Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
645/21.5YLPRT-A.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DESPEJO
HABITAÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O tribunal judicial que deferiu um despejo de habitação cujo arrendamento foi resolvido, é materialmente incompetente para ordenar a notificação do Presidente de uma autarquia contra a qual pende execução em processo administrativo para cumprir a sentença exequenda de atribuição de habitação social.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No presente procedimento especial de despejo que S… intentou contra C… e H…, relativamente a imóvel arrendado para habitação, foi em 29.9.2023 proferida sentença do seguinte teor dispositivo:
IV -Decisão
Termos em que, face ao exposto, julgo procedente o presente procedimento especial de despejo e indefiro os pedidos do R. de diferimento da desocupação do locado/suspensão da entrega do locado e de notificação da Santa Casa da Misericórdia e Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, autorizando ainda a entrada no domicilio dos RR.
Mais decido não condenar o R. como litigante de má fé.
Valor: €18.450,00 (art.º 26º do D.L. nº 1/2013, de 07.01.).
Custas pelo R., sem prejuízo do apoio judiciário concedido - art.º 527º, nºs 1 e 2 do C.P. Civil”.
A sentença transitou em julgado em 06.11.2023.
Na mesma sentença deram-se como provados os seguintes factos:
1. Por escrito subscrito pela A. e pelos RR. aquela declarou dar de arrendamento a estes, para habitação dos mesmos, a fração autónoma designada pela letra …, para habitação, … do prédio urbano sito na …, na freguesia de …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … da mencionada freguesia, inscrito na matriz sob o art.º …, pelo prazo de 5 anos, com início em 01.12.2009 e termo em 30.11.2014, mediante o pagamento da renda mensal de €450,00, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
2. Por sentença proferida no âmbito da ação nº 2982/80.7T8VFX, transitada em julgado, intentada pelo ora R. contra a ora A., sendo a ora R. aí interveniente principal ativa, foi a mesma julgada improcedente e a ora A. absolvida do pedido de declaração de que o contrato de arrendamento referido em 1) se havia renovado até 30.11.2024, e do pagamento aos RR. da quantia de €11.460,90 a título de indemnização por benfeitorias, bem como da compensação entre tal montante e o montante em dívida das rendas de Abril de 2020 a Novembro de 2022, e do pedido de se abster de perturbar a posse e normal gozo do locado pelos RR. até Novembro de 2024, sob pena de condenação em sanção pecuniária compulsória.
3. Na sentença anteriormente referida foi ainda julgada procedente a reconvenção aí deduzida pela ora A. contra os ora RR., considerando-se a oposição à renovação do contrato comunicada aos RR. em 29.07.2029 como legal e tempestiva e a consequente cessação do contrato referido em 1) em 01.12.2020, condenando-se os ora RR. no pagamento à ora A. das rendas vencidas e não pagas desde Abril a Novembro de 2020, acrescidas de indemnização de 20% e de indemnização pelo atraso na entrega do locado.
4. A sentença referida em 1) absolveu os ora RR. do pedido de condenação deste por litigância de má fé, em virtude da pretensão dos mesmos ter soçobrado por questões de prova.
5. Em 07.04.2021 foi comunicado aos RR. pela A., mediante notificação judicial avulsa por contato pessoal do Solicitador de Execução, a resolução do contrato de arrendamento referido em 1) por falta de pagamento de rendas a partir de Abril de 2020”.
Na mesma sentença considerou-se, além do mais:
Vieram ainda posteriormente os RR. requerer a suspensão da entrega do locado, por ser sua casa de morada de família, invocando falta de habitação própria, falta de meios económicos e doenças crónicas, ao abrigo da Lei nº l - A/2020, de 19.03., mais concretamente do seu art.º 6º-E, nº 7, al. c). Tal preceito dispunha que ficariam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto nesse artigo os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo e dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, pudesse ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
A Lei nº l-A/2020 de 19.03., contudo, foi expressamente revogada pelo art.º 2º, al. a) da Lei nº 31/2023 de 04.07., dispondo-se ainda expressamente no art.º 4º deste diploma que a revogação das alíneas b) a e) do nº 7 e do nº 8 do art.º 6º-E da Lei nº l-A/2020 produzia efeitos no prazo de 30 dias após a publicação dessa Lei.
Decorrentemente, inexiste qualquer dúvida que o preceito ao abrigo do qual os RR. vêm requerer a suspensão da entrega do locado encontra-se revogado”.
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Em 14.2.2024 veio H… formular o seguinte requerimento:
“(…) tendo sido notificado da Ordem de Despejo e uma vez que foi opositor a um concurso de atribuição de habitação social pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, tendo obtido sentença favorável e encontrando-se pendente Requerimento Executivo para prestação de fato - Atribuição de habitação social - no processo nº …, que corre seus termos na … UO, do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa,
Vem, respeitosamente, requerer a Vexa. se digne ordenar, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada, a sua Exª o Presidente da Camara Municipal de Vila Franca de Xira que proceda à atribuição urgente da habitação em causa ao ora Requerente, deferindo-se o despejo para momento posterior a tal atribuição”.
Sobre este requerimento foi proferido em 20.02.2024 o seguinte despacho:
Indefere-se o requerido por o presente Tribunal ser materialmente incompetente para o efeito, cabendo tal apreciação ao Tribunal administrativo no processo indicado pelo R.
Notifique”.
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Inconformada, C… interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“1º Para obstar à colocação da Recorrente na rua, sem local onde pernoitar, a mesma solicitou a notificação da CMFVFX para, dando cumprimento à sentença condenatória, transitada em julgado por ausência de recurso o que faz presumir a concordância com a mesma.
2º E, na sequência do Requerimento Executivo pendente no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, cujo número de processo foi igualmente indicado,
3º No âmbito do dever de colaboração e obediência da entidade administrativa ao Tribunal, entende a ora Recorrente que tal pedido de notificação deveria ter sido deferido.
4º O que se justifica não só por inexistir incompetência material como e sobretudo por visar a extinção do presente processo, da maior vantagem para as partes, como ainda para dar efetividade à obrigação legal que impende sobre a CMVFX de não se limitar a invocar em vão a preferência que deve ser dada na atribuição de habitação social a quem esteja a ser vitima de despejo!!!!
5º Sobretudo quando tenha como única fonte de rendimento a reforma de €328,00 manifestamente insuficiente para pagar uma renda de €1.000,00, estando a CMVFX enquanto entidade gestora de património habitacional a dar cumprimento imediato a tal obrigação legal.
6º Por último arrola a Recorrente uma testemunha destinada a ser inquirida para prova de que não rendimento que lhe permitam arrendar outra casa e se for colocada ao relento, não tem onde pernoitar ficando imediatamente sujeita a sofrer de Covid, afigurando-se inconstitucional a revogação da proibição de despejo que este em vigor até ao Verão de 2023.
Termos em que deve presente recurso de Apelação ser admitido, com efeito suspensivo automático dado estar em causa a retirada da habitação, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a inquirição da testemunha arrolada para prova dos requisitos da proibição de despejo com base na inconstitucionalidade da revogação da Lei do COVID 19”.
Não foram produzidas contra-alegações.
O recurso foi admitido nos seguintes termos: “Por ser admissível, estar em tempo e a recorrente ter legitimidade, admito o recurso interposto pela R./requerida, o qual é de apelação, sobe imediatamente em separado e tem efeito devolutivo – art.ºs 629º, nº 3, al. a), 631 º, nº 1, 638º, nº 1, 644º, nº 2, al. g), 645º, nº 2, e 647º, nº 1 do Código de Processo Civil, não se aplicando o disposto no nº 3, al. b) deste último preceito por a decisão recorrida não pôr termo à ação”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a questão a decidir é a de saber se o despacho recorrido deve ser revogado e em consequência deve ser deferido o requerimento que tal despacho indeferiu.
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III. Matéria de facto
A constante do relatório que antecede.
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IV. Apreciação
Em primeiro lugar, notar que nada temos contra o efeito devolutivo fixado ao recurso, uma vez que se mostra correcta a invocação do não preenchimento da al. b) do nº 3 do artigo 647º do Código de Processo Civil, visto que o recurso vem interposto de decisão proferida depois da decisão final.
Em segundo lugar, dizer que a conclusão 6ª não tem procedência, visto que a sentença final transitou em julgado, e visto que o despacho recorrido se pronuncia em resposta ao requerimento feito no sentido de se “ordenar, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada, a sua Exª o Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira que proceda à atribuição urgente da habitação em causa”. Tendo transitado a sentença, não pode, nos termos do artigo 619º do Código de Processo Civil, reapreciar-se a aplicação do art.º 2º, al. a) da Lei nº 31/2023 de 04.07 feita na sentença, nem pode apreciar-se a inconstitucionalidade da revogação operada às disposições de protecção em situação pandémica.
Por outro lado, a parte final do requerimento que o despacho sob recurso não deferiu, não abre a porta à indicada reapreciação e apreciação, pois que o requerente se limitou a pedir que se defira “o despejo para momento posterior a tal atribuição”, isto é, da habitação social, pela Câmara, em cumprimento de decisão do Tribunal Administrativo, pedido de diferimento que dependia estritamente do deferimento da notificação. 
Isto posto, cumpre apreciar apenas se este tribunal não é materialmente incompetente para ordenar a notificação do autarca para atribuir a habitação que o tribunal administrativo lhe determinou, e relativamente à qual a recorrente afirma estar pendente um processo executivo.
A competência material corresponde à determinação que o legislador de organização judiciária, considerando as jurisdições existentes, faz, atribuindo aos tribunais judiciais, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – artigo 64º do Código de Processo Civil. 
Já para os tribunais administrativos estão reservadas as acções a que se refere o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro e alterações subsequentes.
Segundo o referido artigo 4º,
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) (…)
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 – (…)
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) (…)
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
(…)”.
É a recorrente que oferece, no requerimento que foi indeferido, que “foi opositor a um concurso de atribuição de habitação social pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, tendo obtido sentença favorável e encontrando-se pendente Requerimento Executivo para prestação de fato - Atribuição de habitação social - no processo nº …, que corre seus termos na … UO, do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa”.
Pendendo esta execução para efectivação da sentença que atribuiu a habitação, o incumprimento ou reiterado incumprimento da sentença por parte do executado constitui a questão, por excelência, do processo executivo, cuja pertinência à competência da jurisdição administrativa resulta do artigo 4º do ETAF, com exclusão, por via do artigo 64º do Código de Processo Civil, da competência dos tribunais judiciais.
Uma última palavra para dizer que o pedido de notificação ou o resultado dessa notificação não interessam à extinção destes autos, que já se mostram extintos com o trânsito em julgado da sentença que deferiu o despejo, tendo-se esgotado aí a questão substancial que o tribunal recorrido tinha para apreciar, e que era a medida da sua jurisdição.
Acertada por isso se mostra a decisão recorrida, nada havendo a censurar-lhe.
Tendo nele decaído, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC – sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e em consequência em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Registe e notifique.

Lisboa, 23 de Maio de 2024
Eduardo Petersen Silva
Teresa Pardal
Gabriela de Fátima Marques

Processado por meios informáticos e revisto pelo relator