Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3560/19.9T8CSC.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADES PROCESSUAIS
CONTRATO DE FORNECIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Não obstante a falta de resposta do autor aos factos que foram alegados na contestação (integrantes da matéria de excepção) não desencadear qualquer efeito cominatório pleno, do mesmo modo não desencadeando o efeito cominatório correspondente à admissão de tais factos, na medida em que a matéria de excepção a que respeita não foi individualizada na contestação, ainda assim tal circunstância não dispensava o tribunal recorrido de conhecer dessa matéria de excepção, por força do disposto no art.º 608º, nº 2, do Código de Processo Civil.
2- Não tendo a matéria de excepção sido conhecida na sentença, verifica-se a nulidade da mesma por omissão de pronúncia, a suprir pelo tribunal de recurso, através do conhecimento das questões suscitadas, em substituição do tribunal recorrido.
3- A extinção a que se refere o nº 1 do art.º 790º do Código Civil só ocorre se a obrigação, sendo possível no momento em que foi constituída, se torna absolutamente impossível em momento posterior, por causa que não seja imputável ao devedor, ou que decorra de causas naturais e não domináveis pelo devedor.
4- A cláusula penal indemnizatória só deve ser reduzida quando se revele manifestamente excessiva, o que não ocorre com a simples circunstância de a pena ser superior ao dano efectivamente ocorrido.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

T., Lda., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob forma de processo comum, contra F., Lda. (1ª R.) e MN. (2ª R.), pedindo a condenação solidária das RR. no pagamento da quantia de € 17.784,00, acrescida de juros de mora.
Alega para tanto, e em síntese, que:
- No âmbito da sua actividade comercial celebrou com a 1ª R. um contrato de fornecimento de café e de publicidade da marca Camelo e os seus dois aditamentos, nos termos do qual se obrigou a ceder diverso equipamento à 1ª R. e a entregar-lhe o montante de € 3.000,00 a título de comparticipação publicitária, obrigando-se a 1ª R. a consumir 17 quilogramas mensais de café pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de 1.000 quilogramas;
- A 2ª R. subscreveu tal contrato na qualidade de fiadora da 1ª R. e principal pagadora das obrigações assumidas pela mesma;
- A A. entregou à 1ª R. o equipamento comodatado e a comparticipação publicitária;
- A 1ª R. deixou de comprar café à A., tendo apenas comprado 50 quilogramas, o que determinou a resolução do contrato, que a A. comunicou à 1ª R., mais ficando esta obrigada a indemnizar a A. pelo incumprimento contratual, no montante correspondente a € 18,72 por cada quilograma de café não consumido, como estipulado contratualmente.
Citadas ambas as RR., apresentaram contestação conjunta onde confirmam a celebração do contrato e dos seus aditamentos, mais alegando que estes aditamentos decorreram da transferência do estabelecimento comercial da 1ª R., com todo o equipamento, o que a A. acompanhou, deixando de fornecer qualquer café à 1ª R., e sendo por exclusiva responsabilidade da A. que o contrato não se transferiu para o novo titular do negócio, assim actuando a A. em abuso de direito ao pedir às RR. o pagamento da indemnização contratual por falta de consumo de café que deixou de fornecer. Concluem pela sua absolvição do pedido e, caso assim não se entenda, pela redução do valor da indemnização a € 5.000,00.
A A. foi notificada para se pronunciar quanto à matéria de excepção constante da contestação, nada tendo dito.
Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador, mais se dispensando a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos e com tais fundamentos, julgo a acção procedente por provada e, em consequência, condeno, solidariamente, as RR. (…) a pagarem à A., a quantia de € 17.784,00, a título de indemnização por incumprimento contratual, no que se refere às obrigações de aquisição de parte do café cuja aquisição foi acordada, quantia esta acrescida de juros de mora à taxa legal para as operações comerciais, contados desde a data do trânsito em julgado da presente sentença e até integral pagamento.
Custas pelas RR.”.
As RR. recorrem desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem na sua totalidade (inclusive com as epígrafes aí constantes):
- Da omissão de pronúncia e falta de fundamentação:
1)As Rés, em sede de contestação, defenderam-se por excepção, quer alegando a passagem do estabelecimento comercial com todo o equipamento, sendo que o contrato dos autos só não foi transferido por responsabilidade da Autora, quer invocando o abuso de direito, donde resultaria que a Autora estaria impedida de demandar as Rés, com a consequente improcedência do pedido deduzido nesta acção ou, em último caso, a redução do alegado valor indemnizatório para a quantia de € 5.000,00.
2)Por despacho de fls. de 27/09/2021, foi determinada a notificação da Autora para, em dez dias, se pronunciar relativamente às excepções invocadas; E, regulamente notificada daquele despacho, o silêncio da Autora imperou, não se pronunciando sobre as excepções.
3)Em sede de audiência de julgamento, realizada em 16/12/2022, voltou a não haver qualquer pronúncia da Autora relativamente às excepções deduzidas, sendo certo que tal direito já havia precludido.
4)Perante a falta de pronúncia da Autora, importava que o Tribunal a quo aplicasse o regime que decorre do disposto no artigo 574º do CPC, efeito cominatório pleno, julgando procedente as excepções, com as legais consequências; não foi, porém, isso que aconteceu, tendo os autos prosseguido para julgamento.
5)Olhando ao teor da sentença recorrida constata-se que as excepções deduzidas pelas Rés não foram apreciadas, não resultando fundamentada essa “opção”.
6)Está em causa matéria relevante que foi tempestivamente invocada pelas Rés, e sobre a qual o Tribunal recorrido não dedicou uma única linha, em violação do disposto no artigo 608º, n.º 2, 1ª parte do CPC.
7)Assim elaborada, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alíneas b) e d) do CPC, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
8)Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outras, as normas dos artigos 154º, 574º, n.ºs 1 e 2, 608º, n.º 2, 1ª parte, 615º, n.º 1, alíneas b) e d), todos do CPC.
9)Consequentemente, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, suprindo os apontados vícios, julgue as excepções invocadas pelas Rés procedentes, por provadas, com a consequente improcedência da acção ou, caso assim não se entendesse, reduza substancialmente o valor da indemnização para montante não superior a € 5.000,00 atento o abuso de direito invocado e o peticionado nos autos.
- Nulidades processuais – produção de prova:
10)Em sede de contestação, as Rés arrolaram três testemunhas, as quais foram notificadas pelo Tribunal para comparecerem na data designada para a realização da audiência de julgamento.
11)No dia audiência de julgamento, 16/12/2022, compareceram em Tribunal as testemunhas JP. e VR., comuns à Autora, tendo a terceira testemunha arrolada pelas Rés, EA., faltado.
12)No que toca às testemunhas presentes, perante ausência do mandatário das Rés, impunha-se que fosse o Tribunal a levar cabo a inquirição das mesmas, tendo como objecto a matéria da contestação, o que não foi o caso, porquanto a inquirição de tais testemunhas decorreu apenas a instâncias da Autora, não tendo o Tribunal a quo intervindo para inquirir, (cfr. depoimentos das testemunhas JP., prestado na audiência de julgamento realizada em 16/12/2022, passagens 00m00s a 14m25s; VR., prestado na audiência de julgamento realizada em 16/12/2022, passagens 00m00s a 11m19s).
13)Não se concebe que, tendo as Rés desempenhado a tarefa principal em sede de prova, tendo a iniciativa da mesma – apresentando o rol de testemunhas – e comparecendo as testemunhas em tribunal no dia designado, o juiz tenha deixado de as inquirir sobre a matéria da contestação.
14)O Tribunal pode, por sua iniciativa, proceder à inquirição de uma testemunha não arrolada – artigo 526º, n.º 1 do CPC, pelo que por maioria de razão, o deve fazer relativamente a uma testemunha arrolada pela parte e presente em audiência de julgamento.
15)Não podendo, dada a ausência do mandatário das Rés, ser seguido rigorosamente o regime constante do regime geral previsto no artigo 516º do CPC, não é razoável que a consequência seja a não realização da inquirição por banda das Rés, porquanto a mesma pode sempre ser efectuada pelo juiz da causa, pois, veja‑se, até pode avocar o interrogatório – artigo 516º, n.º 5 do CPC.
16)Conclui-se que, não obstante a ausência do mandatário das Rés na audiência de julgamento, deveria o Tribunal a quo ter procedido à inquirição das testemunhas presentes, tendo como objecto a matéria da contestação.
17)A única consequência da falta de advogado na audiência é a de a parte respectiva ficar sem patrocínio judiciário nesse acto processual, devendo as testemunhas arroladas pela parte patrocinada pelo advogado faltoso ser interrogadas pelo juiz, (cfr. acórdão do TRP proferido no processo n.º 555/08.1TBCHV.P1, disponível em www.dgsi.pt).
18)Não tendo o juiz inquirido as testemunhas que estiveram presentes no julgamento e que as Rés arrolaram, foi omitido um acto que a lei prescreve e tal omissão, pode ter influído na decisão sobre a matéria de facto, o que é causa de nulidade nos termos do artigo 195º do CPC, devendo, em consequência, ser anulado o julgamento e, inerentemente, a sentença recorrida revogada.
19)Relativamente à testemunha faltosa, EA., arrolada pelas Rés, o Tribunal decidiu concluir a audiência de julgamento sem determinar a audição da mesma por via da marcação de nova sessão, sendo que nem tão pouco apresentou ou mencionou qualquer razão para a não inquirir, violando as regras processuais relativas à produção de prova.
20)Face à não dispensa das testemunhas das Recorrentes e a ausência do mandatário das mesmas, o Tribunal deveria ter marcado a continuação da audiência de julgamento para audição da testemunha que não compareceu.
21)O Tribunal a quo ao ter constatado a ausência da aludida testemunha, estando a mesma notificada, acabou por substituir-se à parte no juízo sobre a imprescindibilidade da mesma, já que decidiu pôr termo à audiência de julgamento, não marcando nova data para a sua continuação – dela prescindindo, portanto, em detrimento da parte, no caso as Rés.
22)E não se diga que o mandatário teria de estar presente para declarar que não prescinde da testemunha, pois se foi arrolada e se estava notificada para comparecer na data da audiência de julgamento, a mesma só poderia deixar de ser ouvida caso as ora Recorrentes a tivesse dispensado e assim prescindido da sua inquirição, o que não foi o caso.
23)Importava que o Tribunal a quo tivesse aplicado o regime previsto no artigo 508º, n.ºs 3, alínea c), e 4, ordenando a notificação das Rés para se pronunciarem quanto à falta da testemunha, designadamente no sentido de uma eventual substituição e, se fosse caso, ordenando que a testemunha que sem justificação faltou comparecesse sob custódia, com a consequente designação de nova data para a continuação da audiência de julgamento.
24)Foi cometida uma nulidade processual, porquanto o Tribunal recorrido omitiu um acto e formalidade que a lei prevê, nulidade essa que influi directamente no exame e na boa decisão da causa, nos termos dos artigos 195º, e 415º, n.º 1, ambos do CPC, uma vez que face à matéria da contestação sobre a qual a mesma seria inquirida, a decisão final poderia ter sido outra que levasse a absolvição das Rés do peticionado ou, pelo menos, à diminuição do valor da indemnização.
25)Quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente (artigo 195º, n.º 2 do CPC), pelo que deverá ser revogada a sentença recorrida.
26)Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outras, as normas dos artigos 526º, n.º 1, 508º, n.ºs 3, alínea c), e 4, 415º, n.º 1, 411º, 413º, todos do CPC, bem assim as garantias constitucionais de acesso dos cidadãos aos Tribunais, previstas na Constituição da República Portuguesa (artigo 20º).
– Erro de julgamento - Invalidade da resolução do contrato:
27)As cartas de resolução do contrato objecto de autos juntas com a p.i. não foram subscritas pela Autora, mas sim pela ilustre advogada que, aquando da prática do acto, não comprovou, nem sequer alegou ter os necessários poderes para o acto.
28)A (in)validade da invocada resolução é questão de conhecimento oficioso que cabia ao Tribunal a quo apreciar e conhecer nos termos do artigo 5º, n.ºs 2 e 3 do CPC, atento o petitório dos autos; em último caso, sempre devia o Tribunal a quo ter ordenado a notificação da Autora para vir aos autos prestar os esclarecimentos e/ou juntar os documentos tidos por necessários para o efeito.
29)Salvo melhor opinião, o disposto no artigo 260º, n.º 1 do CC não é aplicável à situação dos autos, posto que nas cartas de resolução nem sequer foi invocada a qualidade de quem as subscreveu.
30)Perante as comunicações de resolução que foram dirigidas às Rés sem a necessária invocação e demonstração dos poderes de quem as subscreveu, deveria o Tribunal a quo, ao abrigo dos poderes de cognição consentidos pelo artigo 5º, n.ºs 2 e 3 do CPC, ter concluído pela sua invalidade, com a consequente improcedência dos autos.
31)Ao não ter apreciado oficiosamente tal questão, face aos elementos de que dispunha, o Tribunal a quo violou, entre outras, as normas dos artigos 258º do CC, e 5º, n.ºs 2 e 3 do CPC.
32)O accionamento da cláusula penal pela Autora depende de prévia e válida interpelação resolutiva, pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva as Rés da instância, com as legais consequências.
– Erro de julgamento - Do abuso de direito:
33)Em sede de contestação, as Recorrentes defenderam-se por excepção, alegando factualidade atinente ao contrato dos autos consubstanciadora de abuso de direito.
34)A excepção de abuso de direito é de conhecimento oficioso, “devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.”, (cfr. entre outros, acórdão do STJ de 20/12/2022, proferido no processo n.º 8281/17.4T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
35)O Tribunal a quo não se pronunciou sobre o abuso de direito invocado pelas Recorrentes, sendo que dos factos considerados provados resulta indiciado que a Autora actuou em abuso de direito.
36)A Autora instaurou a presente acção para cobrar café que a 1ª Ré não consumiu, segundo uma cláusula e um cálculo absolutamente abusivos.
37)A cláusula Sexta, n.º 3 do contrato (cfr. “14” dos factos provados) configura uma cláusula penal nos termos do artigo 810º do CC.
38)O contrato dos autos é completamente omisso quanto preço do café, por Kg, efectivamente vendido à 1ª Ré, constatando-se, pois, que a Autora baseou a indemnização peticionada de € 17.784,00 apenas no disposto na citada cláusula do contrato, sem fundamentar qual a margem de lucro por cada quilo de café vendido.
39)Salvo o devido respeito, tal “fórmula” de cálculo que consta do contrato é totalmente arbitrária e ilícita, na medida em que a Autora não dá a conhecer o preço do café por Kg; sendo que, só com base na margem líquida do lucro por Kg se poderá calcular um concreto e alegado prejuízo que a Autora teria sofrido no período em que a 1ª Ré deixou de consumir café.
40)O alegado nos autos pela Autora resulta numa excessiva onerosidade do preço por quilo apresentado à 1ª Ré, porquanto é do conhecimento geral que no mercado obtém-se um valor por quilo de café bastante inferior ao indicado pela Autora.
41)A fixação de € 18,72 por cada quilo não adquirido é manifestamente excessivo, facto relativamente ao qual as Rés invocaram o abuso de direito, alegando em sede de contestação que a Autora deixou de fornecer qualquer quilo de café a partir de Maio/2017, conforme aliás resultou confessado na p.i., (artigo 12º).
42)Na apreciação da excepção de abuso de direito, relativamente à qual, reitere-se, a Autora nem sequer se pronunciou, deveria o Tribunal a quo ter procedido oficiosamente a uma redução equitativa da cláusula penal, ao abrigo do disposto no artigo 812º do CC, por a mesma se mostrar como uma afronta à equidade.
43)Ao não fazê-lo, decidindo como decidiu, não apreciando a matéria da contestação, nomeadamente no que toca à excepção de abuso de direito que é de conhecimento oficioso, o Tribunal a quo violou, entre outras, as normas dos artigos 334º, 810º, 812º, ambos do CC, e 576º, n.º 3, 579º, e 608º, n.º 2, 1ª parte, todos do CPC.
44)Deve o Tribunal ad quem ordenar que os autos baixem à primeira instância para que o tribunal recorrido se pronuncie sobre o abuso de direito de que não conheceu oficiosamente, posto que da matéria alegada em sede contestação e dos factos considerados provados resulta minimamente indiciado que a Autora actuou em abuso de direito, o que importará a redução equitativa do valor da cláusula penal, considerando que não foi consumido o café, para valor não superior a € 5.000,00.
Não foi apresentada alegação de resposta pela A.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
- A nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;
- As nulidades processuais relativas aos actos de produção da prova testemunhal;
- A invalidade da resolução do contrato;
- A impossibilidade definitiva de cumprimento imputável à A.;
- O abuso de direito.
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Todavia, e no que respeita à questão da invalidade da resolução do contrato celebrado entre as partes, em momento algum da contestação as RR. invocaram, como agora fazem na sua alegação de recurso, que as cartas de resolução do contrato “não foram subscritas pela Autora, mas sim pela ilustre advogada que, aquando da prática do acto, não comprovou, nem sequer alegou ter os necessários poderes para o acto”.
Resulta do nº 1 do art.º 260º do Código Civil que “se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos”. Ou seja, quando se está perante uma declaração feita por alguém em nome de outrem, a declaração só não produz efeitos se o declaratário exigir a demonstração de poderes do representante, e este não fizer prova de tais poderes de representação. O que equivale a dizer que a declaração se tem por eficaz sempre que o declaratário não suscitar a questão da justificação dos poderes de representação do declarante. E, nesta medida, não se pode afirmar que a questão da ineficácia da declaração feita por terceiro seja de conhecimento oficioso, já que está dependente da sua invocação pelo declaratário.
Na P.I. (art.º 13º) a A. alega que “resolveu o contrato em apreço, o que fez através da carta registada com aviso de recepção enviada à 1ª Ré em 08 de Maio de 2019”.
Na contestação (art.º 12º e 23º) as RR. reconhecem que foram interpeladas para a resolução do contrato, em Maio de 2019, não suscitando qualquer questão relacionada com a autoria e assinatura das cartas de resolução, designadamente não tendo alegado que as mesmas foram subscritas e remetidas por terceiro que não tinha poderes bastantes para proferir a declaração resolutória, em representação da A. E era na contestação que competia às RR. suscitar tal questão, face ao princípio da concentração da defesa que emerge do art.º 573º do Código de Processo Civil, o que significa que ficou precludido o direito das mesmas a invocar supervenientemente tal questão.
O que é o mesmo que afirmar que a questão ora suscitada, da justificação dos poderes de representação da A. por parte de quem assinou as cartas de resolução, nunca careceu de ser conhecida pelo tribunal recorrido, quer porque não se trata de uma questão de conhecimento oficioso, quer porque as RR. não a invocaram perante o tribunal recorrido, no momento processual em que o deviam fazer.
Como se refere no acórdão de 28/5/2009 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Oliveira Rocha e disponível em www.dgsi.pt), “do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, como é jurisprudência uniforme, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem”.
Ou seja, na medida em que o modelo do nosso sistema de recursos assenta na reapreciação das questões já suscitadas perante a instância recorrida e aí conhecidas, não autorizando a introdução de novas matérias para conhecimento exclusivo pela instância de recurso (salvo quanto às questões de conhecimento oficioso), e tendo presente a natureza e carácter inovatório da questão em apreço, relativa à invalidade da resolução do contrato celebrado entre as partes por falta de justificação dos poderes de representação da subscritora das cartas de resolução, logo se alcança que a mesma questão não é passível de conhecimento em sede do presente recurso, o que se decide desde já.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. A A. explora a actividade de comércio dos cafés e sucedâneos da marca Camelo.
2. Entre Maio de 2016 e Maio de 2017, a 1ª R. explorava os estabelecimentos comerciais denominados: “... Bistro” e “... bar” ambos sitos na Urbanização do Buzano, na Parede.
3. Em 24 de Maio de 2016, a A. e a 1ª R. celebraram um acordo escrito que denominaram de contrato de fornecimento de café e publicidade da marca Camelo.
4. Acordo esse que a 2ª R. subscreveu na qualidade de fiadora e principal pagadora.
5. O referido contrato sofreu alterações em 24 de Outubro de 2016 e 24 de Fevereiro de 2017 as quais foram reduzidas a escrito sob a forma de aditamentos.
6. A A. cumpriu sempre com todas as obrigações a que se vinculou em virtude da celebração do contrato, nomeadamente,
7. Para cumprimento da cláusula Primeira do mencionado contrato, a A. cedeu à 1ª R., em regime de comodato, duas máquinas de café marca Mayor- modelo digital, 2 grupos, dois moinhos de café, dois depuradores, duas estruturas Tenditoldos, dois guarda sois 3x3, quarenta cadeiras e vinte e quatro mesas.
8. O equipamento hoteleiro descrito na cláusula anterior tem o valor de € 13.567,05, acrescido de IVA à taxa em vigor.
9. Ainda de acordo com o disposto na cláusula Primeira nº 1, a A. como contrapartida da exclusividade e publicidade da marca Camelo, entregou à 1ª R. a quantia de € 3.000,00.
10. Não obstante, terem usufruído das contrapartidas mencionadas nos artigos que antecedem, a 1ª R. não cumpriu com as obrigações a que se tinha vinculado.
11. Nos termos da cláusula Segunda, a 1ª R. estava obrigada a consumir no seu estabelecimento comercial exclusivamente café marca Camelo, Lote ELDORADO, nas quantidades mensais de 17 kg, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de 1.000 kg.
12. Em Maio de 2017, a 1ª R. deixou de consumir café da marca Camelo, Lote ELDORADO e de comprar café à A.
13. Nessa sequência, a A. resolveu o contrato em apreço, o que fez através de carta registada com aviso de recepção enviada à 1ª R. em 08 de Maio de 2019.
14. Nos termos da cláusula Sexta Nº 3 foi estabelecida uma cláusula penal em caso de resolução do contrato por incumprimento, pelo que, deverão a 1ª R. indemnizar a A. no montante de € 18,72, por cada quilo de café que faltou para o cumprimento integral do contrato.
15. A 1ª R. apenas comprou 50 quilos de café, há que multiplicar os quilos não consumidos, ou seja, 950 Kg por € 18,72, o que dá um resultado de € 17.784,00.
16. A A. interpelou diversas vezes as RR., solidariamente responsáveis, por carta e pessoalmente através dos seus representantes comerciais, para que procedessem ao pagamento dos montantes devidos pela 1ª R. à A.
17. Não obstante, até hoje, nenhuma das RR. pagou qualquer montante.
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Na sentença recorrida ficou ainda a constar que:
Não se dão como provados quaisquer dos factos invocados na contestação, por as RR. não terem apresentado qualquer prova quanto aos mesmos”.
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Da nulidade da sentença
Segundo a al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. E segundo a al. d) do mesmo nº 1 a sentença é ainda nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
A necessidade de especificação dos fundamentos da decisão judicial emerge do art.º 154º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas.
Todavia, a sentença com fundamentação escassa ou deficiente não é nula.
É que, segundo Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221), “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 208º nº 1 do CRP; artº 158º nº 1)”. E mais refere que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.
Já sobre a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil Anotado, volume II): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Todavia, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
No caso concreto as RR. sustentam que o tribunal recorrido omitiu qualquer pronúncia sobre as excepções que foram deduzidas na contestação, relativamente à transferência do estabelecimento comercial e suas consequências e relativamente ao exercício abusivo do direito da A. à indemnização estipulada contratualmente, mais ficando por fundamentar essa sua “opção” omissiva.
Torna-se evidente que a sentença recorrida não padece do vício da nulidade por falta de fundamentação, na medida em que está expressa quer a fundamentação de facto, quer a fundamentação de direito, que conduz à decisão condenatória das RR.
Pode tal fundamentação estar incompleta ou mesmo errada. Só que tal circunstância não corresponde ao vício da nulidade, mas antes representa um erro de julgamento, que não determina a nulidade da sentença, mas a (eventual) modificação do que aí foi decidido, com recurso a fundamentação distinta da utilizada pelo tribunal recorrido.
Já relativamente ao não conhecimento das questões suscitadas na contestação, e que se reconduzem à invocação de excepções peremptórias (porque aptas a determinar a não verificação, total ou parcial, do direito que a A. faz valer em juízo), é patente que se verifica a invocada omissão de pronúncia.
Com efeito, na sua contestação as RR. alegaram que a A. acompanhou a transferência dos direitos da 1ª R. sobre os negócios (relativos à exploração dos estabelecimentos comerciais identificados na P.I.) a favor de uma outra sociedade comercial, incluindo a transferência dos equipamentos e de todos os produtos do comércio da A., e que foi por exclusiva responsabilidade desta que o contrato de fornecimento de café não se transferiu para a titularidade da referida sociedade comercial, assim estando justificado porque é que a A. deixou de fornecer café à 1ª R. (o que é o mesmo que dizer que está justificado o incumprimento definitivo da obrigação da 1ª R. de adquirir à A. as quantidades mínimas de café estipuladas no contrato). Mais alegaram ser abusivo o pedido formulado pela A., por contrário à boa fé, já que assenta numa desproporção entre o benefício da A. e o sacrifício imposto às RR., tendo presente os valores suportados pela A. e o valor da cláusula penal a que respeita o pedido.
Todavia, a matéria de excepção em questão não se apresenta especificada separadamente na contestação. Pelo que, não obstante a A. ter sido notificada para se pronunciar quanto a tal matéria de excepção e nada ter dito, resulta da al. c) do art.º 572º do Código de Processo Civil que tal falta de impugnação da factualidade essencial aí alegada é ineficaz para produzir o efeito cominatório que emerge do art.º 587º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Isso mesmo explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 642), ao referir que esta solução vem “melhorar a posição do autor, na medida em que impede, em tais circunstâncias [da falta de especificação separada das excepções], que opere o efeito cominatório correspondente à admissão dos factos novos que, a coberto de tais excepções, sejam invocados pelo réu”.
Dito de outra forma, não obstante a falta de resposta da A. aos factos que foram alegados na contestação (integrantes da matéria de excepção) não desencadear o efeito cominatório pleno invocado pelas RR., do mesmo modo não desencadeando o efeito cominatório correspondente à admissão de tais factos, uma vez que a matéria de excepção a que respeita não foi individualizada na contestação, ainda assim tal circunstância não dispensava o tribunal recorrido de conhecer dessa matéria de excepção, por força do disposto no art.º 608º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Não o tendo feito, verifica-se a omissão de pronúncia invocada, da qual resulta a nulidade da sentença recorrida, nos termos da referida al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
Não obstante, decorre do nº 1 do art.º 665º do Código de Processo Civil que o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo. E dado que a sentença recorrida coloca termo ao processo, entende-se ser de aplicar a regra legal em questão, pelo que vai este tribunal de recurso substituir-se ao tribunal recorrido, suprindo a omissão de pronúncia quanto à matéria de excepção constante da contestação e conhecendo o conjunto das restantes questões suscitadas pelas RR. (com excepção, naturalmente, da questão da invalidade da resolução do contrato, relativamente à qual já acima ficou decidido que não é passível de conhecimento em sede do presente recurso), que se prendem com a impossibilidade definitiva de cumprimento imputável à A. e com o exercício abusivo do direito de crédito da A. que decorre da aplicação da cláusula penal.
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Das nulidades processuais
Invocam as RR., a este título, que o interrogatório das duas testemunhas por si arroladas, que estiveram presentes na audiência final, carecia de ser efectuado pelo juiz que presidiu à mesma, relativamente à matéria da contestação, atenta a falta do ilustre mandatário das RR., o que não sucedeu, porque as mesmas testemunhas foram inquiridas apenas a instâncias da A., sem qualquer intervenção do tribunal recorrido. E, nessa medida, invocam estar-se perante a omissão da prática de um acto que a lei prescreve e que é causa de nulidade, nos termos do art.º 195º do Código de Processo Civil. Do mesmo modo, invocam que, face à falta de uma das testemunhas que tinham arrolado, o tribunal recorrido devia ter marcado nova data para a continuação da audiência final e notificado as RR. para se pronunciarem quanto a tal falta, em vez de concluir a audiência final. E, nessa medida, invocam estar-se igualmente perante a omissão da prática de um acto que a lei prescreve e que é causa de nulidade, nos termos do art.º 195º do Código de Processo Civil.
Ou seja, na óptica das RR. verificaram-se desvios à tramitação processual que se impunha, ocorridos na condução da audiência final (a qual teve lugar em 16/12/2022), e sendo que as omissões verificadas são susceptíveis de influir directamente no exame e na decisão da causa, desde logo porque representam a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, assim gerando a anulação da audiência final e, consequentemente, da sentença recorrida, segundo o princípio geral que emerge do art.º 195º do Código de Processo Civil.
Com efeito, e segundo tal princípio geral, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Recordando o afirmado por António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 235), “quaisquer irregularidades detectadas na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento”. Do mesmo modo, “o prazo de arguição (que é o geral: 10 dias – art. 149º) conta-se a partir do momento em que, depois de cometida a irregularidade, a parte intervier no processo ou em que for notificada para qualquer efeito posterior, desde que, no último caso, possa presumir-se que tomou conhecimento do vício ou podia ter tomado, se agisse com diligência”.
Também Alberto dos Reis explica (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, pág. 486-487), a respeito dos casos em que a irregularidade verificada na tramitação processual é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, que “os actos de processo têm um finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela”.
Dito de forma mais simples, sempre que o direito à tutela jurisdicional efectiva seja susceptível de ficar colocado em crise, desde logo porque a irregularidade verificada impede o exercício efectivo dos princípios do dispositivo, do contraditório ou da igualdade das partes, nas suas diversas dimensões processuais, está‑se perante uma nulidade processual.
Caso contrário, está-se perante uma infracção processualmente irrelevante, já que em nada afecta os actos praticados no processo.
Por outro lado, há ainda que recordar que, segundo o art.º 199º do Código de Processo Civil, esta nulidade de segundo grau (ou secundária, por contraposição às nulidades principais a que respeitam os art.º 186º a 194º do Código de Processo Civil) carece de ser invocada no próprio acto, quando a parte aí estiver presente (por si ou por mandatário), ou no prazo geral (de 10 dias, segundo o nº 1 do art.º 149º do Código de Processo Civil) contado do dia em que a parte interveio em algum acto processual ou em que foi notificada para qualquer termo do processo, “mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”. Como igualmente explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 239), “do que se trata aqui é de um juízo acerca daquilo que, num quadro de normalidade e de diligência, é suposto a parte apreender em face de uma concreta notificação. Servindo-se o legislador de conceitos indeterminados, tal permite um melhor ajustamento às concretas circunstâncias, sendo de afastar, no entanto, quer um juízo demasiado rigorista (retirando de cada notificação um efeito preclusivo mais lato), quer demasiado laxista (como se tal apenas devesse ocorrer quando seja dado específico conhecimento da ocorrência da nulidade)”.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto das irregularidades invocadas pelas RR. (e não cuidando, por ora, de apurar se as mesmas se verificam e se devem ser qualificadas como nulidades processuais), aquilo que importa reter é que se trata de situações decorrentes da realização da audiência final, em 16/12/2022.
Sendo certo que as RR. não estiveram presentes (por si ou por mandatário) nessa audiência final, o prazo para virem invocar as mesmas irregularidades contou-se, não da data da realização da audiência final, mas antes da data da notificação da sentença.
Com efeito, ao tomarem conhecimento da prolação da sentença puderam as RR. constatar que a audiência final de 16/12/2022 tinha sido concluída sem que houvessem sido notificadas para se pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do art.º 508º do Código de Processo Civil, relativamente à testemunha que havia faltado. E, do mesmo modo, sabendo que a audiência final estava terminada, sabiam igualmente que tinham acesso à acta e ao registo dos depoimentos aí prestados, para efeitos de poderem saber em que termos tinha ocorrido a inquirição de cada uma das testemunhas que haviam arrolado e que, tal como consta da sentença recorrida, haviam sido inquiridas na audiência final, na ausência do seu ilustre mandatário.
Dito de outra forma, desde que as RR. (ou, mais precisamente, o seu ilustre mandatário) tivessem actuado com a diligência que lhes era normalmente devida (e que lhes é imposta pelos art.º 7º e 8º do Código de Processo Civil, porque tal diligência mais não representa que uma densificação dos deveres da cooperação e da boa fé processual aí expressos), na sequência da notificação da sentença recorrida (expedida por via electrónica em 13/3/2023), ficavam a saber da forma como a audiência final de 16/12/2022 tinha ocorrido e, nessa medida, ficavam a tomar conhecimento da conduta do tribunal, no que respeita à produção da prova testemunhal por si arrolada.
Acresce que em 20/3/2023 a 1ª R. apresentou requerimento nos autos, pedindo que lhe fosse facultada a gravação da prova produzida. O que equivale a afirmar que a partir desse momento, pelo menos, era certo o conhecimento da conduta do tribunal recorrido, no que respeita às omissões ora invocadas. Nessa medida, e não tendo as RR. invocado as nulidades processuais correspondentes no prazo geral de 10 dias, contado dessa mesma data de 20/3/2023, precludiu o direito das mesmas à sua arguição, tendo‑se as mesmas por sanadas, e tudo se passando como se as irregularidades em questão não se tivessem verificado.
Ou seja, ao tempo da interposição do recurso (em 26/4/2023) já se tinham por sanadas as irregularidades em questão e, nessa medida, não há lugar a falar de quaisquer nulidades processuais relacionadas com a produção da prova testemunhal indicada pelas RR. e que seja susceptível de conduzir à anulação da audiência final e, subsequentemente, da sentença recorrida.
Pelo que, quanto a esta questão das nulidades processuais determinantes da anulação da sentença, improcedem as conclusões do recurso das RR.
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Da impossibilidade definitiva de cumprimento
Na sua contestação as RR. vieram defender-se por excepção, invocando desde logo que “os aditamentos ao contrato inicial decorrem de alterações à propriedade dos negócios por parte da R., sociedade”, “transferências que sempre tiveram acompanhamento dos funcionários da R.”, e tendo sido “por responsabilidade exclusiva da A., que o contrato R51/2015 não se transferiu para a esfera jurídica da nova titular do negócio”.
Da factualidade apurada resulta que a 1ª R. explorava dois estabelecimentos comerciais, tendo sido a consideração da titularidade desses dois estabelecimentos comerciais que conduziu à celebração do contrato de fornecimento de café e publicidade, em 24/5/2016, o qual foi reduzido a escrito.
Da factualidade apurada resulta ainda que tal contrato sofreu duas alterações, em 24/10/2016 e em 24/2/2017, ambas reduzidas a escrito sob a forma de aditamentos.
Ora, do escrito que corresponde ao aditamento de 24/10/2016 resulta que o clausulado contratual alterado corresponde:
- à estipulação da cedência pela A., em comodato, dos 2 guarda sois 3x3, das 40 cadeiras, e das 24 mesas identificadas no ponto 7. dos factos provados;
- à alteração do valor mencionado na cláusula sexta, nº 3, do contrato, para “o montante de 20,64 € por cada quilo de café não adquirido”.
Já do escrito que corresponde ao aditamento de 24/2/2017 resulta que a 1ª R. havia deixado de explorar um dos estabelecimentos comerciais (aquele denominado “... bar”), sendo acordada a devolução pela 1ª R. à A. de “1 máquina de café, 1 moinho de café, 1 depurador, 1 máquina de lavar, 9 mesas e 18 cadeiras (…), uma vez que, actualmente, são dispensáveis ao funcionamento do seu estabelecimento comercial”. Mais foi acordada a alteração do total de quilogramas de café a consumir e do consumo médio mensal, que passou para 1.000 quilogramas e para 17 quilogramas, respectivamente (enquanto na versão inicial do contrato estava fixado em 1.800 quilogramas e em 30 quilogramas, respectivamente). Foi ainda acordada a redução da contrapartida da exclusividade e da publicidade da marca Camelo referida em 9. dos factos provados, do valor de € 5.000,00 para o valor de € 3.000,00 aí referido. E foi ainda alterado o valor mencionado na cláusula sexta, nº 3, do contrato, para “o montante de 18,72 € por cada quilo de café não adquirido”.
Assim, desde logo não corresponde à realidade o invocado pelas RR., no sentido de os aditamentos ao contrato terem por base a transferência da titularidade dos dois estabelecimentos comerciais, já que apenas o segundo aditamento se relaciona com tal transferência de titularidade, e apenas relativamente a um dos estabelecimentos comerciais.
Por outro lado, resulta demonstrado que foram acordados os termos da alteração do programa contratual vigente, em razão da nova actividade comercial da 1ª R., limitada à exploração de um único estabelecimento comercial, e encontrando assim justificação a redução dos valores estipulados, seja no que respeita às quantidades de café a consumir, seja no que respeita ao equipamento comodatado e ao valor da comparticipação publicitária.
Dito de outra forma, mostra-se justificado porque é que não houve lugar à transmissão da posição contratual da 1ª R. no contrato para o terceiro que adquiriu o estabelecimento comercial denominado “... bar”, uma vez que a 1ª R. manteve a titularidade do estabelecimento comercial denominado “... Bistro”, e sendo com base nesse circunstancialismo que foi outorgado o segundo aditamento ao contrato, pelo qual se efectuou a redução das obrigações das partes contratantes, em linha com a redução da actividade comercial da 1ª R.
Do mesmo modo, não se pode afirmar que a prestação contratual da 1ª R., correspondente à aquisição mensal de pelo menos 17 quilogramas de café comercializado pela A., e até perfazer o consumo total de 1.000 quilogramas,  se tenha tornado impossível por causa que não lhe é imputável, mas sim à A.
Com efeito, não sofre qualquer controvérsia a existência da relação contratual, no âmbito da qual ficou convencionado que a A. fornecia à 1ª R. a quantidade total mínima de 1.000 quilogramas de café do seu comércio, para consumo por esta no seu estabelecimento comercial denominado “... Bistro”. Também não sofre qualquer controvérsia que, em contrapartida, a 1ª R. se obrigou a adquirir em exclusivo tal café da A., nas quantidades mínimas convencionadas.
Pode então afirmar-se a celebração entre as partes de um contrato‑quadro a partir do qual se estabelece a obrigação de celebração recíproca de contratos individuais de compra e venda do café em questão, em determinadas condições e quantidades.
Não se está pois perante um contrato de compra e venda, com a tipificação que emerge dos art.º 874º e seguintes do Código Civil, mas antes perante um contrato de distribuição comercial, atípico e inominado.
Todavia, e apesar do carácter atípico e inominado desse contrato, não deixa o mesmo de estar obviamente sujeito ao disposto no art.º 406º do Código Civil. Isto é, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”.
Ora, a pontualidade é um princípio fundamental que domina a matéria do cumprimento. A lei, ao afirmar que o contrato deve ser pontualmente cumprido, está a referir-se à pontualidade, não no seu sentido restrito, mas no sentido mais amplo, de que o contrato deve ser cumprido ponto por ponto, ou seja, em toda a linha. Significa, pois, que a lei não se refere à pontualidade só sob o seu aspecto temporal, mas pretende com o termo pontualidade afirmar que a obrigação deve ser executada nos precisos termos em que foi constituída.
Neste mesmo sentido, atribuindo este mesmo significado ao advérbio “pontualmente”, vejam-se as posições dos Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, na anotação ao art.º 406º do Código Civil Anotado, do Prof. Galvão Teles (“Direito das Obrigações”, 6ª edição, pág. 210) e do Prof. Antunes Varela (“Obrigações”, 2ª edição, 2º volume, pág. 131).
É sabido que o cumprimento é a realização da prestação creditória, é a prestação de coisa ou de facto. O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art.º 762º, nº 1, do Código Civil), sendo certo que, tanto no cumprimento da obriga­ção, como também no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).
A este respeito refere Almeida Costa (“Obrigações”, 3ª edição, pág. 715) que “segundo a boa fé, tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito, como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação, devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade”.
Ou seja, por força da celebração do contrato com a A. a 1ª R. obrigou-se a proceder de boa fé na execução do mesmo, designadamente desenvolvendo os esforços necessários e adequados para cumprir a sua obrigação de adquirir à A. a quantidade mínima de café convencionada.
Todavia, e como decorre da matéria de facto provada, cerca de três meses após a outorga do segundo aditamento a R. deixou de adquirir café à A., e tendo até aí adquirido apenas 50 quilogramas, da quantia total de 1.000 quilogramas estipulada.
Será, todavia, que essa circunstância é bastante para afirmar que a 1ª R. deixou de estar obrigada a adquirir café à A.?
Dispõe o nº 1 do art.º 790º do Código Civil que a obrigação se extingue quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
A respeito da interpretação de tal preceito legal ensina Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, pág. 68) que “para que a obrigação se extinga, é necessário, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por determinação da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por acção do homem”.
Ou seja, a extinção a que se refere o nº 1 do art.º 790º do Código Civil só ocorre se a obrigação, sendo possível no momento em que foi constituída, se torna absolutamente impossível em momento posterior, por causa que não seja imputável ao devedor (a 1ª R., neste caso concreto) mas a terceiro, ou que decorra de causas naturais e não domináveis pelo devedor.
No caso concreto não resulta provado qualquer facto que permita concluir que a 1ª R. deixou de adquirir café à A. com a anuência desta, designadamente porque deixou de explorar o estabelecimento comercial denominado “... Bistro”, tendo-o transmitido a terceiro (como havia feito com o estabelecimento “... bar”), e que a A. aceitou ou autorizou, por qualquer forma, que a posição da 1ª R. no contrato fosse  ocupada pelo adquirente.
Ou seja, a existir alguma impossibilidade definitiva de a 1ª R. continuar a adquirir café à A., designadamente porque tivesse transmitido a exploração do estabelecimento comercial “... Bistro” (o que nem sequer está demonstrado), só à 1ª R. era imputável tal impossibilidade definitiva, e não à A., desde logo porque não está demonstrado que a actuação da A. haja correspondido a qualquer acto susceptível de dispensar a 1ª R. do cumprimento da sua obrigação contratual de aquisição de café.
O que equivale a afirmar a manutenção da obrigação da 1ª R. de adquirir à A. a quantidade de café estipulada. Pelo que, mantendo-se a R. obrigada ao cumprimento da sua obrigação de aquisição mensal de, pelo menos, 17 quilogramas de café, até perfazer 1.000 quilogramas, o que não fez (já que só adquiriu 50 quilogramas), há que concluir que tal incumprimento fez nascer na esfera jurídica da A. o direito à resolução do contrato, face ao convencionado nos pontos 1. e 2. da cláusula sexta do contrato.
E podendo a A. resolver o contrato, como o declarou pela carta de 8/5/2019, a primeira consequência dessa resolução, face ao estipulado pelas partes no ponto 4. da já referida cláusula sexta do contrato, corresponde à obrigação da 1ª R. pagar à A. uma indemnização de € 18.72 por cada quilograma de café não consumido, e que no caso concreto corresponde ao valor de € 17.784,00 (ponto 15. do factos provados).
Ou seja, quanto a esta questão improcedem as conclusões do recurso das RR., não havendo que falar da impossibilidade definitiva de cumprimento imputável à A. (ou, pelo menos, não imputável à 1ª R.), susceptível de fazer afirmar a inexistência do referido direito indemnizatório da A.
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Do abuso de direito
Invocam as RR., todavia, que se apresenta como ilegítimo o exercício deste direito indemnizatório, não só porque a A. deixou de fornecer qualquer café à 1ª R. em Maio de 2017, deixando desde então de ter quaisquer custos, e sendo que o seu único custo corresponde à comparticipação monetária e ao comodato do equipamento colocado no estabelecimento comercial, que a A. pode reaver quando bem entender, mas igualmente porque o benefício que obtém assenta numa fórmula de cálculo totalmente arbitrária, por ser desconhecido o preço do quilograma do café que a A. iria vender e a margem de lucro da mesma.
A questão suscitada pelas RR. (e nunca conhecida pelo tribunal recorrido) prende-se assim, não só com a convocação do instituto do abuso de direito mas, sobretudo, com a convocação do disposto no art.º 812º do Código Civil.
Relativamente ao abuso de direito, do art.º 334º do Código Civil resulta que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada.
Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”.
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt), é afirmado que o abuso de direito, “tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil).
Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1.ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…).”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele.
E, então, ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram.
Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª).
Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss).
A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos.
Tem aqui ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidas no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964)”.
Do mesmo modo, e a propósito do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12/11/2013 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), que “são pressupostos desta modalidade de abuso do direito (…) os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou”.
Já no que respeita ao abuso de direito na modalidade da supressio, concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 5/6/2018 (relatado por Henrique Araújo e disponível em www.dgsi.pt), que “o abuso do direito – art. 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido”. E aí se fundamenta tal conclusão pela seguinte forma:
 “Esta outra variante do abuso de direito [a supressio] funda-se na tutela da confiança e na boa-fé. O que a distingue do venire contra factum proprium é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido. Assim, o comportamento reiteradamente omissivo da parte que poderia exercer o direito, seguido, ao fim de largo tempo, de um acto comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade da supressio.
É desnecessária a ocorrência de culpa por parte do titular, bastando a situação objectiva criada a partir da sua inércia, geradora de justificada confiança da pessoa contra quem o direito se dirigia.
Mais do que sancionar a inércia do titular do direito, o objectivo da supressio é o de proteger a legítima confiança do terceiro que, ao fim de largo tempo, é surpreendido com uma demanda que já não esperava.
O tempo necessário para que a supressio opere dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança, variando naturalmente de caso para caso.
É possível, no entanto, estabelecer algumas referências temporais. Assim, deverá ser inferior ao prazo da prescrição, porque de outro modo perderia utilidade; deverá, por outro lado, equivaler ao período necessário para convencer um homem comum, colocado na posição do real e perante as mesmas circunstâncias, de que não mais seria exercido o direito invocado.
Conforme tem sido sublinhado pela doutrina, a supressio (tal como outras modalidades do abuso de direito) é um remédio subsidiário para uma situação extraordinária e daí que sejam necessárias todas as cautelas na sua aplicação pelos tribunais”.
Do mesmo modo, concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 24/5/2011 (relatado por Sérgio Poças e disponível em www.dgsi.pt), que “o concreto decurso do tempo, por si só, sem mais, na normalidade das situações, nunca seria adequado a criar a convicção de que o titular jamais exerceria o direito”.
E mais concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 12/1/2021 (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt), que “não basta o exercício tardio do direito. É necessário que se atenda ao poder dos factos e sejam ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, e ainda que se verifique a obtenção de uma vantagem excessiva para o titular do direito, acompanhada da imposição de sacrifícios relevantes e injustificados para a contraparte”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se alcança que a invocação do abuso de direito, como forma de paralisar o exercício do direito indemnizatório da A., está votada ao insucesso.
É que não resulta da factualidade provada qualquer conduta da A. susceptível de levar as RR. a considerar que, mesmo que a A. resolvesse o contrato com fundamento no incumprimento da obrigação da 1ª R. de adquirir café à A. nas quantidades mínimas a que se havia obrigado, tal não conduziria a A. a exigir-lhes indemnização por tal incumprimento definitivo, nos termos convencionados. E se é certo que a A. deixou de fornecer café à 1ª R. a partir de Maio de 2017, tal cessação do fornecimento de café não ocorreu por vontade da A., mas antes porque a 1ª R. deixou de cumprir com o programa contratual, não mais consumindo café, nos termos em que se havia obrigado, pois que deixou de comprar café à A. O que significa que qualquer expectativa criada pelas RR. no sentido do não accionamento do disposto no nº 3 da cláusula sexta do contrato se apresenta como não séria, não sendo apta a paralisar o exercício do direito correspondente da A.
Do mesmo modo, o decurso de cerca de dois anos entre o termo dos fornecimentos e a comunicação da resolução contratual não se apresenta, por si só, como lapso de tempo bastante para permitir às RR. criar qualquer expectativa legítima do não exercício do direito à indemnização pelo incumprimento contratual.
Ou seja, não há que acompanhar a argumentação das RR., no sentido da verificação de qualquer situação de abuso de direito, apta a paralisar o exercício do direito indemnizatório da A.
Já no que respeita à redução equitativa do valor indemnizatório apurado, do disposto no art.º 812º do Código Civil resulta que tal redução deve obedecer a juízos de equidade e só no caso do valor apurado se apresentar como manifestamente excessivo.
Como já referiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 7/3/2006 (relatado por Urbano Dias e disponível em www.dgsi.pt), “Calvão da Silva faz notar que “na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, o juiz não deverá deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato (...); à situação respectiva das partes, nomeadamente a sua situação económica e social, os seus interesses legítimos, patrimoniais e não patrimoniais; à circunstância de se tratar ou não de um contrato de adesão; ao prejuízo previsível no momento da celebração do contrato e ao efectivo prejuízo do credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor (aspecto importante, senão mesmo determinante, ...); ao carácter à forfait da cláusula e, obviamente, à salvaguarda do seu valor cominatório” (in Cumprimento e Sanção Pecuniária, pág. 274 e ss.).
Igual sentido é colhido na lição de Pinto Monteiro, que, no entanto, não deixa de sublinhar a importância na averiguação da finalidade prosseguida com a estipulação da cláusula penal, “a fim de averiguar a essa luz, se existe uma adequação entre o montante da pena e o escopo visado pelos contraentes”, sendo que “na pena estipulada a título de indemnização o grau de divergência entre o dano efectivo e o montante pré‑fixado assume importância decisiva” (in Cláusula Penal e Indemnização, pág.741 e ss.)”.
Igualmente referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 24/4/2012 (relatado por Hélder Roque e disponível em www.dgsi.pt) que:
Destinando-se a cláusula penal a reforçar o direito do credor ao cumprimento da obrigação, a indemnização devida será aquela que tiver sido prevista na pena convencionada, mais gravosa para o inadimplente do que, normalmente, seria, que, em princípio, deve ser respeitada, dado o seu carácter «a forfait», e por corresponder à vontade conjectural original das partes, sendo certo que só, em casos excepcionais, deve ser reduzida, com vista a evitar abusos evidentes, situações de clamorosa iniquidade, a que conduzem penas, «manifestamente excessivas», francamente, exageradas, face aos danos efectivos.
A fim de não serem anuladas as vantagens da cláusula penal, respeitando-se a sua intangibilidade, o tribunal não só não deve fixar a pena abaixo do dano do credor, como nem sequer deverá fazê-la coincidir com os prejuízos efectivos verificados, porquanto a redução da pena destina-se, tão-só, a afastar o seu exagero e não a anulá‑la.
Efectivamente, o devedor não pode, em princípio, pretender pagar uma indemnização inferior ao valor da pena convencional fixada, com excepção, caso em que esta pode ser reduzida, de acordo com a equidade, da situação em que a mesma seja, manifestamente, excessiva, ou, extraordinariamente, excessiva, mas não em função do dano efectivo ocorrido que, aliás, o credor não tem de demonstrar, não podendo ter lugar uma intervenção judicial sistemática, sob pena de se arruinar o legítimo e salutar valor correctivo da cláusula penal e de se subestimar o seu carácter «a forfait».
(…)
No exercício do seu equitativo e excepcional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir a cláusula penal que se revele extraordinária ou, manifestamente, excessiva, tendo sempre presente o seu valor cominatório e dissuasor, e não uma cláusula penal, meramente, excessiva, cuja pena seja superior ao dano”.
Do mesmo modo, concluiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12/9/2019 (relatado por Catarina Serra e disponível em www.dgsi.pt), que “a redução (equitativa) prevista no artigo 812.º do CC exige que a pena convencionada seja “manifestamente excessiva”, o que significa uma desproporção substancial e uma desproporção ostensiva”, mais concluindo que “na ponderação do excesso manifesto devem ser ponderados vários índices e não apenas o da existência e da extensão dos prejuízo efectivos”, e fundamentando tal conclusão explicando que “sendo muitos e variados os índices que a doutrina aponta como devendo ser ponderados para a decisão do julgador e retendo apenas alguns dos mais importantes, poderia, por exemplo, a ré / recorrente ter provado a inexistência ou insignificância de prejuízos efectivos. Mas isto, por si só, não bastaria, dada a natureza da cláusula penal (compulsória, logo independente da existência e da extensão dos danos). Teria ré / recorrente de ter provado, além disso, por exemplo, que a gravidade da ilicitude por si cometida e a gravidade da sua culpa no incumprimento do contrato eram especialmente leves. Teria, enfim, a ré / recorrente de ter provado que, pelo conjunto de elementos obtidos por aplicação destes e de outros critérios, se justificava a redução da pena. Mas, como se disse, tal prova não foi produzida”.
Ora, reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, também aqui as RR. não lograram demonstrar (como era seu ónus, por força do disposto no nº 2 do art.º 342º do Código Civil) que o valor convencionado para cada quilograma de café não consumido (€ 18,72) era manifestamente superior ao valor de cada quilograma de café que a A. venderia à 1ª R., caso esta tivesse cumprido com a sua obrigação de aquisição dos 1.000 quilogramas de café convencionados.
Com efeito, se o que está em causa é a indemnização pelo dano positivo (pois que se trata de indemnizar os prejuízos que decorrem do não cumprimento definitivo do contrato pela 1ª R., colocando a A. na situação em que se encontraria se o contrato tivesse sido cumprido por aquela), para que se pudesse afirmar que a cláusula penal indemnizatória é manifestamente excessiva, tornava-se necessário poder concluir, desde logo, que o valor convencionado de € 18,72 é manifestamente superior ao beneficio económico que a A. auferiria com cada um dos 950 quilogramas de café que iria previsivelmente vender à 1ª R. Mas para tal tornava-se necessário que estivesse demonstrado qual era a medida desse benefício económico e que, desde logo, a sua expressão quantitativa permitia concluir pela insignificância ou reduzida expressão do correspondente dano emergente do incumprimento definitivo do contrato pela 1ª R.
Assim, e porque nada disso emerge da factualidade provada, torna-se evidente que não pode este tribunal de recurso lançar mão do referido critério da equidade para reduzir a cláusula penal indemnizatória, que as partes validamente estipularam.
O que equivale a concluir que, também quanto a esta questão, improcedem as conclusões do recurso das RR.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelas RR.

12 de Outubro de 2023
António Moreira
José Manuel Monteiro Correia
Higina Castelo