nenhuma das causas de nulidade aí previstas, pois os fundamentos de facto e de direito da sentença não estão em oposição com a decisão de improcedência da ação, nem esta parte decisória da sentença é ininteligível, antes pelo contrário, pois nada tem de ambíguo ou obscuro. Uma eventual contradição na motivação da decisão da matéria de facto poderá implicar um erro de julgamento de facto, a apreciar nos termos previstos no art.º 662.º do CPC, mas não determinará seguramente a nulidade da sentença.
Tão pouco se verifica qualquer uma das causas de nulidade da sentença previstas no art.º 615.º, n.º 1, al. d), pois a sentença apreciou os pedidos formulados pela Autora e respetivas causas de pedir, não indicando a Apelante nenhuma verdadeira questão sobre a qual tivesse sido omitida pronúncia, e não tendo o Tribunal a quo conhecido de qualquer questão de que não podia conhecer (que, aliás, nem a Apelante identifica).
Nenhuma das objeções apontadas pela Apelante consubstancia causa de nulidade da sentença, antes se traduzindo em motivos de discordância quanto ao julgamento que foi feito (de facto e de direito), ou seja, na invocação de erros de julgamento de facto e de direito.
Pelo exposto, improcedem as conclusões da alegação de recurso atinentes à arguição de nulidades da sentença.

Da modificação da decisão da matéria de facto

Na sua alegação de recurso, a Autora-Apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, embora o tenha feito em sede de arguição de nulidades da sentença, defendendo, em síntese, que “contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido, resulta indubitavelmente como provado que a 1ª Ré não emprestou €400.000,00 (quatrocentos mil euros) ao falecido JM no período compreendido entre 1-1-2015 e 31-5-2017”.
Importa que façamos algumas considerações prévias a respeito do quadro normativo aplicável ao recurso quando versa sobre matéria de facto.
Conforme previsto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe o artigo 640.º do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art.º 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 635.º, 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já a alínea a) do n.º 2 do citado art.º 640.º do CPC consagra um ónus secundário, cujo cumprimento, quanto aos invocados erros de julgamento das concretas questões de facto, não tendo de estar refletido nas conclusões da alegação recursória, deverá igualmente ser observado, sob pena de rejeição do recurso, na parte respetiva. Assim, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 16-12-2020, no processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se, pelo seu interesse e clareza, as seguintes passagens do respetivo sumário:
“I - No âmbito do recurso de apelação visando a impugnação da decisão de facto podem distinguir-se dois ónus que incidem sobre o recorrente:
Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC;
E
Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.
II - Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.
III - O controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.”
No presente processo, num esforço interpretativo das conclusões da alegação de recurso, podemos admitir, com alguma benevolência, que a Autora-Apelante pretende ver alterada a decisão da matéria de facto quanto ao concreto ponto de facto vertido em a. do elenco dos factos não provados, na medida em que defende que o mesmo deveria ter sido dado como provado. Porém, apesar de aquela afirmar ainda que o “Tribunal recorrido errou, ao dar como não provados factos e partes de factos”, não especificou quaisquer outros concretos pontos de facto que (porventura) considere incorretamente julgados, muito menos tendo indicado a decisão que, no seu entender, devia ser proferida a esse respeito, sendo, pois, forçoso rejeitar, desde já, quanto ao mais a impugnação que foi feita.
A decisão da matéria de facto mostra-se motivada, no que ora importa, ou seja, no tocante ao referido ponto a., designadamente nos seguintes termos (omitimos algumas passagens):
«·Ponto a.
Resultou não provado, desde logo por existência de prova em contrário que consta do depoimento da testemunha AB, piloto aviador de JM, na parte em que referiu que este tinha com a 1ª R. uma relação de confiança, que não gostava de pedir dinheiro aos bancos e que o mesmo estava a tentar obter um empréstimo em Portugal no valor de 800.000,00€, em 2017/2018, sendo certo que é natural que não se lembrasse concretamente do momento e que tal possa ter ocorrido entre 01-01-2015 e 31-05-2017.
A testemunha MM, empregado do falecido JM, também referiu que em 2018/2019 a empresa deste passou por dificuldades, pelo que é verossímil que tenha recorrido a empréstimo, mais uma vez sendo credível que não tivesse presente o momento exacto em que tal tenha ocorrido.
Também resultou não provado por falta de prova bastante no sentido da inexistência de tal empréstimo.
Com efeito, os factos que resultaram provados nos pontos 10. a 15. não permitem, por si só concluir que JM não precisasse de dinheiro, uma vez que, como homem de negócios que era, teria necessidade de efectuar investimentos, o que pode ser feito com fundos próprios ou com financiamento externo, seja ou não bancário, como resulta da normalidade das coisas e da prática comercial.
Por outro lado, o recurso ao crédito não é, por si só, comprovativo de falta de fundos próprios, podendo tratar-se, como amiúde se trata, tão-somente de estratégia empresarial, designadamente para efeitos de apresentação de despesas com amortização de empréstimos ou para delimitação do risco de investimento, assim diminuindo os impostos sobre o rendimento das empresas, ou restringindo o risco de cada negócio.
Aliás, como é do conhecimento comum, grandes grupos económicos recorrem amiúde ao financiamento externo para realização de concretos investimentos. Isso é aliás consentâneo com a diversidade de áreas abrangidas pela actividade da empresa de JM.
Por outro lado, os documentos juntos pela A. em 07-04-2022, admitidos em 10-02-2022, não são de molde a concluir pela desnecessidade de financiamento por parte de JM.
Os documentos em causa apenas permitem comprovar o que dos mesmos consta, assim:
­ A cópia do passaporte do falecido JM, atesta as viagens que fez e quando. Mas nada permite concluir quanto ao seu custo, o que as motivou e quem as pagou.
­ Os contratos promessa de compra e venda, celebrados em 20-11-2013, atestam que o falecido JM prometeu comprar, pelos valores de 160.545,00€ e de 196.350,00€, respectivamente, duas fracções autónomas, do prédio urbano sito na Rua ..., nº .., Lisboa, inscrito na matriz respectiva sob o artigo nº … e descrito na CRP de Lisboa sob o nº …, da freguesia de ..., tendo pago, aquando da sua assinatura, as quantias de 12.040,00€ e 14.726,00€, respectivamente a título de sinal. Tais documentos nada permitem concluir quanto ao modo de financiamento destas aquisições, designadamente de onde veio o dinheiro do sinal, se era próprio ou financiado por terceiro, ou sequer se a efectiva aquisição das fracções chegou a ter lugar efectivamente.
­ Da nota de encomenda à empresa C. S. VIP – concessionária Mercedes, resulta a encomenda de uma viatura Mercedes E 250 CDI AVANTGARDE, matrícula …-…-…, e que tal aquisição seria a pronto pagamento, nada permitindo comprovar se acabou por ser efectivamente assim.
­ Do contrato promessa de compra e venda celebrado em 29-11-2012, resulta que o falecido JM prometeu comprar, pelo valor de 400.000,00€, dois prédios urbanos, um sito na Rua …, nº …, Matosinhos (matriz nº … e CRP. Nº …) e o outro sito na Travessa das Areias, nº … e …, Matosinhos (matriz nº …-D e CRP de Matosinhos nº …). Também tal documento nada permite concluir quanto ao modo de financiamento destas aquisições, ou sequer se as mesmas chegaram a ter lugar.
­ Da procuração junta apenas resulta que LA SALLES VENTURE INC. constituiu seu procurador de JLM, nada permitindo relacionar tal sociedade com as partes dos autos ou com o falecido JM.
­ Do contrato promessa de compra e venda, celebrado em 01-08-2006, pelo preço de 157.280,00€, pelo qual se afere que o falecido JM prometeu comprar o lote de terreno urbano sito no nº …, Quinta Grande, Alfragide de Cima e Casal de Canas, em Carnaxide, Oeiras (2ª CRP de Oeiras nº …), no qual foi implantada a construção (moradia) objecto do presente processo. Do documento não se alcança de que modo foi feito o financiamento da referida aquisição, nada permitindo concluir que tenha sido por recurso a fundos próprios.
­Do documento comprovativo de que o falecido JM, pernoitou entre 12 e 14 de Agosto de 2013, no hotel SILKEN AMÉRICA VIGO, sito em Vigo, também não se retira nada quanto à sua capacidade financeira. Com efeito, trata-se que um hotel de três estrelas e não de um hotel de luxo, tendo sido a diária no valor de 80,00€, com pequeno almoço, o que não nos parece despesa particularmente extravagante.
Quanto aos contratos promessa, com excepção do concernente ao imóvel objecto do negócio em causa nos autos cuja aquisição sabemos que ocorreu efectivamente (Ponto 1. da factualidade assente), de salientar que seria fácil à A. comprovar as aquisições através da junção aos autos das respectivas certidões do registo predial, o que não fez, preferindo juntar os contratos promessa, a indiciar que tais aquisições poderão não terão ocorrido.
O tribunal não solicitou a junção aos autos das referidas certidões do registo predial, após o termo da audiência de julgamento, com reabertura da mesma, por não ter sido a falta de tais certidões prediais a determinar o desfecho da presente acção.
Também não foi feita prova de que a 1ª R. não tivesse tal quantia para emprestar a JM.
Resulta das comunicações email juntas pela A. como doc. nº 17 que a 1ª R. era, pelo menos entre 2013 a 2019, consultora da Remax, até se mencionando que seria a nº 1 da Remax de Carnaxide em cada um desses anos.
Resulta da informação prestada pela Autoridade Tributária portuguesa que a 1ª R. não apresentou declarações de IRS nos anos de 2016 e 2017, sendo que apresentou baixos rendimentos anuais em 2015 (756,20€), 2018 (1.229,48€ + 43.612,70€), 2019 (2.651,05€ + 8.861,08€) e 2020 (1.511,56€ + 3.600,00€).
Estas duas informações são contraditórias entre si posto que não se alcança como poderia ter tão módicos rendimentos a consultora nº 1 da Remax de Carnaxide, que será a empresa franchisada da Remax, sendo certo que é do conhecimento comum que os consultores e agentes imobiliários trabalham à comissão, consoante as vendas que logram fazer, pelo que resulta altamente provável que a situação fiscal da 1ª R. não espelhe a sua situação real situação financeira.
Tal facto resultou outrossim não provado por falta de credibilidade da prova produzida no sentido da inexistência de tal empréstimo.
As testemunhas AB, piloto aviador de JM, e MM, empregado do mesmo, afirmaram peremptoriamente que a 1ª R. não havia emprestado qualquer quantia JM, mas não lograram convencer o tribunal de que JM tenha compartilhado consigo factos da sua vida patrimonial, atenta a sua posição subalterna.
Com efeito, não é credível que soubessem este tipo de informação atenta as funções que desempenhavam para JM, o primeiro a pilotar o seu avião e o segundo tratando do património JM em Angola.
Finalmente, a 1ª R. não logrou fazer contraprova quanto a este facto.
EBM, irmã da 1ª R., por ter prestado um depoimento toldado e moldado pelo parentesco que a une à 1ª R., falando claramente em sua defesa, não mereceu a confiança do tribunal.
Acresce que, tal testemunha, referiu que viu extractos bancários da 1ª R., o que não se coaduna com as regras da experiência comum, que nos revelam que o extracto bancário não é coisa que se use mostrar, nem sequer a familiares.
DT, agente da PSP e amigo da R. prestou um depoimento também totalmente inverosímil, até por maioria de razão, referindo igualmente que viu extractos bancários da 1ª R., quando foi a casa desta fazer umas reparações, o que não se coaduna, mais uma vez, com as regras da experiência comum, que nos revelam que o extracto bancário não é coisa que se use mostrar, muito menos a amigos e a pessoas que prestam serviços de reparação ao domicílio.
Acresce que, se a 1ª R. pretendia comprovar o valor que tinha na sua própria conta bancária em determinado momento, de modo a comprovar que tinha capacidade financeira para emprestar 400.000,00€ JM, entre 01-01-2015 e 31-05-2017, estava ao seu alcance a junção aos autos dos respectivos extractos bancários (os que as testemunhas referem que viram), por ser o modo idóneo a comprovar tal, o que não fez, o que nos leva a crer que não lhe será ser benéfico o que dos mesmos consta.
E nem se diga que, por estar em causa um facto negativo ocorre inversão do ónus da prova.
Com efeito, a eventual dificuldade que possa ter a A. em provar o facto negativo que é a inexistência de empréstimo de 400.000,00€ não é obstáculo à atribuição à mesma do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art.º 344º do CC [1 Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 467, na 2.ª edição, onde se refere que “já se tem entendido, erroneamente, que a extrema dificuldade de prova do facto pode inverter o critério legal de repartição do ónus da prova”].
“É certo que por força do princípio constitucional da proibição da indefesa, que emana do direito de acesso ao direito e aos tribunais reconhecido no art.º 20º, n.º 1, da CRP, não serão constitucionalmente admissíveis situações de imposição de ónus probatório que se reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito.
Mas, por um lado, no caso em apreço não se está perante uma situação de impossibilidade prática desse tipo, pois a prova do facto negativo (...) pode ser efectuada através da prova de factos positivos (...)
Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur»” [2 Cfr. Acórdão do STA, de 17-12-2008, Proc. n° 0327/08, do PLENO DA SECÇÃO DO Contencioso Tributário, disponível em www.dgsi.pt, onde se citam MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 203; e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/83, de 11-7-1983, publicado no Diário da República, I Série, de 27-8-1983, onde se decidiu que: “(…)”].
Ora, mesmo aplicando estas regras, na presente situação não é possível considerar provada pela A. a inexistência de empréstimo à 1ª R., pelos motivos acima já referidos.»
Ante o teor das citadas passagens da motivação da decisão de facto constante da sentença, resulta evidente que o Tribunal recorrido fez uma apreciação conjugada dos diferentes elementos de prova documentais constantes do processo acima indicados e dos depoimentos das referidas testemunhas (que foram gravados).
Lendo (e relendo) a alegação recursória, verificamos que a Apelante discorda da decisão da matéria de facto, por considerar que o tribunal recorrido não analisou criticamente e não cuidou de apreciar livremente tais provas, tendo decidido de forma acrítica e arbitrária; e invocou a Apelante, como fundamento do (suposto) erro de julgamento de facto, diversos meios probatórios, mormente os que foram mencionados na motivação da decisão da matéria de facto acima citada, incluindo os depoimentos que foram gravados.
Impunha-se, pois, que a Autora-Apelante tivesse observado o ónus secundário consagrado no art.º 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o que manifestamente não fez (o que porventura se prende com a circunstância de não ter perspetivado a aplicabilidade do disposto neste preceito legal, por entender que se tratava de uma causa de nulidade da sentença), sendo, pois, inevitável a rejeição da impugnação que foi feita.
Portanto, mesmo admitindo, com alguma benevolência, que a Apelante pretendeu impugnar a decisão da matéria de facto quanto à matéria vertida em a. do elenco dos factos não provados, não pode deixar de ser rejeitada uma tal impugnação.
Pelo exposto, decide-se rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto.

Da invalidade da procuração e negócios subsequentes – em especial da falsidade e caducidade da procuração

Na fundamentação de direito da sentença o Tribunal pronunciou-se sobre as questões suscitadas “a título principal”, que intitulou como sendo “Da validade da procuração, da dação em pagamento, e da de prestações acessórias outorgada pela 1ª R. a favor da 2ª R.”, concluindo pela sua improcedência, e, de seguida, apreciou a questão suscitada a título subsidiário do enriquecimento sem causa.
No presente recurso a discordância da Autora cinge-se à decisão que foi proferida a respeito do leque das questões atinentes aos pedidos cumulativos (e à respetiva causa de pedir) que foram deduzidos a título principal e cuja fundamentação é a seguinte (omitimos algumas passagens que são citações e colocamos as notas de rodapé entre parenteses retos):
«Vem a R. requerer seja, a título principal: seja decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação da Procuração outorgada pelo falecido JM (pai da A.), a favor da 1ª Ré em 17-6-2019; decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação do documento particular de dação em cumprimento, com termo de autenticação feito em 18-11-2020, numa altura em que o mandante já falecera; e decretada a ilegalidade, nulidade ou anulação da entrega de prestações acessórias feita pela 1ª R. a 2ª Ré, em 04-03-2021.
Apreciando:
A representação consiste na celebração de um negócio, em nome de outrem, para que, na esfera jurídica desse outrem se produzam os seus efeitos [3 MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 2ª reimpressão, 1966, págs. 285 -286]. Consubstancia, assim uma substituição de outrem na actividade jurídica.
Na verdade, dispõe o art.º 258º, do Código Civil (CC), que: “(…)”.
O representante declara, concluindo o negócio, em nome do representado [4 Contemplatio domini].
O negócio, se couber dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante, é como se fosse praticado pelo representado. O representante não é parte no negócio, mas que não vale em relação a ele, que não é parte negocial [5 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, tomo I, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, pág. 240].
O poder de representação deriva da procuração, como acto instrumental, através da qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – art.º 262º, nº 1, do CC.
Os actos praticados por um representante com falta total de poderes representativos ou com excedência dos poderes que lhe foram atribuídos são ineficazes, em relação à pessoa em nome da qual se celebrou o negócio, desde que por ela não sejam ratificados – art.º 268º, nº 1, do CC.
Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais que lhe foram atribuídos, utiliza, conscientemente, esses poderes, em sentido, substancialmente, contrário ao seu fim ou às indicações do representado [6 Idem, ibidem, págs. 249-250).
O negócio que alguém, com abuso dos poderes de representação, celebre em nome de outrem, é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado, desde que a outra parte conhecesse ou devesse conhecer o abuso – art.ºs 269º e 268º, nº 1, do CC.
Nesta situação de abuso dos poderes representativos, o representante exerce, formalmente, o poder que lhe pertence, não para realizar o interesse do representado, mas para realizar outro interesse, próprio ou alheio.
O representante sacrifica o interesse do representado usando a representação para atingir um fim diverso daquele para que foi conferida.
No caso especial do negócio consigo mesmo, este é celebrado por uma só pessoa que intervém, simultaneamente, a título pessoal e como representante de outrem ou como representante, ao mesmo tempo, de mais de uma pessoa.
Neste caso, o conflito de interesses é manifesto, porquanto o representante conclui o negócio consigo mesmo ou, relativamente a si próprio, agindo, ao mesmo tempo, pelo representado e, pessoalmente, por si ou por outro representado.
O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo [7 Negotium a semet ipso], seja nomine próprio, seja nomine alieno (em representação de terceiro), é meramente anulável, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses – nº 1 do art.º 261º do Código Civil [8 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-2003, tirado no Proc. 1826/03, da 2ª secção, do qual foi Relator o Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida, disponível em www.dgsi.pt.].
Efectivamente, o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, é anulável, a não ser que o representado tenha, especificadamente, consentido na celebração, ou que o negócio exclua, pela sua própria natureza, a possibilidade de um conflito de interesses, atento o preceituado pelo artigo 261º, nº 1, do CC.
A primeira parte deste preceito consagra a figura do negócio consigo mesmo stricto sensu ou do auto-contrato, que ocorre quando “o representado tenha, especificadamente, consentido na celebração”, de modo a não poder duvidar-se que o representado previu e quis consentir nele, porquanto, assim, deixa de existir o perigo de o representante poder prejudicar o representado.
A isto acresce que as procurações que permitem ao procurador fazer negócios consigo mesmo são, livremente, revogáveis pelo representado, por simples vontade deste excepto se, simultaneamente, das mesmas constar que são passadas, no interesse do próprio procurador [9 Procuração in rem suam ou procuração “irrevogável”].
A tais procurações aplica-se o disposto no art.º 265º, nº 3, do CC, ou seja, “não podem ser revogadas sem acordo do interessado salvo ocorrendo justa causa”.
Temos assim que, quando a procuração é conferida, também, no interesse do procurador, a mesma pode ser revogada, mas apenas havendo acordo ou ocorrendo justa causa.
E a revogação da procuração, como específica causa extintiva dos poderes representativos que contém, deve ser levada ao conhecimento de terceiros, por meios idóneos.
Posto isto, resulta provado que, em 16-06-2019, JM, por documento denominado PROCURAÇÃO, declarou no primeiro Cartório Notarial de Luanda: “(…)”.
E que, em, 18-11-2020, por DOCUMENTO PARTICULAR DENOMINADO DAÇÃO EM CUMPRIMENTO, autenticado por solicitador, a R. por si, como segunda outorgante, e em representação de JM, como primeiro outorgante, declarou: “(…)”
E bem assim que, na mesma data, apresentando tal documento perante a solicitadora LR, por si e na qualidade de procuradora, em representação de JM declarou: “(…””
Temos assim que JM conferiu à 1ª R. poderes específicos para confessar que JM é devedor, à própria procuradora, da quantia de 400.000,00€
Mais lhe deu poderes específicos para assinar qualquer documento legalmente válido para formalizar essa confissão de dívida, praticando, assinando e requerendo tudo o que se mostre necessário aos indicados fins.
JM também, conferiu expressamente 1ª R. poderes para outorgar e assinar, em seu nome e representação, a escritura de dação em cumprimento à 1ª R. do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o nº … da freguesia de Carnaxide, destinada a extinguir integralmente a referida dívida.
Mais se provou que a 1ª R., enquanto procuradora de JM, em 18-11-2020, assim declarou e outorgou.
Ora, é condição de validade do negócio consigo mesmo, que não haja conflito de interesses, no acto de constituição ou conclusão do negócio, pois se houver conflito de interesses o contrato é anulável.
O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fidúcia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado.
“A fidúcia tem inerente o risco de infidelidade. A característica principal dos negócios fiduciários consiste na especial confiança depositada pelo fiduciante no fiduciário.
O fiduciário é tipicamente uma pessoa de confiança do fiduciante, pessoa em relação a quem o fiduciante tem a certeza de que vai cumprir, pessoa que não lhe suscita quaisquer dúvidas, quer quanto à seriedade, quer quanto à vontade de cumprir.” [10 PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, pág. 481].
O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação.
Não pode o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta acautelando apenas os seus próprios interesses, sob pena de anulabilidade.
Compete-lhe a defesa dos interesses do outro contraente que representa.
“Sendo dois, e contrários, os interesses em presença, e uma só a vontade que os defende; estando de todo eliminada a luta, como meio de alcançar equilíbrio e justiça na conjugada realização daqueles interesses, obra de uma pessoa única – há grave perigo do iníquo sacrifício de um dos interessados em prol do outro” [11 GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, pág. 319].
Se num contrato celebrado entre duas partes há risco de haver um desequilíbrio contratuais, uma desprotecção e consequente lesão de uma das partes, tal risco é exponencialmente maior nos casos que alguém intervém sozinho na formação e conclusão do contrato, agindo em defesa de interesses seus e, ao mesmo tempo, nos daquele que representa.
(…) “I – O negócio consigo mesmo, “negotium a semet ipso”, é o celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e de representante de outrem, ou como representante ao mesmo tempo de mais de uma pessoa.
II – Tal contrato, porque envolve perigos evidentes, como seja, desde logo, a circunstância de o representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus, é anulável, conforme o disposto no artigo 261º, nº 1, do Código Civil.
III – A viabilidade da anulação do negócio fica afectada desde que se possa concluir pela existência de consentimento ou confirmação do representado, caso em que o mesmo, de anulável, em princípio, passa a ser inteiramente válido.” [13 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-03-1998, in BMJ 475, 610].
“O negócio consigo mesmo, não sendo excedidos os poderes contidos na procuração, não co-envolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado” [14 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-10-2004, Colectânea de Jurisprudência, STJ, Ano 2004, tomo pág. 52].
Até aqui, não é possível concluir pela existência de abuso de representação ou representação sem poderes, até porque nenhum facto se provou concernente a uma eventual fragilidade ou exclusão da vontade do mandante ao emitir a procuração.
Ocorre que, também se provou que em 09-10-2020, faleceu JM, em Luanda, tendo como última residência habitual o Bairro Ingombota JM.
Em seguida, importa averiguar se a procuração em presença se pode considerar irrevogável, uma vez que o art.º 1175º do CC introduz uma limitação relevante à caducidade, ao estatuir que a morte do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro e que, nos outros casos, só faz caducar a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.
Recorde-se que nessa procuração não se declarou expressamente nesse sentido no sentido da irrevogabilidade. Sendo certo que, ainda que tal tivesse ocorrido não bastaria tal menção expressa na procuração, para se ter a mesma por irrevogável [15 Acórdão STJ de 03-06-1997, tirado no Proc. nº 97A140, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê que: “(…)”].
Procuração e mandato são conceitos distintos, não obstante as suas afinidades e regimes próximos, designadamente quanto à sua caducidade.
Com efeito, “(...) mandato e procuração não coincidem conceptualmente: o mandato é um contrato, a procuração é um acto unilateral; o primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta doutrem; o segundo confere o poder de os celebrar em nome doutrem”, não obstante, “os institutos comunicam entre si, já que, nos termos do art.º 1178º, nº 1, do C. Civil, no mandato com representação, o mandatário recebe poderes para agir em nome do mandante, aplicando-se o disposto nos artigos 258º ss. do C. Civil, relativos à representação e nos quais se englobam as normas que disciplinam juridicamente a procuração” [16 Acórdão do TRP, de 28-04-2009, tirado no Proc. n° 2043/05.9TVPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt].
Por regra ocorre a caducidade do mandato pela morte do mandante, dado o carácter pessoal da relação de mandato - art.º 1174º, al. a), do CC.
Não obstante, o art.º 1175º dispõe que “a morte (...) não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro”.
E o art.º 265º, nº 3, do CC, que “se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.
Assim, «a irrevogabilidade tem de "resultar da relação jurídica basilar e, em especial, por ter sido conferido no interesse do mandatário (ou do procurador) ou de terceiro"» [17 Idem (nota 14)]
Urge aferir, portanto da existência de “interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro para se poder considerar irrevogável a procuração editada por pessoa entretanto falecida e daí se inferir uma ultractividade da procuração ou a sua validade post mortem” [18 Acórdão TRE, de 18-11-2009, tirado no Proc. nº 67/1999.E1].
Ora, «para se concluir pelo interesse do mandatário ou de terceiro, é forçoso descortinar um direito subjectivo de que um deles seja titular, direito que é exercido, ou por qualquer forma actuado, através do mandato e, mais especificamente, através do cumprimento do acto gestório [19 JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina, Coimbra, 1989, p. 149] (...) o direito subjectivo do mandatário in rem suam (...) não tem a sua génese na relação gestória, não é explicado por esta: esse direito subjectivo decorre de uma outra relação entre o mandante e o mandatário, relação essa que determina amiúde a constituição do mandato (...) [20 Idem, ibidem (nota 18)].
No caso, o direito da 1ª R. mandatária consiste em ser reembolsada do valor do empréstimo que JM confessa, na procuração, ter-lhe sido concedido por aquela.
A relação jurídica entre o mandante e a mandatária que determina a constituição do mandato é a resultante do contrato de mútuo celebrado entre as partes, no valor de 400.000,00€, como também confessado pelo mandante na própria procuração.
Assim sendo, a procuração não caducou automaticamente no momento em que falece o mandante.
Termos em que, forçoso se torna indeferir o peticionado pela A. no sentido de ser declarada inválida a procuração, e a consequente invalidade da dação em pagamento, por ter ocorrido após o óbito do mandante, e da entrega de prestações acessórias da 1ª R. à 2ª R..
Assim sendo, por não se verificar nenhuma invalidade na procuração, na dação em pagamento e na emprega em espécie, serão as RR. absolvidas do peticionado pela A.».
A Apelante, em B) do corpo da sua alegação recursória, pugna pela procedência da ação, sendo que, além de reiterar que a 1.ª Ré não emprestou ao falecido pai da Autora a quantia de 400.000€ - não sendo, pois, devedor dessa quantia, contrariamente ao que é afirmado na procuração -, argumenta, em síntese, que:
- o art.º 342.º do CC não impõe ao autor a prova dos factos integradores da causa de pedir, mas sim dos factos constitutivos do direito (por ele) alegado, e não dá relevância à distinção entre factos positivos e negativos na distribuição do ónus da prova, só podendo admitir-se que a natural dificuldade de prova de factos negativos aconselhe menores exigências quanto à prova (o que o Tribunal recorrido olvidou);
- quando a prova não for possível ou se tornar muito difícil àquele que, segundo as regras do art.º 342.º do CC, teria de a fazer, então o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte; há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver, culposamente, tornado impossível a prova do onerado, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do CC, sendo que a Autora requerera, em sede de prova, o levantamento do sigilo bancário da 1.ª Ré, o que, por despacho do Tribunal recorrido, de 15-11-2021 foi indeferido;
- da procuração não se alcança que esta não caducasse por morte do mandante, motivo porque, nos termos do art.º 1174.º, al. a), do Código Civil Português, sempre esta procuração outorgada em Angola, em 17-6-2019, caducou por morte do mandante;
- tal procuração, pelos poderes conferidos (fazer negócio consigo mesmo), deveria ter sido objeto do prévio pagamento de IMT (Imposto a pagar em Portugal); a 1.ª Ré não pagou o IMT, como deveria, em 17-06-2019 (com a outorga da procuração), como não pagou qualquer IMT devido, quando outorgou o Documento Particular de Dação em Cumprimento em 18-11-2020, tendo sido violado o art.º 2.º, n.º 3, alíneas c) e d), do Código do IMT, acrescentando que também não foi respeitado o previsto na Lei n.º 83/2017 de 18-08 (que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo).
Apreciando.
A Autora-Apelante insurge-se contra a validade e eficácia da procuração que foi usada pela 1.ª Ré na confissão de dívida e dação em cumprimento.
Trata-se de procuração que foi outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Luanda, em Angola, o que convoca o disposto no art.º 39.º do CC, norma de direito internacional privado que, sob a epígrafe “Representação voluntária”, tem o seguinte teor:
“1. A representação voluntária é regulada, quanto à existência, extensão, modificação, efeitos e extinção dos poderes representativos, pela lei do Estado em que os poderes são exercidos.
2. Porém, se o representante exercer os poderes representativos em país diferente daquele que o representado indicou e o facto for conhecido do terceiro com quem contrate, é aplicável a lei do país da residência habitual do representado.
3. Se o representante exercer profissionalmente a representação e o facto for conhecido do terceiro contratante, é aplicável a lei do domicílio profissional.
4. Quando a representação se refira à disposição ou administração de bens imóveis, é aplicável a lei do país da situação desses bens.”
Assim, no plano do direito substantivo, são aplicáveis ao caso as normas do direito interno português.
Quanto à falsidade intelectual da procuração, não pode ser atendida a argumentação da Apelante, pois assenta em alegação de facto que não se provou, insistindo no erro de julgamento por parte do tribunal recorrido - mormente no que concerne às menores exigências na apreciação da prova de factos negativos -, o qual apenas podia ser sindicado em sede de reapreciação da prova se não tivesse sido rejeitada a impugnação da decisão da matéria de facto.
Sempre se dirá que, apesar de na motivação da decisão da matéria de facto também constarem algumas considerações sobre a inversão do ónus da prova, as mesmas têm outro alcance. Na verdade, ainda que possam aí ter algum cabimento para fundamentar a seleção da matéria de facto que foi considerada relevante (ou seja, uma certa versão dos acontecimentos), não servem para decidir se a respeito de um certo facto, tido por substantivamente relevante para a decisão da causa, foi ou não produzida prova suficiente para o tribunal formar a convicção.
Ou seja, o que importa é determinar se ocorre uma inversão do ónus da prova do aludido facto, de modo que à Autora bastaria ter alegado o facto (que, como se viu, não ficou provado) da inexistência do empréstimo de 400.000€ e à 1.ª Ré caberia fazer prova de que tinha emprestado ao pai da Autora uma tal quantia, nos termos constantes da confissão de dívida.
Porém, desde já adiantamos que não colhem os argumentos da Apelante quanto a uma tal inversão do ónus da prova, designadamente quando afirma que na sentença se deu “cobertura” à ilegalidade da não declaração de rendimentos pela 1.ª Ré, obstando a que a Autora pudesse provar o facto negativo em causa, ou que se verifica a previsão do art.º 344.º, n.º 2, do CC, porque a Autora requerera, em sede de prova, o levantamento do sigilo bancário da 1.ª Ré, o que, por despacho do Tribunal recorrido, de 15-11-2021 foi indeferido.
Com efeito, preceitua o art.º 344.º, n.º 1, do CC, sob a epígrafe “Inversão do ónus da prova” que as regras dos artigos anteriores - em particular, a do n.º 1 do art.º 342.º do CC, da qual resulta que à autora cabia fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, incluindo dos factos negativos - invertem-se, “quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine”. Acrescentando o n.º 2 do art.º 344.º que “(H)á também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”
Ora, não há nenhuma norma que estabeleça, quanto ao aludido facto - que é claramente integrante da causa de pedir e constitutivo do direito que a Autora invocou -, uma presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, designadamente nas situações em que a prova é difícil. Tão pouco nos parece que as Rés, em especial a 1.ª Ré, tenham culposamente tornado impossível a prova pela Autora do facto em apreço. Aliás, neste particular, a Autora-Apelante só de si se poderá queixar, já que não cumpriu os ónus de impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença, nem interpôs oportunamente recurso do despacho que indeferiu a diligência probatória que requereu.
Perante a confissão de dívida, com indicação da respetiva causa ou fonte da obrigação assumida, ainda que feita por procurador, estamos perante uma declaração confessória do devedor perante o credor, nos termos do art.º 358.º, n.º 2, do CC, incumbindo ao devedor (no caso, à Autora, sua única herdeira) o ónus de ilidir a força probatória plena dessa confissão, provando não ser verdadeira a causa ali indicada, conforme resulta do disposto no art.º 347.º do CC, ou ainda provar, nos termos gerais, factos tendentes a descaracterizar a própria natureza confessória dessa declaração. Neste sentido, exemplificativamente, veja-se o acórdão do STJ de 26-02-2015, na Revista n.º 5642/03.0TVLSB-A.L1.S1 - 2.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt.
Não se podendo considerar verificada uma falsidade intelectual da procuração, ou seja, uma falsidade que recaia sobre o conteúdo do documento (traduzida na desconformidade desse conteúdo com a verdade dos factos que se encontram provados), não nos merece censura a sentença recorrida quando considerou não ser possível concluir pela existência de “representação sem poderes, até porque nenhum facto se provou concernente a uma eventual exclusão da vontade do mandante ao emitir a procuração”.
Há ainda que apreciar se a invalidade dos negócios feitos “a coberto” da procuração poderá decorrer da caducidade da mesma.
A Apelante clama pela aplicação ao caso do disposto no art.º 1174.º, al. a), do CC, nos termos do qual o mandato caduca “Por morte do mandante ou do mandatário”, mas olvida que a procuração (que é um negócio jurídico unilateral) e o contrato de mandato não se confundem, embora possam coexistir, podendo (ou não) a outorga de procuração ser acompanhada da celebração de contrato mandato. Veja-se o art.º 1178.º do CC, dispondo o seu n.º 1 que se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos artigos 258.º e seguinte. Mais descura a Apelante o preceituado no art.º 1175.º do CC, em particular no seu n.º 1, nos termos do qual:
“1 - A morte do mandante ou a sentença de acompanhamento a ele relativa não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro.
2 - Nos outros casos, só o faz caducar a partir do momento em que sejam conhecidas do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros”.
De referir ainda que o art.º 265.º do CC dispõe sobre a extinção da procuração, nos seguintes termos:
“1. A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.
2. A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
3. Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”
Da conjugação destas normas resulta, conforme se explica, no acórdão do STJ de 18-02-2014, na Revista n.º 3083/11.4TBFAR.E1.S1 - 6.ª Secção, que:
“I - Quer o contrato de mandato, quer a outorga de procuração não são revogáveis apenas por do contrato ou daquele acto jurídico unilateral constar, expressamente, uma cláusula de irrevogabilidade; relevante é que da relação basilar, que está na origem da decisão do dominus, resulte a existência de um interesse conferido também no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado. 
II - Existindo tal relação basilar determinante de uma procuração conferida, não só no interesse do mandante, como também no interesse do mandatário, tendo como instrumental da satisfação de uma pretensão reciprocamente vinculativa, uma procuração irrevogável outorgando poderes para negociar consigo mesmo, a morte do mandante não faz caducar o mandato nem a procuração a ele associada, sendo válido o auto-contrato celebrado pela mandatária/representante, mesmo após a morte do mandante, que ademais, expressou que nem a procuração, nem o mandato caducariam por sua morte.”
No caso dos autos, o JM conferiu poderes à 1.ª Ré para, além do mais, “Outorgar e assinar, em seu nome e representação, a escritura, título outorgado no Casa Pronta ou documento particular autenticado, de dação em cumprimento, pela qual o Mandante dá em cumprimento à aqui procuradora – à qual são por isso conferidos igualmente poderes para fazer negócio consigo”. Portanto, o representado conferiu poderes à 1.ª Ré para, além do mais, realizar dação em cumprimento, configurando a celebração de “Negócio consigo mesmo”, sendo assim manifesto que se trata de procuração conferida no interesse daquela Ré, procuradora, não se podendo considerar que a procuração caducou com a morte do representado, pelo que não merece censura a decisão recorrida a este respeito.
Resta apreciar se foram violadas as normas legais invocadas atinentes a pagamento de impostos e branqueamento de capitais.
Trata-se de questão nova, que não foi apreciada na sentença recorrida.
Quanto à inadmissibilidade da apreciação de questões novas nos recursos, veja-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 23-03-2017, na Revista n.º 4517/06.5TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt: “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC).” Também Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág. 119, explica que: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto, de em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.
Sempre se dirá que, a tratar-se de questão de conhecimento oficioso, não resulta dos factos provados que tenham sido violadas as invocadas disposições legais, não sendo possível concluir pela nulidade dos negócios em apreço nos termos do art.º 294.º do CC.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento.

Vencida a Autora-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Mais se decide condenar a Autora-Apelante no pagamento das custas do recurso.

D.N.

Lisboa, 22-06-2023
Laurinda Gemas
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento