Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1315/24.8YRLSB-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
ACIDENTES DE TRABALHO
QUEIXA-CRIME
JUIZ
PARTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/30/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DEFERIDA
Sumário: Nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120.º do CPC., a existência, na situação em apreço, de uma participação criminal formulada pela Sra. Juíza relativamente ao referido sujeito processual, constitui a materialização de uma animosidade ou de inimizade que atingiu um nível de relevância ou gravidade, conducente à justificação e deferimento de um pedido de escusa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo do Trabalho de Sintra – Juiz “X”, veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º, n.º 1, do CPC, seja dispensada de intervir no processo de acidente de trabalho n.º (…)/09.2TTSNT e respetivos apensos/incidentes, em que é sinistrado “B”.
Para tanto invocou, em suma, que:
- Desde 06-10-2022 vem assumindo a tramitação do referido processo, em substituição da Juiz titular do Juiz “Y”, a quem foi concedida escusa;
- O sinistrado remeteu ao referido processo diversas comunicações, em que fez considerações sobre a signatária e imputações que considera ofensivas da sua honra, reputação e dignidade, pessoal e profissional, designadamente quando afirma:
“adulteração do relatório da junta médica do IML para favorecer interesses económicos da seguradora acima do meu enorme sofrimento de forma premeditada e má fé da Sr Dr juíza “A””
“favorecimento ilícito da seguradora” 
“adulteração de relatório do IML de forma premeditada para favorecer interesses económicos da seguradora pela Sr Dra “A”” “o processo é uma autêntica fraude improprio de estado de direito e uma clara cedência aos interesses económicos da seguradora”
“Sra. Dra. Juíza devido ao seu despacho grosseiro e adulteração do relatório do IML para favorecer interesses económicos da seguradora de forma vergonhosa”
“despacho grosseiro de falta de isenção e transparência”
“adulteração do relatório do IML para de forma vergonhosa e chocante favorecer os interesses económicos da seguradora acima do meu enorme sofrimento”
“elevadas ofertas das seguradoras nas juntas médicas”
“vergonhosa adulteração do relatório de modo a favorecer os interesses económicos da seguradora”
“sendo sua responsabilidade e dos talentosos habilidosos desonestos (...) que se acusam de favorecer de forma ilícita a seguradora com relatórios fraudulentos certo que a verdade e a honestidade sempre vencem o seu despacho e tão grosseiro e impróprio que até a seguradora o ignora e recusa irei continuar a lutar contra esta enorme fraude ”
“Exma Sra Dra juíza “A” a seguradora MAPFRE sempre se recusou a qualquer tratamento apesar do seu favorecimento dos interesses económicos acima do meu sofrimento e da lesão gravíssima que os peritos médicos ignoram de forma premeditada através de relatórios fraudulentos e da sua adulteração do relatório do IML”
“mais uma farsa a que já me habituei devido a enorme desonestidade demonstrada”
“Sra Dra juíza “A” mesmo após o seu despacho grosseiro impróprio de estado de direito falta de isenção e transparência ofensivo da minha dignidade humana e acidentado de trabalho adulteração do relatório do IML para favorecer de forma ilícita os interesses económicos da seguradora” “eu não posso continuar a ser vitima de humilhações jantagem arranjinhos relatórios fraudulentos, subornos, etc ”
“Sra Dra juíza é vergonhoso e inaceitável que após o seu despacho grosseiro impróprio de estado adulteração de relatório do IML”
“infelizmente cedemos vergonhosamente aos interesses económicos da seguradora onde está a sua humanidade e a sua isenção e transparência é muito triste perceber todos os interesses por de trás desta enorme fraude não é Sra Dra juíza “A” (...) lembra-se da sua frase muito comovida afinal correu muito bem para a seguradora como sempre depois mais um favorecimento ilícito (muitos parabéns) agradecimento da MAPFRE” “a adulteração do relatório do IML para favorecer de forma ilícita a seguradora vergonhoso e improprio de estado de direito ”
“tudo tem a ver com as elevadas ofertas das seguradoras nas juntas médicas já pedi investigação ao MP todos interesses por detrás destas decisões miseráveis todos documentos provam favorecimento ilícito”
“enorme falta de isenção e transparência mas vale pena repetir tudo tem a ver com as elevadas ofertas da seguradora do qual os acidentados de trabalho são vítimas de gente desonesta e sem escrúpulos”; e
- As referidas afirmações, imputando atos de adulteração de documentos e de favorecimento pessoal no exercício de funções, “que o sinistrado bem sabe serem desprovidas de razão e de verdade, são absolutamente inaceitáveis e merecedoras do maior repúdio” e relativamente às quais, apresentou a Sra. Juíza, a 19-09-2023, queixa-crime contra o sinistrado.
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II. Conhecendo:
Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
A lei confere, de facto, aos juízes “a possibilidade de libertarem as suas consciências do peso enorme dos escrúpulos de intervirem em causas em que de antemão sabem existirem motivos ponderosos para se duvidar da sua isenção e imparcialidade” (assim, Heitor Martins; “Garantias da Imparcialidade”, in R.O.A., Ano 6, 1946, Vol. I, n.ºs. 1 e 2, cap. 16, p. 422).
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal – enquanto postula a intervenção num conflito de um terceiro, totalmente independente, das partes que contendem - constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar, entre o mais, que, em razão da imputação de factos que considera ofensivos da sua honra, reputação e dignidade, pessoal e profissional, e que entende não corresponderem à verdade, procedeu à apresentação de participação criminal contra o sinistrado que tem intervenção no aludido processo.
O motivo explanado indicia, desde logo, a existência de alguma animosidade entre a Sra. Juíza e a parte requerida, o que, em termos objetivos e subjetivos, é suscetível de colocar em causa, a imparcialidade e a independência do julgador, criando-lhe desconforto no desempenho da sua função de administração da justiça e podendo levantar suspeitas quanto à sua imparcialidade, conforme, aliás, salienta.
Não é só a imparcialidade da Sra. Juíza que poderia ser colocada em causa, mas também, a desconfiança sobre si, por banda das partes envolvidas no processo, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.
Ora, nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120.º do CPC., a existência, na situação em apreço, de uma participação criminal formulada pela Sra. Juíza relativamente ao referido sujeito processual, constitui a materialização de uma animosidade ou de inimizade que atingiu um nível de relevância ou gravidade, conducente à justificação e deferimento de um pedido de escusa.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais, excecionalidade que, no caso, se verifica.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir motivo justificado para que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo em questão e respetivos incidentes/apensos.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa formulado pela Sra. Juíza, relativamente ao processo (e respetivos incidentes/apensos) acima identificado.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 30-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).