Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1363/19.0T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: ACÇÃO DECLARATIVA
CONTRATO-PROMESSA
PROMITENTE INSOLVENTE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
IMPOSSIBILIDADE ORIGINÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade - art. 663.º, n.º 7, do C.P.C.)

1. A impossibilidade originaria da lide ocorre quando se verificam circunstâncias que, de todo, inviabilizam o pedido, não em termos da sua procedência, pois, em tal caso estaríamos no âmbito do mérito da causa, mas por razões que se prendem com impossibilidade adjetiva de o objetivo pretendido ser alcançado através da concreta ação instaurada, por apenas o poder ser através de outro meio, fora, portanto, do esquema da providência pretendida.
2. Constitui uma exceção dilatória inominada, determinante da absolvição do réu da instância, a situação em que uma ação se apresenta originariamente inadequada para o autor alcançar os objetivos com ela pretendidos.
3. O CIRE disponibiliza um processo para reconhecimento e impugnação de créditos reconhecidos, o que, no entanto, não significa que os créditos não possam, ou não tenham até, que ser reconhecidos em processo autónomo, nomeadamente quando não se trata de créditos comuns, em particular com origem na responsabilidade civil.
4. A natureza célere e urgente do processo de insolvência é incompatível com a tramitação e a necessária ponderação de direitos litigiosos complexos ou especializados, sob pena:
- de o processo de insolvência se transformar num emaranhado de processos, colidindo com a natureza urgente do processo de insolvência e prejudicando a satisfação dos credores, finalidade daquele processo;
- de serem atropelados e prejudicados os direitos dos credores, ou a própria defesa do devedor insolvente, com prejuízo para a justiça e violação do princípio constitucional de um processo justo e equitativo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
Maria instaurou a presente ação declarativa, que classifica como de sub-rogação, sob a forma de processo comum, contra Massa Insolvente de “TCC, , Lda.”, e Massa Insolvente de “MMCC, Lda.”, alegando, em suma, que no dia 8 de maio de 2007, entre a “TCC” e a “MMCC” foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda pelo qual esta declarou prometer vender àquela, que declarou prometer comprar-lhe, várias frações autónomas que constituem os blocos habitacionais A a E, sitos em ____, nos quais se incluía a fração autónoma designada pela letra “U”.
A “MMCC” foi declarada insolvente, não tendo, em consequência desse facto, sido celebrado o contrato prometido.
Sucede que no dia 22 de julho de 2009, entre a “TCC” e a autora foi celebrado um contrato-promessa de permuta, pelo qual aquela declarou transmitir para esta a propriedade da referida fração “U”.
Sucede que também a “TCC” foi posteriormente declarada insolvente.
Nenhum dos referidos contratos-promessa foi, por isso, cumprido.
A Massa Insolvente da “TCC” é, por via do contrato-promessa celebrado em 8 de maio de 2007, «titular de um direito de conteúdo patrimonial sobre a Massa Insolvente da “MMCC, Lda.”» e a autora é, por via contrato-promessa celebrado em 22 de junho de 2009, «titular de um direito de conteúdo patrimonial sobre a Massa Insolvente da “TCC, Lda.”»
A autora conclui pugnando para que:
1. seja «reconhecido à Autora o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre esta e a “TCC, Lda” em 22 de Julho de 2009»;
2. seja «reconhecido à Massa Insolvente de “TCC, Lda”, o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a “TCC, Lda” e a sociedade “MMCC, Lda.”, em 8 de Maio de 2007, relativamente à identificada fração “U”»;
3. se reconheça estarem «reunidos todos os requisitos legais para a presente ação sub rogatória e, por via desta:
a) Condenar-se a Massa Insolvente de “MMCC, Lda” e a Massa Insolvente de “TCC, Lda” a cumprirem o contrato de promessa de compra e venda entre ambas celebrado em 8 de Maio de 2007, na parte que respeita à fração autónoma designada pela letra “U”;
b) Condenar-se ainda e por fim a Massa Insolvente de “TCC, Lda” a cumprir nos seus precisos termos o contrato promessa de compra e venda que celebrou com a Autora em 22 de Julho de 2009, vendendo a esta a mencionada fração “U”, livre de ónus e encargos, e recebendo em contrapartida o remanescente do preço, tudo nos termos do supra identificado contrato promessa.»
*
A ré Massa Insolvente de “MMCC, Lda.”, contestou, começando por arguir a nulidade da sua citação para os termos da ação.
Além disso, argui:
- a exceção dilatória consistente na incompetência material do tribunal, considerando ser «competente para preparar e julgar a acção, em razão da matéria, a Secção de Comércio onde se encontra pendente o processo de insolvência» da MMCC;
- a exceção perentória consistente na caducidade do direito de ação.
Além disso alega que se extinguiu, por desistência, o direito que a autora pretende fazer valer através desta ação.
No mais, impugna a factualidade alegada pela autora na petição inicial.
Conclui assim a contestação:
«São termos em que (...) deve a presente contestação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
- ser decretada a nulidade da citação e ordenada a junção aos autos dos documentos 2 e 3 em condições de legibilidade ou, quando assim não se entenda, mas tão só por mera cautela de patrocínio;
- julgar-se procedente a excepção de incompetência absoluta supra invocada, absolvendo-se a R. da instância;
- julgar-se procedente as demais excepções invocadas, absolvendo-se a R. do pedido, ou, quando assim não se entenda, mas tão só por mera cautela de patrocínio;
- julgar-se a acção improcedente, nos termos supra expostos, por não provada;
tudo com as legais consequências.»
Imediatamente após a apresentação da contestação pela Massa Insolvente da MMCC, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho:
«Dada a simplicidade da matéria sob apreciação, dispenso a abertura do contraditório, para o seu conhecimento – cfr. artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. 
*
A A (...) demandou:
Massa Insolvente de “TCC, Lda. e Massa Insolvente de “MMCC, Lda., 
tendo formulado os seguintes pedidos: 
“(…) 
1. Ser reconhecido à Autora o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre esta e a “TCC, Lda” em 22 de Julho de 2009;
2. Ser reconhecido à Massa Insolvente de “TCC, Lda”, o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a “TCC, Lda” e a sociedade “MMCC, Lda.”, em 8 de Maio de 2007, relativamente à identificada fração “U”;
3. Reconhecerem-se reunidos todos os requisitos legais para a presente ação sub rogatória e, por via desta:
a) Condenar-se a Massa Insolvente de “MMCC, Lda” e a Massa Insolvente de “TCC, Lda” a cumprirem o contrato de promessa de compra e venda entre ambas celebrado em 8 de Maio de 2007, na parte que respeita à fração autónoma designada pela letra “U” (…)”. 
Citada, a 1.ª Requerida contestou.  
Vejamos. 
Dispõe o artigo 90.º do CIRE que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos daquele Código, durante a pendência do processo de insolvência.  
E bem se compreende que assim seja, na medida em que naqueles autos, por força da declaração de insolvência, ocorre a apreensão de bens e direitos de crédito, o reconhecimento e graduação dos créditos do insolvente, a liquidação do património e a distribuição do saldo apurado, após elaboração rateio final, que atentará ao decidido na graduação de créditos, a qual constitui o meio e local próprio para o seu reconhecimento.  
Aliás, as operações de reconhecimento de créditos, graduação, apreensão de bens e documentos, liquidação e rateio são conduzidas pelo Administrador de Insolvência, que se sujeita às normas de processo aplicáveis àquele processo especial e à fiscalização do juiz do processo de insolvência (cfr. artigos 55.º e 58.º do CIRE).   
Assim sendo, é manifesto que quaisquer pedidos que o Credor pretenda deduzir contra insolventes se terão que dirigir aos autos em que se realiza a execução universal do património do Insolvente (cfr. artigo 1.º do CIRE).  
Só assim se garante que o Credor se sujeite aos prazos e regulamentação aí previstas, bem como ao contraditório dos demais credores reclamantes e do próprio insolvente (uma vez que apenas no âmbito daquele processo de insolvência aquele assume capacidade processual passiva autónoma da que é confiada ao administrador, por força da própria declaração de insolvência).  
Em suma, a dedução da sua pretensão perante os autos de insolvência constitui um ónus imposto ao Credor da Insolvência, que tem por razão de ser, entre outros, o Princípio “par conditio creditorum”, isto é, de que perante uma situação de insolvência os Credores devem ser tratados de forma igual. 
Pelos fundamentos expostos, haverá que concluir, como se conclui, que:
- estando em causa a pretensão de reconhecimento de direitos formulada contra uma massa insolvente, impõe o artigo 90.º do CIRE que a mesma seja formulada e apreciada nos autos de Insolvência;
- o presente Tribunal não pode, por essa razão, em acção autónoma dos Autos de Insolvência, decidir sobre os pedidos formulados contra dois patrimónios autónomos, em processos de execução universal, uma vez que aqueles absorvem a competência para a apreciação das questões que interessam às insolvências, como sejam a manutenção, cumprimento ou reconhecimento de incumprimento de contratos e direitos de crédito; 
- tendo sido deduzida acção contra massas insolventes, impõe-se que a impossibilidade originária verificada constitui uma excepção dilatória inominada, que determina a absolvição da instância e a consequente extinção dos autos (cfr. artigo 278.º, n.º1, al. e) do Código de Processo Civil).    
Pelos fundamentos expostos, absolvo as Requeridas da instância e declaro cessados os autos, nos termos e para os efeitos da aplicação conjugada dos artigos 576º, n.ºs 1 e 2, 577º e 278.º, n.º1, al. e), do Código de Processo Civil e 90.º do CIRE.  
(...).»
 *
A autora não se conformou com tal decisão, pelo que interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. Com a presente acção a Recorrente, na qualidade de credora de “TCC, Lda”, pretende subrogar-se no direito de conteúdo patrimonial que a Massa Insolvente daquela firma detém na Massa Insolvente da sociedade “MMCC, Lda”, por força do contrato promessa de compra e venda celebrado entre, por um lado, aquelas duas entidades (TCC e MMCC) em 8 de Maio de 2007 e, por outro lado, a Recorrente e a firma TCC, em 22 de Julho de 2009, relativamente à fração autónoma designada pela letra “U”, adiante melhor identificada.
2. O Tribunal recorrido, recusando apreciar a questão trazida pela Recorrente, decide-se pela (sua) incompetência em razão da matéria nos seguintes termos:
a) “… quaisquer pedidos que o credor pretenda deduzir contra insolventes se terão que dirigir aos autos em que se realiza a execução universal do património do insolvente …” (vide pág. 2, penúltimo parágrafo, da douta sentença);
b) Pela razão supra, o Tribunal não pode em ação autónoma dos autos de insolvência, decidir sobre os pedidos formulados contra dois patrimónios autónomos, em processos de execução universal, uma vez que aqueles absorvem a competência para a apreciação das questões que interessam às insolvências, como sejam a manutenção, cumprimento ou reconhecimento de incumprimento de contratos e direitos de crédito” (vide pág. 3, da douta sentença).
3. Sucede porém que a Recorrente é credora da firma “TCC”, mas não é credora da firma “MMCC”, entretanto declarada insolvente. 
4. Pelo não pode lançar mão do art.º 90 do CIRE, nem tão pouco do artigo 128.º e 146.º do mesmo diploma legal.
5. Não tem a Recorrente, na verdade, qualquer fundamento legal para reclamar no processo de insolvência de “MMCC” o cumprimento do direito de conteúdo patrimonial que detém sobre a “TCC”.
6. A Recorrente não é credora da insolvente “MMCC” e, mesmo que fosse, nunca poderia ter recorrido ao Tribunal de comercio onde corre termos a insolvência de “MMCC” por incompatibilidade dos prazos consignados no CIRE para a reclamação de créditos e o prazo (de um ano) para o cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a Recorrente e a “TCC”. 
7. Não pode igualmente a Recorrente reclamar da massa insolvente de “TCC” mais do que efetivamente reclamou, ou seja, o reconhecimento do seu crédito, mas não pode aí reclamar a entrega da fração “U”, porquanto este imóvel não faz parte do acervo patrimonial da massa insolvente da “TCC”. 
8. Está a recorrente em crer que os presentes autos constituem a única via possível para ver julgada a questão submetida a juízo e aí fazer valer os seus direitos.
9. Ao julgar-se incompetente em razão da matéria, indicando como único caminho possível o processo de insolvência da “MMCC”, o Tribunal recorrido acaba por impossibilitar à Recorrente a apreciação judicial dos direitos de que se arroga nos presentes autos.
10. Na verdade e em modesta opinião da ora Recorrente, inexiste qualquer outra via possível, com excepção dos presentes autos, para a apreciação judicial da questão colocada em juízo.
11.  A douta sentença sob recurso viola os seguintes dispositivos legais:
- Artigos 40.º, 79.º, 80.º e 128.º da Lei 62/ 2013 de 26 de Agosto
- Artigos 90.º, 128.º e 146.º do CIRE
- Art.º 20 da Constituição da República Portuguesa.
 Nestes termos e nos mais que V.Ex.as, Venerandos Desembargadores, necessariamente suprirão, deve a douta sentença ser substituída por outra que reconheça a legitimidade do Tribunal Recorrido para apreciar os presentes autos, seguindo-se os ulteriores termos.»
*
A Massa Insolvente da “MMCC” contra-alegou, não tendo, no entanto, apresentado conclusões.
***
II - ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, neste recurso importa decidir se ocorre a exceção dilatória inominada consistente na inadequação originária da presente ação para a autora alcançar os objetivos com ela pretendidos, por ser obrigatoriamente adequado o “ambiente” do processo insolvencial à luz do disposto no art. 90.º do CIRE.
***
III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de direito:
A factualidade relevante para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório supra.
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3.2 - Enquadramento Jurídico:
Antes de mais cumpre referir não ser justificável, na situação sub judice, em que a «matéria sob apreciação» está longe de apresentar a «simplicidade» a que o tribunal a quo alude, a dispensa de «abertura do contraditório», nos termos do art. 3.º, n.º 3, do C.P.C.
Impunha-se, por isso, que a senhora juíza a quo, antes de decidir como decidiu, começasse por ouvir as partes, dando-lhes a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da «impossibilidade originária da lide» que, no seu entender, «constitui uma exceção dilatória inominada, que determina a absolvição da instância e a consequente extinção dos autos.» 
Não foi, no entanto, esse o procedimento adotado pelo tribunal a quo.
Dispõe o art. 277.º, al. e), do C.P.C., que «a instância extingue-se com (...) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.»
A impossibilidade originaria da lide ocorre quando se verificam circunstâncias que inviabilizam o pedido, não em termos de procedência ou de mérito, mas por razões relacionadas com o facto de o mesmo não poder ser atingido através da ação instaurada, mas através de outro meio.
Por outras palavras, a lide é originariamente impossível quando se verificam circunstâncias que, de todo, inviabilizam o(s) pedido(s), não em termos da sua procedência, pois, em tal caso estaríamos no âmbito do mérito da causa, mas por razões que se prendem com impossibilidade adjetiva de o objetivo pretendido ser alcançado através da concreta ação instaurada, por apenas o poder ser através de outro meio, fora, portanto, do esquema da providência pretendida[1].
No caso concreto, o que a senhora juíza a quo fez, ao fim e ao cabo, foi considerar, à luz do chamado princípio da universalidade ou da plenitude do procedimento insolvencial, a presente ação originariamente inadequada para a autora alcançar os objetivos com ela pretendidos, face ao estatuído no art. 90.º do CIRE, que impõe o tribunal que titula o processo de insolvência como o único competente para os credores desta exercerem os respetivos direitos.
A verificar-se uma tal situação, ela teria, efetivamente, de ser tratada como uma exceção dilatória inominada, convocando-se, por isso, o disposto nos arts. 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, n.º 1, do C.P.C., e absolvendo-se as rés da instância[2].
Foi o que o fez a decisão recorrida.
No entanto, atentos os contornos do caso concreto, não pode concordar-se com uma tal decisão.
Dispõe o artigo 1º do CIRE que «o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e repartição do produto obtido pelos credores.»
Resulta do art. 91º que uma vez declarada a insolvência, vencem-se imediatamente todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva e abre-se a fase de convocação de credores e a respetiva reclamação de créditos, dentro do prazo fixado na sentença.
Decorre dos arts. 47º, nº 1 e 128º, nº 1, que essa reclamação tem um caráter universal, abrangendo todos os créditos existentes à data da declaração de insolvência, independentemente da natureza e fundamento do crédito e da qualidade do credor.
No tocante ao exercício dos créditos sobre a insolvência, estatui o art. 90º, nº 1 que «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência», sendo que este procedimento consubstancia um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores, de onde resulta que os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos nos termos do artigo 128º e dentro do prazo fixado na sentença que declarara a insolvência.
É sabido que:
- o credor que já tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento – art. 128º, nº 3;
- a autora reclamou e viu serem-lhe reconhecidos créditos no âmbito do processo de insolvência da “TCC”;
- uma sentença proferida na ação declarativa de condenação, jamais poderá ser dada à execução para cumprimento coercivo, pois que, à luz do disposto no art. 88º, nº 1, «a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores de insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência.»
Não se desconhece, igualmente, que o S.T.J., no AUJ nº 1/2014, publicado no DR nº 39, de 25/09,  decidiu que «transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287º do Cód. Proc. Civil.[3]
Acontece que, no caso concreto, tal como a autora estrutura a petição inicial, somos confrontados com uma situação que não se enquadra na previsão dos mencionados normativos do CIRE, nomeadamente do seu art. 90.º, acima transcrito.
O art. 90.º é um corolário natural do processo de insolvência, como processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação dos credores, ou, quando tal não se afigure possível, a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1.º)[4].
Tal como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, «na verdade, o art.º 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos “em conformidade com os preceitos do presente Código”. Daqui resulta que têm de os exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.
É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como o caracteriza o art.º 1.º do Código.
Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (cfr. art.º 98.º, n.º 3; vd., também, o n.º 2 do art.º 87.º).»[5].
Segundo António Pereira de Almeida, «se no processo de insolvência se vai liquidar o património do devedor insolvente e repartir o produto obtido pelos credores, é necessário que estes sejam contemplados e graduados nesse processo, sob pena de nada poderem vir a receber depois de executado o património.
Mas, isto apenas significa que os credores têm de ser contemplados e graduados num processo de insolvência, mesmo que já tenham o seu crédito reconhecido por sentença transitada (art.º 128.º, n.º 3).
Para os créditos serem contemplados no processo de insolvência têm naturalmente de ser reclamados (art.º 128.º) e, para serem reconhecidos no processo de insolvência, não é necessário uma sentença com trânsito em julgado.
O CIRE disponibiliza um processo para reconhecimento e impugnação de créditos reconhecidos (art.º 129.º e segs.).
Mas, isto não significa que os créditos não possam - ou não tenham - que ser reconhecidos em processo autónomo, nomeadamente quando não se trata de créditos comuns, em particular com origem na responsabilidade civil.
A natureza célere e urgente do processo de insolvência é incompatível com a tramitação e a necessária ponderação de direitos litigiosos complexos ou especializados.
Assim, ou o processo de insolvência se transforma num emaranhar de processos, que colidiriam necessariamente com a natureza urgente do processo de insolvência (art.ºs 8.º e 9.º) e prejudicaria a satisfação dos credores, que é a finalidade do processo, ou seriam atropelados e prejudicados os direitos dos credores - ou a própria defesa do devedor insolvente - com prejuízo para a justiça e violação do princípio constitucional de um processo justo e equitativo (art.º 20.º da Constituição)[6].
No caso concreto, a autora alega que:
a) No dia 8 de maio de 2007, a “MMCC” prometeu vender à “TCC”, que prometeu comprar-lhe várias frações autónomas que constituem os blocos habitacionais A a E, sitos em ____, nos quais se inclua a fração autónoma designada pela letra “U”;
b) A “MMCC” foi declarada insolvente sem que aquele contrato-promessa tivesse sido cumprido;
c) No dia 22 de julho de 2009, entre a “TCC” e a autora foi celebrado um contrato-promessa de permuta, pelo qual aquela declarou transmitir para esta a propriedade da referida fração “U”;
d) A “TCC” foi declarada insolvente sem que aquele contrato-promessa tivesse sido cumprido;
Parente isto, a autora pede:
i) que lhe seja reconhecido «o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre esta e a “TCC, Lda” em 22 de Julho de 2009»;
ii) que seja «reconhecido à Massa Insolvente de “TCC, Lda”, o direito de conteúdo patrimonial consistente no direito ao cumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a “TCC, Lda” e a sociedade “MMCC, Lda.”, em 8 de Maio de 2007, relativamente à identificada fração “U”.»
iii) que sejam considerados «reunidos todos os requisitos legais para a presente ação sub rogatória e, por via desta»:
a) que se condenem «a Massa Insolvente de “MMCC, Lda” e a Massa Insolvente de “TCC, Lda” a cumprirem o contrato de promessa de compra e venda entre ambas celebrado em 8 de Maio de 2007, na parte que respeita à fração autónoma designada pela letra “U”»;
b) que se condene «ainda e por fim a Massa Insolvente de “TCC, Lda” a cumprir nos seus precisos termos o contrato promessa de compra e venda que celebrou com a Autora em 22 de Julho de 2009, vendendo a esta a mencionada fração “U”, livre de ónus e encargos, e recebendo em contrapartida o remanescente do preço, tudo nos termos do supra identificado contrato promessa».
Perante isto, parece evidente, salvo o devido respeito, que não pode pura e simplesmente:
- chamar-se à colação o referido princípio da universalidade ou da plenitude do processo de insolvência;
- convocar-se o art. 90.º; e,
por via disso, julgar-se verificada a mencionada exceção dilatória e, por conseguinte, absolver-se «as Requeridas da instância», declarando-se «cessados os autos, nos termos e para os efeitos da aplicação dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º e 278.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil e 90.º do CIRE.»
A situação sub judice, independentemente de à autora assistir ou não o(s) direito(s) de que se arroga, pois isso prende-se com o mérito da causa e não é, de todo, o que está aqui em apreciação - o que está aqui e agora em equação é apenas e só saber se a presente ação é, ou não, originariamente inadequada para a autora alcançar os objetivos com ela pretendidos, por ser obrigatoriamente adequado o ambiente do processo insolvencial -, não cabe na previsão do art. 90.º:
É que:
- nem a autora é, presentemente, credora ou titular de qualquer direito sobre a “Massa Insolvente da MMCC”, pelo que não lhe pode ser imposta a instauração da ação em conformidade com os preceitos do CIRE, no âmbito do processo de insolvência da MMCC;
- nem a fração “U” alguma vez fez parte do património da “TCC”, pelo que não se trata de um elemento patrimonial a cuja liquidação se deva proceder no âmbito do processo que a declarou insolvente, com a consequente repartição do produto obtido pelos respetivos credores.
Termos em que, não sendo aplicável ao caso concreto o disposto no art. 90.º do CIRE, não pode subsistir a decisão recorrida.
***
IV - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, em consequência do que revogam a decisão recorrida, a qual deve ser substituída que determine a subsequente tramitação do processo.
Sem custas.

Lisboa, 7 de janeiro de 2020
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[1] Cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, p. 546, e Alberto dos Reis, Comentário aos Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 1946, pp. 366-373.
[2] Cfr. neste sentido o Ac. da R.G. de 15.03.2018, Proc. n.º 632/17.8T8GMR.G1, in www.dgsi.pt.
[3] Reporta-se ao CPC/95-96.
[4] Cfr. António Pereira de Almeida, Efeitos do processo de insolvência nas acções declarativas, in Revista de Direito Comercial, 2017, p. 147, acessível na internet em www.revistadedireitocomercial.com.
[5] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, p. 437.
[6] Ob. cit., pp. 147-148.