Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
776/23.7PGCSC-A.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
PERIGOS
VIOLAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: As medidas de coacção não são antecipações de pena.
Para que qualquer medida para além do TIR seja decretada é mister que se afirmem a existência de um qualquer perigo referido no artº 204ª do C.P.P.
Tal afirmação passa pela indicação, em concreto, de qual o perigo e de cimo este se manifesta no caso em análise.
Não constitui um perigo válido para efeitos do artº 204º do C.P.P. a constatação de generalidades como, por exemplo, o arguido pode fugir ou pode importunar a vítima.
Tais circunstâncias existem sempre: o necessário é demonstrar, com base em provas ou indícios, que tais perigos com elevado grau de certeza se podem materializar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
RP, arguido nos presentes autos apresenta-se perante este Tribunal da Relação a recorrer do despacho proferido pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Cascais do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste o qual determinou a sua prisão preventiva à ordem dos autos de inquérito autuados sob o Processo n.º 776/23.7PGCSC, que correm termos na 1.ª Secção do D.I.A.P. de Cascais, formulando para o efeito, após motivações, as seguintes conclusões:
“1.ª Sucedeu que, salvo o devido respeito, no douto despacho ora recorrido, o Tribunal a quo não levou em linha de conta todos os indícios constantes dos autos que militam em favor do Recorrente, nem considerou a justeza das alegações e razões aduzidas pelo Recorrente na diligência de aplicação de medida de coacção.
2.ª As informações resultantes dos elementos médicos constantes dos autos (cf. fls. 23, 24, 136 e 137), nos quais a Denunciante referiu em 28/08/2023 ter sido apenas objecto de tentativa de violação vaginal com a mão (trauma genital manual), demonstram não existirem alterações na vulva e na vagina da Denunciante, confirmadas pela ausência de perda hemática, não tendo sido realizada observação médica da região anal da Denunciante por esta não ter apresentado queixas neste local.
3.ª No entanto, nos depoimentos prestados pela Denunciante em 29/08/2023 (cf. fls. 3 a 8) esta já veio referir ter sido objecto de efectiva penetração vaginal com a mão, e não apenas de tentativa, o que já não se coaduna com a ausência de lesões vaginais medicamente verificada na Denunciante, muito menos com o tipo de lesões corporais que teriam necessariamente de ser observadas na Denunciante caso o Recorrente a tivesse penetrado com todos os dedos da mão e com violência, conforme a Denunciante posteriormente depôs ter sucedido.
4.ª Nos mesmo exames médicos são referidas lesões corporais em diversas zonas do corpo da Denunciante, porém não nas pernas nem nos tornozelos da mesma, o que não é conforme com a utilização da corda nos termos em que a Denunciante referiu nos citados depoimentos e donde resulta que esta não terá sido amarrada nos termos em que descreveu, nem impossibilitada de se defender ou movimentar, como efectivamente se movimentou, conforme descreveu nos seus depoimentos.
5.ª Actualmente não constam dos autos outros indícios criminais imputáveis ao Recorrente ocorridos em quaisquer outras datas, tendo o depoimento da Denunciante a respeito dos mesmos vindo a alterar-se no sentido de agravar as imputações ao Recorrente, mesmo em contradição com as observações médicas directamente realizadas à Denunciante no dia seguinte à data dos alegados factos.
6.ª Justificando-se assim a substituição do douto despacho recorrido do Tribunal a quo que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao Recorrente por outro que aplique medida de coacção não privativa da liberdade, como as medidas de coacção de afastamento da Denunciante com recurso a meios electrónicos de fiscalização, ou de obrigação de permanência na habitação.
7.ª No período subsequente à data dos alegados factos imputados ao Recorrente (27/09/2023) não existiram contactos entre este e a Denunciante, nem pessoalmente ou por interposta pessoa, nem por meios de comunicação à distância, como o telemóvel, o email e as redes sociais, tendo a própria Denunciante reconhecido no aditamento n.º 5, de 09/09/2023 (cf. fls. 91), que desde 28/08/2023 não tinha tido mais nenhum contacto com o Recorrente.
8.ª As mensagens juntas aos autos pela Denunciante em 09/09/2023, por email e em pen-drive, não se encontram datadas nem escritas em língua portuguesa, acrescendo ainda os respectivos autores não se encontrarem identificados nas mesmas.
9.ª Todas as fotografias constantes dos autos se encontrarem a preto e branco, e não a cores, o que impossibilita a efectiva apreensão do rigor cronológico que se exige na análise das lesões corporais delas constantes.
10.ª Não se podem considerar suficientemente indiciados nos autos o perigo de continuação da actividade da actividade criminosa nem o perigo de perturbação do inquérito pelo Recorrente, pois o este nunca teve a iniciativa de contactar a Denunciante após a data dos factos, nem para intimida-la ou para que esta alterasse o seu depoimento ou cessasse de o prestar nos autos, muito menos para praticar alegados actos criminais novos.
11.ª Não existem, assim, nos autos indícios de perigo concreto de continuação do crime ou perturbação do inquérito, bem ao contrário, os indícios que resultam dos autos, corroborados por depoimentos da Denunciante e pela testemunha, é que o recorrente não mais contactou com a Denunciante após 27/08/2023.
12.ª O Recorrente foi detido na sequência de emissão de mandado de detenção fora de flagrante delito (cf. fls. 54 e ss), na sequência de se apresentar voluntariamente na Esquadra da P.S.P. de Cascais, após ser contactado telefonicamente pelos O.P.C. com o pedido de que ali se apresentasse logo que terminasse de trabalhar (cf. fls. 58, 64, 69 e 70).
13.ª Antes de ser preventivamente preso o Recorrente encontrava-se a trabalhar, como recepcionista nocturno num hotel na Ericeira, e como comercial em empresa de rent-a-car, em Lisboa, auferindo rendimento mensal de cerca de € 1.500,00 (cf. pag. 7 do despacho recorrido), e a residir em habitação arrendada em São Domingos de Rana, concelho de Cascais.
14.ª Apesar de o Recorrente residir no concelho de Cascais antes de ser preventivamente preso, sempre mantém relação de proximidade com os respectivos pais, residentes em Albufeira, tendo os dias que antecederam a data dos factos imputados ao Recorrente, este e a Denunciante estado em casa dos pais do Recorrente, em Albufeira (cf. fls. 77 e ss).
15.ª A cuidada fundamentação do despacho que aplica a medida de coacção, v.g., de prisão preventiva, é absolutamente essencial para permitir o recurso, importando que os pressupostos legais de aplicação da medida sejam claramente indicados no despacho recorrido sob pena de se frustrar inteiramente a viabilidade do recurso.
16.ª O despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao Recorrente não se encontra suficientemente fundamentado, nem quanto aos pressupostos gerais da aplicação de medida de coacção, nem quanto aos pressupostos específicos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
17.ª O despacho que decretou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao Recorrente fundou-se no perigo de perturbação do inquérito, na vertente da aquisição e conservação da prova, no perigo de continuação da actividade criminosa e no perigo grave de perturbação da ordem e da tranquilidade pública, no entanto, nem se vislumbra no mesmo adequada e específica fundamentação dos perigos que aponta ao Recorrente, nem os indícios constantes dos sutos apontam inequivocamente nesse sentido.
18.ª Na tomada de decisão, o Tribunal a quo reconheceu que este perigo de fuga não existia, justamente por considerar que o Recorrente encontra-se integrado na comunidade em que está inserido, tanto do ponto de vista familiar como do ponto de vista profissional, bem como por o mesmo não se ter furtado à acção da justiça.
19.ª No entanto, já não considerou o respeito demonstrado pelo Recorrente à acção da justiça como relevante para afastar ou mitigar o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, na vertente da aquisição e conservação da prova, para efeito de aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, não sacrificando desproporcionadamente os direitos do recorrente, que deve ser presumido inocente até sentença em contrário transitada em julgado.
20.ª Dos autos constavam indícios que deviam ter militado a favor do recorrente no sentido de ao mesmo não ser aplicada medida de coacção privativa da liberdade, muito menos a cumprir em estabelecimento prisional, sendo neste caso suficiente a aplicação de medida de obrigação de permanência na habitação.
21.ª Para que se verifique o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova é exigida a concretização de um perigo concreto da sua efetivação, o que não foi identificado no despacho recorrido nem se encontra suficientemente indiciado nos autos, pelo contrário.
22.ª Teria que ser um perigo que efectivamente pudesse influir no decurso do inquérito, p. ex. através do contacto do Recorrente com a Denunciante, da eliminação de provas, bem como outros actos que influam na boa decisão da causa, o que não resulta concretamente indiciado nos autos, pelo contrário.
23.ª Não pode existir, neste particular, pelo Tribunal a quo uma presunção de perturbação do inquérito pelo recorrente, este perigo sempre teria que ser concretamente concretizado no despacho recorrido e não o foi.
24.ª Se após a aplicação pelo Tribunal a quo de medida de coacção menos gravosa, como a obrigação de permanência na habitação ou de afastamento da Denunciante com recurso a meios de fiscalização à distância, o Recorrente viesse a incumprir as referidas obrigações e a praticar actos criminais novos contra a Denunciante, então sim, seria de aplicar a medida de coacção mais gravosa, essa já de prisão preventiva.
25.ª Sendo possível, na generalidade dos casos, que o arguido desenvolva uma actividade no sentido de prejudicar a investigação, não bastava no despacho recorrido, porém, suscitar a mera probabilidade de que tal acontecesse, era necessário sempre, como também, relativamente aos demais pressupostos das medidas de coacção, que em concreto demonstrasse esse perigo pela ocorrência de factos que indiciassem a actuação do Recorrente com esse objectivo, bem como que não era possível com outras medidas obstar a essa perturbação.
26.ª No momento da aplicação da medida não existia perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública.
27.ª A lista de processos em que o recorrente é parte, junta pelo Ministério Público aos autos (cf. fls. 87), não tem correspondência no Certificado de Registo Criminal do Recorrente, que não tem antecedentes criminais registados (cf. fls. 73), e as peças de outro inquérito juntas aos autos pelo Ministério Público (cf. fls. 41 e 42) demonstram que o Recorrente, na qualidade de ofendido e de vítima, é pessoa cumpridora da ordem pública e que se sujeita ao cumprimento da legalidade.
28.ª Não devia o Tribunal a quo sustentar a gravidade dos crimes em causa quando os mesmos não encontram respaldo nos autos, concretamente nos exames médicos realizados à Denunciante, e quando esta veio a agravar no tempo as imputações dirigidas ao Recorrente, alterando o respectivo depoimento com essa finalidade.
29.ª O Tribunal a quo, ao apreciar o depoimento da testemunha MSS, que é vizinha (do apartamento ao lado …) da Denunciante (…) não devia ter descurado que, quando confrontada com o episódio descrito nos autos, respondeu que apesar de se encontrar em casa no dia em que o mesmo ocorreu não se apercebeu de qualquer conflito entre a Denunciante e o Recorrente.
30.ª Os próprios actos que a Denunciante imputou ao Recorrente e o modo como a mesma os veio a descrever nos autos, são praticamente impossíveis de ocorrer sem que os mesmos não causassem elevado ruído por parte dos intervenientes, seja pelos gritos imputados ao Recorrente, seja pela alegada dor sentida pela Denunciante (depois medicamente considerada moderada, com Score 5), que sempre se manifestaria de modo audível, o que efectivamente não sucedeu.
31.ª O Tribunal a quo não conferiu a devida consideração à possibilidade de sujeitar o Recorrente à medida de obrigação de permanência na habitação ou de afastamento da Denunciante, fiscalizada por meios à distância, sendo que esta seria suficientemente adequada e idónea a realizar as finalidades cautelares pretendidas de protecção da Denunciante e de impedir a perturbação o inquérito.
32.ª No despacho recorrido o Tribunal a quo limitou-se a dedicar breve parágrafo para afastar a aplicação preferencial da medida de obrigação de permanência na habitação, por a considerar insuficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se fazem sentir (cf. pág. 9 do despacho recorrido).
33.ª As exigências cautelares que o Tribunal a quo pretendia acautelar com a medida de prisão preventiva poderiam igualmente ser alcançadas com a sujeição do Recorrente à obrigação de permanência na habitação, porventura na casa dos respectivos pais, em Albufeira, sem assim descuidar os direitos da Denunciante e a protecção da investigação, nem causar desproporcionada e desnecessária restrição à aos direitos e à liberdade individual do Recorrente.
34.ª Não era exigível, no presente caso, nem necessário ou indispensável prender preventivamente o Recorrente para que fossem salvaguardadas as exigências acima referidas da Denunciante e da investigação.
35.ª As medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao Recorrente e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (cf. artigo 212.º, do CPP)
36.ª A subsidiariedade implica que, se no caso em concreto existirem outras medidas que se revelem mais adequadas e proporcionais à gravidade do crime pelo qual o Recorrente se encontra indiciado, devem essas medidas ser aplicadas em detrimento daquelas privativas da liberdade.
37.ª Dentro das medidas privativas da liberdade e sempre que esteja em causa a prisão preventiva e a obrigação de permanência da habitação, deve o juiz dar preferência ou supremacia da segunda sobre a primeira.
38.ª Extinguindo-se esses pressupostos ou exigências cautelares, as mesmas devem ser modificadas ou revogadas, sendo de rejeitar protelar-se a sua aplicação.
Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, requer a V. Ex.ªs se dignem receber o presente recurso e, a final, conceder provimento ao mesmo, revogando a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao Requerente ou substituindo-a por outra, como a obrigação de afastamento da Denunciante ou a obrigação de permanência na habitação, ambas com recurso a meios de fiscalização à distância, por serem adequadas e proporcionais às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, bem como adequadas à gravidade das imputações e à previsibilidade das sanções aplicáveis, com o que se fará a costumada JUSTIÇA!”
Ao assim recorrido respondeu o Ministério Público sustentando:
“1. O arguido RP, não se conformando com o douto despacho de 15.09.2023, exarado no inquérito à margem identificado, no qual a Mma. Juiz de Instrução que determinou que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, veio interpor recurso pugnando pela sua revogação.
2. Entende ainda que o Tribunal a quo não levou em linha de conta todos os indícios constantes dos autos que militam em favor do Recorrente, nem considerou a justeza das alegações e razões aduzidas pelo Recorrente na diligência de aplicação de medida de coacção.
3. No que respeita à questão levantada pelo recorrente de existirem discrepâncias nas declarações da ofendida que quando assistida nas urgências faz referencia a “tentativa de violação com a mão" e nos autos mencionar “efectiva penetração", consideramos necessário atentar que a concreta expressão utilizada pela vitima e que consta do seu auto de inquirição é “ … subiu para a cama e de um momento para o outro meteu os dedos de uma das mãos na sua vagina, de forma violenta, sem qualquer tipo de consentimento por parte desta(...)". Do despacho de apresentação de arguido detido consta, no ponto 17, “(...) meteu os dedos de uma das mãos na vagina da ofendida, de forma violenta e sem o seu consentimento." Ora as expressões “efectiva penetração" e “penetrou com todos os dedos da mão" são expressões utilizadas apenas pelo recorrente no âmbito do presente recurso e que, pese embora a semelhança, transmitem uma ideia que não corresponde ao que foi declarado pela ofendida e que aqui se pretende colocar em causa. (A menção a “todos os dedos" é feita por referência à introdução no ânus e não à vagina da vitima - ver ponto 27 do Auto de Primeiro Interrogatório)
4. Não tem necessariamente o mesmo valor aquilo que é declarado pela vitima perante a Autoridade Policial, advertida da obrigatoriedade de responder com verdade às perguntas formuladas, ou aquilo que é respondido (ou que é escrito pelo enfermeiro ou médico) num contexto de episódio de urgência num Hospital.
5. Quanto ao facto de não ter sido realizada observação médica da região anal da denunciante por esta não ter apresentado queixas neste local", dir-se-á apenas que tal poderá ter acontecido por nervosismo, por ansiedade ou até mesmo por pudor da ofendida em relatar o sucedido. O que é certo é que, quando a ofendida tinha que falar, perante OPC e sob dever de verdade, a mesma prestou declarações, descrevendo toda a situação vivenciada, incluindo que o arguido juntou “(...) todos os dedos de uma das mãos, introduzindo-os posteriormente no ânus da vitima".
6. Já no que respeita "às lesões corporais que teriam necessariamente de ser observadas", salvo o devido respeito, é uma consideração que está subtraída ao conhecimento do recorrente. Apenas um perito clinico poderia afirmar, se a factualidade aqui em causa determinaria “necessariamente" a existência ou não de lesões.
7. O depoimento da vitima não se alterou em momento algum, muito menos no sentido de agravar as imputações ao arguido, quando muito seria ao contrário, no caso de, como alega o recorrente, não ter sido feita referência à penetração anal aquando da observação clinica.
8. O facto do relatório medico não referir expressamente lesões nas pernas ou tornozelos, não significa necessariamente que a vitima não foi amarrada nos termos descritos. Pode apenas significar que a corda não foi apertada com a mesma força nessa zona, que a vitima não mexeu os pés porque “(...) caso fizesse algum tipo de movimento com os pés ou com as mãos, para se libertar, a corda apertar-lhe-ia o pescoço que durante a observação da vitima no hospital tais lesões não foram consideradas relevantes face a todo o cenário apresentado, ou simplesmente porque o profissional que fez o registo na aplicação informática entendeu que a referência “a hematomas e escoriações dispersas por todo o corpo" era suficiente.
9. Resulta do requerimento apresentado pela vitima em 06-09-2023 e que consta de fls. 28 dos autos (ref. 23983563) que as mensagens de WhatsApp juntas são as que a ofendida “recebeu do agressor, RP, após o ataque". Ora, sendo a data dos factos 27-09-2023, pelas 01.00h, e tendo sido as referidas mensagens recebidas /enviadas pelas 18:33h, em nada colide com a informação constante do aditamento n.º 5 referido supra. Dito de outra forma, as mensagens foram enviadas ainda no decurso do mesmo dia 27, logo, não voltou a ter contactos a partir do dia 28/08/2023!
10. Relativamente às fotografias constantes dos autos, diremos apenas que as referidas fotografias se encontram ‘a cores’ na pen junta aos autos e que só por não existirem outros meios no tribunal é que as mesmas se encontram impressas a preto e branco. Acrescenta- se ainda que as lesões corporais foram confirmadas “ao vivo e a cores” na observação clinica feita no Hospital, e resultam do respectivo relatório ao qual o recorrente se refere várias vezes na sua motivação, mas, ao que parece, utiliza apenas na parte que entende que lhe é favorável.
11. A “lista de processos” junta aos autos obviamente não tem nem poderia ter correspondência com o Certificado de Registo Criminal, pois corresponde à pesquisa de inquéritos em que o arguido é ou foi interveniente, no Ministério Publico, lá o Certificado de Registo Criminal contem o registo de condenações transitadas em julgado, após julgamento, fase processual distinta da primeira, como é evidente.
12. Quanto às “peças de outro inquérito” juntas pelo Ministério Publico, bastaria a leitura do Ponto 5 do despacho de 08-09-2023 para concluir que a sua junção aos autos possuiu o único objectivo de obter a morada do arguido, pois a ofendida não a conseguia indicar. E salvo o devido respeito não “demonstram que o recorrente, na qualidade de ofendido e de vitima é pessoa cumpridora da ordem publica e que se sujeita ao cumprimento da legalidade”, demonstram apenas que naquele NUIPC o arguido assume a qualidade de ofendido. Nada mais.
13. Nos presentes autos, é patente que o tribunal a quo fez uma correcta apreciação dos indícios e elementos de prova recolhidos, como transparece do exame crítico que fez dos mesmos, que não é arbitrário, nem contraditório.
14. Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o Ministério Público pugnou pela aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido, porquanto sopesados os elementos probatórios existentes nos autos e pelas razões ali melhor expostas concluiu que, em concreto, se evidenciavam pelo menos os perigos elencados no art.º 204.º  alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
15. No despacho recorrido entendeu a Meritíssima Juiz de Instrução a quo que se encontravam in casu verificados os perigos de perturbação do inquérito, perigo de continuação da actividade criminosa e perigo grave de perturbação da ordem e da tranquilidade pública.
16. Relativamente ao perigo de perturbação do decurso do inquérito, analisado o presente caso à luz das regras da experiência comum, verifica-se que estão reunidas e devidamente fundamentadas as condições concretas para se concluir que o acervo factual fornece indícios que suportam a existência de um perigo concreto de perturbação do inquérito, quer quanto aos elementos ainda a recolher em sede de investigação, quer quanto à conservação e veracidade do que já foi recolhido, em função do que se considera o fundamento previsto no artigo 204.°, alínea b), do Código de Processo Penal.
17. Do teor das mensagens juntas resulta claramente que o arguido tentou passar uma imagem de preocupação, pediu desculpas à ofendida por ter ido tão longe, dizendo-lhe ainda que nunca tal lhe tinha acontecido antes. Pede à ofendida que não tenha medo dele, que nunca a mataria. Que ainda têm coisas para resolver, que se quer encontrar pessoalmente com a vitima.
18. Naturalmente, fora do ambiente prisional, e atendendo ao teor das mensagens, o arguido facilmente retomaria, directamente ou por interposta pessoa, tais tentativas de contacto - “pois ainda têm coisas por resolver” - para se justificar, para pedir desculpas pelo sucedido e para, nessa sequência, tentar fazer com que a ofendida viesse a alterar o seu depoimento, favorecendo'0 ou desresponsabilizando-o pelos seus actos, obstando assim ao prosseguimento do processo penal.
19. Igualmente se evidencia no caso concreto, forte e intenso perigo de perturbação do decurso do inquérito por existirem elementos que apontam no sentido que o arguido está muito longe de querer colaborar com a descoberta da verdade, o que ficou demonstrado, aliás, com a sua manifestação de vontade de não prestar quaisquer declarações ao Tribunal.
20. No que respeita à verificação do perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, consideramos que a obrigação de permanência na habitação, e muito menos uma medida de afastamento, não se revelariam adequadas, ainda que com recurso a meios de fiscalização à distância (porque manifestamente insuficientes), já que só com a aplicação de prisão preventiva, tal como determinado, se conseguirá que o arguido não contacte com a ofendida ou outras testemunhas do processo, o que não se logrará conseguir se o mesmo estiver em liberdade ou em obrigação de permanência na habitação, pois que não há meios que habilitem o processo a fazer tal controlo.
21. Como objectivamente resulta dos factos fortemente indiciados e que fundamentadamente motivaram a decisão recorrida, o arguido demonstrou séria dificuldade em controlar os seus impulsos violentos. A concreta conduta empreendida, pela gravidade que revela, deixa antever que perante um circunstancialismo semelhante, o arguido possa vir a reagir do mesmo modo. 
22. Atenta a elevada gravidade da concreta conduta ilícita indiciada, o comportamento globalmente adoptado, em si gerador de muita insegurança, bem como a ampla divulgação de acontecimentos como os dos autos, que chegam rapidamente ao conhecimento da generalidade da população, é normal e expectável que o alarme e a intranquilidade rapidamente se propaguem na comunidade e potenciem um grau acentuado de perturbação da paz social, o que, tudo conjugado, leva a concluir no sentido do perigo efectivo de, em liberdade, o arguido perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
23. A obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica confina o arguido ao espaço da sua casa, mas não limita a sua capacidade de exercer influência e pressão, designadamente sobre a vitima, uma vez que o arguido o pode fazer directamente através de contacto telefónico ou por intermédio de interposta pessoa, assim como também não atenua suficientemente o alarme social gerado pela prática dos factos, no concreto circunstancialismo que se indiciou, perante uma população que não entenderá como crimes tão graves possam não determinar a aplicação de uma medida de coacção de prisão preventiva, desacreditando-se assim a acção da justiça.
24. Mais grave seria caso a medida de coacção fosse de simples afastamento, ainda que com recurso a meios de fiscalização à distância, precisamente pelas mesmas razões.
25. Face aos crimes fortemente indiciados, o avultado perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, bem como as circunstâncias de facto acima enunciadas, apenas uma medida detentiva se revela proporcional, necessária e adequada ao caso concreto.
26. In casu, a decisão recorrida fez uma correcta apreciação dos indícios e elementos de prova recolhidos, como transparece do exame crítico que fez dos mesmos e não foi arbitrária, nem contraditória.
 27. Nos termos e com os fundamentos expendidos no despacho de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e dos que se verteram na presente resposta, considerando o disposto nos artigos 191.° a 193.º, 196.º, 202.º e 204.º, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, a Meritíssima Juiz de Instrução não podia deixar de aplicar a medida de coacção necessária, adequada e suficiente ao caso, e decretar a prisão preventiva ao recorrente.
28. Bem andou o Tribunal a quo, não merecendo o despacho recorrido qualquer reparo.
Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, ser confirmado o despacho recorrido.”
Os autos subiram a este Tribunal e nele o Ministério Público teve vista tendo lavrado parecer no sentido de ser confirmado o decidido pelas razões constantes da resposta.
Os autos foram à conferência.
*
II - Fundamentação
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artº 412º nº 1 do Código do Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Pretende o recorrente que nos presentes autos se conheça da:
a) Inexistência de indícios da prática dos factos (conclusões 1ª a 9ª, 29ª a 30ª)
b) Ausência de fundamentação do despacho, mormente dos perigos (conclusões 15ª a 17ª);
c) Inexistência dos perigos que permitam a aplicação de medida de coacção (conclusões 10ª,  18ª a 26ª)
d) Possibilidade ade aplicação de medida menos gravosa (conclusões 30ª a 36ª).
Vejamos, então o teor do despacho recorrido na parte que releva para a decisão a tomar.
Assim:
“Tendo em conta a globalidade dos elementos probatórios já carreados para os autos, concretamente os elencados na promoção do Mº. Pº. acima, considero fortemente indiciados os seguintes factos:
1. O arguido RP e KMH iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente apurada de Julho de 2023.
2. No dia 27-08-2023, quando eram cerca das 01:00h, RP e KMH regressaram a casa depois de um período de férias.
3. Durante a viagem, o arguido RP apresentou-se alterado, ingeriu diversas bebidas alcoólicas e exerceu uma condução agressiva, o que causou algum medo na vítima que, receando que algo de mal se pudesse passar, lhe pediu que se acalmasse, pois não era um comportamento usual do arguido.
4. Chegados à residência do arguido este mostrou-se completamente instável, o que levou a ofendida a dizer-lhe, ainda dentro da viatura, que preferia ir para a sua própria residência.
5. Apesar disso, o arguido RP pegou bruscamente nas chaves da viatura - pertencente à vítima - desferiu-lhe um “olhar de raiva” e entrou na sua residência, enquanto esta ficou no interior da viatura, apavorada e sem saber o que fazer.
6. Pouco depois RP regressou à viatura e reiniciou a marcha.
7. Depois de ter conduzido alguns metros RP imobilizou bruscamente a viatura e, sem que nada o fizesse prever, agarrou os cabelos da vitima e puxou-a na sua direcção, fazendo-a torcer e estalar o pescoço e embater com força na porta, com a zona temporal direita.
8. Nessa sequência, e para evitar que a vitima gritasse, RP largou os seus cabelos e passou a agarrá-la no pescoço, com força, enquanto com a outra mão lhe tapava a boca.
9. De seguida, deitou a vitima sobre o seu colo, com uma das mãos segurou-lhe cabeça para evitar que tivesse qualquer reacção e iniciou novamente a marcha da viatura.
10. Uma vez chegados à residência da ofendida, esta aproveitou o momento em que RP saiu da viatura para retirar a chave da ignição da viatura, porém o arguido reagiu de forma rápida e retirou-lhe imediatamente a chave da mão.
11. De seguida, RP encaminhou-se em direcção ao interior da residência para ir buscar os seus pertences e a ofendida seguiu-o, descalça e em estado de choque.
12. Já no interior da residência, RP agarrou a vitima pela nuca com uma das mãos e empurrou-a na escada para o piso superior, onde se localiza o quarto.
13. No quarto, RP largou a vitima, que ficou parada e sem reacção perante o que estava a acontecer, deslocou-se para a varanda do quarto, regou algumas plantas que ali se encontravam e salpicou a vitima com a agua, enquanto olhava para ela a sorrir.
14. De seguida, sem que nada o fizesse prever, num movimento rápido, RP aproximou-se da ofendida, baixou-lhe as calças e as cuecas, agarrou-a pela cintura e atirou-a para cima da cama.
15. Acto continuo, RP despiu as suas calças e cuecas e, gritando disse à ofendida, que estava encolhida junto à cabeceira da cama: "PORQUE QUISESTE VIR DO ALGARVE, QUERIAS SAIR COM AS TUAS AMIGAS, IR TER SEXO COM OUTROS GAJOS, COMSUMIR COCAINA E DESPOIS ABANDONAR-ME, EU NÃO TEM FIZ A VONTADE NO CARRO, EU ABRANDEI, PORQUE ME PRESSIONASTE, NÃO PUDES-TE FAZER DUAS COISAS AO MESMO TEMPO"
16. Depois, e durante cerca de 2 horas, o arguido continuou a falar com a ofendida, fazendo-lhe perguntas e questionando as respostas que aquela lhe dava.
17. De seguida, RP subiu para a cama e, sem que nada o previsse, meteu os dedos de uma das mãos, na vagina da ofendida, de forma violenta e sem o seu consentimento.
18. Nessa sequência, a vitima implorou-lhe que parasse e se acalmasse, porque a estava a magoar, porém RP disse-lhe, gritando, que não queria saber do que ela queria.
19. Pouco depois RP abandonou o quarto, altura em que a vítima aproveitou para ir buscar a chave, para trancar a porta do quarto.
20. Quando estava prestes a fechar a porta, RP regressou, retirou-lhe imediatamente a chave da mão e empurrou-a para cima da cama.
21. De seguida, RP virou-se em direcção à saída do quarto e a vitima aproveitou para fugir para o quarto de banho e tentar trancar a porta, o que não conseguiu fazer pois a fechadura estava danificada e por esse motivo o arguido voltou a agarrá-la e a arrastá-la para cima da cama, saído novamente do quarto.
22. Momentos depois RP regressou ao quarto, trazendo consigo uma corda para amarrar a ofendida.
23. Incrédula com tudo o que se estava a passar, a ofendida reagiu com todas as suas forças, pontapeando RP para o afastar. Contudo, este pegou-lhe nos pés, virou-a de barriga para baixo, atou-lhe os pés, colocou-lhe as mãos atrás das costas atando-as também e atou o pescoço, todo em volta, com a outra extremidade da corda, de maneira a que esta, caso fizesse algum tipo de movimento com os pés ou com as mãos, para se libertar, a corda apertar-lhe-ia o pescoço.
24. Enquanto estava a ser amarrada, a ofendida tentou conversar com RP, usando termos carinhosos como "AMOR, NÃO PRECISAMOS DE FAZER ISSO, POR FAVOR PARA ", de forma a demove-lo. Porém, o arguido respondeu-lhe " VOU-TE FODER NO CU, SEM OLEO PARA TE DOER, E DEPOIS VOU-TE FODER NA GARGANTA ".
25. Dada posição do corpo da vitima, e a pouca folga de corda entre as ataduras dos membros, esta alertou RP para o facto de não conseguir respirar, tendo este respondido " SE ESTAS A FALAR, CONSEGUES RESPIRAR ".
26. De seguida, RP apertou o pescoço da vitima com uma das mãos, e com a outra tapou-lhe o nariz, dizendo-lhe " ISTO É QUE, É NÃO RESPIRAR ", mantendo-se assim por alguns segundos, ao ponto de esta quase ficar inconsciente, tendo ficado em pânico e temendo para sua vida.
27. Pouco depois, RP acabou por a largar a vitima, retirou as suas mãos do pescoço e do nariz e, de seguida, juntando todos os dedos de uma das mãos, introduziu-os no ânus da vitima, causando-lhe dor e sofrimento.
28. A dado momento, o arguido largou a vitima e saiu do quarto regressando momentos depois trazendo consigo uma espátula de silicone com a qual desferiu vários e violentos golpes nas pernas, coxas e nádegas da ofendida, enquanto gritava, dizendo “PORQUE NÃO ME DÁS OUVIDOS?” (sic).
29. De seguida RP abandonou novamente o quarto, tendo regressado na posse de uma espátula em madeira, com a qual desferiu cerca de 10 golpes na face da vitima.
30. Perante a ausência de resposta e reacção por parte da vitima, RP disse-lhe "RESPONDE-ME OU VOU-TE ATIRAR PELA VARANDA FORA "(sic).
31. Uma vez que a vitima continuava sem reagir RP disse-lhe "HÁ NÃO VAIS FALAR, TENHO QUE IR BUSCAR A FACA "(sic).
32. Pouco depois RP saiu do quarto e abandonou a residência, altura em que a vítima conseguiu soltar-se da corda que a prendia, correu em direcção à porta, e introduziu um objecto pontiagudo na fechadura de forma bloqueá-la e impedir que o arguido pudesse regressar uma vez que este ainda tinha na sua posse a chave do imóvel.
33. Não obstante, RP regressou a casa da vitima e, perante a impossibilidade de entrar, tocou insistentemente à campainha tentando convencer a vitima a dialogar consigo.
34. Como consequência directa do comportamento de RP a ofendida sofreu dores nas zonas atingidas bem como ferimento periorbital esquerdo, hematomas e escoriações dispersos por todo o corpo, designadamente nos braços, antebraços, coxas e glúteos.
35. Com a prática da conduta descrita, deu causa o arguido RP, de modo directo e necessário, a que a ofendida viva sobressaltada, sentindo medo e receio pela sua vida e integridade física.
36. RP agiu sempre com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da ofendida, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar, magoar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que logrou alcançar com a sua conduta, não se coibindo de o fazer na própria habitação da vitima.
37. RP agiu com o propósito de constranger a ofendida a sofrer a introdução vaginal e anal de partes do seu corpo, satisfazendo o seu instinto sexual, bem sabendo que o fazia contra a vontade desta, usando de força física e violência para vencer a resistência que lhe foi imposta pela ofendida, amarrando-a e deixando-a impossibilitada de resistir e depois constrangendo-a a submeter-se aos actos que queria praticar, o que fez.
38. RP sabia que actuava contra a vontade da ofendida, e tinha perfeito conhecimento que, com as suas condutas, ofendia a dignidade, liberdade e autodeterminação sexual da ofendida.
39. RP actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, tendo capacidade para se determinar de acordo com tal conhecimento.
O arguido vive sozinho em casa arrendada.
Tem o 12º ano de escolaridade.
O arguido trabalha num hotel e como comercial em empresas de rent-a-car, auferindo um rendimento mensal de 1500€.
O arguido não tem antecedentes criminais conforme CRC junto aos autos.
Os factos indiciados resultam dos seguintes elementos probatórios:
- Auto de inquirição formal fls. 7-8
- Ficha de RVD- fls. 10
- Fotogramas – fls. 16-22
- Resumo de Episodio de urgência – fls. 23-24
- Documento de fls. 28
- Pen drive junta aos autos e respectivos ficheiros – fls. 29 e 43-46
- Auto de apreensão de fls. 65
- Auto de inquirição de fls. 67
- Auto de inquirição de fls. 77-80
- Pesquisa de processos de fls. 87
- Aditamentos de fls. 89, 90 e 91
- Certificado de Registo Criminal de fls. 73
Tal factualidade é susceptível de integrar a prática por parte do arguido, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo:
- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), n.º 2, alínea a), 4, e 5, e do um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal.
O arguido não quis prestar declarações.
No entanto, os factos imputados ao arguido encontram-se suficientemente indiciados pelos diversos elementos probatórios constantes do processo, dos quais destacamos as fotos onde são visíveis as lesões físicas apresentadas pela ofendida em diversas partes do corpo de fls. 16-22 e o episódio de urgência de fls. 20-24.
Com particular importância para a convicção do Tribunal, temos o depoimento prestado pela vítima a qual descreveu os factos de modo detalhado, objectivo e coerente de modo a merecer a credibilidade deste Tribunal.
O referido depoimento da ofendida KMH mostra-se em parte corroborado pelo depoimento da testemunha MB, a qual visualizou marcas de agressão na nádega da vítima que exibiu tais marcas e lhe deu conta da agressão sofrida por parte do arguido.
No caso dos autos, considerando o grande temor imprimido na vítima pelo arguido, o qual por sua vez revela um nítido sentimento de impunidade, afigura-se-nos existir um sério perigo de perturbação do decurso do inquérito na vertente da aquisição e conservação da prova, pois o arguido poderá contactar com a vítima intimidando-a por forma a que a mesma altere o respectivo depoimento ou não preste ulteriores declarações nos autos. (art. 204.º al. b) do CPP).
No caso vertente, considero ainda verificado um forte perigo de continuação da actividade criminosa decorrente de o arguido ter vindo a agredir repetidamente e de forma grave a vítima, tendo constrangido a mesma a sofrer actos de introdução vaginal e anal, usando para o efeito de grande força física, chegando até a amarrar a mesma vítima por forma a obrigar a submeter-se aos referidos actos de natureza sexual.
Ou seja, os vários actos criminosos praticados pelo arguido e o crescendo de violência do mesmo na prática de tais actos fazem temer seriamente o perigo continuação da actividade criminosa (art. 204.º al. c) do CPP).
Por outro lado, os factos praticados pelo arguido contra a vítima são susceptíveis de causar uma perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas decorrente do grande alarme social relacionado com as consequências que decorrem para as vítimas dos actos de violência doméstica e especialmente de uma violação.
Em face do disposto no art.º 204.º, do Código de Processo Penal, que contém os requisitos gerais da aplicação da medida de coacção, haverá que ponderar, no caso em concreto, perigo de perturbação do inquérito, perigo de continuação da actividade criminosa e perigo grave de perturbação da ordem e da tranquilidade pública.
As medidas de coacção a aplicar devem respeitar os princípios da necessidade e adequação face às concretas exigências cautelares e o princípio da proporcionalidade face à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (art.º 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Por sua vez, as medidas privativas da liberdade, por fortemente restritivas ao direito à liberdade, apenas poderão ser aplicadas se nenhuma outra medida de coacção se afigurar adequada e, entre estas medidas, a preferência recai na medida de obrigação de permanência em habitação, se se mostrar suficiente para satisfazer as exigências cautelares (art.º 193.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).
Atenta a elevadíssima gravidade dos factos praticados pelo arguido quer no tocante às lesões causadas à vítima e que atingiram a mesma em diversas partes do corpo, quer nos meios empregues, nomeadamente na utilização de uma espátula de silicone para desferir violentos golpes nas pernas, coxas e nádegas da ofendida e de uma corda utilizada para amarrar a mesma e o facto do arguido ter ainda apertado o pescoço da vítima com uma das mãos e com a outra lhe ter apertado o nariz para ela não respirar ao ponto da mesma quase ficar inconsciente, conduz ao entendimento de que as medidas não  privativas da liberdade se revelem insuficientes para salvaguardar as existência cautelares do caso.
Em face do exposto, entende-se que a única medida adequada, suficiente e proporcional às exigências cautelares que o caso requer é a de prisão preventiva - 191.º a 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 204.º, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, medida essa cuja aplicação se determina ao arguido.
Passe mandados de condução ao EP.
Dê cumprimento ao disposto ao artº 194º nºs. 9 e 10 do CPP.
Notifique.
Remeta os autos aos serviços do Ministério Público.”
*
III - Do mérito do recurso
Decidindo
Como é sabido as medidas de coacção são meios processuais de limitação de liberdade pessoal, e estão sujeitas aos princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade, da precariedade e, quanto à prisão preventiva da subsidiariedade (arts. 191º, nº 1, 193º, 215º e 218º, 202º e 209º, do CPP).  Com efeito, as medidas de coacção têm uma função cautelar tendo em vista assegurar os fins do processo, quer para garantir a execução da decisão final condenatória, quer para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento, e como tal são limitativas da liberdade pessoal e patrimonial dos arguidos. Tais medidas porque limitativas de direitos fundamentais têm que, contudo, estar em conformidade com as garantias da Constituição e da Lei.
Assim, o art. 191º, nº 1, do CPP no qual se consagra o princípio da legalidade das medidas de coacção, determina, de harmonia com o preceito constitucional do art. 27º, nº 2, da CRP, que "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e garantia patrimonial previstas na lei". 
O direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, é de aplicação directa e vincula todas as entidades públicas e privadas e a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da lei – arts. 27º, nº 2 e 28º, da CRP, e art. 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - não deixando, porém, também a Lei Fundamental de prever os casos de violação dos deveres a que os cidadãos estão adstritos ou as situações particulares decorrentes da prática de crimes.
Com efeito a Constituição admite restrições aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, mas consagra que tais limitações se hão-de limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, princípio este previsto no art. 18º, nº 2, da Lei Fundamental, que assume especial relevância no âmbito das medidas de coacção.
"A expressão liberdade das pessoas, usada no art. 191º, tem um significado amplo, abrangendo tanto a liberdade física de movimentação e deslocação, que pode ser limitada especialmente pela prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação e proibição de permanência ou de ausência, mas também todas as faculdades de exercício de direitos, de natureza pessoal ou patrimonial, que podem ser limitadas por outras medidas" (vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Ed. Verbo, 1999, Vol II, pág. 235).
A prisão preventiva prevista no art. 202º, do CPP, que é a medida mais grave das medidas de coacção, e dada a sua excepcionalidade e subsidiariedade, conforme resulta da Constituição, em que a liberdade é a regra e a prisão preventiva a excepção (arts. 27º e 28º, da CRP), só pode ser aplicada se considerarem inadequadas ou insuficientes, no caso, as demais medidas de coacção, e, a) houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos; ou b) se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra ela estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.
Indícios suficientes” tem no Código do Processo Penal uma extensão precisa e incontornável: consideram-se tais os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal). Daqui se infere que os “fortes indícios” terão que corresponder a uma probabilidade elevada de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena.
Por outro lado, de harmonia com o disposto no art. 204º, do CPP, tal medida só pode ser aplicada quando, em concreto se verificar:
a) fuga ou perigo de fuga;
b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade perigosa.
De harmonia com o disposto no art. 194º, nºs 1 e 2, do CPP, a aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Mº Pº e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Mº Pº, (nº 1), e é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial (nº 2).
O despacho que aplique tal medida tem que ser fundamentado, uma vez que é um acto judicial decisório, nos termos dos arts. 205º, nº 1, da CRP, e 194º, nº 3, e 97º, nº 4, do CPP.
Feita esta resenha abordaremos a primeira questão que foi proposta a este Tribunal, a qual seja a da inexistência de indícios da prática dos factos.
O despacho que aplica a prisão preventiva não é, enquanto tal, uma sentença pelo que as formas de revisão do apuramento da matéria de facto constantes do artº 412º do C.P.P. não lhe são aplicáveis.
Já a questão de se os vícios do artº 410º do C.P.P. (enquanto vícios autónomos e que afectam a consistência da decisão) podem ser conhecidos é debatível.
A forma como o recorrente ataca a factualidade estabelecida é reportável a uma impugnação ampla da matéria de facto, isto é, pretende o recorrer debater a valia dos meios de prova considerados e a valoração dos mesmos.
O recorrente sustenta que a prova, designadamente a médica, não suporta as declarações da vítima tanto mais que a mesma não referiu qualquer agressão de índole anal.
Ora, neste particular o recorrente parece esquecer que o Tribunal mencionou que levou em consideração as declarações da ofendida as quais não mereceram qualquer reparo da sua parte e foram parcialmente corroboradas por outros meios de prova. Nada nos autos permite colocar em crise as declarações da ofendida sendo até certo que o ofendido não as põe em causa já que se remeteu ao silêncio.
Assim, nada nos permite dizer que a ofendida faltou à verdade e a prova, porque foi exercido o direito ao silêncio não tem de ter uma dupla verificação, isto é, não tem o mesmo facto de ser corroborado por múltiplos elementos de prova bastando-se com um (designadamente com as declarações da ofendida) desde que as mesmas merecem a credibilidade do Tribunal.
Assim, a factualidade mantém-se intocada sendo que a sua indiciação terá de ser considerada forte (veja-se supra o que constituem fortes indícios).
No que tange à ausência de fundamentação do despacho não se vislumbra onde é que existe alguma ausência de fundamentação quando o Tribunal refere a factualidade assente, a qualificação jurídica, os perigos existentes e porque é que se verificam e escolhe uma das medidas de coacção.
No que tange aos perigos.
Está excluído pelo próprio despacho o perigo de fuga.
A medida foi decretada com base na verificação dos perigos de perturbação do inquérito e aquisição de prova e continuação da actividade criminosa.
Como salienta o próprio despacho recorrido os perigos em causa têm de ser concretos e não meramente abstractos.
Um perigo concreto é, em termos simples, aquele que, em face das circunstâncias do caso, oferece forte probabilidade de se materializar.
Esta forte probabilidade tem de ser, ela própria, consubstanciada em factos que permitem concluir, a partir deles que o perigo deixará, se não for aplacado, de ser um perigo para ser um facto ou dado adquirido.
O Tribunal considerou que “No caso dos autos, considerando o grande temor imprimido na vítima pelo arguido, o qual por sua vez revela um nítido sentimento de impunidade, afigura-se-nos existir um sério perigo de perturbação do decurso do inquérito na vertente da aquisição e conservação da prova, pois o arguido poderá contactar com a vítima intimidando-a por forma a que a mesma altere o respectivo depoimento ou não preste ulteriores declarações nos autos.”
Ora, com o devido respeito tal não constitui qualquer perigo relevante para efeitos do artº 204º do C.P.P. pela simples e singela razão de que o que é referido é um perigo abstracto. Todos os agressores são, em abstracto, susceptíveis de contactar as vítimas e de as intimidar. Pergunta-se: no caso concreto isso é provável de acontecer ? E porquê ? Que sinais, ameaças, condutas assumiu o arguido que nos permita concluir que assim será com forte probabilidade ? O arguido ameaçou ? Tomou medidas ou disse que ia tomar medidas com vista a que a vítima alterasse o seu depoimento. A resposta é não.
Refere o Ministério Público que a expressão “ainda têm coisas por resolver” contida no pedido de desculpas do arguido é indicativo do perigo mas aqui existem duas razões que fazem naufragar tal pretensão: em primeiro lugar trata-se de uma expressão inserida numa carta de desculpas pelo que a expressão vale o mesmo que aquelas outras em que o arguido tentou passar uma imagem de preocupação, pediu desculpas à ofendida por ter ido tão longe, dizendo-lhe ainda que nunca tal lhe tinha acontecido antes e em que pediu à ofendida que não tenha medo dele, que nunca a mataria; em segundo lugar estes factos – a carta enviada – não foi considerada na factualidade em que se estribou a decisão recorrida pelo que o seu concreto conteúdo e o que dele resulta não pode ser considerado na presente decisão.
Tal não significa que não se verifique o dito perigo tanto mais que o arguido não descura o contacto com a vítima.
O que não existe é um perigo com a intensidade – com tudo o de subjectivo que a expressão acarreta – que o Tribunal lhe atribui.
No que respeita ao perigo de continuação da actividade criminosa o mesmo é justificado pelos “vários actos criminosos praticados pelo arguido e o crescendo de violência do mesmo na prática de tais actos fazem temer seriamente o perigo continuação da actividade criminosa”.
Ora, acontece que, conquanto graves, muito graves, os actos levados a cabo os mesmos ocorreram num único dia, não foram precedidos por nenhuns outros ou sucedidos por quaisquer outros. Tratou-se, ao que se sabe, de um evento único na vida do arguido e não existem elementos que permitam que, em concreto, se afirme o perigo de continuação da actividade criminosa. Note-se que é a própria vítima quem refere que o evento foi único.
No que tange ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas decorrente do grande alarme social relacionado com as consequências que decorrem para as vítimas dos actos de violência doméstica e especialmente de uma violação.
Neste particular entendemos que, de facto, existe o perigo. A colocação num ambiente livre de quem tem sobre si a suspeita, fortemente indiciada, da comissão de crimes de violência doméstica e violação, em concreto, gera alarme social.
Contudo e neste particular existem duas considerações prévias a levar a cabo: a primeira prende-se com o facto de que a medida de coacção de prisão preventiva só é de aplicar se for previsível a condenação em prisão efectiva. No caso concreto, os indícios apontam para a comissão dos crimes, mas há também que considerar a integração social do arguido pelo que, por esta via, diremos que, para já, há a possibilidade de aplicação de uma prisão efectiva ante a gravidade dos factos. O perigo de alarme social também pode ser aplacado com o recurso a outras medidas de coacção sendo que estas – as medidas de coacção – não podem ser usadas como armas de arremesso do sistema penal para sinalizar à comunidade que o sistema penal aplica medidas drásticas.
As medidas de coacção protegem a vítima e a sociedade, mas têm de ser aplicadas em medida mínima necessária de molde a que a protecção tenha lugar mas seja respeitada, na medida do possível, a presunção de inocência do arguido.
Assim sendo, e no caso vertente, é nosso entendimento que a prisão preventiva é excessiva em relação à intensidade dos perigos existentes e que outra medida, designadamente a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, especialmente se executada em Albufeira (longe da vítima), é adequada e suficiente para obstar aos perigos referidos e à gravidade dos crimes indiciados.
Nenhuma outra medida, incluindo a proposta de afastamento e teleassistência obsta aos perigos referidos desde logo porque implica a criação na vítima de um estado de ansiedade sendo que é o resultado da conduta que em muito influencia a escolha da medida.
Claro que esta decisão é condicionada á existência de condições para a execução de OPH-VE e, muito em especial à sua execução em Albufeira.
*
Dispositivo
Por todo o exposto, julga-se provido o recurso apresentado e altera-se a medida de coacção imposta para obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica a executar na residência dos progenitores do arguido, sita em Albufeira, desde que a DGRSP considere tal execução viável e nenhuma outra razão obste a tal.
Até decisão sobre a viabilidade execução da medida o arguido permanecerá em prisão preventiva.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa e Tribunal da Relação, 20 de Dezembro de 2023
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Filipa Valentim
Ana Guerreiro  da Silva