Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1684/20.9T8BRR.1.L1-4
Relator: PAULA POTT
Descritores: QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
SIGILO BANCÁRIO
RETRIBUIÇÕES INTERCALARES
DEDUÇÕES
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DO SEGREDO PROFISSIONAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Quebra do segredo profissional bancário – Banco de Portugal – Ausência de justificação – Princípio da prevalência do interesse preponderante – Imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade – Natureza dos interesses em jogo apreciados à luz do princípio da proporcionalidade – Artigos 79.º, 80.º, 81.º e 81.º A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – Artigo 417.º n.ºs 3 – c) e n.º 4 do Código de Processo Civil – Artigo 135.º do Código de Processo Penal – Artigo 390.º n.º 2 – a) do Código do Trabalho – Artigos 18.º, 26.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa
(sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Tribunal que suscitou o incidente de quebra do segredo profissional:
1º Juízo do Trabalho do Barreiro – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa
Natureza do processo em que foi suscitado:
Liquidação de sentença proferida no processo 1684/20.9T8BRR.L1, instaurada ao abrigo do disposto no artigo 358.º n.º 2 do Código de Processo Civil
Partes nesse processo:
Requerente/autor - AA
Requerida/ré ZZ, Unipessoal, Lda..

Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Antecedentes do litígio
1. Por sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, parcialmente alterada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, proferidos no processo 1684/20.9T8BRR.L1, ao qual o Tribunal da Relação tem acesso via citius, a requerida (ré) foi condenada a pagar ao requerente (autor) as seguintes quantias:
(...)
a) Condenar a Ré no pagamento ao Autor da indemnização de antiguidade calculada com base em 30 dias por cada ano completo ou fracção, devida até ao trânsito em julgado da decisão judicial, perfazendo até à presente data o valor de € 13.442,00
b) Condenar a Ré no pagamento ao Autor – em sede de liquidação - das retribuições que este deixou de auferir desde 18.06.2020 até trânsito em julgado da presente decisão, deduzidas as seguintes quantias, a liquidar em incidente próprio:
a. Quantias que o Autor tenha auferido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento;
b. Subsídio de desemprego eventualmente atribuído ao Autor no período referido em b), devendo a Ré entregar essa quantia à segurança social.
[...]
d) Condenar a Ré no pagamento ao Autor das seguintes quantias:
a. € 2068 a título de férias e respetivo subsídio relativamente ao trabalho prestado em 2019, vencidas a 01.01.2020;
b. € 226,64, a título de proporcionais de férias e respetivo subsídio relativamente ao ano de cessação do contrato;
c. € 113,32 a título de proporcional do subsídio de Natal relativamente ao ano de cessação do contrato.
d. € 591,03 a título de horas de formação não ministradas.
e) Condenar a Ré no pagamento ao Autor dos juros moratórios vencidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento relativamente aos montantes referidos nas várias alíneas da alínea d);
f) Condenar a Ré no pagamento ao Autor dos juros moratórios vincendos desde o trânsito em julgado quanto ao montante referido em a), ate efetivo e integral pagamento;
g) Condenar a Ré no pagamento ao Autor dos juros moratórios vincendos desde a liquidação das quantias referidas em b) até efetivo e integral pagamento.
2. Por requerimento junto em 18.5.2023 com a referência citius 35988594 que aqui se dá por integralmente reproduzido, o requerente (autor) deduziu incidente de liquidação da decisão mencionada no parágrafo anterior.
3. Por requerimento de 11.6.2023, com a referência citius 36218989, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a requerida (ré) veio exercer o contraditório requerendo, entre outros, a obtenção da seguinte informação bancária:
“- Que seja oficiado junto do Banco de Portugal todas as contas bancárias do requerente, desde a data de 18/06/2020 até 16/11/2022.
- Quando na posse dessa informação, oficiar junto dessa entidade bancária, os depósitos do requerente desde a data de 18/06/2020 até 16/11/2022.”
4. Por despacho de 14.11.2023 com a referência citius 429818374 cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o Tribunal de primeira instância preferiu a seguinte decisão que incidiu sobre a parte do requerimento probatório transcrita no parágrafo anterior:
“Da diligência promovida junto da Segurança Social resulta inexistirem quaisquer prestações atribuídas ao Autor, ou contribuições efetuadas por trabalho eventualmente desempenhado.
Atento o hiato temporal decorrido entre a data do despedimento e o trânsito em julgado da sentença afigura-se ser suscetível de contribuir para a boa decisão da causa proceder a diligências instrutórias, previamente à produção de prova pessoal, com vista a assegurar a continuidade da audiência.
Sem prejuízo, atento o caráter das informações eventualmente obtidas junto das entidades bancárias, entende este tribunal que os elementos a disponibilizar serão somente os atinentes a transferências bancárias efetuadas por terceiros,
Em face do exposto o tribunal determina:
- Que se oficie o Banco de Portugal para informar quais as entidades bancárias onde o Autor tinha conta bancária por reporte ao período entre 18.06.2020 até 16.11.2022;
- Sobrevindo tal informação, que sejam oficiadas as referidas entidades bancárias para informarem apenas sobre as transferências efetuadas de terceiros para as referidas contas bancárias.”
5. Em resposta ao ordenado no despacho mencionado no parágrafo anterior, o Banco de Portugal, por ofício junto aos autos em 23.11.2023 com a referência citius 37683506, cujo teor se dá por integralmente reproduzido veio informar, em síntese, que:
- a informação sobre a existência de contas bancárias do requerente se encontra coberta pelo dever de segredo profissional estabelecido no artigo 80.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL 298/92 de 31.12, cuja violação é punível nos termos do Código Penal, como prevê o artigo 84.º do RGICSF;
- a informação solicitada pelo Tribunal só pode ser prestada pelo Banco de Portugal, nos termos previstos nos artigos 80.º n.º 2 ou 81.º - A do RGICSF, mediante autorização prévia do titular das contas ou mediante levantamento judicial do dever de segredo bancário, como estabelece o artigo 135.º do Código de Processo Penal (CPP).
6. Por despacho de 30.11.2023 com a referência citius 430735469, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o Tribunal de primeira instância veio suscitar o presente incidente de quebra do segredo profissional bancário através da seguinte decisão:
“(...)
In casu, o tribunal não tem dúvidas sobre a legitimidade da escusa.
Efetivamente, não estamos no âmbito de um processo penal nos termos e para efeitos do disposto na alínea h) supra referida: o que se pretende, e face à impossibilidade de aferir, por outros meios, da existência de rendimentos do Autor com vista à eventual dedução de quantias a pagar pela Ré.
Nestas situações a solução passa por deduzir incidente de levantamento de sigilo profissional no tribunal superior àquele onde a recusa foi manifestada (n.º 3 daquele preceito).
Em face do exposto, nos termos e para efeitos do disposto no art. 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, com cópia de fls. 13 e 14, o tribunal decide suscitar o incidente de levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal para os efeitos pretendidos, determinando-se a remessa deste incidente ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.”
7. Por despacho da relatora, proferido neste Tribunal da Relação em 18.1.2024, com a referência citius 21001674, cujo teor se dá por reproduzido, foi ordenada a baixa dos autos para que fosse completada a instrução mediante a notificação às partes do ofício do Banco de Portugal mencionado no parágrafo 5 e a notificação do requerente para informar se autoriza o Banco de Portugal a prestar a informação solicitada pelo Tribunal.
8. Por requerimento de 11.3.2024 com a referência citius 38751431, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o requerente veio informar, em síntese, que não autoriza o acesso às suas contas bancárias nem a prestação de informação sobre as mesmas pelo Banco de Portugal.
9. Por despacho de 3.4.2024, com a referência citius 434085245, o Tribunal de primeira instância ordenou a remessa do presente incidente ao Tribunal da Relação.
10. Tendo o sigilo bancário sido invocado pelo Banco de Portugal, que é uma pessoa colectiva de direito público, afigura-se não haver lugar ao cumprimento do disposto no artigo 135.º n.º 4 do CPP, por isso não estar previsto na legislação aplicável a esse organismo (cf. Lei 5/98 de 31.1 ou Lei Orgânica do Banco de Portugal).
11. Corridos os vistos cumpre decidir
Factos que o Tribunal leva em conta para fundamentar o presente acórdão
12. Os factos processuais mencionados nos parágrafos 1 a 9, constantes dos autos, termos e peças processuais com as referências citius aí indicadas.
Quadro legal relevante
13. Para apreciação do mérito do presente incidente têm relevo essencialmente os seguintes textos legais:
Constituição da República Portuguesa
Artigo 18.º
(Força jurídica)
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Artigo 26.º
(Outros direitos pessoais)
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
Artigo 205.º
(Decisões dos tribunais)
1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
2. As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.
3. A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.
Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ou RGICSF
Artigo 79.º
Exceções ao dever de segredo
1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) À Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, no âmbito das suas atribuições;
d) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização aos Investidores e ao Fundo de Resolução, no âmbito das respetivas atribuições;
e) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
f) Às comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto, o qual inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão;
g) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
h) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
3 - (Revogado.)
Artigo 80.º
Dever de segredo do Banco de Portugal
1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
3 - Fica ressalvada a divulgação de informações confidenciais relativas a instituições de crédito no âmbito da aplicação de medidas de intervenção corretiva ou de resolução, da nomeação de uma administração provisória ou de processos de liquidação, exceto tratando-se de informações relativas a pessoas que tenham participado na recuperação ou reestruturação financeira da instituição.
4 - É lícita, designadamente para efeitos estatísticos, a divulgação de informação em forma sumária ou agregada e que não permita a identificação individualizada de pessoas ou instituições.
5 - Fica igualmente ressalvada do dever de segredo a comunicação a outras entidades pelo Banco de Portugal de dados centralizados, nos termos da legislação respetiva.
Artigo 81.º
Cooperação com outras entidades
1 - O Banco de Portugal pode trocar informações com as seguintes autoridades, organismos e pessoas, em Portugal ou noutro Estado-Membro da União Europeia:
a) Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros;
b) Autoridades, organismos e pessoas que exerçam funções equivalentes às entidades referidas na alínea anterior noutro Estado-Membro da União Europeia;
c) Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo;
d) Organismos encarregados da gestão dos sistemas de garantia de depósitos ou de proteção dos investidores, quanto às informações necessárias ao cumprimento das suas funções;
e) (Revogada.)
f) Entidades intervenientes em processos de liquidação de instituições de crédito, de sociedades financeiras, de instituições financeiras e autoridades com competência de supervisão sobre aquelas entidades;
g) Pessoas encarregadas do controlo legal das contas e auditores externos de instituições de crédito, de sociedades financeiras, de empresas de seguros, de instituições financeiras, e autoridades com competência de supervisão sobre aquelas pessoas;
h) Autoridades de supervisão e de resolução dos Estados-Membros da União Europeia, quanto às informações necessárias ao exercício, respetivamente, das funções de supervisão e resolução de instituições de crédito e instituições financeiras;
i) Bancos centrais do Sistema Europeu de Bancos Centrais e outros organismos com uma função similar na sua qualidade de autoridades monetárias, caso as informações sejam relevantes para o exercício das respetivas tarefas legais, nomeadamente a aplicação da política monetária e a correspondente provisão de liquidez, a fiscalização dos sistemas de pagamento, compensação e liquidação e a salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro;
j) Outras autoridades com competências para a supervisão dos sistemas de pagamentos;
k) Organismos responsáveis pela manutenção da estabilidade do sistema financeiro na vertente macroprudencial;
l) Organismos responsáveis por reestruturações destinadas a preservar a estabilidade do sistema financeiro;
m) Sistemas de proteção institucional a que se refere o n.º 7 do artigo 113.º do Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, e as autoridades responsáveis pela sua supervisão;
n) Entidades responsáveis pela aplicação, pelo acompanhamento e pelo financiamento de medidas de resolução e de recapitalização;
o) Câmaras de compensação ou qualquer outro organismo semelhante reconhecido pela lei nacional para garantir serviços de compensação ou de liquidação de contratos num dos respetivos mercados nacionais;
p) Autoridades responsáveis pela fiscalização do cumprimento da legislação relativa à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo pelas instituições de crédito e pelas instituições financeiras e, ainda, no âmbito dessa legislação, com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República, a Unidade de Informação Financeira e unidades de informação financeira de outros Estados-Membros;
q) Autoridades competentes ou organismos responsáveis pela aplicação das regras relativas à separação estrutural dentro de um grupo bancário.
2 - O Banco de Portugal pode igualmente trocar informações com as seguintes entidades caso tais informações sejam relevantes para o exercício das respetivas atribuições:
a) A Autoridade Bancária Europeia, quanto às informações previstas nas diretivas europeias relevantes e no Regulamento (UE) n.º 1093/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010;
b) O Comité Europeu do Risco Sistémico, nos termos do disposto no Regulamento (UE) n.º 1092/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010;
c) A Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados, nos termos das diretivas europeias relevantes e do Regulamento (UE) n.º 1095/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010;
d) A Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma, criada pelo Regulamento (UE) n.º 1094/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010;
e) O membro do Governo responsável pela área das finanças, quando a troca dessas informações esteja relacionada com a aplicação de medidas de resolução, bem como quando respeite a uma decisão ou matéria que exija, nos termos da lei, a notificação ou consulta daquele membro do Governo ou possa implicar a utilização de fundos públicos;
f) A administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
g) As comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto;
h) A Assembleia da República nos estritos termos previstos em regime legal especial de transparência e escrutínio de operações de capitalização, resolução, nacionalização ou liquidação de instituições de crédito com recurso, direto ou indireto, a fundos públicos.
3 - O Banco de Portugal pode trocar informações, no âmbito de acordos de cooperação que haja celebrado, com autoridades de supervisão de Estados que não sejam membros da União Europeia, em regime de reciprocidade, quanto às informações necessárias à supervisão, em base individual ou consolidada, das instituições de crédito com sede em Portugal e das instituições de natureza equivalente com sede naqueles Estados.
4 - O Banco de Portugal pode ainda trocar informações com autoridades, organismos e pessoas que exerçam funções equivalentes às das autoridades mencionadas nas alíneas a) a d), f), g), i) e j) do n.º 1 em países não membros da União Europeia, devendo observar-se o disposto no número anterior.
5 - Ficam sujeitas a dever de segredo todas as autoridades, organismos e pessoas que participem nas trocas de informações referidas nos números anteriores.
6 - As informações recebidas pelo Banco de Portugal nos termos das disposições relativas a troca de informações só podem ser utilizadas:
a) Para exame das condições de acesso à atividade das instituições de crédito e das sociedades financeiras;
b) Para supervisão, em base individual ou consolidada, da atividade das instituições de crédito, nomeadamente quanto a liquidez, solvabilidade, grandes riscos e demais requisitos de adequação de fundos próprios, organização administrativa e contabilística e controlo interno;
c) Para aplicação de sanções;
d) No âmbito de ações judiciais que tenham por objeto decisões tomadas pelo membro do Governo responsável pela área das finanças ou pelo Banco de Portugal no exercício das suas funções de supervisão e regulação;
e) Para efeitos da política monetária e do funcionamento ou supervisão dos sistemas de pagamento;
f) Para assegurar o funcionamento correto dos sistemas de compensação em caso de incumprimento, ainda que potencial, por parte dos intervenientes nesse mercado;
g) No âmbito de inquéritos parlamentares cujo objeto inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão.
7 - O Banco de Portugal só pode comunicar informações que tenha recebido de entidades de outro Estado-Membro da União Europeia ou de países não membros com o consentimento expresso dessas entidades e, se for o caso, exclusivamente para os efeitos autorizados.
Artigo 81.º-A
Base de dados de contas
1 - O Banco de Portugal organiza e gere uma base de dados relativa a contas de depósito, de pagamentos, de crédito, de instrumentos financeiros e de cofres, denominada base de dados de contas, domiciliadas no território nacional em instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento, instituições de moeda eletrónica e instituições de giro postal autorizadas pelo direito nacional a prestar serviços de pagamento, adiante designadas entidades participantes.
2 - A base de dados de contas contém os seguintes elementos de informação:
a) Identificação da conta por número IBAN, sempre que aplicável, e da entidade participante onde esta se encontra domiciliada;
b) Identificação dos respetivos titulares, beneficiários efetivos, e das pessoas autorizadas a movimentá-las, incluindo procuradores, mandatários ou outros representantes;
c) Identificação de cofres associados à conta;
d) Data de abertura e de encerramento da conta.
3 - O disposto no número anterior aplica-se, com as devidas adaptações, a cofres não associados a contas.
4 - As entidades participantes enviam ao Banco de Portugal a informação referida no n.º 2 com a periodicidade definida em regulamentação do Banco de Portugal.
5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a informação contida na base de dados de contas pode ser comunicada a qualquer autoridade judiciária no âmbito de um processo penal, bem como às autoridades competentes em matéria de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, no âmbito das atribuições que lhes estão cometidas pela Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto.
6 - A informação contida na base de dados de contas é diretamente acedida, de forma imediata e não filtrada, pela Unidade de Informação Financeira e pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal, no âmbito das atribuições que lhes estão cometidas pela Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto.
7 - Para efeitos do disposto no número anterior, as medidas que se mostrem necessárias para assegurar a efetiva proteção da informação e dos dados pessoais tratados, nomeadamente as medidas de segurança de natureza física e lógica, são definidas em protocolo a celebrar com o Banco de Portugal.
8 - A informação contida na base de dados de contas é ainda diretamente acedida, de forma imediata e não filtrada, pelas autoridades judiciárias, pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal, pela Polícia Judiciária, pela Unidade de Informação Financeira e pelo Gabinete de Recuperação de Ativos nos casos previstos na Lei n.º 54/2021, de 13 de agosto.
9 - A informação da base de dados de contas respeitante à identificação das entidades participantes em que as contas estão domiciliadas pode ser igualmente transmitida, preferencialmente por via eletrónica:
a) À Autoridade Tributária e Aduaneira, no âmbito das respetivas atribuições relativas a cobrança de dívidas e ainda nas situações em que a mesma determine, nos termos legais, a derrogação do sigilo bancário;
b) Ao Instituto da Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., no âmbito das respetivas atribuições relativas a cobrança de dívidas e concessão de apoios socioeconómicos;
c) Aos agentes de execução, nos termos legalmente previstos, bem como, no âmbito de processos executivos para pagamento de quantia certa, aos funcionários judiciais, quando nestes processos exerçam funções equiparáveis às dos agentes de execução;
d) Ao Gabinete de Recuperação de Ativos, no âmbito das respetivas atribuições relativas à realização de investigação financeira ou patrimonial, sem prejuízo do disposto no número anterior.
10 - O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de acesso do titular aos seus dados pessoais, nos termos do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, e demais legislação de proteção de dados.
11 - A informação constante da base de dados de contas pode ser utilizada pelo Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições.
12 - A responsabilidade pela informação constante da base de dados de contas é das entidades participantes que a reportam, cabendo-lhes em exclusivo retificá-la ou alterá-la, por sua iniciativa ou a pedido dos seus clientes, sempre que ocorram erros ou omissões.
13 - O Banco de Portugal pode aceder a informação constante da base de dados de identificação fiscal, gerida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, para verificação da exatidão do nome e número de identificação fiscal dos titulares e pessoas autorizadas a movimentar contas transmitidos pelas entidades participantes, nos termos de protocolo a celebrar entre o Banco de Portugal e a Autoridade Tributária e Aduaneira.
14 - O Banco de Portugal regulamenta os aspetos necessários à execução do disposto no presente artigo, designadamente no que respeita ao acesso reservado à informação centralizada e aos deveres de reporte das entidades participantes.
Código de Processo Civil ou CPC
Artigo 417.º
Dever de cooperação para a descoberta da verdade
1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Código de Processo Penal ou CPP
Artigo 135.º
Segredo profissional
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta
14. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, que serão mencionados infra na fundamentação:
Doutrina
- Alberto Luís, Direito Bancário, Livraria Almedina, Coimbra
- António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6ª Edição, Almedina
Jurisprudência disponível em dgsi.pt
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 4.ª secção, proferido no processo 23836/18.1T8LSB-A.L1-2
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 2.ª secção cível, proferido no processo 23836/18.1T8LSB-A.L1-2
Apreciação do incidente de quebra de segredo profissional
15. O presente incidente de quebra do segredo profissional, foi suscitado oficiosamente pelo Tribunal de primeira instância no decurso do incidente de liquidação de sentença instaurado pelo requerente (autor, trabalhador) contra a requerida (ré, entidade empregadora).
16. Segundo o Tribunal julga perceber, em causa, no presente incidente, está a produção de prova, através de informação bancária escrita, coberta pelo segredo bancário, com vista a liquidar as quantias que podem ser deduzidas da compensação que a requerida foi condenada a pagar ao requerente, constante da alínea b) ponto a. do dispositivo enunciado supra no parágrafo 1 (a saber, o valor das retribuições que o requerente/autor deixou de auferir desde 18.6.2020 até trânsito em julgado da decisão, deduzidas das quantias que o autor tenha auferido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, conforme se liquidar em execução de sentença).
17. A esse propósito, o requerente, autor, líquida assim a quantia mencionada no parágrafo anterior (cf. artigo 6.º do requerimento dado por reproduzido supra no parágrafo 2):
“(...) b) – o valor de € 31.020,00 a titulo de SALÁRIOS – devidos desde 30 dias antes da acção (18-05-2020) até 26 Novembro 2022.
Acrescido dos devidos e legais juros de mora calculados à taxa legal de 4% até presente data num valor de € 3.712,20
Num Total de € 34.732,20”
18. Ao passo que a requerida, ré, ao exercer o contraditório por meio do requerimento dado por reproduzido supra no parágrafo 3, alega o seguinte, nos artigos 4.º a 15.º desse requerimento, no que respeita às importâncias previstas no artigo 390.º n.º 2 – a) do CT:
“(...)
4º Desde logo de acordo com a alínea a) do artigo 390º do CT, deve ser descontado toda e qualquer quantia que o requerido auferiu desde a data de 18/06/2020.
5º Ou seja todo e qualquer quantia que o requerido tenha auferido.
6º Na petição do incidente não se fala de qualquer meio de subsistência do requerente, parecendo que o mesmo viveu este período sem auferir qualquer rendimento, apenas com ajudas, como se isso fosse possível.
7º Pela experiência comum, sabe-se que esta situação é impossível e não corresponde à verdade, pelo que até esta confessado pelo mesmo que “qualquer remuneração fixa e certa”, à contrário teve remunerações inconstantes, mas teve remunerações.
8º O requerente não auferiu nenhum subsídio de desemprego, por ter dívidas com a segurança social.
9º Dividas essas, que se sabe que originaram por este ter tido problemas anteriores com a segurança social, por falta de descontos legais.
10º O requerente durante este período deu aulas de dança na sociedade XX, durante algum período trabalhou numa barbearia, e também foi fiel de armazém.
11º E só assim faz sentido o requerente ter subsistido durante este período.
12º E só pode o mesmo ter tido estas actividades, em virtude de ter deixado de trabalhar para a requerida.
13º Logo todas estas quantias auferidas têm de ser descontadas no valor da alínea B).
14º Não pode o Tribunal, deixar de apurar e analisar devidamente tudo o que o requerente auferiu durante este período em virtude de ter deixado de trabalhar para a requerente.
15º Pelo que se requer infra diligências de prova, nomeadamente junto da Segurança Social, Banco de Portugal e entidades bancárias, para perceber e quantificar o que o arguido auferiu por alguma actividade que passou a exercer.
(...)”
19. Assim, segundo o Tribunal julga perceber, foi para prova dos factos transcritos supra no parágrafo 18 que o Tribunal de primeira instância ordenou ao Banco de Portugal que prestasse por escrito a informação bancária aqui em crise.
20. Em resposta ao despacho judicial que ordenou a obtenção dessa informação bancária o Banco de Portugal, ao abrigo do disposto nos artigos 80.º, 81.º A e 84.º do RGICSF, escusou-se a prestar ao Tribunal de primeira instância a informação escrita pretendida, na falta de autorização do titular das contas, autorização essa que veio a ser expressamente recusada pelo requerente (autor) no incidente de liquidação (cf. factos constantes dos parágrafos 4 a 8).
21. Importa sublinhar que o objecto deste incidente, tal como foi suscitado pelo Tribunal de primeira instância, não é a legitimidade da escusa por parte do Banco de Portugal, uma vez que o Tribunal de primeira instância julgou que essa escusa foi legítima (cf. decisão referida no parágrafo 6).
22. Com efeito, o dever de segredo bancário é um dever de segredo profissional que, no que diz respeito à informação aqui em causa, inserida na base de dados de contas organizada pelo Banco de Portugal, impende tanto sobre os colaboradores do Banco de Portugal, enquanto pessoas singulares, nos termos previstos no artigo 80.º do RGICSF, como sobre o próprio Banco de Portugal, enquanto pessoa colectiva, nos termos previstos no artigo 81.º-A do RGICSF, cujo n.º 5 só permite a comunicação dessa informação às autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal, o que não é o caso dos presentes autos. Adicionalmente, o artigo 79.º do RGICSF prevê que o consentimento ou a comunicação da informação às autoridades judiciais no âmbito do processo penal (situações que aqui não se verificam) são excepções ao dever de segredo bancário. Enfim, no âmbito da cooperação com outras entidades, o artigo 81.º do RGICSF não inclui as autoridades judiciarias no elenco das entidades à quais o Banco de Portugal pode enviar informações.
23. Feita esta clarificação, é forçoso então constatar que o objecto do presente incidente não é a legitimidade da escusa, mas apenas a quebra do dever de segredo profissional bancário que vincula o Banco de Portugal e os seus colaboradores.
24. A questão de saber se deve ou não ser quebrado o segredo profissional bancário nos presentes autos, num caso em que se aplicam as regras de instrução de processos de natureza civil, convoca a aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 135.º do CPP (aplicável à prova documental por remissão do disposto no artigo 181.º do CPP), para o qual remete o artigo 417.º n.º 3 - c) e n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 1.º n.º 2 - a) do Código de Processo do Trabalho (CPT). Com efeito, o artigo 417.º n.º 4 do CPC estabelece que o regime previsto no CPP se aplica à instrução civil com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.
25. Da leitura conjunta do disposto
no artigo 417.º n.º 4 do CPC [(...) é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.]
e no artigo 135.º n.º 3 do CPP [(...) quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.]
o Tribunal julga que, no que respeita à instrução dos presentes autos, para ordenar a quebra do segredo profissional bancário é necessário que a mesma seja justificada:
- Segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante;
- Tendo em conta a imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade;
- E a natureza dos interesses em causa apreciados à luz do princípio da proporcionalidade.
26. No que respeita à prevalência do interesse preponderante, o Tribunal começa por sublinhar que, no plano dos interesses tutelados pelos Tribunais, afigura-se que o Banco de Portugal está sujeito ao dever de informar e de cooperar uma vez que não se trata aqui de uma relação de direito-obrigação (como a que se estabelece entre um banco e o seu cliente) mas de supremacia-sujeição, prevista no artigo 205.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece que as decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades, incluindo, por isso, sobre as decisões o Banco de Portugal. A esse propósito o Tribunal acompanha aqui a seguinte doutrina (cf. Alberto Luís, Direito Bancário, Livraria Almedina, Coimbra, páginas 105 e 106 e autores aí citados):
“E é precisamente no plano dos interesses tutelados pelos poderes públicos que os bancos estão sujeitos ao dever de informar e de cooperar; já não estamos no domínio das relações de direito-obrigação, mas de supremacia-sujeição.
'O papel do segredo profissional do banqueiro situa-se, portanto, no limite dos direitos da personalidade e da necessidade de informar certos detentores do poder público, para que estes possam, bem entendido no interesse da sociedade, exercer as funções que lhes são atribuídas' ”
27. Do acima exposto resulta que, o segredo profissional bancário combina interesses privados e públicos e não é sem limites; nesse contexto, tendo em conta o disposto no artigo 205.º n.º 2 da CRP, o interesse público da administração da justiça prevalece sobre o dever de segredo bancário (cf. quanto a esta questão, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 4.ª secção, proferido no processo 23836/18.1T8LSB-A.L1-2 e a restante jurisprudência aí citada).
28. Dito isto, importa agora verificar se a informação pretendida é imprescindível para a descoberta da verdade, que é o segundo critério de apreciação acima enunciado no parágrafo 25.
29. Para esse efeito o Tribunal leva em conta que a quebra do segredo profissional bancário aqui em causa é excepcional, como resulta do regime previsto nos artigos 80.º, 81.º e 81.º-A do RGICSF, conjugados com o disposto no artigo 417.º n.º 3 - c) e n.º 4 do CPC e com o artigo 135.º do CPP. Por isso, a requerida (ré), que neste caso pretende usar como meio de prova informação cuja obtenção implica a quebra de segredo profissional bancário, tem de alegar de modo concreto, objectivo e suficiente os factos modificativos do direito invocado pelo requerente (autor), cuja prova não possa ser obtida através de outro meio que não seja a informação aqui em crise (vide nesse sentido, num caso análogo, em que foi recusada a quebra do segredo profissional de advogado, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 2.ª secção cível, proferido no processo 23836/18.1T8LSB-A.L1-2).
30. Ora, o modo como os factos modificativos do direito invocado pelo requerente, foram alegados pela requerida no articulado mencionado no parágrafo 3, suscita vários problemas:
- Em primeiro lugar, nos artigos 4º a 14.º desse articulado, transcritos supra no parágrafo 18, a requerida alega que o requerente trabalhou para três entidades, sem as identificar ou sem as identificar suficientemente, uma vez que se limita a alegar que o requerente, após a data do despedimento, trabalhou numa barbearia, foi fiel de armazém e deu aulas de dança na sociedade XX, sem fornecer qualquer outra indicação que permita identificar tais entidades;
- Em segundo lugar, a requerida defende que tais actividades só podem ter sido exercidas em consequência de o requerente ter deixado de trabalhar para a requerida mas, tendo em conta o disposto nos artigos 128.º n.º 1 – f), 129.º n.º 2 – k) e 390.º n.º 2 – a) do CT, não alega factos concretos dos quais resulte que o requerente não podia exercer essas actividades durante a vigência do contrato de trabalho em causa e, portanto, não podia receber as quantias delas provenientes se não fosse o despedimento;
- Em terceiro lugar, a prova dos rendimentos obtidos pelo requerente, provenientes da actividade profissional por conta própria ou de outrém, pode ser obtida mediante junção aos autos da declaração de rendimentos do requerente, apresentada à Autoridade Tributária, que o Tribunal pode requisitar a essa autoridade ou ordenar ao requerente que apresente, nos termos do artigo 417.º n.ºs 1 e 2 do CPC e/ou mediante junção aos autos de informação da segurança Social sobre contribuições devidas pelo trabalho dependente ou independente e/ou mediante informação a solicitar às alegadas entidades empregadoras, que cabe à requerida identificar para esse efeito.
31. Tendo em conta o que acaba de ser mencionado no parágrafo 30, é forçoso constatar que a informação bancária pretendida não é imprescindível para a prova dos factos acima transcritos no parágrafo 18. Com efeito, os meios de prova que se mostram adequados para saber que categorias de rendimentos são recebidas pelo requerente e qual a respectiva proveniência, são as declarações de rendimentos à Autoridade Tributária e as contribuições feitas à Segurança Social, cuja obrigatoriedade resulta da lei (e.g. artigo 58.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e artigo 10.º do Código dos Regimes Contributivos do sistema previdencial da Segurança Social). Adicionalmente, é possível solicitar informação às alegadas entidades empregadoras do requerente, que cabe à requerida identificar para esse efeito.
32. A circunstância, mencionada no despacho acima transcrito no parágrafo 4, de não constarem da informação solicitada à Segurança Social quaisquer contribuições devidas pela prestação de trabalho pelo requerente, não equivale à impossibilidade de provar os rendimentos do trabalho do requerente, mas é, antes, um elemento de prova a levar em conta, a par de outros, como a declaração de rendimentos apresentada à Autoridade Tributária, cuja junção o Tribunal a quo pode ordenar e levar em conta para responder à matéria de facto em questão ou a informação a solicitar às alegadas entidades empregadoras do requerente, que cabe à requerida identificar para esse efeito.
33. Motivos pelos quais o Tribunal da Relação julga que a informação bancária aqui em causa não é imprescindível para a descoberta da verdade.
34. Por último, importa ponderar os interesses em causa na presente acção à luz do princípio da proporcionalidade, conforme mencionado no parágrafo 25. A esse propósito, os interesses em jogo na presente acção são os seguintes:
- Por um lado o interesse do trabalhador despedido ilicitamente (o requerente), em liquidar e receber a compensação prevista no artigo 390.º n.º 1 do CT, que a requerida foi condenada pagar-lhe e o seu interesse em que seja mantido o segredo bancário sobre as suas contas, que está associado à reserva da esfera pessoal intima do requerente, protegida pelo artigo 26.º do CRP (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 4.ª secção, proferido no processo 23836/18.1T8LSB-A.L1-2 e doutrina aí citada);
- Por outro lado, o interesse da requerida, entidade empregadora, em provar factos modificativos do direito invocado pelo requerente, nomeadamente, que o requerente recebeu quantias que devem ser deduzidas da compensação cujo pagamento reclama, nas condições previstas no artigo 390.º n.º 2 – a) do CT.
35. Na ponderação concreta dos interesses em jogo enunciados no parágrafo anterior, o Tribunal leva em conta que os interesses que opõem as partes no presente litígio são de natureza patrimonial; porém, a esses interesses acresce, por parte do requerente, o direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrado no artigo 26.º da CRP, que é um direito de personalidade a cuja protecção se destina igualmente o dever de segredo profissional bancário (cf. António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6ª Edição, Almedina, página 365).
36. A este propósito, o Tribunal acompanha a seguinte doutrina (cf. Alberto Luís, Direito Bancário, Livraria Almedina, Coimbra, páginas 88 e 89):
“A inviolabilidade da vida privada constitui um princípio [...] que o próprio direito defende e proclama como um dos atributos da personalidade; e o princípio tanto se aplica às pessoas físicas (singulares), como às pessoas jurídicas (colectivas). O segredo bancário diz respeito, predominantemente, à esfera privada de ordem económica, que é merecedora de tutela, tanto ou mais que outros aspectos. As pessoas falam mais facilmente da sua saúde que da sua situação de fortuna. 'Aquele que pergunta pela nossa saúde não nos parece indiscreto. Nós vemos nisso prova de interesse, mais do que indiscrição. Pelo contrário, não passará pela ideia de ninguém perguntar a uma pessoa conhecida se ela tem um depósito de títulos no banco' [...].
O dever de discrição quanto à zona de reserva ou vida privada das pessoas reveste-se de especial importância em relação a actividades profissionais que se exercem através do conhecimento de factos respeitantes à natureza íntima dos outros: sacerdotes, médicos, advogados, banqueiros, etc. Daí que ao segredo profissional corresponda um tipo de ilícito sempre que se verifique ofensa da privacidade (privacy).”
37. Identificados assim os interesses em jogo, importa agora apreciá-los à luz do princípio da proporcionalidade (cf. artigo 18.º n.º 2 da CRP), a fim de saber se devem ser impostas restrições e em que medida, aos direitos em confronto. Nesse contexto, afigura-se que o Tribunal só pode ordenar a restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada do requerente para dirimir o litígio de natureza patrimonial que aqui opõe as partes, se essa restrição for exigível, adequada e proporcional a esse fim.
38. Ora, atenta a insuficiência e a falta de concretização dos factos modificativos alegados pela requerida, mencionadas no parágrafo 30, afigura-se que a recolha de informação sobre as contas bancárias do requerente com vista a saber quais foram os depósitos feitos por terceiros nessas contas, se traduz numa pesquisa às cegas que não é adequada para obter o efeito previsto no artigo 390.º n.º 2 – a) do CT.
39. Acresce que, é possível e até mais adequado, produzir prova sobre os factos modificativos acima transcritos no parágrafo 18, através de outros meios de prova (eg. informação da Segurança Social sobre contribuições e/ou declaração de rendimentos apresentada à Autoridade Tributária e/ou informação a solicitar às alegadas entidades empregadoras, que cabe à requerida identificar). Pelo que, perante esses meios de prova alternativos, não é exigível, nem proporcional, ordenar a restrição do direito à reserva da intimidade da esfera económica do requerente, como pretende a requerida.
40. Em consequência, afigura-se que não é proporcional aos interesses em jogo ordenar a restrição ao direito à reserva da intimidade da vida privada do requerente, que resultaria da informação sobre as suas contas bancárias sem o seu consentimento.
41. Motivos pelos quais o Tribunal da Relação julga não justificada a quebra do segredo profissional bancário e, por isso, não ordena a prestação da informação bancária em causa, pelo Banco de Portugal.
Em síntese
42. A informação aqui em causa, foi pedida pela requerida (ré) no contexto do incidente de liquidação da compensação prevista no artigo 390.º n.º 1 e n.º 2 – a) do CT, instaurada pelo requerente (autor) contra a requerida.
43. Tal informação está inserida na base de dados de contas organizada pelo Banco de Portugal, que está coberta pelo dever de segredo profissional bancário que impende sobre os colaboradores do Banco de Portugal, enquanto pessoas singulares, e sobre o próprio Banco de Portugal, enquanto pessoa colectiva – cf. artigos 80.º, 81.º e artigo 81.º-A o artigo 81.º do RGICSF.
44. Para ordenar a quebra do segredo profissional bancário num processo ao qual se aplicam as regras de instrução civil, previstas no artigo 417.º do CPC, como é o caso, é necessário que a informação a obter mediante quebra do dever de segredo profissional seja justificada à luz dos seguintes critérios: o princípio da prevalência do interesse preponderante; a imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade; e a natureza dos interesses em causa, ponderados à luz do princípio da proporcionalidade – cf. 135.º n.º 3 do CPP aplicado à instrução civil com as adaptações previstas no 417.º n.º 4 do CPC.
45. Tendo em conta o disposto no artigo 205.º n.º 2 da CRP, o interesse público da administração da justiça prevalece sobre o dever de segredo bancário.
46. Porém, por um lado, a prova dos factos modificativos do direito invocado pelo requerente, alegados pela requerida, pode ser obtida por outros meios de prova que se mostram adequados para esse efeito. Pelo que a informação bancária aqui em causa não é imprescindível.
47. Por outro lado, a requerida não alegou os factos modificativos que invoca de forma objectiva, concreta e suficiente para sustentar a sua pretensão. Pelo que, ponderados os interesses em jogo – os interesses patrimoniais de cada uma das partes, em litígio na liquidação (cf. artigo 390.º n.ºs 1 e 2 do CT) e a tutela da esfera privada de ordem económica do requerente (cf. artigo 26.º da CRP) – a informação bancária ordenada mediante quebra do segredo profissional traduzir-se-ia numa restrição a um direito de personalidade do requerente, inadequada, inexigível e desproporcional para obter o efeito previsto no artigo 390.º n.º 2 – a) do CT.
48. Motivos pelos quais o Tribunal da Relação julga não justificada a quebra do segredo profissional bancário.
Custas
49. No presente incidente ficou vencida a requerida (ré), que que pediu ao Tribunal a produção de prova mediante recolha de informação bancária e que, portanto, retiraria proveito da quebra do segredo profissional bancário – cf. artigo 527.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
50. Pelo que, o Tribunal condena em custas a requerida, fixando no mínimo a taxa de justiça devida pelo incidente, nos termos do artigo 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais (RPC).

Decisão
Acordam as Juízes desta secção em:
I. Julgar não justificada a quebra do segredo profissional bancário.
II. Não ordenar a prestação da informação bancária mencionada no parágrafo 4 com quebra do segredo profissional bancário.
III. Condenar a requerida (ré) nas custas do incidente, fixando no mínimo a taxa de justiça.

Lisboa, 22 de Maio de 2024
Paula Pott
Francisca Mendes
Manuela Fialho