Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/14.0TELSB-DF-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: CREDORES
REVOGAÇÃO OU MODIFICAÇÃO DA APREENSÃO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: As normas que conferem aos credores a tutela dos respectivos créditos mediante qualquer das formas de actuação regulamentadas apenas tutelam relações jurídico-civilísticas.
A defesa dos interesses dos credores (efectivos credores) no âmbito das providências processuais penais que tutelam a defesa da legalidade sujeitam-se ao regime processual definido no local próprio – pelo menos subsidiariamente no CPP – onde e insere o disposto no artigo 178º/7 do CPP.
Em face desse normativo está, apenas e tão só, saber se a recorrente tem legitimidade para interferir numa apreensão determinada no âmbito de um processo de natureza penal, conducente à sujeição a julgamento e aplicação de uma pena pela verificação de pressupostos que indiciam seriamente a prática de crimes. A essa questão é completamente alheio saber se a recorrente tem ao seu dispor meios civilísticos de defesa dos seus pretensos direitos emergentes de relações de natureza exclusivamente civil.
A titularidade de uma quota social, no âmbito de um processo penal, em que está em causa a prática por determinada pessoa colectiva de um crime, terá por única virtualidade a eventual responsabilização do titular da quota pela prática desse crime, e não a conversão dele em vítima do crime de que ele próprio terá, por princípio, beneficiado
O facto de alguém se apresentar como credor da sociedade não lhe confere a titularidade de qualquer direito de intervenção na apreensão, porque o seu direito cede, necessariamente, no âmbito do processo penal (ou seja, salvaguardando o exercício de direitos no âmbito civilístico, em sentido amplo), perante a garantia da eficácia dos actos próprios do exercício da função jurisdicional.
O âmbito de aplicação do artigo 178º/7 do CPP não se alarga a quem possa tirar utilidade do deferimento do pedido de revogação da medida, tout court. Antes pelo contrário, ele restringe a legitimidade para o beneficio da sua aplicação a questões de dominalidade de facto, cujo fundamento mais comum é o direito de propriedade mas que abrange ainda direitos de efectivo uso e fruição de terceiros.
 ( sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

I – Relatório:
HAITONG CAPITAL - SCR, SA, recorre do despacho proferido a 15/3/2021, que não recebeu a oposição que deduziu à apreensão ordenada nos autos.
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II- Fundamentação de facto:
Com relevo para a decisão do presente recurso há a considerar que:
1- A Recorrente é accionista da sociedade denominada "Controlled Sport (Portugal) Turismo, Cinegética e Agricultura, S.A." (doravante CSP), com uma participação no capital social de 0,035%.
2- A Recorrente é credora da CSP, a título de capital, em € 1.588.722,65, a que acrescem juros à taxa contratualizada.
3- No âmbito do presente processo o Ministério Público determinou, por despacho proferido no dia 16.06.2020, nos termos do artigo 178º/CPP, a apreensão de um conjunto de bens, entre os quais diversos bens imóveis formalmente pertencentes à CONTROLLED SPORT (PORTUGAL) S.A. entre os quais activos imobiliários, que constituem uma propriedade continua denominada Herdade da Poupa.
4- Fê-lo com fundamento no entendimento de que a prova recolhida nos autos de inquérito habilitava a considerar que a aquisição de posições, por estruturas criadas no seio do SOLARIS FUND, no interesse de RS_________ , nas sociedades detentoras desses bens, representava a aplicação de quantias resultantes da prática delituosa aí investigada, subsumível a crimes de burla qualificada, prévios e punidos (p. e p.)  pelos artigos 217° e 218° do CP, de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256° do CP, infidelidade, p. e p. pelo artigo 224° do CP, de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205°, com referência ao artigo 202°/ b, do CP, de corrupção no sector privado, p. e p. pelo artigo 8º/1, da Lei 20/2008, de 21 de Abril e de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368°-A, do CP.
5- Considerando, consequentemente, o património em que se inserem os bens apreendidos, aqui em causa, como uma vantagem do facto ilícito, nos termos dos artigos 110º/1, al. b) e 3 e 111º/2, do CP, e e bem assim que esse património deveria vir a ser declarado perdido a favor do Estado, o que foi requerido em sede de acusação.
6- Património esse, aliás, previamente arrestado à ordem dos presentes autos por decisão judicial datada de 18/08/2016.
7- A ora recorrente requereu ao Meritíssimo JIC a «revogação da apreensão do património da CSP ordenada a fls. e a sua substituição pela apreensão das participações representativas de 97,451% do capital social da CSP detidas pela "Dassa Investissements, SA", bem como dos créditos (suprimentos), dessa sociedade na CSP» e « a venda urgente, pelos motivos expostos, da Herdade da Poupa (património imobiliário apreendido da CSP», invocando a ilegalidade da apreensão, por violação do artigo 111.° do Código Penal (CP), e que se mostram reunidos os pressupostos do instituto da sub-rogação, previsto no artigo 606.° do Código Civil (CC).
8- O Ministério Público (MP) deduziu oposição, invocando ilegitimidade da recorrente para benefício do regime estabelecido pelo artigo 178º/7, do CPP, e insubsistência dos fundamentos invocados face à natureza do instituto da apreensão.
9- A decisão recorrida contem-se nos seguintes termos:
«Dou por reproduzidos os pontos 1 a 14 da oposição.
A requerente Haitong Bank não é titular de qualquer dos bens apreendidos à ordem destes autos. Consequentemente, não possui legitimidade para requerer em amparo do art.° 178.º, 7 do CPP a revogação ou a modificação da apreensão.
Destarte, indefere-se liminarmente o requerido, por falta de legitimidade do requerente.»
10- Os pontos 1 a 14 da oposição contêm-se nos seguintes termos:
«1. No âmbito do NUIPC 324/14.0TELSB, o Ministério Público determinou, por despacho proferido no dia 16.06.2020, nos termos do artigo 178.° do CPP, a apreensão de um conjunto de bens, entre os quais diversos bens imóveis formalmente pertencentes à CONTROLLED SPORT (PORTUGAL) S.A., tendo, igualmente, requerido ao Meritíssimo JIC, nos termos do artigo 181.° do CPP, a apreensão da conta bancária com o IBAN PT50 0035 0222 0008716503029, titulada pela mesma entidade.
2. Dispõe o artigo 178.°, n.° 7 do CPP que «Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida».
3. Vem a HAITONG BANK requerer ao Meritíssimo JIC a «revogação da apreensão do património da CSP ordenada a fls. e a sua substituição pela apreensão das participações representativas de 97,451% do capital social da CSP detidas pela "Dassa Investissements, SA", bem como dos créditos (suprimentos), dessa sociedade na CSP» e «Ordenar a venda urgente, pelos motivos expostos, da Herdade da Poupa (património imobiliário apreendido da CSP».
4. Invocando expressamente a citada norma, filia a Requerente o seu interesse e legitimidade na circunstância de ser:
· credora da sociedade "CONTROLLED SPORT (PORTUGAL) TURISMO, CINEGÉTICA E AGRICULTURA, S.A" em 1.588.722,65 €, e também
· accionista da mesma, detendo participações equivalentes a 0,035% do seu capital.
5. E invoca a ilegalidade da apreensão, por violação do artigo 111.° do Código Penal (CP), invocando também, para fundamentar a sua legitimidade, que se mostram reunidos os pressupostos do instituto da sub-rogação, previsto no artigo 606.° do Código Civil (CC).
6. Refere a Requerente, com efeito, «a ideia geral de que os credores têm a possibilidade de defender a sua garantia: o património do devedor.» e que «O instrumento que se encontra ao alcance da Requerente para legitimar processualmente a sua actuação, desde logo por exclusão de partes, consiste na sub-rogação». (sublinhado nosso).
7. Ora, como é evidente e manifesto, a Requerente não reveste qualquer legitimidade para requerer a revogação ou a modificação da apreensão decretada sobre o património aqui em causa.
8. Com efeito, apenas os titulares dos instrumentos, produtos ou vantagens apreendidas o podem fazer.
9. E não os credores ou accionistas do titular.
10.  Como, aliás, não deixa de ser reconhecido pela Requerente nos pontos 11. a 20. do seu requerimento.
11.  Por outro lado, sendo indiscutível - e indiscutido - que a Requerente não é titular de qualquer bem apreendido à ordem dos presentes autos, note-se ainda que, na economia do artigo 178.° do CPP, qualquer protecção conferida a terceiros se encontra expressamente dependente da respectiva tutela dominial - artigo 178.°, n.°s 9 a 12 do CPP.
12.  Pelo que nem mesmo se pudesse ser configurada como "terceiro" revestiria a aqui Requerente qualquer legitimidade para requerer o que quer que fosse ao abrigo do disposto no artigo 178.° do CPP.
13.  E muito menos, como veremos, ao abrigo de um suposto direito de sub-rogação, previsto no artigo 606.° do CC, com base numa suposta dívida da sociedade formalmente titular dos bens apreendidos.
14.  Deste modo, como ponto prévio, deverá considerar-se que a HAITONG BANK, não sendo titular de qualquer dos bens apreendidos à ordem destes autos, não possui qualquer legitimidade para requerer, em processo penal, nos termos do artigo 178.°, n.° 7 do CPP, a revogação ou a modificação dessa apreensão.»
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IIII- Recurso:
A HAITONG CAPITAL - SCR, SA recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«1.ª A Recorrente vem interpor recurso do douto despacho que indeferiu liminarmente o requerimento por si apresentado;
2ª O douto despacho considerou que a Recorrente "não é titular de qualquer dos bens apreendidos à ordem destes autos" pelo que "não possui legitimidade para requerer em amparo do art.° 178.°, 7 do CPP, a revogação ou modificação da apreensão".
3.ª O despacho de que se recorre identifica, de forma incorrecta a Recorrente e autora do requerimento, como "HAITONG BANK”;
4.ª O "Haitong Bank, S.A." é uma pessoa colectiva distinta da aqui Recorrente, "Haitong Capital - SCR, S.A.", não se confundindo com esta;
5.ª O erro na identificação da parte constitui erro de escrita que deverá ser corrigido nos termos dos art.° 97.°, n." 1 b) e 380.°, n.° 1 b) e n.°3, todos do CPP;
6.ª O douto tribunal entendeu, no despacho de que se recorre que, nos termos do n.° 7 do art.° 178.° do CPP apenas o titular dos bens apreendidos tem legitimidade para requerer a sua modificação ou revogação;
7.ª Apesar de a Recorrente não ser a titular dos bens apreendidos à ordem dos presentes autos, a sua esfera é directamente afectada com essa apreensão;
8.ª A questão que se coloca, é a de saber se o conceito de "titular" deverá ser interpretado literalmente — como defendido pelo douto tribunal no despacho de que se recorre - ou se pelo contrário poderá/deverá ter um outro alcance;
9.ª Conforme defendido pelo douto Tribunal da Relação do Porto, no acórdão proferido em 21-01-2004, no processo 0315777: "o âmbito do conceito "titular de bens ou direitos" do artigo 178 n.6 do Código de Processo Penal de 1998 não se limita a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido";
10.ª Acrescenta ainda o douto Tribunal da Relação do Porto, no identificado acórdão, que "o interesse que fundamenta a legitimidade (neste incidente, como em toda a legitimidade processual) há de aferir-se sempre pela utilidade que o seu titular há de retirar da providência requerida.";
11.ª Ou seja, interessado será, não apenas o titular dos bens mas todo aquele que possa retirar utilidade do deferimento do pedido de revogação da medida;
12.ª Ora a aqui Recorrente, enquadra-se, inequivocamente, nesta categoria: o deferimento do pedido de revogação/ alteração dos bens apreendidos terá uma utilidade evidente para si pelo que se encontra investida de legitimidade para a contestar;
13.ª A Recorrente é accionista da sociedade denominada "Controlled Sport (Portugal) Turismo, Cinegética e Agricultura, S.A." (doravante CSP), com uma participação no capital social de 0,035%;
14.ª A Recorrente é, ainda, credora da CSP, a título de capital, em € 1.588.722,65 (um milhão quinhentos e oitenta e oito mil setecentos e vinte e dois euros e sessenta e cinco cêntimos), a que acrescem juros à taxa contratualizada;
15.ª A Recorrente cumula, assim, a dupla natureza de pequena accionista da CSP e de grande credora dessa mesma sociedade (estima-se, cerca de 15 % do passivo total da sociedade);
16.ª No âmbito do presente processo foi decretada a apreensão de todos os activos da CSP, máxime, dos activos imobiliários. Esses activos, agregadamente, constituem uma propriedade continua denominada Herdade da Poupa, com cerca de 3.245 hectares;
17ª Dessa apreensão, e se ela culminar na perda dos activos a favor do estado, resultará um prejuízo para os credores e accionistas da CSP. Existe, pois, um legitimo interesse da Recorrente em colocar em crise a apreensão;
18.ª Nos termos do art.º 601.º do Código Civil, "pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.";
19.ª A lei concede ao credor não só o direito de promover a execução forçada da prestação, no caso de o devedor não cumprir voluntariamente, e de se ressarcir à custa do património deste mas também lhe concede os meio necessários para o credor defender a sua posição contra os actos praticados pelo devedor, capazes de prejudicarem a garantia patrimonial da obrigação, diminuindo a consistência prática do seu direito de agressão sobre os bens do obrigado;
20.ª Daqui pode-se extrair a ideia geral de que os credores têm a possibilidade de defender a sua garantia: o património do devedor;
21.ª A lei civil elenca quatro instrumentos: i) declaração de invalidade de actos nulos praticados pelo devedor (art." 605." do CC), ii) a acção sub-rogatória (art.º 606.º A 608. ° do CC), iii) a impugnação pauliana (art.° 610. ° a 618.° do CC) e (iv) o arresto (art.° 619.° a 622.° do CC);
22.ª  O instrumento que se encontra ao alcance da Recorrente para legitimar processualmente a sua actuação, desde logo por exclusão de partes, consiste na sub-rogação;
23.ª Verificam-se no caso em apreço os requisitos da sub-rogação, designadamente a sua essencialidade à satisfação do direito de crédito da Recorrente e à omissão da CSP, que não reagiu até agora à apreensão;
24.ª A CSP conhece indiscutivelmente a apreensão, pois, em processo que corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo-Branco, Juízo Central Cível de Castelo Branco, J 2, processo n." 1000/19.2T8CTB-A, atravessou requerimento cujo pedido, suspensão desse processo, assenta no facto de a apreensão ter ocorrido;
25.ª Nestes termos é inegável que a Recorrente, enquanto credora/accionista da CSP detém legitimidade processual nos termos e para os efeitos do art.° 178.°, n.° 7 do CPP: da procedência do incidente resulta um beneficio para a Recorrente;
26.ª Pelo que o tribunal fez uma errada interpretação do disposto no art.° 178.°, n.° 7 do CPP;
27.ª Mesmo que a CSP tivesse intervindo, ainda assim, a Recorrente deveria ser admitida como parte legitima, sob pena de estarmos perante uma situação de inconstitucionalidade;
28.ª Acresce que a admissibilidade da intervenção processual é um corolário necessário do direito ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrado;
29.ª Nesse sentido dispõe o art.º 20.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que "a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos;
30.ª  Ora a recusa liminar do requerimento apresentado pela Recorrente, apenas com o fundamento de que não é a titular dos bens apreendidos, é uma violação do princípio de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva, dado que a impede de recorrer aos tribunais para garantir o acesso à justiça e fazer valer os seus direitos, quando esta tem um interesse e utilidade com a procedência do incidente;
31.ª  Da apreciação da decisão material do incidente poderá resultar uma expropriação sem qualquer compensação para uma entidade que não é parte no processo — a CSP — em consequência da alegada conduta ilícita de accionistas da accionista da CSP (ou seja, nem é à accionista da CSP, a Dassa, que é imputada a conduta ilícita, mas aos accionistas da Dassa, já que também esta não é parte no processo);
32.ª  Pelo que, também por este motivo, deverá ser revogado o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento apresentado pela Recorrente, por violar o disposto no art.º 20.º da CRP. ».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
« Sintetizando o acima exposto, dir-se-á que:
1) Dispõe o artigo 178.°, n.° 7 do CPP que «os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida».
2) De acordo com o requerimento por si formulado nestes autos, a aqui Recorrente é titular de uma participação de 0,035% no capital social da entidade formalmente proprietária dos bens apreendidos,
3) sendo, também, sua credora.
4) Ora, nos presentes autos, nem a sua participação nem o seu crédito foram apreendidos.
5) Face à actual redacção do n.° 7 do artigo 178.° do CPP, a não ser que se entenda que a participação da Recorrente no capital da titular dos bens apreendidos  ou, bem assim, o crédito cuja titularidade a mesma se arroga constituem vantagem dos crimes cuja imputação esteve subjacente à apreensão, é por demais evidente que aquela não é titular do que quer que seja que lhe possibilite requerer algo ao abrigo do n.° 7 do artigo 178.° do CPP.
6) Nem como "terceiro" para efeitos do artigo 111.° do CP poderia a aqui Recorrente requerer o que quer que fosse ao abrigo do disposto no artigo 178.° do CPP;
7) E muito menos ao abrigo de um suposto direito de sub-rogação, previsto no artigo 606.° do CC, com base numa suposta dívida da sociedade formalmente titular dos bens apreendidos;
8) São completamente estranhas a este incidente e a este processo as considerações expendidas pela Recorrente no tocante à eventual reunião dos pressupostos do instituto da sub-rogação, previsto no artigo 606.° do Código Civil, ou de qualquer outro instituto de natureza civilística de que pretenda lançar mão a fim de obter a tutela de interesses exclusivamente privados, i. e., garantir o crédito cuja existência invoca contra a CONTROLLED SPORT, ou obter ressarcimento pelo interesse contratual negativo, maxime, pela designada perda de chance.
9) Consagrando o artigo 20.°, n.° 1 da CRP o direito de "todos" ao acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, esse acesso e essa defesa têm que ser exercidos na observância das Leis substantivas e processuais.
Pelo exposto, o presente recurso não merece provimento, devendo a decisão recorrida ser mantida, nos seus precisos termos (…)».
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta aderiu à contra-motivação. 
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IV- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pela recorrente são:
- Erro na sua identificação contida no despacho recorrido.
- Legitimidade para pedir a revogação ou modificação da apreensão, ao abrigo do disposto no artigo 178º/7, do CPP.
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V- Fundamentos de direito:
1- Do erro na identificação da recorrente contida no despacho recorrido:
Quanto à questão colocada pela recorrente, de que o despacho recorrido a identifica como sendo Haitong Bank quando, na realidade, a sua denominação é Haitong Capital - SCR, S.A., é manifesto que se trata de lapso de escrita, pois que a decisão aí contida tem por reporte a oposição deduzida pela Haitong Capital - SCR, S.A.. Tal lapso não inquina o despacho, que se mostra perceptível, o que, aliás, resulta manifesto dos termos do recurso apresentado nem é fundamento legal de recurso.
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2- Da legitimidade para pedir a revogação ou modificação da apreensão, ao abrigo do disposto no artigo 178º/7, do CPP.
A única questão que está em causa no presente recurso é saber se a recorrente tem, ou não, legitimidade para pedir a revogação e/ou modificação da apreensão efectuada nos autos. Ou seja, não se discute a legalidade da apreensão nem tão pouco a validade dos argumentos pelos quais a recorrente a quis ver modificada, mas apenas a legitimidade para agir judicialmente com vista a essa modificação.
Como fundamento para a tese que defende, da sua legitimidade, ao abrigo da norma contida no artigo 178º/7 do CPP invoca duas ordens de factos, a saber: o de ser accionista da sociedade que se titula como proprietária dos bens apreendidos e o de ser credora, dessa mesma sociedade. E a partir da consideração destes fundamentos de facto defende que o conceito de "titular", vertido na norma, deverá ser interpretado como abrangente de todo e qualquer pessoa que retire utilidade da providência a que ela alude, o que engloba todo aquele que possa retirar utilidade do deferimento do pedido de revogação da medida, sendo que esse pressuposto se verifica na medida em que se a apreensão culminar na perda dos activos a favor do Estado, resultará um prejuízo para os credores e accionistas da CSP.
Mais refere que sendo o património do devedor a garantia comum dos credores, se verificam, no caso, os pressupostos da actuação jurisdicional através da figura da sub-rogação do credor ao devedor, que consiste na faculdade concedida ao credor de se substituir ao devedor no exercício de certos direitos capazes de aumentarem o activo, diminuírem o passivo ou impedirem uma perda do activo do património obrigado (artigos 606º a 608º do CC).
Tendo como pressuposto inquestionável a procedência da referida argumentação, invoca inconstitucionalidade do entendimento que a não acolha, por violação do artigo 20º/1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) na parte em que consagra o direito de acesso aos Tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, que «se bem que com limitações, (…) também incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais».
No despacho recorrido manteve-se a apreensão com fundamento em que os bens apreendidos, por serem produto de um crime, deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado sendo que, tendo sido convertidos em dinheiro, deverá ser o valor correspondente igualmente confiscado.
Entende a recorrente que a apreensão é um meio de obtenção de prova e não de tutela de interesses patrimoniais sendo que foram estes que justificaram a apreensão que, nessa medida, é ilegal.
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A primeira consideração que se impõe é que a recorrente pretende que lhe seja atribuído o direito a interferir numa apreensão fundada na consideração de que os bens apreendidos foram obtidos mediante a prática de crimes, ignorando em absoluto tal facto, e utilizando uma argumentação civilística que, a aplicar-se, constituiria, quanto muito, fundamento para a acção sub-rogatória. Ora, a questão não se coloca nesses termos.
Ora, a apreensão em causa foi feita mediante a consideração de que o património em que se inserem os bens apreendidos, foi obtido mediante a prática de factos ilícitos, nos termos dos artigos 110º/1, al. b) e 3 e 111º/2, do CP e, bem assim, que este património deverá vir a ser declarado perdido a favor do Estado, o que foi requerido em sede de acusação e que, como se sabe, constitui um dever legal imposto ao julgador e não um mero exercício de um acto discricionário.
Dito isto é evidente que as considerações civilísticas invocadas não têm âmbito de aplicação, porque todas elas pressupõe a legalidade da aquisição dos direitos em causa – de propriedade e de sub-rogação. As normas que conferem aos credores a tutela dos respectivos créditos mediante qualquer das formas de actuação regulamentadas apenas tutelam relações jurídico-civilísticas. A defesa dos interesses dos credores (efectivos credores) no âmbito das providências processuais penais que tutelam a defesa da legalidade sujeitam-se ao regime processual definido no local próprio – pelo menos subsidiariamente no CPP.
Ora, em causa, está apenas e tão só saber se a recorrente tem legitimidade para interferir numa apreensão determinada no âmbito de um processo de natureza penal, conducente à sujeição a julgamento e aplicação de uma pena pela verificação de pressupostos que indiciam seriamente a prática de crimes. A essa questão é completamente alheio saber se a recorrente tem ao seu dispor meios civilísticos de defesa dos seus pretensos direitos emergentes de relações de natureza exclusivamente civil.
Cabe aqui referir que a titularidade de uma quota social, no âmbito de um processo penal, em que está em causa a prática por determinada pessoa colectiva de um crime, terá por única virtualidade a eventual responsabilização do titular da quota pela prática desse crime, e não a conversão dele em vítima do crime de que ele próprio terá, por princípio, beneficiado. A par - mas independentemente - disso o facto de se apresentar como credor da sociedade de que é também titular não lhe confere a titularidade de qualquer direito de intervenção na apreensão, porque na verdade o seu direito cede, necessariamente, no âmbito do processo penal (ou seja, salvaguardando o exercício de direitos no âmbito civilístico, em sentido amplo), perante a garantia da eficácia dos actos próprios do exercício da função jurisdicional.
É que, ao contrário do que a recorrente defende, o âmbito de aplicação do artigo 178º/7 do CPP não se alarga a quem possa tirar utilidade do deferimento do pedido de revogação da medida, tout court. Antes pelo contrário, ele restringe a legitimidade para o beneficio da sua aplicação a questões de dominalidade de facto, cujo fundamento mais comum é o direito de propriedade mas que abrange ainda direitos de efectivo uso e fruição de terceiros. Isso mesmo está bem patente no aresto que a recorrente invoca, de onde consta que « O art. 178º, n.º 6 do C.P.P. refere que “os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou a revogação da medida”.
Não se vê nenhuma razão para uma interpretação restritiva do preceito, limitando o âmbito do conceito “titular de bens ou direitos”, apenas a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido. Com efeito, pode acontecer – como no caso presente, ou no de qualquer outro direito real menor – que o titular do direito de propriedade não seja imediatamente afectado com a apreensão. A possibilidade de requerer, ainda na fase do inquérito, a revogação da apreensão, só tem utilidade prática e efectiva para quem detenha o direito de usar e fruir o bem.»
Ora, a recorrente não invoca qualquer direito real perante o objecto da apreensão. Consequentemente nenhuma legitimidade tem para o uso da norma em apreço.
Independentemente da tese que se siga sobre a natureza da apreensão – meio de prova e/ou meio de garantia de eventual confisco – os fundamentos invocados não estão abrangidos pelo instituto que a recorrente utilizou.
Esta consideração leva-nos directamente à improcedência da questão da pretensa inconstitucionalidade do despacho recorrido.
A CRP traça, entre o mais, as directrizes a que se há de subordinar a legislação ordinária. 
Como a própria recorrente refere, o artigo 20º/1 da CRP consagra o direito de acesso aos Tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos. Ora, no caso, os direitos e interesses invocados não se mostram tutelados pelas normas invocadas nem por quaisquer outras, com âmbito de aplicação em face dos contornos concretos do caso, pelo que não há qualquer violação do direito de acesso aos Tribunais ainda que na vertente de direito de defesa contra actos jurisdicionais.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 23/ 08/2021
Graça Santos Silva
Eduardo Peterssen Silva
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[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.