Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8033/18.4T8SNT-A.L1-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES
TELEFONES
DIVULGAÇÃO
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– No âmbito do Código de Processo Civil Revisto, ressalvadas as situações em que a prova é de todo proibida, prestado o consentimento pelo visado para a divulgação do conteúdo de uma conversa telefónica em que o mesmo interveio – sem que previamente tivesse conhecimento desse facto -, estão as afastadas as questões relacionadas com o sigilo de comunicações.

II.– Ainda que se entendesse que seria de aplicar ao caso as normas contidas no direito penal, da conjugação do disposto nos artigos 126.º, n.º 3 e 167.º do Código de Processo Penal sempre teríamos de concluir que ainda que o modo de obtenção da gravação telefónica pudesse considerar-se como ilícito - por poder configurar uma intromissão na vida privada do lesado -, com o posterior consentimento do lesado, sempre teríamos de concluir pela exclusão da ilicitude deste meio de prova.

III.– O facto de um comportamento estar tipificado como crime não permite, por si só, concluir pela ilicitude e culpabilidade do agente uma vez que pode haver causas justificativas que legitimem aquele comportamento.

IV.– No âmbito de um processo cível, a junção de uma transcrição telefónica, em relação à qual temos o consentimento do lesado, reportada a uma conversa particular, versando um assunto também ele particular e de natureza cível – existência ou não de uma chamada telefónica, sendo o seu conteúdo reportado à existência de uma dívida entre as pessoas que mantiveram aquela conversa telefónica -, por não contender com a proteção dos factos que dizem respeito ao “núcleo duro da vida privada” (onde se inclui, naturalmente, “a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento de outras pessoas”), deve ser admitida e objeto de análise crítica, com os demais elementos constantes do processo.

V.– Autorizada a reprodução da conversa telefónica em Audiência, nada inibe a parte de proceder à sua transcrição e junção aos autos, sem prejuízo de a parte reagir a esta junção, fazendo uso dos meios de defesa que a lei lhe faculta, entre eles, a invocação da incorreção da transcrição e a falsidade do documento.

VI.– Tendo presente o consentimento prestado pelo ofendido e o facto de o conteúdo da conversa telefónica reportar-se a factos pessoais, de natureza cível, não incidindo sobre “factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida”, sempre seria de concluir pela admissão do documento que transcreve essa conversa ao processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



I.–RELATÓRIO:


No decurso da Audiência de Julgamento, e perante posições antagónicas assumidas pelo A. e pela Ré, durante o depoimento de parte que prestaram, foi pedida pelo Exmo. Mandatário desta última a acareação entre as partes, a que se procedeu, tendo cada uma delas mantido a sua versão inicial.

Na sequência deste resultado, o Exmo. Mandatário da Ré requereu diversas diligências que foram objeto de despacho judicial então proferido.

Posteriormente, e na sequência daquele despacho, a Ré apresentou requerimento em que procedeu à junção aos autos de um documento certificado notarialmente, cujo desentranhamento foi ordenado pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância com fundamento na ilicitude do meio de prova apresentado.

Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso de Apelação, no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

1.– O despacho recorrido indefere o requerimento de junção aos autos de um documento - certidão notarial – comprovativa da realização de um telefonema da R. para o A. havido em 12/6/2017 como referido nos art.s 21º e 22º da PI e foi apresentado na sequência do requerido na acta da sessão de julgamento de 10 de Maio de 2019, da posição tomada pelo autor e do douto despacho que determinou que perante o consentimento do autor estavam afastadas as questões de sigilo de comunicações;

2.– Ademais, o A. perante o requerido pela R. que incluía a reprodução e audição do telefonema na audiência, não invocou qualquer circunstância atinente ao telefonema, nem oposição à divulgação do seu conteúdo, tão só pugnando pelo indeferimento por alegada impertinência e intempestividade;

3.– O que não pode deixar de ser interpretado como não oposição à divulgação do teor do telefonema;

4.– Em matéria probatória vive-se hoje um regime amplo de plena liberdade dos meios de prova em que as regras processuais relativas à instrução da causa não são restritivas, mas no sentido da livre admissibilidade dos meios de prova;

5.– A junção aos autos do documento mandado desentranhar é admissível atento o disposto no arts. 413º e 424º do CPCiv e 370.º do CCiv.;

6.– A regra previstas nos art.º 126.º n.º 3 do CPPen não tem aplicação ao caso, desde logo porque não está em causa a introdução por um terceiro (agente de investigação criminal) nas comunicações, como meio de obter prova para fundamentar a acusação de um arguido em processo penal onde ao mesmo pode ser aplicada sanção privativa da liberdade;

7.– Do mesmo modo, não está em causa a previsão dos arts 26.º nº 1 nem 32.º n.º 8 da CRP, que cuidam da proteção da intrusão por terceiros na vida privada das pessoas, no segundo caso, tendo em vista a garantia no processo criminal perante a entidade que proceda às diligências de inquérito;

8.– Além disso, foi o próprio autor quem revelou uma comunicação eletrónica remetida pela sua advogada à ré a interpela-la para restituir uma alegada quantia, revelação de comunicação ocorrida apenas entre os dois intervenientes (emissor e recetor) o que fez sem prévia autorização da destinatária do email;

9.– E bem assim que, foi na sequência desse email que a ré efetuou o telefonema em causa ao autor e do qual ao defender-se na causa, descreveu na sua contestação, sendo inquestionável que assistia à autora o direito a defender-se da alegação pelo autor efetuada de que a sua advogada interpelou a R. para lhe restituir o dinheiro sem qualquer resposta da parte desta (cfr. art. 8.º da PI), ante a falsidade do que o autor alegara;

10.– O art.º 199.º n.º 1 do CPen, é uma norma de direito substantivo que, prevê e penaliza uma conduta em sede penal, não se destina a determinar a nulidade de meios de prova e muito menos na jurisdição cível, num caso de prova documental;

11.– É evidente a justificação da necessidade da R. na junção do documento, ante a negação por parte do autor, em depoimento de parte efetuado em Tribunal e sob juramento, para demonstração da veracidade da sua alegação e da falsidade da alegação do autor, o que sempre afastaria a ilicitude por via da aplicação do disposto nos art.ºs 31.º, 32.º e 34.º do Código Penal;

12.– No caso, havia antes de mais que proceder à ponderação dos valores em discussão e submeter à regra do art.º 35.º a solução a aplicar, sendo que do lado do autor não se vê a menor razão ou interesse a proteger com a não divulgação da comprovação da existência do telefonema e do teor do mesmo que não seja o seu interesse de evitar a comprovação de que faltou à verdade no seu depoimento;

13.– Pelo contrário, do lado da ré, é digno de tutela o seu direito à honra e dignidade pessoal violentados com o facto de o A. negar a existência de uma conversa entre ambos ocorrida e que demonstra a inverdade do alegado pelo A. na sua petição inicial;

14.– Por outro lado, é a falta à verdade no depoimento de parte do A. que determina a necessidade da ré em comprovar a ocorrência do telefonema e do seu conteúdo, não tendo outro meio de o fazer, sendo certo que só juntou a certidão notarial depois de o próprio autor por intermédio do seu mandatário ter prestado o consentimento para as diligencias de prova requeridas pela ré e, das quais fazia parte a audição do telefonema;

15.– Pelo que ao vir o autor, subsequentemente à junção, dizer que não dera autorização à gravação nem à divulgação, quando com isso, como hoje é patente do documento notarial, apenas pretende defender a falta à verdade do seu depoimento, configura um incontornável abuso de direito que torna a sua oposição tardia, manifestamente desmerecedora de tutela jurídica, por força do disposto no art.º 334.º do CCiv

16.– Violou a decisão recorrida o disposto nos art.º 334º, 335º, 342.º e 370.º do CCiv, 413.º 424º do CPCiv, 126º do CPPen e 199º do CPen;

Conclui, assim, pela revogação da decisão proferida e pela sua substituição por outra que admita a junção aos autos do documento notarial apresentado.

O A. contra-alegou sustentando a manutenção da decisão em recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II.–FACTOS PROVADOS

1.– No dia 10 de Maio de 2019, durante a sessão de Audiência de Julgamento, e na sequência dos depoimentos de parte antes prestados, o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância determinou a acareação entre o A. e a Ré tendo, após a sua realização, proferido o seguinte despacho:

“A acareação entre o Autor e a Ré ficou gravada no sistema integrado de gravação digital disponível neste Tribunal, com início a 16:24:33 e termo em 16:30:37.

Para que fique a constar em acta, feita a acareação entre depoentes, a Ré mantém as declarações já prestadas no sentido de ter realizado o telefonema a que alude no art .° 21° da sua contestação, tendo recebido a resposta constante no art.° 22° do mesmo articulado e não mais tendo, como ai referido, sido atendida pelo Autor.

O Autor mantém o seu depoimento no sentido de não ter recebido da Ré o telefonema a que alude o mesmo art.° 21° da contestação nem ter dado a resposta que consta no art.° 22° da contestação, nem tão pouco não ter atendido a Ré por dela não ter recebido qualquer contacto”.

2.– Após, o Exmo. Mandatário da Ré ditou para a Acta o seguinte requerimento:

“Na sequência do depoimento de parte acabado de produzir e concretamente no que respeita à forma negativa como o Autor respondeu aos factos constantes no ponto 21 e 22 da contestação, os quais em depoimento de parte da Ré haviam sido confirmados pela mesma, que inclusivamente informou o Tribunal dispor pelas vicissitudes do seu dispositivo telefónico da gravação desse telefonema, requer-se que, por se afigurar de incontornável interesse para a descoberta da verdade e por ventura permitir em tempo evitar consequências de maior gravidade atinentes à falsidade de um depoimento prestado sob juramento, requer-se a V. Ex.a se digne determinar o seguinte:

a)- uma prévia acareação entre os dois depoentes sobre a matéria em causa considerando o completo antagonismo das declarações e porque ainda que a redação do art.° 523° do C.P.C. sugira que a acareação possa ocorrer entre testemunhas ou entre estas e depoentes não proíbe e pelo contrario os princípios gerais de natureza probatória o sugere, em nome da descoberta da verdade material, que o mesmo tenha lugar;

b)- que seja determinada a notificação do autor para indicar o seu número de telemóvel à data, com vista a que a Ré juntando o extrato dos telefonemas efetuados no seu telemóvel na data referida no ponto 21 da sua contestação possa comprovar a falsidade do depoimento do Autor;

c)- que seja determinado, não resultando da acareação referida na alínea a) a solução da divergência, a audição da referida chamada telefónica entre as partes naturalmente colocando a Ré ao dispor do Tribunal os meios necessários para o efeito.

As presentes diligências probatórias são requeridas neste momento quer por decorrer da inesperada negação por parte do Autor de um facto pessoal e que o mesmo não poderia deixar de ter presente quer ainda por na sequência dessa negação ter sido possível à Ré entretanto localizar no seu telefone de então o registo do conteúdo desse telefonema”.

3.– Convidado a pronunciar-se, o Exmo. Mandatário do A. ditou para a Acta a seguinte resposta:

“As pretensões ora formuladas pela parte contrária, salvo melhor opinião, afiguram-se-nos impertinentes, inúteis para o objeto da presente ação, além do que padecem de extemporaneidade. Pelo que deverão ser indeferidas, o que se requer”.

4.– Após, o Exmo. Mandatário da Ré requereu que lhe fossem “dispensados alguns minutos para falar com o ilustre Mandatário do A.”, o que lhe foi concedido.

5.– Após regresso à Sala de Audiências, o Exmo. Mandatário do A. pediu “que lhe fosse concedido alguns minutos para falar com o seu constituinte”, o que também lhe foi concedido.

6.– Regressados à Sala de Audiências, o Exmo. Mandatário do A. ditou para a Acta o seguinte requerimento:

“As pretensões ora formuladas pela parte contrária, salvo melhor opinião, afiguram-se-nos impertinentes, inúteis para o objeto da presente ação, além do que padecem de extemporaneidade. Pelo que deverão ser indeferidas, o que se requer.

Na sequência da acareação entre ambas as partes, e apôs o mandatário do Autor ter falado com o próprio A., pelo mesmo foi dito não se recordar de ter recebido algum telefonema que é aludido nos artigos 21° e 22° da contestação, não obstante o Tribunal ordenara o que tiver por conveniente.

Na oportunidade o Autor desde já presta o seu consentimento identificando de imediato o seu número de telefone para os fins tidos por convenientes a saber: 96......., correspondente ao número que tinha à data do ano de 2017”.

7.– Ouvido, o Exmo. Mandatário da Ré disse nada ter a requerer ou reclamar.

8.– Após, o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância proferiu o seguinte despacho:

“Em face da posição ora assumida pelo Autor e porque relativamente ao requerido pela Ré na alínea b) do requerimento efetuado no início da audiência de julgamento não se colocam já questões de sigilo de telecomunicações, defere-se ao requerido concedendo se à Ré o prazo de 10 dias para, querendo, juntar aos autos os elementos que entenda por convenientes com vista a demonstrar a realização do contacto a que alude no art.0 21° da contestação”.

9.– No dia 20 de Maio de 2019 a Réu procedeu à junção aos autos de um certificado notarial, elaborado a seu pedido, pela Exma. Notária do Cartório Notarial de Odivelas a 15 de Maio de 2019, certificando que “lhe foi apresentado um telemóvel marca Samsung, com o número zero zero dois cinco oito oito quatro cinco oito sete quatro zero um um, para o qual ligou para se certificar do número, tendo verificado através da aplicação cal recorder, no item gravações, encontrar-se gravada a seguinte chamada de voz, efetuada para o contacto zero zero três cinco um nove seis quatro zero um três nove zero nove, com o seguinte conteúdo: (…)”, passando a descrever uma conversa em que identifica uma voz feminina e uma voz masculina.


III.– FUNDAMENTAÇÃO

O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto.

O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.º e 608.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.

Excluídas do conhecimento deste Tribunal de recurso encontram-se também as questões novas, assim se considerando todas aquelas que não foram objeto de anterior apreciação pelo Tribunal recorrido.

A questão colocada à apreciação deste Tribunal de recurso circunscreve-se a saber se a Ré podia, como o fez, proceder à junção ao processo do documento certificado notarialmente e mencionado sob o Ponto 9 dos Factos Provados ou se, como o entendeu o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, estamos perante uma situação em que o meio de prova utilizado é ilícito.

Em resumo, entende a Ré que está legitimada para proceder a esta junção de documento em face, desde logo, da posição processual assumida pelo A. [em que apenas alega a inutilidade, a impertinência e a extemporaneidade da requerida junção, não tendo manifestado qualquer oposição à divulgação do seu conteúdo], assim como pelo teor do próprio despacho judicial então proferido. Destes factos retira, assim, que estamos perante uma situação em que se verifica o consentimento do A., com o que estão afastadas as questões relacionadas com o sigilo de comunicações.

Defende ainda que os preceitos legais que regem agora a matéria da Prova e instrução da causa no âmbito do direito processual civil convergem para uma livre admissibilidade dos meios de prova”, contrariando a orientação restritiva que antes vigorava.

De forma diversa, defende o A. que estamos perante um meio de prova ilícito, o que justifica por recurso a normas contidas no Código Penal e no Código de Processo Penal, bem como pelos preceitos da Constituição da República Portuguesa, que também ali cita.

Vejamos.

Antes de apreciar qualquer questão relativa à admissibilidade ou não dos meios de prova e da licitude ou não na obtenção e junção documental aqui em causa, há que interpretar o que foi concretamente requerido pela Ré, a posição que concretamente o A. assumiu perante esse pedido e a decisão judicial então proferida, no exato contexto de todos estes factos, que são aqueles que importa decidir.

Só após a realização desta análise interpretativa é que estamos em condições de saber se há ou não lugar à apreciação da questão relativa à ilicitude/admissibilidade ou não de um determinado meio de prova – no caso, a transcrição de uma conversa telefónica passada entre o A. e a Ré -, e de analisarmos a posição que o Juiz da causa deve assumir na averiguação dos factos que importam à decisão do processo, ressalvadas que estão as situações em que a prova é de todo proibida, independentemente da posição assumida pelas partes quanto a essa matéria – artigos 411.º, 413.º, 417.º, n.º 3, 454., n.º 2, todos do Código de Processo Civil Revisto.

Resumidamente, a questão aqui em apreciação tem como antecedentes a considerar:

- o pedido formulado na ação pelo A. pedindo a condenação da Ré no pagamento de uma determinada quantia, assim como o comportamento da Ré que, segundo alega, se tem furtado a qualquer contacto consigo;

- a posição assumida pela Ré defendendo a inexistência dessa dívida e o facto de ter contactado o A. para esclarecimento desta facto, conforme alegado nos Pontos 21 e 22 da sua contestação, contacto este que o Réu afirma nunca ter existido – Pontos 6 a 8 da sua petição inicial.

Prestados os depoimentos de parte por A. e Ré, não foi possível obter qualquer esclarecimento uma vez que cada uma das partes manteve a sua posição inicial.

Pretendendo sair deste impasse, a Ré apresentou na mesma Audiência de Julgamento o requerimento acima transcrito sob o n.º 2 dos Factos Provados.

Para além da ali peticionada acareação ente as partes, que foi objeto de deferimento, foi ainda requerido:

- sob a alínea b), “a notificação do A. para indicar o seu número de telemóvel à data, com vista a que a Ré juntando o extrato de telefonemas efetuados no seu telemóvel na data referida no ponto 21 da sua contestação possa comprovar a falsidade do depoimento do A.”

- sob a alínea c), “que seja determinado, não resultando da acareação referida na alínea a) a solução da divergência, a audição da referida chamada telefónica entre as partes naturalmente colocando a Ré ao dispor do Tribunal os meios necessários para o efeito”.

Em relação a este requerimento, o A. limitou-se a dizer, conforme consta do Ponto 3 dos Factos Provados, que as pretensões da Ré afiguravam-se-lhe impertinentes, inúteis para o objeto da presente causa, além de que padecem de extemporaneidade”, concluindo pelo seu indeferimento sem que, concretamente, sobre o objeto do peticionado pela Ré, tivesse tomado qualquer posição de fundo, com o que sempre se teria de concluir que, para além das questões processuais acima referidas, não se opôs ao pedido de fundo formulado pela Ré.

Também como é ponto assente, a acareação entre as partes não teve qualquer resultado positivo, mantendo cada uma delas a sua versão inicial – Ponto 1 dos Factos Provados.

Certo é que ainda durante essa mesma sessão de Julgamento, e após conferenciar com o seu cliente, o Exmo. Mandatário do A. acabou por ditar para a Acta um requerimento em que o seu cliente diz “não se recordar de ter recebido algum telefonema que é aludido nos artigos 21.º e 22.º da contestação, não obstante o Tribunal ordenará o que tiver por conveniente”. Mais adiantando que: “na oportunidade o A. desde já presta o seu consentimento identificando de imediato o seu número de telefone para os fins tidos por convenientes a saber: 96......., correspondente ao número que tinha à data do ano de 2017”.
Ora, desta posição do A. ressaltam desde logo dois factos importantes: em primeiro lugar, altera a posição inicialmente assumida na sua petição e mantida em Audiência, em que negava a existência desse contacto com a Ré, e passa a referir que não se recorda”. Tratando-se de um facto pessoal e com a relevância que nos autos assume enquanto facto instrumental, sempre será de se retirar as devidas ilações em sede de apreciação da prova e prolação da sentença. Em segundo lugar, dá novamente o seu consentimento [desta vez, de forma expressa] – com a indicação do seu número de telefone -, para a junção do extrato telefónico que comprove a existência daquela conversa, bem como para a audição do conteúdo daquela conversa, nos termos indicados pela Ré no requerimento formulado e já acima transcrito – Ponto 6 dos Factos Provados.

Diga-se, aliás, e conforme já acima deixamos expresso, que este consentimento tinha já sido prestado quando, perante o primeiro requerimento realizado, o A. não se opôs ao conteúdo do ali solicitado, tendo-se apenas pronunciado sobre questões formais como o é a da inutilidade, extemporaneidade e a impertinência do solicitado.
 
Nada nos refere a lei sobre o momento em que preclude a prestação do consentimento, pelo que podemos entender que o mesmo tanto pode ser dado antes da realização da gravação, como depois da mesma ter sido efetuada, como foi o caso aqui em apreciação quando o A. se pronuncia sobre o concreto requerimento apresentado pela Ré.
 
Nestes termos, sempre teríamos de concluir que o A. deu o seu consentimento, não tendo invocado quaisquer das circunstâncias mencionadas no artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não podendo vir agora, em clara oposição ao que antes aceitou, opor-se àquela audição. Retenha-se que esta oposição surge apenas quando a Ré procede à junção do documento aqui em análise e não, nos momentos processuais que lhe foram conferidos para se pronunciar, em obediência ao princípio do contraditório, assumindo agora um comportamento em clara violação ao que antes tinha já deixado expresso no processo.

Acresce que, vigorando no âmbito do direito processual civil uma apreciação ampla dos meios de prova carreados para o processo, em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto, e entendendo-se que a norma contida no artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa não tem aplicação nesta sede - desde logo, por se tratar de uma norma excecional e que, como tal, não comporta interpretação analógica -, sempre teríamos de concluir que as sanções apontadas no âmbito do direito penal para a exclusão de utilização dos meios de prova, face à ilicitude na sua obtenção, não podem ser aplicados diretamente às situações que regulam o direito processual civil – neste sentido, Salazar Casanova, citado por Carlos Castelo Branco, A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina, 2018, págs. 214/ss -, que corrobora esta posição, mais referindo a este propósito:

“A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova (…) é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (…).

Apenas há uma singela referência no artigo 417.º do CPC (…), preceito onde se prevê um dever genérico de cooperação probatória, sanções para a recusa de cooperação e três causas de legítima recusa de cooperação.
É duvidoso que esta norma – em particular o n.º 3 do referido preceito legal – tenha alguma influência sobre a temática da prova ilícita” – ob. cit. pág. 218/219.

Prosseguindo nesta análise, este autor estabelece um regime de provas que cataloga como: provas ilícitas absolutas e provas ilícitas relativas. Em relação às primeiras, e independentemente do consentimento do lesado, por se reportarem a prova que decorre da violação de direitos absolutos, ou seja, obtida “mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”, deve ser considerada como inexistente, podendo o Tribunal conhecer desse vício a todo o tempo.

Em relação às segundas, as provas relativamente ilícitas, a que se reporta o artigo 417.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil Revisto [as que envolvem a intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e as que determinam violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou de segredo do Estado, caso tais segredos não sejam “quebrados” nos termos da lei], defende que o consentimento do lesado já é relevante em termos de retirar ilicitude ao acto lesivo” – ob. cit., pág. 231/232.
 
Incidindo agora a nossa atenção para aquelas a que se reporta a alínea b), do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil Revisto – as que importa analisar perante a situação dos autos -, temos que esse “consentimento” do lesado é relevante, apenas se colocando a questão de recurso ao princípio da proporcionalidade nos casos em que esse consentimento não é prestado, no momento processual próprio, no caso, com a apresentação da prova e o posterior exercício do contraditório.

Mas ainda que se entendesse que seria de aplicar ao caso o Código de Processo Penal, como o defende o A./Apelado, a solução sempre seria a mesma.

Com efeito, num primeiro plano sempre seria de ter presente que não há regulamentação no Código de Processo Penal quanto “às provas obtidas por particulares em relação à tutela da vida privada, pelo que a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal”, sendo que nesta sede tem vindo a ser entendido que pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio – Ac. do TRP de 27.Janeiero.2016, proferido pela senhora Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, no Proc. 1548/12.0TDPRT.P1, citado no Ac. do TRL de 21.Março.2019 proferido pela senhora Desembargadora Margarida Vieira de Almeida, Proc. 1784/17.2T9AMD.L1-9, disponíveis, respectivamente, em www.dgsi.jtrp.pt e www.dgsi.jtrl.pt.

Ora, ainda que estivéssemos perante uma situação que pudesse ser tipificada pelo artigo 199.º do Código Penal, respeitante ao crime de gravações ou fotografias ilícitas, obtidas sem o consentimento e contra a vontade do lesado – o que constitui ofensas ao direito à imagem -, certo é, no entanto, que no caso aqui em apreciação, temos também um outro fator a atender: o consentimento do visado na escuta da conversa telefónica aqui em apreciação, prestado em momento posterior ao da realização da gravação – reprodução daquela conversa em Audiência de Julgamento.

Da conjugação do disposto nos artigos 126.º, n.º 3 e 167.º do Código de Processo Penal sempre teríamos de concluir que ainda que a gravação telefónica em causa pudesse inicialmente enquadrar-se como uma situação em que a obtenção e recolha desta prova fosse ilícita - por poder configurar uma intromissão na vida privada do lesado -, certo é que, com o posterior consentimento do respetivo lesado, como foi o caso, deixa de ocorrer a nulidade decorrente da forma como foi obtida esta prova e, como tal, sempre teríamos de concluir pela exclusão da ilicitude deste meio de prova – neste mesmo sentido, veja-se o Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Paulo Pinto de Albuquerque, Universidade católica Editora, 4.ª ed.ª, 2011, págs. 355/ss e 463/ss.

Ainda que assim se não entendesse, e se defendesse que a Ré praticou um crime -, o que lhe retiraria a possibilidade de poder proceder à audição daquela gravação de voz e desta poder ser utilizada em Tribunal -, certo é que o comportamento assumido pelo A. nos autos, negando a própria existência do telefonema, quer na sua petição inicial, quer no depoimento de parte e na acareação – sendo incontornável que estamos perante um facto pessoal, volta-se a sublinhar -, permite concluir que a Ré teria sérias razões para realizar aquela chamada telefónica como única forma de poder afirmar a sua existência em Tribunal.

Por outro lado, provadas que sejam as demais circunstâncias alegadas na contestação, também este ponto de facto instrumental pode permitir uma outra dimensão à convicção a formar pelo julgador, perante a globalidade de toda a prova a realizar.

Neste contexto, sempre teríamos de concluir que o simples facto daquele comportamento da Ré poder estar tipificado como crime, não permite concluir pela sua ilicitude e pela culpabilidade do agente uma vez que pode haver causas justificativas que permitam aquela gravação, como neste caso tudo aponta para existir como já acima referimos, uma vez que a Ré não tem possibilidades de provar ter realizado a conversa com o A., ou o seu conteúdo, sem ser através da audição daquela gravação cujo conteúdo, no caso, não se reveste de uma imputação de factos de natureza penal ao aqui A., mas sim, de factos de natureza cível.

Assim, também nesta análise, sempre teríamos de concluir pela admissibilidade da prova aqui em apreciação.

Como nota explicativa sempre se deixa aqui expresso que toda a jurisprudência citada pelo A. nas suas alegações de recurso, e que preconiza uma decisão judicial distinta, pressupõe uma realidade factual diferente daquela que aqui analisamos, como seja, a da não oposição do A. ao pedido de audição da chamada telefónica gravada e que, como entendemos, não pode deixar de ser interpretada como um consentimento prestado pelo A. quanto a essa mesma audição, conforme acima já deixamos expresso.

Por fim, importa sublinhar que é o próprio despacho judicial acima transcrito sob o ponto 8 dos Factos Provados que permite à Ré proceder à junção do documento apresentado a 20 de Maio de 2019 – certificado notarial -, contento a transcrição do telefonema a que se reporta os Pontos 21 e 22 da contestação, quando refere: “(…) concede-se à Ré o prazo de dez dias para, querendo, juntar aos autos os elementos que entenda por convenientes com vista a demonstrar a realização do contacto a que alude no artigo 21 da contestação”.

Neste contexto, era lícito á Ré proceder à junção da transcrição telefónica aqui em causa, reportada a uma conversa particular que foi mantida entre o A. e aquela, versando um assunto também ele particular e de natureza cível – existência ou não de uma chamada telefónica e o seu conteúdo reportado à existência de uma dívida entre ambos -, elementos que não contendem com a proteção dos factos que dizem respeito ao “núcleo duro da vida privada”(onde se inclui, naturalmente, “a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento de outras pessoas”).

Acresce que não nos podemos esquecer que estamos perante uma materialidade para a qual o A. deu o seu consentimento, muito embora o tivesse feito tendo em atenção o pedido da audição de tal conversa telefónica em Audiência, conforme peticionado pela Ré no requerimento apresentado.

O facto de o A. ter dado o seu consentimento para a audição desta gravação telefónica em Audiência pode levar a concluir que a não deu para que o seu conteúdo pudesse ser transcrito e junto ao autos? Salvo o devido respeito, entendemos que não. Sendo incontornável que o consentimento reporta-se à audição, certo é que se a transcrição apresentada não for distinta daquela, não se compreende a oposição à junção do documento.

Assim, autorizada a reprodução da conversa telefónica em Audiência, nada inibe a parte de proceder à sua transcrição e junção aos autos, sem prejuízo de a parte reagir a esta junção, fazendo uso dos meios de defesa que a lei lhe faculta, entre eles, a invocação da incorreção da transcrição e a falsidade do documento.

Ora, certo é que junta aos autos essa transcrição do telefonema aqui em causa, o A. não invocou a sua incorreção de transcrição e/ou a sua falsidade, como o poderia ter feito, conformando-se com o seu teor, pelo que, também sobre este prisma, nada há que impeça a sua junção ao processo.

De realçar ainda que, a oposição mantida pelo A., apenas depois da junção desse documento ao processo, bem como nas suas alegações de recurso, nada tem de consentâneo com a posição anteriormente assumida no processo e constante dos Pontos 3 e 6 dos Factos Provados, no exercício do seu direito ao contraditório em face do requerimento formulado pela Ré no Ponto 2 dos Factos Provados.

Também o Tribunal, se dúvida tivesse sobre o conteúdo deste documento, sempre poderia determinar a sua audição nos termos antes peticionados – ou seja, proceder à audição da chamada telefónica em Audiência de Julgamento, fornecendo a Ré os meios necessários para esse efeito, tal como já o tinha disponibilizado -, na execução dos amplos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 411.º do Código de Processo Civil Revisto, tendo sempre em vista a descoberta da verdade material.

Prestado que foi o consentimento por parte do A., há ainda que verificar se a matéria em causa pode incluir-se no disposto no artigo 454.º do Código de Processo Civil Revisto, reportado ao depoimento de parte e que entendemos que deve também ser alargado às conversas mantidas pela parte, por forma a manter a proteção legal ali prevista.

Analisando, temos que, como já acima referimos, o conteúdo da conversa mantida entre o A. e a Ré reporta-se a factos pessoais, de natureza cível e não incide sobre “factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida”.

Perante este cenário sempre seria de se concluir pela junção aos autos do documento apresentado pela Ré a 20 de Maio de 2019, como prova dos factos que foram por si oportunamente invocados nos artigos 21 e 22 da contestação e cuja existência o A. negou até à parte final da Audiência de Julgamento, passando então a alterar a sua posição para o não se recordar”, circunstância que, por si, mais justifica a necessidade de manter este documento no processo.

Todas as demais questões relacionadas com a ilicitude ou não da audição da chamada telefónica quedam como inúteis em face da autorização prestada pelo A. e, como também acima já referimos, pela própria decisão judicial que fixou prazo à Ré para juntar os elementos de prova, nos termos que ali ficaram delineados.  


IV.– DECISÃO

Face ao exposto, julgando-se procedente a Apelação da Ré, revoga-se a decisão proferida pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, determinando-se a manutenção nos autos do documento apresentado pela Ré a 20 de Maio de 2019 que deverá ser analisado com os demais meios de prova apresentados pelas partes, anulando-se todos os actos processuais praticados posteriormente ao despacho aqui visado que estejam em oposição à presente decisão.

Custas pelo A.


Lisboa, 22 de Outubro de 2019


Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
Maria da Conceição Saavedra