Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CARLOS M.G. DE MELO MARINHO | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÕES OBJECTO DO RECURSO RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLECTIVAS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/02/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I. A impugnação judicial para o Tribunal da Relação de decisão proferida em processo de contra-ordenação tem por objecto a sentença proferida em primeira instância e não a decisão administrativa sobre a qual aquela tenha incidido; II. Não tendo a Impugnante, ao recorrer em primeira instância, colocado em crise a decisão administrativa no que tange à sua validade intrínseca, não tendo tal matéria sido apreciada pelo Tribunal «a quo», não possui adequação a tentativa de lançamento de discussão incidente sobre a temática da nulidade da decisão administrativa «per saltum», sem prévia decisão da primeira instância. III. No Direito de mera ordenação social, a pessoa coletiva assume culpa própria, sem necessidade da concorrente imputação individual dos factos a pessoas físicas, devendo assumir contornos alargados e muito abrangentes a noção de órgãos em exercício de funções subjacente ao n.º 2 do art. 7.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, por forma a englobar todos os que actuem como «longa manus» ou agentes de acção no mundo físico de uma pessoa colectiva sujeita a deveres de conduta de emanação normativa que, sob protecção coactiva do referido Direito, sejam tributários de finalidades pré-assumidas pelo legislador, tuteladas através da imposição de coimas a quem quer que os viole e qualquer que seja o meio ou a intermediação usada. IV. No n.º 2 do art. 7.º, ao responsabilizar-se também as pessoas colectivas, está-se, necessariamente, a pressupor a intervenção física de pessoas singulares num quadro que as vincule e que lhes seja atribuível, atenta a sua imaterialidade ontológica, sem que isso pressuponha, necessariamente, a responsabilidade subjectiva individual dessas pessoas singulares. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa: * I. RELATÓRIO O CENTRO DE MEDICINA LABORATORIAL GERMANO DE SOUSA, com os sinais identificativos constantes dos autos, impugnou judicialmente a decisão da ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE que lhe impôs sanção pela prática da infracção aí descrita. O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as suas principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos: Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação foi proferida, pela entidade administrativa Entidade Reguladora da Saúde, a decisão que consta dos autos, por intermédio da qual foi aplicada à recorrente Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa a coima de € 6.000,00 (seis mil euros euros), por incumprimento da obrigação de facultar gratuita e imediatamente, quando solicitado por utente, o Livro de Reclamações, no estabelecimento prestador de cuidados de saúde por ela explorado, em violação das disposições conjugadas da alínea b) do nº 1 do artigo 3º e do nº 3 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 156/2005, de 15 de Setembro, com a redação conferida pelo Decreto-Lei nº 9/2021, de 29 de Janeiro (de notar que a referência que é efectuada ao nº 4 do artigo 3º é apenas efectuada no segmento “V – Decisão” da decisão recorrida, não havendo qualquer alusão a tal artigo quer no relatório, quer no enquadramento jurídico da decisão, pelo que resulta evidente tratar-se de um mero lapso de escrita). Notificada de tal decisão, a recorrente, não se conformando com a mesma, impugnou-a judicialmente, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 59º do Decreto – Lei nº 433/82, de 27/10, requerendo a absolvição da prática da contra-ordenação que lhe é imputada. Alega, em síntese, que a administrativa da recorrente se encontrava a atender uma outra utente quando a utente AA solicitou o livro de reclamações. Mais alega que a administrativa solicitou à utente AA que aguardasse que terminasse o atendimento em curso, ao que esta referiu que não pretendia aguardar. Refere ainda que a administrativa referiu à utente AA que não podia interromper o atendimento em curso e se não pretendia aguardar sempre poderia efectuar a reclamação no livro de reclamações electrónico, ao que a utente respondeu afirmativamente, tendo-se retirado do local. A recorrente alega ainda que o posto de colheitas se encontrava cheio de utentes para efectuação de testes de detecção da patologia SARS CoV-2, que as administrativas se encontravam ocupadas no atendimento de utentes e que a utente AA acabou por fazer a sua reclamação no livro de reclamações electrónico. Arrolou testemunhas. A entidade administrativa indicou testemunha. Procedeu-se a audiência de julgamento (...) Foi proferida sentença que decretou: Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso interposto pela recorrente Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, S.A. e, em consequência, manter a decisão da Entidade Reguladora da Saúde, que aplicou à recorrente, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 3º, nº 1, alínea b) e 9º, nº 1, alínea a), ambos Decreto-Lei nº 156/2005, de 15/09, a coima de € 6.000,00 (seis mil euros). Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta - cf. artigos 93º, nº 3 e 94º, nº 3, ambos do RGCO. É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por CENTRO DE MEDICINA LABORATORIAL GERMANO DE SOUSA, SA, que alegou e apresentou as seguintes conclusões: 1) Na sentença recorrida, ao decidir-se manter a condenação da arguida, ora recorrente, nos termos supra, violou-se o disposto no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO, por incumprimento dos requisitos aí descritos, o que implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a qual deve ser suprida pela autoridade administrativa competente em causa; 2) Não pode, pois, a arguida, ora recorrente, conformar-se com tal sentença; 3) Estamos perante uma nulidade, por aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º do RGCO, nomeadamente, o regime previsto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP; 4) Trata-se, além do mais, de vício de conhecimento oficioso, na medida em que, se o artigo 380.º do CPP, ao estabelecer que o regime das irregularidades da sentença, de menor importância, compreende o conhecimento oficioso, deverá concluir-se que também valerá este conhecimento oficioso para as nulidades previstas no artigo 379.º, pois seria incongruente um regime legal em que houvesse a preocupação de correção oficiosa de irregularidades de menor importância e não se possibilitasse ao tribunal corrigir as de maior gravidade; 5) A decisão administrativa, que foi objeto de impugnação pela recorrente, não preenche os requisitos enunciados no artigo 58.º do RGCO, o que implica a nulidade da mesma e, a qual deve ser suprida pela autoridade administrativa competente em causa, face à referida omissão; 6) Da leitura da aludida decisão, afere-se que esta não encerra em si e nos factos imputados à arguida, ora recorrente, de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos nem a qualquer título de dolo, nem se referindo a negligência, neste caso, da contraordenação que lhe foi imputada, na medida da concreta da atuação dos seus funcionários, no que concerne ao conhecimento, vontade dos mesmos, bem como da consciência das circunstâncias de facto que preenche um tipo de ilícito objectivo; 7) Numa contraordenação, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação ao agente, que o arguido agiu livre e conscientemente. bem como sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, o que não se verifica, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa em apreço; 8) A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal, o que aqui se aplica à audiência e decisão, no âmbito da impugnação judicial; 9) Tais princípios jurídicos são aplicáveis também às contraordenações; 10) A decisão administrativa proferida nos presentes autos é nula, porque omissa em factos concretizadores dos elementos subjetivos do tipo contraordenacional imputado arguida/recorrente, sendo que aquela, neste tipo de processos, reveste a natureza de uma acusação; 11) Tal nulidade, porque não foi retirada a acusação (artigo 65º-A do RGCO), determina que, nos termos do artigo 64.º do mesmo diploma, sejam arquivados os autos por falta de objeto; 12) Com efeito, sendo a arguida uma pessoa coletiva, a imputação, ainda que a título de negligência exige a verificação dessa mesma negligência por parte de uma ou mais pessoas físicas, atuando no exercício das suas funções, em nome e no interesse dessa mesma sociedade; 13) Nenhum representante legal da sociedade arguida é identificado, desde logo, para efeitos de avaliar a informação e formação, relativamente à matéria em causa, dos seus funcionários, pelo que não se pode condenar a arguida pela prática da contraordenação ; 14) Tratando-se de pessoa coletiva como arguida, os elementos subjectivos do tipo devem ser invocados e imputados no âmbito da concreta atuação das pessoas físicas que a representam e/ou atuam no seu interesse, sendo que a decisão/acusação administrativa nada concretiza ou refere a esse respeito, limitando-se a dizer que a infratora não atuou com a diligência e o cuidado que lhe eram exigidos e, de que era claramente capaz; 15) A infratora é uma sociedade, pelo que os elementos subjectivos do tipo tem de ser aferidos quanto à atuação das pessoas físicas; 16) Na matéria facto considerada provada, nada se consigna quanto ao elemento volitivo ou consciência da ilicitude, relativamente às pessoas físicas, pois que, só estando preenchidos esses elementos subjetivos do tipo, é que, então, poderá existir a possibilidade de proceder à consequente imputação; 17) Nenhum representante legal, director ou superior hierárquico se encontra identificado, caso a imputação do facto ilícito pretendesse fazer decorrer a atuação dos funcionários de uma qualquer omissão quanto à informação e formação devida, naquele âmbito, aos colaboradores da empresa; 18) Não se encontram, pois, enunciados os elementos subjetivos do tipo, nas pessoas físicas concretas que atuaram na situação em apreço, o que, consequentemente, impede a imputação do ilícito contra-ordenacional à sociedade arguida; 19) Inexiste qualquer referência ou identificação de qualquer representante legal, diretor ou superior hierárquico, ao serviço da sociedade arguida, que permitisse aferir ou imputar alguma responsabilidade à infratora, relativamente à atuação dos seus funcionários; 20) Assim, face à omissão, conforme enunciado supra, a consequência não pode deixar de ser a nulidade, com as legais consequências; Termos em que, Deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que, por se verificar a nulidade da decisão administrativa evocada, ordene o envio do processo à autoridade administrativa (ERS - Entidade Reguladora da Saúde), com vista a que, de acordo com o ora decidido, proceda à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade, por forma a incluir na decisão os concretos factos integradores dos elementos subjetivos da contraordenação imputada à arguida. O Ministério Público respondeu ao recurso concluindo: Destarte, e EM CONCLUSÃO, verifica-se que falha qualquer razão à recorrente nas questões por si levantadas, uma vez que a douta sentença soube de forma expressa, clara e fundamentada sustentar o seu dispositivo condenatório, fosse por uma enunciação escorreita e clara da matéria dada como provada, fosse pela correcta subsunção de tais factos ao direito, fosse pela pormenorizada identificação e caracterização da conduta havida com as funcionárias da recorrente e que directamente responsabilizam a mesma; não padecendo, por outro lado, de qualquer vício ou erro de julgamento quer na fundamentação da matéria de facto, quer na fundamentação de direito. Foi colhido o visto do Ministério Público junto deste Tribunal que se pronunciou declarando acompanhar o dito em primeira instância por essa magistratura. Lançados os vistos legais pelos membros do Colectivo, cumpre apreciar e decidir. Dado que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cf. o n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do RGCO) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – é a seguinte a questão a avaliar: Na sentença recorrida, ao decidir-se manter a condenação da arguida, ora recorrente, violou-se o disposto no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO, por incumprimento dos requisitos aí descritos, o que implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas? II. FUNDAMENTAÇÃO Fundamentação de facto Vem provado que: 1) A ERS tomou conhecimento, em 14 de Fevereiro de 2022, de uma reclamação online subscrita pela exponente AA, visando a actuação da entidade Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, SA, designadamente em matéria de regras relativas à disponibilização do livro de reclamações. 2) A referida reclamação foi internamente registada sob o processo de reclamação nº REC/14577/2022, nos termos da qual, ali é denunciado, designadamente, que a utente, no dia 27 de Janeiro de 2022, se dirigiu ao Posto de colheita da recorrente, sito na Avenida 25 de Abril, nº 38, Montijo, “(...) tendo-me sido recusado o livro de reclamações dizendo que de momento não o tinham, obrigando-me a proceder à reclamação online". 3) No dia 27 de Janeiro de 2022, a utente AA esteve nas instalações da Avenida 25 de Abril, nº 38, R/C, 2870-150 Montijo, e solicitou o Livro de Reclamações à funcionária BB. 4) O livro de reclamações não foi facultado de forma imediata à utente AA, aquando da solicitação à recorrente, no estabelecimento sito na Avenida 25 de Abril, nº 38, R/C, 2870-150 Montijo. 5) A utente não logrou realizar a reclamação pretendida no Livro de Reclamações físico. 6) A utente concretizou a reclamação pretendida no Livro de Reclamações online nos termos referidos em 2). 7) A Polícia de Segurança Publica não compareceu no posto de colheita, não tendo sido solicitada a sua presença. 8) A sociedade comercial Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, S.A., com o NIPC 508720311 e sede na Rua Cupertino de Miranda, nº 9, Lote 8, Pólo Tecnológico de Lisboa, 1600-513 Lisboa, encontra-se inscrita no SRER da ERS no SRER da ERS, desde 1 de Junho de2012, sob o nº 21639. 9) À data dos factos, a recorrente explorava um estabelecimento sito Avenida 25 de Abril, nº 38, R/C, 2870 - 150 Montijo, onde prestava cuidados de saúde. 10) O estabelecimento prestador de cuidados de saúde explorado pela recorrente encontrava-se registado no SRER da ERS sob o nº 132849. 11) A obrigação de possuir e disponibilizar (de forma imediata) o livro de reclamações, bem como todo o sistema de avaliação que lhe está inerente, visa assegurar o direito de queixa do utente, proporcionando-lhe a possibilidade de apresentar a reclamação no próprio local onde ocorreu o motivo de queixa. 12) A obrigação violada tem como escopo a proteção dos direitos dos utentes, operando como um instrumento de prevenção de conflitos e como um mecanismo de melhoria da qualidade dos serviços prestados, valores fundamentais para o equilibrado funcionamento do mercado, especialmente num setor particularmente delicado como é o da saúde. 13) A recorrente não atuou com a diligência e o cuidado que lhe eram exigidos e, de que era claramente capaz. 14) No âmbito do PCOl216l2O18, por decisão do Conselho de Administração da ERS, de 14 de Março de 2019, a pessoa coletiva Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, S.A., foi condenada na coima de 1 000,00 EUR (mil euros), por incumprimento da obrigação de atualização dos dados inscritos no SRER da ERS, relativos ao estabelecimento prestador de cuidados de saúde (posto de colheitas) sito na Rua El Rei D. Sancho l, com a Rua Raúl Brandão, Lote 203, R/C, 2955-216 Pinhal Novo, designadamente no que se refere aos colaboradores que compunham o respetivo corpo clínico. Factos não provados Não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos: a) A utente foi informada, que o livro de reclamações lhe seria facultado, sendo a mesma atendida pela ordem de atendimento vigente no mencionado posto de colheita, ou seja, de acordo com a ordem de chegada dos utentes, sem prejuízo do dever de respeito do atendimento prioritário. b) A administrativa da recorrente, BB encontrava-se naquele momento a atender uma utente, tendo respondido que logo que terminasse esse atendimento lhe entregaria o livro de reclamações. c) A utente respondeu que não pretendia aguardar. d) A administrativa da recorrente, BB, respondeu que não podia interromper o atendimento que executava e que a reclamação podia ser efetuada no livro de reclamações electrónico, caso essa fosse a opção da utente AA. e) A utente optou por não aguardar pelo momento do seu atendimento, tendo referido que formalizaria a reclamação por via eletrónica, e, em seguida, retirou-se do posto de colheita. f) Naquele momento o posto de colheita encontrava-se cheio de utentes para, essencialmente, efetuação de testes de deteção da patologia SARS Cov-2, encontrando-se todas as trabalhadoras existentes no posto de colheita ocupadas a atender utentes. g) O Livro de Reclamações encontrava-se no posto de colheita sito Avenida 25 de Abril, nº 38, R/C, 2870 - 150 Montijo. h) A utente AA não teve de aguardar em fila de espera para aceder ao livro de reclamações. i) Na recorrente existe procedimento interno instituído de entrega imediata do livro de reclamações logo que solicitado. j) As trabalhadoras da recorrente têm conhecimento da obrigação legal de entrega imediata do livro de reclamações logo que solicitado e do procedimento interno existente na recorrente de entrega imediata do livro de reclamações logo que solicitado. k) A recorrente não recusou a entrega do livro de reclamações. Fundamentação de Direito Na sentença recorrida, ao decidir-se manter a condenação da arguida, ora recorrente, violou-se o disposto no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO, por incumprimento dos requisitos aí descritos, o que implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas? O recurso que agora se aprecia centra-se nas seguintes ideias força: 1. Nulidade da decisão administrativa por falta de requisitos legais – artigo 58.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) A decisão administrativa condenatória não cumpria os requisitos previstos no aludido artigo 58.º do RGCO. Tal incumprimento gerava uma nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal (CPP), subsidiariamente aplicável; 2. Falta de Descrição dos Elementos Subjetivos da Contraordenação Tanto a decisão administrativa como o auto de notícia são omissos relativamente aos elementos subjetivos da infração (dolo ou negligência) no que se reporta à conduta dos seus funcionários, não se descrevendo o conhecimento destes, a sua vontade e a consciência das circunstâncias de facto que preenchem o ilícito objetivo; 3. Necessidade de Imputação Subjetiva a Pessoas Singulares (Pessoa Coletiva) Sendo a Arguida uma pessoa coletiva, a imputação, a si, da contraordenação, mesmo a título de negligência, exigia a demonstração dessa negligência por parte de uma ou mais pessoas singulares que actuassem em seu nome e interesse, sendo que nenhum representante legal da Visada foi identificado para avaliar a informação e formação dos funcionários; 4. Impossibilidade de Suprir a Falta de Elementos Subjetivos em Julgamento A omissão dos elementos subjetivos na acusação administrativa não pode ser suprida em sede de impugnação judicial, por analogia com o processo penal (artigo 358.º do CPP); 5. Vício de Conhecimento Oficioso A nulidade decorrente da falta de requisitos da decisão administrativa é um vício de conhecimento oficioso pelo tribunal, por analogia com o regime das irregularidades do processo penal (cf. artigo 380.º do CPP). Na sua tese, seria incongruente que irregularidades menores fossem de conhecimento oficioso e nulidades mais graves não o fossem; 6. Consequências da Nulidade: Arquivamento ou Remessa à Autoridade Administrativa Não tendo sido retirada a acusação administrativa (artigo 65.º-A do RGCO), a consequência da nulidade é o arquivamento dos autos por falta de objeto (artigo 64.º do RGCO). Subsidiariamente, deverá ser remetido o processo à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) para que profira nova decisão que inclua os factos concretos integradores dos elementos subjetivos da contraordenação. Temos, pois, que a Recorrente, condenada em 30/09/2024 no pagamento de uma coima no montante de 6.000,00€ por infração ao estabelecido no Decreto-Lei nº 156/2005 – artigos 3.º, n.º 1, alínea b) e 9.º, n.º 1, alínea a) – interpôs recurso da sentença, suscitando, aparentemente, duas questões: (1) nulidade da decisão administrativa e (2) nulidade da sentença. Na verdade, usando de maior incisão e precisão, verifica-se do pedido formulado no recurso (que é o espaço lógico que define em que termos a Recorrente quis realmente, formular a sua pretensão de reanálise do decidido) que a Impugnante o que quis verdadeiramente sustentar com expressão no que pediu foi que deveria ser revogada a sentença recorrida «por se verificar a nulidade da decisão administrativa», não perpassando para o pedido qualquer quer tese de nulidade autónoma da sentença com independência da pretensa invalidade da decisão administrativa. Apreciando o argumentário que esteou o recurso, importa começar por referir que o que podia ser objecto da impugnação judicial ora avaliada era a sentença proferida – cf. o disposto no n.º 1 do art. 73.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO). Não está sob avaliação a decisão administrativa. Quanto a esta, aliás, a Impugnante, ao recorrer em primeira instância, não pôs em crise a sua validade, não tendo tal matéria sido apreciada pelo Tribunal, pelo que não possui o menor sentido técnico o lançamento da discussão incidente sobre a temática sob referência «per saltum», sem prévia decisão da primeira instância. Em sede geral, não teria a menor sustentação jurídica e adequação a anulação do duplo grau de jurisdição por supressão do primeiro. Por assim ser, não podiam ser tema de recurso e não será, consequentemente, apreciado o constante dos pontos 1 a 4, inclusive, e 6, acima lançados. Relativamente ao ponto 5, o facto de não poder ser objecto de análise, na presente sede, qualquer pretenso vício da decisão administrativa, torna inócua a questão da eventual oficiosidade do conhecimento – leia-se, em primeira instância já que, no recurso, como se apontou, o que se conhece é, exclusivamente, a validade e adequação da sentença e não há, como se demonstrou, conhecimento incidente sobre a decisão administrativa, quer seja ele «ex officio» ou mediante alegação expressa. Já no que tange à sentença, faz sentido ponderar as alegadas fragilidades pretensamente emergentes da insuficiência dos componentes caracterizadores dos elementos subjectivos, focadas nas seguintes vertentes de alegação: 16) Na matéria facto considerada provada, nada se consigna quanto ao elemento volitivo ou consciência da ilicitude, relativamente às pessoas físicas, pois que, só estando preenchidos esses elementos subjetivos do tipo, é que, então, poderá existir a possibilidade de proceder à consequente imputação; 17) Nenhum representante legal, director ou superior hierárquico se encontra identificado, caso a imputação do facto ilícito pretendesse fazer decorrer a atuação dos funcionários de uma qualquer omissão quanto à informação e formação devida, naquele âmbito, aos colaboradores da empresa; 18) Não se encontram, pois, enunciados os elementos subjetivos do tipo, nas pessoas físicas concretas que atuaram na situação em apreço, o que, consequentemente, impede a imputação do ilícito contra-ordenacional à sociedade arguida; 19) Inexiste qualquer referência ou identificação de qualquer representante legal, diretor ou superior hierárquico, ao serviço da sociedade arguida, que permitisse aferir ou imputar alguma responsabilidade à infratora, relativamente à atuação dos seus funcionários; Tudo se centra, pois, na tese da Recorrente no sentido de que deviam concorrer em pessoas físicas concretas as noções e vontades exigíveis à Sociedade Arguida. Neste âmbito, analisados os factos provados, extraímos que foi identificada a funcionária interveniente BB, que a Recorrente não questionou ter actuado como sua agente. Quanto ao concurso dos elementos subjectivos na pessoa desta ou à exigência um nexo de causalidade entre a atuação da dita funcionárias e ordens superiores, não pode acompanhar-se a perspectiva da Arguida. É fundamental ter presente, neste âmbito, o muito importante e adequado (por ser inteiramente justo, equilibrado e lógico e não discrepar no cotejo com o Direito constituído) comentário de PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo (in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, Lisboa, 2017, página 48) ao n.º 2 do art. 7.º do RGCO que estabelece que «As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.», comentário esse com o teor do qual se extracta: Havendo uma relação de subordinação, a pessoa colocada em posição de superioridade é solidariamente responsável pela coima aplicada à pessoa colocada em posição subordinada. A única condição posta pela lei é a de o subordinado ter agido "por conta" da pessoa colocada em posição de superioridade, isto é, de ter agido no interesse desta. O fundamento da responsabilidade é este: a relação de subordinação tem inerente um poder de dar ordens ao subordinado, pelo que a pessoa colocada numa posição de superioridade responde pela coima mesmo quando não conheça nem possa conhecer o cometimento futuro da infracção pela pessoa colocada em posição de subordinado. A pessoa colocada numa posição de superioridade não responde pela coima quando tenha tomado as medidas necessárias para evitar o cometimento futuro de infracções pelo subordinado, sendo a infracção neste caso da exclusiva responsabilidade do subordinado (...). Não é suficiente que a pessoa colocada em posição de superioridade tenha recomendado aos agentes da infracção que fosse observada a lei (como pretendem LOPES DE SOUSA e SIMAS SANTOS, 2001: 93, anotação 8.a ao artigo 8.°). A mera "recomendação" fica aquém do poder da pessoa colocada em posição de superioridade. Esta deve dar as ordens objectivamente adequadas a evitar, numa perspectiva ex ante, o cometimento futuro de infracções. (…) Por exemplo, a pessoa colectiva é responsável pela infracção cometida por um seu trabalhador (...) Havendo uma relação de trabalho, o empregador é responsável pela infracção cometida pelo empregado no âmbito desta relação (…) O fundamento da responsabilidade é este: o empregado está sob a direcção do empregador, pelo que este responde pela contra-ordenação, mesmo que não conheça nem possa conhecer o cometimento da infracção pelo empregado. Esta regra representa uma extensão da regra geral do artigo16.°, n.° 1, do RGCO, que implica a responsabilidade do empregador e do empregado por facto cometido pelo empregado sempre que o empregador conheça ou deva conhecer o cometimento da infracção pelo empregado. O poder de direcção do empregador coloca-o na posição de poder previamente tomar as medidas necessárias para evitar o cometimento futuro de infracções pelos que lhe estão subordinados. Portanto, caso o empregador tenha tomado as medidas necessárias para fazer os empregados observar a lei e estes cometam infracções, o empregador fica desobrigado. A identificação da funcionária da recorrente à qual foi solicitado o livro de reclamações foi feita expressamente no ponto 3 dos factos provados, justamente porque tinha um relevo material e permitia fazer duas conexões: pela primeira, ficava-se a conhecer a identidade da pessoa singular que tinha actuado; pela segunda, através do vocábulo «funcionária» e da noção contextual sobretudo retirada dos factos n.ºs 3 e 9, colhia-se que essa cidadã agia na qualidade de funcionária da Arguida, qualidade essa na qual fez o atendimento da utente AA nas instalações daquela. Porém, a Recorrente também exige um nexo de causalidade entre a atuação funcional e eventuais ordens superiores. Olvida a Arguida que, no Direito de mera ordenação social, a pessoa coletiva assume culpa própria, sem necessidade da concorrente imputação individual dos factos a pessoas físicas, devendo assumir contornos alargados e muito abrangentes a noção de órgãos em exercício de funções subjacente ao n.º 2 do art. 7.º do RGCO por forma a englobar todos os que actuem como «longa manus» ou agentes de acção no mundo físico de uma pessoa colectiva sujeita a deveres de conduta de emanação normativa que, sob protecção coactiva do Direito de mera ordenação social, sejam tributários de finalidades pré-assumidas pelo legislador tuteladas através da imposição de coimas a quem quer que os viole e qualquer que seja o meio ou a intermediação usada. No n.º 2 do art. 7.º, ao responsabilizar-se também as pessoas colectivas, está-se, necessariamente, a pressupor a intervenção física de pessoas singulares num quadro que àquelas vincule e lhes seja atribuível, atenta a sua imaterialidade ontológica, sem que isso pressuponha, necessariamente, a responsabilidade subjectiva individual dessas pessoas singulares. Neste âmbito, revela acerto e adequação ao Direito constituído o referido no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2022 (Processo nº 664/21.1Y4LSB.L1-5), invocado pelo Ministério Público na sua resposta às alegações de recurso, nos seguintes termos: Contrariamente ao Código Penal que exige no art.11 um facto individual de conexão entre quem age e a pessoa coletiva (em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança, ou por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem), o art.7, do Regime Jurídico das contraordenações não faz referência a tal conexão, sendo as pessoas coletivas e as pessoas singulares colocadas em posição de igualdade: ambas são indiferenciadamente destinatárias das normas que tipificam contraordenações e das coimas nelas cominadas. (..) No regime contraordenacional é admissível a imputação de um facto à pessoa coletiva sem que seja necessária a ocorrência de uma transferência da culpa e da ação dos agentes individuais para a pessoa jurídica pois esta, ao nível das contraordenações, possui culpa própria. Flui do exposto que, nos contornos que assume no presente processo, a questão apreciada tem grande simplicidade e não merece mais detalhadas considerações. É, pois, negativa a resposta que se dá à pergunta colocada sob processo de resolução nesta parte da presente decisão. III. DECISÃO Pelo exposto, julgamos improcedente o recurso e, em consequência, negando-lhe provimento, confirmamos a sentença impugnada. Custas pela Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. * Lisboa, 02.05.2025 Carlos M. G. de Melo Marinho Armando M. da Luz Cordeiro José Paulo Abrantes Registo |