Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23836/18.1T8LSB-A.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
ADVOGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (do relator):
É de indeferir o incidente de quebra de sigilo profissional, invocado por advogada arrolada como testemunha, quando, face aos elementos disponíveis nos autos, em particular às alegações constantes dos articulados e aos temas da prova enunciados, não se descortina motivo para considerar o depoimento da testemunha como sendo indispensável para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

A. e B. intentaram contra C. - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA LDA. ação declarativa, sob a forma de processo comum, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de 24.600,00€, por danos patrimoniais, e a quantia de 5.500,00€, por danos não patrimoniais.
Na Petição Inicial, alegaram, para tanto e em síntese, os seguintes factos:
- Os Autores, em data que não podem precisar, mas anterior a 26-07-2017, visualizaram na internet o anúncio constante no site da Ré referente à fração autónoma designada pela letra “P”, que corresponde ao 4.º andar letra “D” do prédio sito na Rua (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), a qual era propriedade de D., titular de passaporte emitido pela República Popular da China, onde constava indicação de que o mesmo se encontrava em venda, totalmente remodelado;
- A mencionada fração autónoma foi visitada pelos Autores em 26-07-2017 e em 27-07-2017, sendo que nesta última visita foram acompanhados pelos seus progenitores, tendo em ambas as visitas estado presente o Senhor E., mediador imobiliário da Ré, em representação da mesma;
- A condição de remodelado foi reiterada pelo mediador E. e constituiu elemento decisivo e determinante na formação da vontade dos Autores para virem a celebrar contrato de promessa de compra e venda e posterior aquisição de tal fração autónoma;
- Também F., Diretor Comercial da Ré, reiterou a condição de remodelado do imóvel, quanto a canalização, eletricidade e esgotos, aquando da assinatura do contrato de promessa de compra perante os seus intervenientes, em 30-10-2017.
- Na outorga do contrato de promessa de compra e venda a proprietária da aludida fração autónoma foi representada pelas suas procuradoras, a Dr.ª G., advogada, e a Dr.ª H., advogada;
- Foi realizada a avaliação do imóvel a pedido dos Autores, para obtenção de crédito hipotecário, constando do respetivo relatório que a fração fora remodelada em 2013, conforme informação prestada pelos mediadores acima indicados;
- Em novembro de 2017, os Autores solicitaram a empreiteiro, deslocação ao imóvel com vista a fazer pequenas alterações estéticas no apartamento (móveis da cozinha, cabine de duche, por exemplo);
- Os técnicos concluíram que a canalização e eletricidade não se encontrava em conformidade com as normas em vigor, ou seja, a fração autónoma não havia sido remodelada considerando a substituição da canalização, esgotos e rede elétrica, que apresentavam graves deficiências;
- Da desconformidade entre o anunciado pela Ré no seu site e reiterado pelos seus comerciais, e o real estado da fração, deram os Autores conta à Ré, em contactos pessoais junto de pessoas/representante/agentes como de E. e F. e, formalmente, em reunião tida nas instalações da mesma, no dia 13-12-2017;
- A Ré não assumiu qualquer responsabilidade quanto à informação antes prestada;
- Em 28-12-2017, foi outorgado aditamento ao contrato de promessa de compra e venda, ficando estabelecido na sua cláusula 2.ª que:
«Ambos os contraentes reconhecem que a fracção autónoma prometida vender pela primeira contraente não se encontra remodelada, nomeadamente, não sofreu qualquer renovação da canalização e da instalação eléctrica, tal como comercializado pela mediadora imobiliária “ERA”, situação do desconhecimento da promitente vendedora.
Acordam que a expressão remodelada, utilizada na comercialização pela mediadora imobiliária “ERA”, tal como a mesma foi transmitida de forma clara e inequívoca aos promitentes-compradores, significa que a canalização e a instalação eléctrica foram, respectivamente, substituídas, o que na verdade não sucedeu, sofrendo de significativa deterioração, tal como descrito nos relatórios técnicos que se anexam ao presente aditamento.
Ambos os contraentes encontram-se a desenvolver esforços junto da mediadora imobiliária no sentido desta tomar posição quanto á sua responsabilidade no erro aquando da formação da vontade dos promitentes-compradores pois estes convencidos ficaram que tais bens moveis já se encontravam instalados como parte da remodelação da fracção autónoma.»
- Os Autores ficaram convencidos que, dado o interesse dos mesmos na aquisição da fração e mantendo-se o vínculo contratual, a assunção da responsabilidade mencionada traduzir-se-ia na ação da mediadora em recuperar/substituir, a suas expensas, a canalização, esgotos e instalação elétrica, pelo que avançaram com a realização da escritura;
- Porém, uma vez que a Ré se desresponsabilizou, tiveram que ser os Autores a suportar os custos dos trabalhos a realizar, que importaram em 24.600,00€, não tendo os Autores podido habitar o imóvel até julho de 2018;
- Tiveram os Autores conhecimento, através da antiga proprietária, que a mesma tinha solicitado à Ré que o imóvel não fosse publicitado como a Ré o fez, por não se encontrar remodelado, conforme troca de emails que se encontram na posse da antiga proprietária e na posse da imobiliária, motivo pelo qual, nos termos e para os efeitos, quer do artigo 429.º como do artigo 432.º CPC se requer a notificação da parte contrária e a notificação daquela vendedora para que façam a junção dos emails trocados antes da venda;
-  A Ré adulterou a informação sobre o imóvel prestada aos Autores, através de anúncio e declaração dos seus agentes e representantes, levando-os a pensar que o imóvel tinha condição superior à real e, consequentemente, um valor de mercado superior;
- A atuação da Ré configura prática comercial enganosa, um engano astuciosamente provocado, com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, como o aumento da comissão recebida;
- Além do prejuízo com os trabalhos que tiveram de ser executados, os Autores sofreram angústia, dor e vexame com toda a situação descrita;
- a Ré incorreu em responsabilidade civil, por ter dolosamente publicitado informação falsa e enganosa, causando aos Autores os referidos danos, cuja indemnização peticionam.
Na Petição Inicial, os Autores requereram a notificação da Ré e da referida vendedora para juntarem os aludidos emails, juntaram nove documentos e arrolaram 11 testemunhas, designadamente D. e a Dr.ª H., advogada (indicadas, respetivamente, em 1.º e 2.º lugar no rol).
A Ré apresentou Contestação, defendendo-se por impugnação motivada, de facto e de direito, pugnando pela improcedência da ação (e por reconvenção, peticionando a condenação dos Autores no pagamento de indemnização no valor de 5.000€ a título de danos patrimoniais causados à imagem e bom nome da Ré). Mais requereu a intervenção principal de companhia de seguros e a intervenção acessória da referida vendedora.
A Ré juntou 15 documentos, incluindo emails trocados com a proprietária, e arrolou quatro testemunhas, tendo também requerido a prestação de declarações de parte.
Por despacho de 14-05-2019, foi admitida a intervenção principal da companhia de seguros, que apresentou Contestação, bem como a requerida intervenção acessória, vindo posteriormente a concluir-se pela impossibilidade de citar a referida vendedora da fração (cf. despacho de 23-04-2021).
Em 01-03-2023, foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho que não admitiu a reconvenção e saneador (tabelar), bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (estes assim enunciados: 1. Comunicação pelo mediador imobiliário da R. aos AA., aquando da visita ao imóvel, da remodelação do imóvel. 2. Comunicação pelo diretor comercial da R. aos AA., aquando da assinatura do contrato-promessa de compra e venda, da remodelação do imóvel ao nível da canalização, eletricidade e esgotos. 3. Formação da vontade dos AA. em adquirir o imóvel pelo preço fixado dependente da remodelação do mesmo nível da canalização, eletricidade e esgotos. 4. Existência de despesa no montante de 24.600,00€ (vinte e quatro mil e seiscentos euros) com remodelação da canalização, eletricidade e esgotos do imóvel suportada pelos AA. 5. Informação de remodelação do imóvel prestada pela dona do imóvel à R. 6. Identificação de alterações do foro psicológico sofridas pelos AA. como consequência da atuação da R.). Foram também admitidos os róis de testemunhas apresentados pelas partes, tendo sido indeferida a notificação da referida vendedora para juntar qualquer documento e determinada a notificação da Ré para proceder à junção de todos os emails trocados com a vendedora e seus representantes antes da venda; foi determinada a notificação da Ré para juntar certidão do registo comercial comprovativo dos poderes da pessoa indicada para declarações de parte; mais foi admitida a prestação de depoimentos de parte dos Autores requerida pela interveniente seguradora (quanto a parte da matéria indicada).
Em 02-10-2023, no decurso da audiência de julgamento, após os Autores terem prestado depoimento, iniciou-se a produção de prova testemunhal, estando presente a Dr.ª H., a qual, aos costumes disse conhecer as partes no âmbito da sua atividade profissional, prestou juramento legal e foi advertida do dever de ser fiel à verdade, tendo então sido suscitada pela testemunha a questão do sigilo profissional, dizendo estar impedida de responder às questões formuladas no âmbito do objeto da presente ação.
De seguida, pela Mandatária dos Autores foi requerido que se oficiasse à Ordem dos Advogados, no sentido de a testemunha ser dispensada do sigilo profissional relativamente ao patrocínio em representação da Sr.ª D., fazendo-se a junção da petição inicial e de ambas as contestações, para que possa a Ordem dos Advogados compreender o âmbito do requerido, bem como o despacho saneador onde se indica que a Sr.ª D. não consegue ser localizada.
Pela Mandatária da Ré foi dito opor-se, dizendo que, caso a pretensão da Autora fosse atendida, não prescinde da ordem de produção da prova testemunhal. Pela Mandatária da Interveniente Principal foi dito nada ter a opor ao requerimento feito pela Autora.
Após, foi proferido, no decurso da audiência, o seguinte Despacho:
“Considerando que o depoimento da testemunha poderá ser relevante para a descoberta da verdade, atendendo a que a primeira testemunha indicada, que aliás, chegou a ter neste processo estatuto de interveniente, não foi localizada, defiro o requerido, determinando que se oficie a Ordem dos Advogados, como requerido.
Não obstante se encontrarem presentes no Tribunal as demais testemunhas arroladas, uma vez que não é possível por ora antecipar a delonga que o incidente ora suscitado poderá implicar, entendo ser de interromper a presente audiência e designar continuação com inquirição de todas as testemunhas incluindo da presente, caso venha a ser levantado o sigilo, o que será então determinado oportunamente.”
Em 19-10-2023, a Ordem dos Advogados veio, por email, informar sobre o procedimento a observar no sentido de poder vir a ser decidida a questão da dispensa do sigilo profissional da Sr.ª advogada arrolada como testemunha no âmbito de processo judicial.
Após, em 22-11-2023, foi proferido o Despacho com o seguinte teor:
“H. foi arrolada, pela autora, como testemunha.
Comparecendo na audiência designada, identificou-se, informou ser advogada e recusou responder às questões formuladas, invocando o sigilo profissional a que está vinculada.
A autora requereu que a indicada testemunha fosse dispensada do dever de sigilo profissional pela Ordem dos Advogados que, oficiada, se pronunciou nos termos de ref.ª 37328857.
Dispõe o n.º 1 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados que o “advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo”.
De acordo com a alegação da autora, e conforme a testemunha em causa se identificou, esta foi advogada de D., que chegou a ser admitida como interveniente nos autos, não tendo, no entanto, sido conseguida a sua citação. Por maioria de razão, não se logrou obter o seu depoimento em audiência final.
O depoimento sobre os factos em causa nos autos em que D. tenha tido intervenção direta não poderá ser substituído simplesmente pelo depoimento da indicada testemunha, sua advogada, como se se equivalessem. No entanto, admite-se que o depoimento da indicada testemunha possa, ainda assim, ser relevante para a descoberta da verdade e a justa composição do litígio.
Considerando então que a testemunha H. terá intervindo na qualidade de advogada, os factos por si conhecidos estão abrangidos pelo segredo profissional nos termos do citado artigo 92.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Nos termos do n.º 4 do mesmo preceito “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento”.
No caso vertente, o levantamento do sigilo não foi pedido pela própria, tendo a Ordem dos Advogados, por isso, recusado o levantamento.
É, assim, legítima a recusa da testemunha na prestação do depoimento.
Pode, porém, o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, suscitar a quebra do sigilo nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 135.º do Código de Processo Penal e no n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil.
Considerando a legitimidade da recusa e a essencialidade do depoimento, remeto a decisão de quebra do sigilo profissional da testemunha ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Extraia certidão dos articulados, do despacho saneador, da ata da audiência de julgamento e do presente despacho e autue por apenso como incidente de quebra de sigilo bancário.
Após abra conclusão no apenso.
Notifique o presente despacho às partes.”
Neste Tribunal da Relação foi solicitado parecer ao Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, tendo em atenção o disposto no art.º 135.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi dos artigos 497.º, n.º 3, 417.º, n.ºs 3, al. c), e 4, do CPC, e 55.º, n.º 1, do EOA, tendo sido enviada, além do mais, cópia da Petição Inicial, da Contestação e do Despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
O Parecer fundamentado foi elaborado em 02-04-2024, tendo no mesmo o Presidente do Conselho Regional de Lisboa da AO, concluído que:
“Nestes termos, olhando para os elementos colocados à nossa disposição, concluímos que nada nos permite concluir pelo preenchimento das condições de que depende a audição da Exma. Senhora Dra. Mafalda Baptista, Ilustre Advogada, com quebra do segredo profissional, devendo, assim, prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir deve (ou não) ser dispensado o sigilo profissional tendo em vista a prestação de depoimento pela testemunha (Advogada) Dr.ª H.

***

II – FUNDAMENTAÇÃO

A factualidade relevante para o conhecimento do mérito do presente incidente é a que consta do relatório supra.

Preceitua o art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, sob a epígrafe “Segredo profissional”, que:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.
Dispõe o n.º 3 do art.º 497.º do CPC (cuja epígrafe é “Recusa legítima a depor”) que “Devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do artigo 417.º”.
Por sua vez, o art.º 417.º do CPC, sob a epígrafe, “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, prevê que:
“1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
(…) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Em face da remissão feita neste n.º 4, importa, pois, atentar no que a este respeito se encontra consagrado no Código de Processo Penal, mormente no art.º 135.º, que tem o seguinte teor:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”.
Deste preceito legal, transposto para o processo civil, resulta que, invocada a escusa, compete ao juiz do processo onde ela é invocada aferir da sua legitimidade. Caso o juiz conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da colaboração/depoimento; mas se considerar legítima a escusa, deve reconhecer que a colaboração/depoimento não pode ser prestada.
Porém, nesta última eventualidade, pode o tribunal superior àquele onde foi invocada a escusa, dispensar o segredo profissional, ordenando a prestação de colaboração com quebra do mesmo, quando isso se mostre justificado segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
De referir que estes conceitos legais têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores. Assim, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 29-11-2016, proferido no processo n.º 2050/13.8TVLSB-A.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma resultar “dos normativos citados que a dispensa do sigilo profissional é desde logo uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos; por outro lado, que ela apenas se justifica se for necessária (por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos) e proporcional (quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo, num balanceamento dos interesses em conflito que deverá compor entre eles uma concordância prática entre eles, tendo como limite referencial o núcleo essencial de todos esses interesses”.
Ainda na jurisprudência, destacamos o acórdão desta Relação de Lisboa de 12-09-2019 (bem como o acórdão aí citado), proferido no processo n.º 5138/13.1TBVFX.L1, disponível em https://outrosacordaostrp.com/2019/09/14/ac-do-trl-de-12-09-2019-proc-5138-13-1tbvfx-l1-quebra-de-segredo-profissional-nao-determinada/, em que se afirma designadamente que:
“Em termos gerais, há duas situações distintas relativamente ao advogado que está a obrigado a sigilo profissional relativamente aos factos previstos no art.º 92 do estatuto da ordem dos advogados (anexo à Lei 145/2015, de 09/09).
Aquela em que ele, apesar disso, quer prestar depoimento, revelando factos abrangidos pelo segredo profissional, mas para tal é necessário que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, tendo que ser pedido previamente autorização para tal ao presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário (art.º 92/4 do EOA). E, ainda que dispensado, o advogado pode manter o segredo profissional (art.º 92/6 do EAO).
E aquela em que ele não quer prestar depoimento e por isso se recusa a fazê-lo ao abrigo do segredo, caso em que poderá haver dispensa do segredo nos termos dos arts. 417 do CPC e 135 do CPP, em incidente de quebra de sigilo profissional, “tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária” (…).
Estes artigos estabelecem, em linhas gerais, o seguinte regime, na parte que importa ao caso e com as devidas adaptações ao processo civil: os advogados, como qualquer outra pessoa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado. Se se recusarem à colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional (ou seja, neste caso eles podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo). Neste caso, havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, o juiz procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa (porque os factos a que o advogado se recusa a depor não estão abrangidos pelo segredo), ordena a prestação do depoimento. Se concluir pela legitimidade, suscita então ao tribunal superior que decida pela prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade. A decisão do tribunal superior é tomada ouvida a OA, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.”
Decidiu-se nesse acórdão, conforme consta do respetivo sumário, que: “Não tendo a autora alegado nada que pudesse sugerir que os advogados que arrolou como testemunhas pudessem saber directamente algo sobre os factos relativos ao objecto da acção e dizendo elas, depois, que a razão da sua ciência é apenas o que lhes foi contado pela autora, não está minimamente indiciado que o depoimento dessas testemunhas seja imprescindível para a descoberta da verdade, o que basta para impedir que se decida pela quebra do sigilo profissional para prestação desse depoimento.”
Destaca-se ainda, pelo seu interesse, o acórdão da Relação de Évora de 11-11-2021, proferido no processo n.º 565/19.3T8ENT-C.E1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma que:
“I. O segredo profissional que se impõe ao Advogado como dever essencial ao exercício da sua profissão, encontrando embora justificação também em razões de ordem pública, pode e deve ceder quando em confronto com outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação consagrado no artigo 417.º do CPC é instrumental.
II. A dispensa, porém, devendo assumir um carácter de verdadeira excepcionalidade, só deve/pode ser determinada quando ocorram razões imperiosas, assumindo-se o testemunho do profissional como absolutamente essencial, decisão que impõe a ponderação dos interesses em conflito tendo em vista a formulação de um juízo de prevalência assente nas circunstâncias concretas do caso.”
No presente processo, o Tribunal de 1.ª instância, face à recusa de prestação de depoimento pelo Dr.ª H., considerou que era legítima essa recusa, com fundamento no sigilo profissional invocado pela testemunha, por ser advogada e o conhecimento que terá dos factos em apreço dos autos lhe advir da sua intervenção nessa qualidade, determinando, no seguimento do requerido pelos Autores e após informação prestada pela Ordem dos Advogados, que fosse despoletado o presente incidente.
No contexto acima descrito, em particular ante o requerido pelos Autores na audiência de julgamento, não suscita dúvida que se encontra abrangida pelo dever de segredo profissional a matéria fáctica, globalmente considerada, sobre a qual (é de presumir – cf. artigos 410.º e 516.º, n.º 1, do CPC) incidiria o depoimento a prestar pela testemunha em questão.
Assim, importa apenas apreciar se existe justificação para a quebra do sigilo.
Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo profissional de advogado, é claro que a sua quebra não pode ser determinada sem uma criteriosa avaliação da necessidade e proporcionalidade da mesma, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção.
Aliás, isto mesmo é salientado no parecer da Ordem dos Advogados acima referido, que se passa a citar (sublinhado nosso):
“Antes de mais, haverá que enfatizar que, no caso vertente, não suscita qualquer dúvida a sujeição ao dever de segredo profissional por parte da Exma. Senhora Advogada Dra. Mafalda Baptista, já que o depoimento a prestar incidirá sobre factos de que a Ilustre Causídica teve conhecimento no âmbito e por força da relação profissional que manteve com D..
E, como tal, indubitavelmente abrangidos pelo dever de sigilo por força do normativo legal contido no artigo 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Feito este pequeno parêntese, haverá que emitir a pronúncia solicitada, ou seja, verificar se subsistem, no caso concreto, valores superiores ao dever/direito de sigilo profissional.
Para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra recortado e fundamentado, o depoimento com quebra do segredo profissional é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material.
No que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.
Prossigamos.
Os meios de prova sujeitos a sigilo devem sempre ser encarados como meios excecionalíssimos, de ultima ratio, e nunca como meios de prova mais fáceis, ou como mais um meio de prova ou como um meio de prova privilegiado.
Ora, para que se possa aferir da absoluta necessidade da quebra do segredo profissional e, mormente, da sua imprescindibilidade e essencialidade, importa prima facie saber a que factos - objetivos, concretos e determinados -, a quebra do segredo profissional é pretendida.
Este é, quanto a nós, o ponto de partida da pronúncia a emitir nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.º 4 do CPP.
A quebra do dever de sigilo deve sempre incidir sobre factos precisos, concretos e determinados e nunca recair de forma genérica sobre um conjunto de factos de que um Advogado, em determinadas circunstâncias, teve conhecimento no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.
(…) No caso concreto, o pedido de quebra do segredo profissional que nos foi dirigido não identifica de modo objetivo, concreto e exacto qual o facto ou factos sobre os quais a quebra é pretendida.
O que, desde logo, inquina que possamos aferir da imprescindibilidade e essencialidade da quebra do segredo profissional.
Mas ainda que assim não fosse, haveria ainda que atentar no seguinte.
Se o depoimento da Ilustre Causídica incidir – conforme resulta indiciado da análise dos documentos colocados à disposição deste Conselho – sobre factos em que D. teve intervenção direta, é evidente que o depoimento da Ilustre Causídica não poderá substituir o depoimento de D., já que consubstanciará um mero depoimento indireto. O que, evidentemente, retira a imprescindibilidade e a essencialidade da quebra do dever de sigilo a que a Ilustre Causídica está vinculada.
Acrescente-se que, de um modo geral, nunca pode ser suficiente que o pedido de audição com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.”
Desde já se adianta que, no caso em apreço, não cuidaram os Autores de identificar quais os concretos factos para cuja prova ou contraprova pretendem que seja ouvida a testemunha, designadamente por referência aos artigos da Petição Inicial ou da Contestação ou sequer, apesar da sua abrangência, aos temas da prova.
Aliás, face ao teor destes, não se descortina quais possam ser os concretos factos controvertidos integrantes da causa de pedir (em sentido amplo, incluindo os factos complementares ou concretizadores), no fundo, a matéria dos temas da prova (cf. artigos 5.º, 410.º e 516.º, n.º 1, do CPC) para cuja prova/contraprova os Autores reputam necessário o depoimento da testemunha.
Na verdade, o que foi alegado nos articulados (e está provado documentalmente) é que a referida Sr.ª Advogada outorgou o contrato-promessa de compra e venda, em representação da promitente-vendedora, mas nada indica ou sugere que aquela Sr.ª Advogada tivesse conhecimento direto sobre certos e concretos factos controvertidos.
Nem o Tribunal recorrido fez qualquer referência aos documentos constantes dos autos e aos depoimentos de parte já prestados, de modo a que o depoimento em causa possa ser perspetivado como necessário para esclarecimento de determinados factos relevantes para a decisão da causa.
Por tudo isto, face aos elementos disponíveis nos autos, em particular às alegações de facto constantes dos articulados, cujo teor se procurou sintetizar supra, e aos temas da prova enunciados, não se descortina motivo para considerar o depoimento da referida testemunha como sendo imprescindível ou indispensável para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.
Nesta linha de pensamento, numa situação próxima da que nos ocupa, se pronunciou o acórdão da Relação de Évora de 14-01-2021, proferido no processo n.º 87/19.2T8CCH.E1, disponível em www.dgsi.pt, de que citamos o respetivo sumário:
“I - Em incidente de levantamento do sigilo profissional de advogado, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade;
II - Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional.”
Ademais, no caso em apreço, não obstante os interesses conflituantes em presença mereçam tutela (o dever de sigilo invocado pela testemunha no confronto com o dever de colaboração com a administração da justiça), não podem deixar de ser ponderados à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante e do critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos (cf. art.º 18.º, n.º 2, da CRP).
Ora, nada indica que sem a prestação do depoimento pela Sr.ª Advogada que foi arrolada como testemunha, poderão ficar por apurar factos relevantes para a boa decisão da causa, com prejuízo para a administração da Justiça.
Assim, impõe-se concluir, sem necessidade de mais considerações, que não há justificação bastante para a quebra do sigilo profissional.

Ficam vencidos os Autores, que arrolaram a testemunha e manifestaram interesse na quebra do sigilo profissional, sendo responsáveis pelas custas do incidente, afigurando-se adequado fixar a taxa de justiça devida em 1,5 UC (cf. artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC e 7.º, n.º 4, do RCP).

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III - DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em indeferir o presente incidente e, assim, não determinar a prestação de depoimento com quebra do sigilo profissional da Sr.ª Advogada, Dr.ª H..
Custas do incidente pelos Autores, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC.

D.N.

Lisboa, 18-04-2024
Laurinda Gemas
Pedro Martins
António Moreira