Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
264/2007-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: SIMULAÇÃO
VENDA A DESCENDENTES
IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - De acordo com o estatuído nos artºs 2156º, 2159º e 2168º do Código Civil, todas as pessoas são livres de dispor dos seus bens desde que com esses actos de vontade não afectem, prejudiquem ou diminuam a legítima destes seus herdeiros.
II – Não sendo da partilha de uma herança que se trata, por mais eticamente indefensável que, por alguns, tal possa ser considerado, o acto de privilegiar um filho ou uma filha em detrimento de outros não é, em certas condições, ilegal (ilícito) e muito menos proibido.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa:

1. ROSA intentou contra T, este entretanto falecido, ISABEL e outros os presentes autos de acção declarativa com processo comum e forma ordinária que, sob o nº 885/96, foram tramitados pela 1ª secção da 13ª Vara Cível do Tribunal da comarca de Lisboa e nos quais, depois de ter sido admitida a intervir na lide como Ré a “SOCIEDADE”, foi proferida a sentença que se encontra a fls. 603 a 612, cujo decreto judiciário é o seguinte:
”Por todo o exposto, julgo a acção improcedente, por não provada, absolvendo os Réus do pedido.
Custas pela Autora....” (sic).

Inconformada, a Autora ROSA apresentou recurso contra essa decisão (fls. 630 a 664), requerendo que seja revogada “...(a) douta decisão recorrida …(e) substituída por outra que condene os Recorridos na:
a) decretação da nulidade e de nenhum efeito o acto de constituição da “sociedade familiar … Princesa”, sob a forma civil, outorgada em escritura exarada no 2º Cartório Notarial de Lisboa em 13 de Dezembro de 1991 e exarada a fls 89v e seguintes do Livro n.º 272-D,
b) e, consequentemente na decretação da nulidade da aquisição pela mesma sociedade do imóvel sito na Av. Santa Joana Princesa, da freguesia de São João de Brito em Lisboa,
c) como litigante de má fé em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros) a favor da Recorrente.” (sic), formulando, para tanto, as 30 conclusões que se estendem por fls 660 verso a 664 dos autos, nas quais invoca haver que alterar o teor da alínea F) da «especificação», bem como o das respostas dadas aos «quesitos» 2º a 6º, 8º a 12º e 16º a 18º, e ter ocorrido a violação do disposto nos artºs 877º, 939º, 980º, 988º, 1001º e 240º, todos do Código Civil.

Os recorridos apresentaram as contra-alegações que constituem fls 815 a 817 do processo, nas quais pugnam pela total improcedência da apelação.

2. Considerando as conclusões das alegações da ora apelante (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso – n.º 3 do art.º 668º do CPC e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código de Processo) as questões a decidir nestes autos de recurso são as seguintes:
- pode ou não manter-se o teor da alínea F) dos «Factos Assentes», bem como o das respostas dadas aos nºs 2º a 6º, 8º a 12º e 16º a 18º da Base Instrutória, correspondendo ou não essas respostas a uma correcta apreciação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento ?
- estão ou não verificados os pressupostos legalmente previstos que permitem que seja decretada a condenação pedida pela apelante nas suas alegações de recurso e que lhe foi negada na sentença recorrida ?

E sendo estas as questões que compete dirimir, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por terem sido cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 700º a 720º do CPC), tendo sido, em tempo oportuno, colhidos os Vistos dos Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos.

3. Os factos relevantes para a apreciação do mérito do recurso são os que foram descritos pelo Tribunal de 1ª instância, tal como consta de fls 605 a 608 dos presentes autos (nºs 1 a 27 elencados sob a epígrafe «São os seguintes os factos provados»), decisão essa que, nessa parte e salvo no que se reporta à alínea F) dos “Factos assentes” e às respostas ao perguntado nos nºs 2º a 6º, 8º a 12º e 16º a 18º da Base Instrutória, não foi posta em causa pela recorrente, o que dispensa este Tribunal de agora aqui transcrever essa factualidade (art.º 713º n.º 6 do CPC), para a qual, simplesmente, se remete.
E o que se afirmou nessa alínea e se perguntava e se respondeu nesses números era e foi o seguinte (sic):
- alínea F) da “Especificação”: Entretanto, decidiram os pais da A. adaptar o referido imóvel para, no seu local, construírem 3 fracções autónomas;
- Base Instrutória (dita “Questionário”):
1º - Os pais da A. informaram esta que as fracções em causa se destinavam uma a cada filho ?
Resposta - «provado que os pais da Autora informaram esta que pretendiam ampliar a vivenda da Avenida Santa Joana Princesa, que possuíam, de modo a que, para além deles, pais, cada filho ficasse com uma fracção»;
2º - Pretenderam que a A. contribuísse em partes iguais para todas as despesas do projecto e licenciamento ?
Resposta - «provado que pretenderam que a A., na 1ª parte do projecto, contribuísse em partes iguais para as despesas do projecto»;
3º - E nesse mesmo projecto ser-lhe-ia atribuída uma fracção com área de 1/6 inferior à dos segundos Réus e 1/3 inferior à dos terceiros Réus ?
Resposta - «provado que num dos projectos propostos a fracção que lhe era atribuída tinha uma área inferior a outras duas fracções que constituíam duplexes»;
4º - A A. ainda apresentou um projecto alternativo pelo qual a área das fracções atribuídas não favorecesse os outros herdeiros ?
Resposta - «provado que a esse projecto a Autora contrapôs um outro de um só piso em que as áreas das fracções eram iguais»;
5º - A A. só soube que estava excluída da obra pelo guarda da obra adstrito ao empreiteiro, que a avisou nesse sentido ?
Resposta - «não provado»;
6º - Fê-lo quando a obra estava em construção ?
Resposta - «provado que a Autora só soube da efectiva ampliação da moradia quando esta estava em construção»;
8º - Só então este lhe comunicou que existiria uma sociedade com designação semelhante a “Sociedade Imobiliária” ?
Resposta - «provado que tendo-lhe este comunicado que existia uma sociedade …»;
9º - Com tal procedimento quiseram os Réus, em conjunto e conluio, impedir a intervenção ou acompanhamento da A. em qualquer acto de compra e venda que os seus irmãos ou pais quisessem fazer ?
Resposta - «não provado»;
10º - E impedi-la de obter um quinhão hereditário semelhante ao de seus irmãos em qualquer herança ?
Resposta - «não provado»;
11º - Ou de se habilitar a partilhas em quota da sociedade ?
Resposta - «não provado»;
12º - A A. sempre se desinteressou e tentou a não concretização da proposta de seu pai, segundo a qual naquela vivenda se criariam 4 espaços autónomos para habitação dos agregados familiares dos Réus e da A. ?
Resposta - «Provado que a partir de certa altura a A. desinteressou-se da proposta de ampliação da moradia»;
16º - Na concretização do projecto que tinham em mente, cada um dos agregados familiares dos RR. concorreriam na proporção do valor da permilagem de uso que lhes fosse atribuída, nas respectivas despesas de construção civil e outros encargos, mormente administrativos ?
Resposta - «provado que na concretização do projecto que os Réus tinham em mente, cada um dos agregados familiares dos Réus concorreriam na proporção do valor da permilagem de uso que lhes fosse atribuída, nas respectivas despesas de construção civil»;
17º - Face a tão avultado investimento decidiram criar uma sociedade ?
18º - Para que as despesas de cada um entrassem em sede de deduções à matéria colectável do rendimento fiscal de cada um dos Réus ?
Resposta conjunta - «provado que face a um tão avultado investimento, decidiram criar uma sociedade, passando as despesas efectuadas a ser deduzidas à matéria colectável do rendimento fiscal da sociedade».

4. Discussão jurídica da causa.
4.1. Pode ou não manter-se o teor da alínea F) dos «Factos Assentes», bem como o das respostas dadas aos nºs 1º 2º a 6º, 8º a 12º e 16º a 18º da Base Instrutória, correspondendo ou não essas respostas a uma correcta apreciação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento ?
4.1.1. Ao iniciar a análise do mérito do recurso importa salientar e clarificar que, não obstante a Autora ser herdeira legitimaria do falecido T e de no apenso B ter sido decretado que a mesma se encontra habilitada “para prosseguir na demanda declarativa em substituição do falecido T” (sic), face ao patente e não sanado conflito de interesses a que estes autos se reportam, só os Réus recorrentes podem ocupar esse lugar processual.
De igual modo e ainda como questão prévia, entende este Tribunal de recurso por bem referir que, atendendo à posição jurídica que neste acórdão se irá sustentar, constitui quase um acto inútil, impertinente e dilatório, apreciar se pode ou não manter-se a sentença recorrida na parte respeitante à matéria de facto considerada provada em 1ª instância, pois, mesmo que satisfeita essa pretensão da Autora ora apelante, a solução do litígio será, em sede de Direito, a mesma.
E o Legislador qualifica esses actos como ilícito, logo, sendo proibida e sancionada a prática dos mesmos (artºs 137º e 265º n.º 1 do CPC).
Todavia, porque outros podem não sufragar essa interpretação das normas legais aplicáveis, ir-se-á, apesar de tudo, conhecer da validade da argumentação exposta pela recorrente ROSA quanto a essa parte da sua apelação, ou seja, aquela em que a mesma põe em causa a decisão do Tribunal de 1ª instância respeitante à indicação da matéria de facto considerada provada e não provada.
4.1.2. Nas conclusões 1) a 4), a apelante limita-se a descrever factos que estão assentes no processo e, por essa razão, são as mesmas totalmente irrelevantes para o que neste momento se discute. Resta, então, a matéria a que aludem as conclusões 5) a 7) – sendo que as demais se reportam à crítica à fundamentação em matéria de Direito da sentença recorrida – nas quais é atacada a apreciação da prova feita pelo Mmo Juiz a quo.
Por razões de pura lógica, é conveniente apreciar separadamente a crítica feita ao texto da alínea F) dos “Factos Assentes”.
Assim e nessa parte, a argumentação da apelante é totalmente inaceitável; no momento processual em que foi realizada a selecção da matéria de facto (art.º 511º do CPC) só aquela factualidade podia, na altura (repete-se), ser dada como assente, pois, em bom rigor e perante as versões contraditórias apresentadas pelas partes nos seus articulados, tudo o mais se encontrava ainda controvertido.
Há, portanto, que manter inalterado o texto da alínea F) dos “Factos Assentes”.
4.1.3. Passando, então, à análise das respostas à Base Instrutória, para usar as palavras do Prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil”, «No âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351, CC) por natureza implica …».
Ou, como adianta de um modo ainda mais inequívoco o Ex.mo Juiz Conselheiro Jorge Augusto Pais de Amaral, in “Direito Processual Civil (4ª edição - Almedina)”, «O tribunal … aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – art.º 655º, n.º 1.
Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.
A própria lei substantiva manda que o tribunal aprecie livremente a força probatória das respostas dos peritos – art.º 389º - o resultado da inspecção – art.º 391º - e a força probatória dos depoimentos das testemunhas – art.º 396º - todos do Código Civil».
Finalmente e quanto ao teor das declarações proferidas pelas testemunhas, há que recordar que a Humanidade já há muito, nomeadamente desde Gottfried Wilhelm von Leibniz (nascido a 1 de Julho de 1646 e falecido a 14 de Novembro de 1716), que tomou consciência que não há certezas absolutas, mas tão só certezas probabilísticas. E, considerando o lapso de tempo já decorrido (segundo a Autora, os trabalhos de construção ficaram concluídos em 1996), os depoimentos foram até bastante precisos e exactos.
Cabe aqui definir se foram convincentes ou em que medida o foram, sendo inequívoco que a fls 598 a 600 o Mmo Juiz a quo fundamentou claramente a sua livre convicção.
4.1.4. Como resulta evidente face ao teor do despacho de fls 596 a 200, as respostas ao perguntado na Base Instrutória tiveram como suporte fundamental os documentos juntos aos autos pelas partes; daí que tenham os mesmos sido referidos em primeiro lugar nessa decisão (v. fls 598 e 599) posta em crise com o presente recurso.
E não menos evidente é que o Mmo Juiz a quo desvalorizou totalmente o testemunho prestado por Sérgio Magro dos Reis, que, há 26 anos, é o companheiro da Autora (muitos casamentos não duram tanto tempo como esta união de facto). Afirma esse Julgador, que não adjectivou o depoimento de parte da Ré ISABEL, que o depoimento desta testemunha “revelou-se interessado, tendencioso, subjectivo, revelando-se marcado por um sentido persecutório, não apaziguador, tomando a causa da Autora como sua.” (sic – fls 599, corrigindo-se o evidente lapso de escrita assinalado).
Nada mais natural que o companheiro de tantos anos da Autora tome como suas “as dores” da sua companheira; mal seria se assim não fosse quando ambos estão genuinamente convencidos que os pais, irmãos e cunhadas da última tudo fizeram para a prejudicar. O que importaria verificar era se a testemunha mentiu. E disso não há sinais nos autos.
O depoimento da mãe da Autora também é interessado e, no mínimo, subjectivo – e até o da filha da apelante, neta dessa depoente, e o do irmão de uma das cunhadas dessa demandante o são (aliás, todas as observações feitas por qualquer ser humano são sempre subjectivas, já que a nossa capacidade de conhecer, ao contrário do que acontece com a Realidade Material circundante – a “Realidade Virtual” é todo um outro mundo que não vale, sequer, a pena aqui equacionar – é limitada e finita). Afirmar que se gosta, em igual medida, da filha e dos filhos invocando para tanto que “lhe criou a filha”, pode até querer dizer o contrário.
Na verdade, a Ré pode estar, com isso, a traduzir a ideia que a sua filha foi e é incapaz de cuidar bem e educar devidamente a sua neta, ou ainda que ela é uma má mãe por ter preferido a companhia de homem – ainda por cima malquisto pela família – em detrimento da filha dela, neta da depoente. Tudo isto, como é óbvio, são meras especulações, valendo estas palavras apenas como um alerta; António Damásio (in “O Erro de Descartes”) demonstrou cientificamente que só a Razão Emocionada é uma verdadeira Razão, mas emocionada, não apaixonada e, geralmente, é o seu contrário. O Juiz é o terceiro decisor – aquele que está fora e acima do litígio e que, porque as partes não conseguiram por si alcançar esse objectivo (ou, o que acontece por exemplo nos processos-crime, a Comunidade tal não lhes permite), vai encontrar a solução que irá pôr fim ao litígio – e tem que apreciar a prova de uma forma objectiva e imparcial.
Claro que o facto de o companheiro da Autora se ter convencido da existência de uma “(pré)intenção maléfica” por parte dos familiares da ora apelante (ou pré-convencido, não se sabe), afecta a sua percepção da realidade a si exterior – é, à partida, mais fácil para este enganar-se na interpretação dos actos dos outros. Mas é para corrigir esses erros que serve a produção contraditória das provas, isto é, para que o Juiz possa fazer a devida síntese indispensável ao bom julgamento da causa.
4.1.5. Ouvidas as cassetes e sopesados os vários depoimentos (valendo o da filha da Autora, com particular relevância quanto aos nºs 5º, 6º e 8º, em conjugação com o teor dos vários documentos já identificados (e bem) no despacho de fls 596 a 200, aplicando os princípios assinados no ponto 4.1.3. do presente acórdão, considera este Tribunal que apenas existem razões para modificar as respostas dadas aos nºs 1º e 8º da Base Instrutória (a resposta proposta quanto ao n.º 4º e a própria pergunta, continham factos conclusivos), os quais passarão a ser os seguintes:
1º - «provado que, em data indeterminada de 1990, os pais da Autora informaram esta que pretendiam ampliar a vivenda da Avenida Santa Joana Princesa, que possuíam, de modo a que, para além deles, pais, cada filho ficasse com uma fracção»;
8º - «provado que este comunicou à filha, em 1995, que existia uma sociedade Santa Joana Princesa».
4.1.6. Pelo exposto e em conclusão, sendo apenas parcialmente procedentes as conclusões 5) a 7) do recurso deduzido pela apelante, alteram-se e mantêm-se as respostas dadas ao perguntado na Base Instrutória nos exactos termos definidos no ponto 4.1.5. do presente acórdão.
O que aqui e sem necessidade de apresentação de uma mais profunda argumentação justificativa, se declara e decreta.

4.2. Estão ou não verificados os pressupostos legalmente previstos que permitem que seja decretada a condenação pedida pela apelante nas suas alegações de recurso e que lhe foi negada na sentença recorrida ?
4.2.1. Estabilizada que está a matéria de facto que pode servir de sustentáculo à apreciação do fundo material da causa sub judice (artºs 659º n.º 3 e 664º do CPC), cabe, finalmente, operar a subsunção da mesma nos normativos legais aplicáveis, isto é, determinar se pode/deve este Tribunal acompanhar o fio de raciocínio desenvolvido pelo Mmo Juiz a quo ou, ao invés, conceder providência às conclusões 8) a 30) da apelação.
Porém, antes de proceder a essa subsunção, considera esta Relação indispensável recordar, mais não seja aos intervenientes no presente processo, que, de acordo com o estatuído nos artºs 2156º, 2159º e 2168º do Código Civil (e, no caso presente, em que sobreviveram ao de cujus viúva e três filhos, também no n.º 1 do art.º 2159º desse mesmo Código), todas as pessoas são livres de dispor dos seus bens desde que com esses actos de vontade não afectem, prejudiquem ou diminuam a legítima destes seus herdeiros.
Claro que no presente processo não é da partilha de uma herança que se trata – em termos materiais, talvez o seja – pelo que esta referência serve apenas e tão só para que os litigantes, em especial a Autora, tomem consciência que, por mais eticamente indefensável que, por alguns, tal possa ser considerado, o acto de privilegiar um filho ou uma filha em detrimento de outros não é, em certas condições, ilegal (ilícito) e muito menos proibido.
Aliás e em sentido inverso, de acordo com algumas concepções da Vida e do Mundo, também não é eticamente aceitável que os filhos beneficiem da herança dos pais – em todo o caso e face ao disposto no n.º 2 do art.º 8º do Código Civil, seja qual for a posição deste Tribunal, que não acompanha qualquer um desses extremos, a mesma é, nessa matéria, irrelevante.
4.2.2. Efectivamente, o que está em causa neste processo é a validade da constituição de uma sociedade e também das entradas de capital que para ela foram feitas pelos Réus, uma vez que, tanto quanto se provou, o entretanto falecido T e ISABEL não venderam à Interveniente “SOCIEDADE… PRINCESA” o imóvel sito na Avenida Santa Joana Princesa, na freguesia de São João de Brito, em Lisboa, antes tendo-se servido desse bem para realizar a sua (deles) quota no capital social dessa empresa familiar constituída pelos Réus pessoas físicas, a qual é uma pessoa jurídica distinta e totalmente autónoma das pessoas singulares que são suas sócias (artºs 66º e 157º a 166º do Código Civil).
Desta maneira e em termos formais, mas só disso se pode cuidar nestes autos, não ocorreu uma qualquer venda de património a filhos sem o consentimento de todos os demais (art.º 877º do Código Civil – e não 579º como, por evidentíssimo lapso, está escrito a fls 610).
E da matéria provada no processo não resulta que qualquer das partes tenha tido a intenção de realizar um negócio simulado ou dissimulado (idem, artºs 240º e 241º), que o entretanto falecido T e os demais demandados tivessem querido praticar uma fraude à lei (idem, artºs 280º e 281º) ou até que tenham excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito que os mesmos pretendiam exercer (idem, art.º 334º), sendo que era à aqui recorrente que cabia fazer a prova, para além de qualquer dúvida razoável (artºs 342º n.º 1 e 346º do Código Civil) da veracidade das suas alegações – os Réus satisfizeram o ónus que sobre eles impendia ao demonstrarem, para além de qualquer dúvida razoável, que não ocorreu a venda invocada na petição inicial (idem, mas sendo aplicável o n.º 2 do primeiro dos normativos citados).
De facto, o que se provou foi que, não tendo sido possível alcançar um acordo entre a Autora e os pais, irmãos e cunhadas da mesma quanto à configuração e financiamento da construção que se pretendia vir a ser edificada no terreno onde antes se encontrava a vivenda descrita no n.º 3 dos factos provados na sentença recorrida (a alínea C) dos “Factos Assentes” ou «Especificação» como lhe chamou o Mmo Juiz a quo), não era exigível a estes últimos que ficassem eternamente à espera de obter a concordância da ora apelante para poderem prosseguir os seus intentos que, repete-se, não são ilegítimos mesmo que, à partida (o que não ficou provado), tivessem os Réus a vontade de afastar a Autora do negócio. Tal como não era que esta concordasse com a proposta que lhe foi feita. E, na ausência de um acordo, naturalmente, um novo projecto de construção foi arquitectado e, posteriormente, concretizado, sendo, pelos motivos expostos, irrelevante para o que aqui cabe julgar, que nada tenha sido previamente comunicado à ora apelante.
Saber se a cláusula referenciada sob o n.º 16 do elenco de factos provados na sentença recorrida pode ser considerada oponível à Autora ou se o valor atribuído no negócio ao imóvel que pertenceu ao entretanto falecido T e a ISABEL é inferior ao seu valor real de mercado à data dos factos, são matérias que podem e devem ser discutidas em sede de inventário para composição do quinhão que é devido à Autora por morte de seu pai. E se os incidentes do inventário não forem suficientes, podem ainda as partes ser remetidas para os meios comuns, afinal e sem dúvida, uma acção declarativa comum como a presente, mas com um objecto – no que respeita ao pedido e à causa de pedir – totalmente diverso.
Em síntese, o que se discute neste processo são diferentes interpretações das normas jurídicas aplicáveis, inexistindo, portanto, qualquer sinal de má fé na litigância.
4.2.3. E, por estas suficientes razões, são, na parte que agora se aprecia, totalmente improcedentes as conclusões das alegações de recurso da apelante, sendo de confirmar, mas com estes fundamentos, o decreto judiciário absolutório proferido no Tribunal de 1ª instância através da sentença aqui sindicada, incluindo no que respeita ao negado pedido de condenação dos Réus como litigantes de má fé.
O que aqui e sem necessidade de apresentação de uma mais profunda argumentação justificativa, se declara e decreta.
*
5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados nos pontos 4.1. e 4.2. do presente acórdão, delibera-se:
a) alterar as respostas dadas a fls 596 a 597 ao perguntado na Base Instrutória nos termos definidos em 4.1.6.;
b) manter, mas só com os fundamentos expressos em 4.2., o decreto judicial absolutório proferido em 1ª instância através da sentença recorrida, incluindo o que respeita ao negado pedido de condenação dos Réus como litigantes de má fé.

As custas pela apelante ROSA .
Lisboa, 2007/04/24
(Eurico José Marques dos Reis)
(Paulo Jorge Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique Cabral Ferreira)