Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
945/22.7T8VFX.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – Se as conclusões repetem as alegações, nada sintetizando, a consequência não é a rejeição do recurso; é, antes, o eventual convite ao respetivo aperfeiçoamento.
2 – Impugnada a decisão sobre matéria de facto sem que se indiquem, com exatidão as passagens da gravação, numa situação em que se pretende a reapreciação de prova gravada, e não se identifica, sequer, o ficheiro no qual a gravação se encontra, nem se transcrevem depoimentos, o recurso deve ser rejeitado.
3 – Desta rejeição não emerge como consequência a extemporaneidade na respetiva apresentação.
4 - A imputação de responsabilidade do empregador (e de terceiros) por violação de regras de segurança implica que se demonstre qual a regra concretamente violada e o nexo causal entre essa postergação e a ocorrência do evento lesivo.
5 – Numa situação em que ocorreu a explosão de uma caldeira de 1996, que apresentava desgaste, corrosão e ferrugem, caldeira que aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus, e relativamente à qual a empregadora não efetuou as necessárias inspeções periódicas, conclui-se que é elevada a probabilidade de ocorrência do acidente em consequência da inobservância de tal obrigação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

XX, Lda.., Ré nos autos à margem identificados, tendo sido notificada Sentença, vem interpor recurso de Apelação e apresentar as suas ALEGAÇÕES.
Pede a revogação da sentença recorrida, por ter feito incorreta avaliação da prova produzida, por falta de fundamentação, violando assim, o artigo 615º, nº c) do Código de Processo Civil e por uma incorreta aplicação do direito, sendo a mesma substituída por outra que não reconheça que o acidente ocorrido em 14.03.2022 aconteceu por falta de observação da Ré XX, Lda. das regras sobre segurança e saúde no trabalho, com as legais consequências.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. A Ré, XX, Lda. foi notificada da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, nos termos
da qual a presente ação foi considerada totalmente procedente e, em consequência:
. Reconhecido “que o acidente ocorrido no dia 14/03/2022 aconteceu por falta de observação pela Ré XX, Lda.. das regras sobre segurança e saúde no trabalho,”
. Condenada “a Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A, sem prejuízo do posterior exercício de direito de regresso contra a Ré XX, Lda.., a pagar à beneficiária AA:
.€ 4.679, 16 a titulo de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 6.238,88, com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.
.5.850,24€ por subsídio de morte, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 15/03/2022 até integral pagamento.
.€ 1.808,97 a título de despesas de funeral, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento
. 6,00€ a título de despesas de transportes com as deslocações obrigatórias a este tribunal, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento.”
. Condenada “a Ré XX, Lda.. condenada a pagar à beneficiária
AA:
.€ 10.918,04 (15.597,20€ - 4.679,16€) a titulo de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 9.358,32 (15.597,20€ - 6.238,88€), com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.”
2. O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão no facto de “dos factos provados verifica-se que a Ré empregadora não procedeu em relação à caldeira que explodiu às verificações periódicas da mesma por pessoa competente, ou seja, não procedeu ao exame detalhado feito por pessoa competente destinado a obter uma conclusão fiável no que respeita à segurança de um equipamento de trabalho, porquanto, a última verificação de manutenção foi efetuada pelo trabalhador sinistrado já no ano de 2017, ou seja, cerca de 5 anos antes, (apesar de ser o mesmo quem se ocupava da caldeira e assegurava a regular limpeza das cinzas – 4.1.18), sem que tivesse sequer formação específica para a manutenção e verificação da caldeira, nem tinha os requisitos de apoio à categoria de fogueiro previstos no art.º 18.º do Regulamento da Profissão de Fogueiro aprovado pelo Decreto n.º 46989 de 30 de abril de 1966, sendo a categoria profissional do sinistrado de motorista/pedreiro (4.1.4., 4.1.14 e 4.1.28).
Conviria, não só limpar regularmente as cinzas, mas, por exemplo, o equipamento a pressão ser verificado com periodicidade por pessoa competência técnica ou o tubo de exaustão ser limpo com periodicidade e, neste último caso, da prova efetuada o mesmo apenas foi limpo em 1997 (4.1.4) e sem ser como se referiu por pessoa com formação competente para o efeito. Ora, por lei o empregador deve conservar os relatórios da última verificação e de outras verificações ou ensaios efetuados nos dois anos anteriores, acontece como se referiu, no caso concreto, por um lado, não foi feita verificação ao equipamento, nem a sua manutenção por pessoa competente para o efeito e, por outro lado, a que foi feita, sem ser por pessoa com formação competente, já tinha 5 anos (exigindo-se também uma verificação mais regular em face do tipo de equipamento), assim, houve violação das regras de segurança por parte da Ré empregadora quanto ao disposto nos art.ºs 3.º, als. a) e e) e art.º 6.º, n.ºs 2 e 4, por referência ao art.º 2.º, als. a), b) e g), todos, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro e ainda art.ºs 15.º, n.ºs 1, 2, als.a), d) e e), 3, art.º 73.º-B, n.º1, als b) e e) da Lei n.º 102/2009, de 10/09.
Acrescenta-se que tal como decorre do art.º 1.º do referido Decreto Lei n.º 50/2005, este diploma estabelece as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho e, no caso em concreto, pela Ré empregadora não foram observadas as previstas nos art.ºs 3.º, als. a) e e) e art.º 6.º, n.ºs 2 e 4, por referência
ao art.º 2.º, als. a), b) e g) desse diploma.”
3. Os factos dados como provados que foram essenciais para fundamentar esta decisão foram os seguintes:
“4) - O trabalhador sinistrado tinha a categoria profissional de motorista/pedreiro, tendo sido, contudo, ele quem realizou a verificação periódica de manutenção da caldeira segundo a última verificação datada de 2017.”
“5) - A caldeira causadora do acidente era de 1996”.
“11) – A Ré empregadora não possui Manual de instruções da caldeira, nem a certificação CE.”4. “12) – A Ré empregadora não efetuou inspeções à caldeira, nem procedeu à avaliação de risco / análise de risco.”
“13) – A caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem.”
“14) - O trabalhador operava a caldeira, segundo as ordens da entidade empregadora, tendo o mesmo um “Curso básico de segurança no trabalho” ministrado em 16/02/2011.”
“18) – Era o trabalhador sinistrado que assegurava a regular limpeza das cinzas da caldeira.”
“28) - Ao Sinistrado não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro.”
4. Sendo que um dos factos dados como não provados que foram essenciais para fundamentar esta decisão foi “4) Que os registos de manutenção efetuados pelo trabalhador encontravam-se junto da caldeira” (4.2.4) 5. Salvo o devido respeito e, salvo melhor opinião entende-se que a Douta Sentença deverá ser revogada, uma vez que;
a) faz uma incorreta avaliação da prova produzida;
b) mas mesmo que assim não se entenda, os factos dados como provados são insuficientes para uma correta fundamentação da sentença proferida, ou seja, dos factos dados como provados não é possível reconhecer que o acidente ocorrido no dia 14.03.2022 aconteceu por falta de observação pela Ré, XX, Lda. das regras sobre segurança e saúde no trabalho;
c) faz uma incorreta aplicação do direito, sofrendo a Douta Sentença recorrida do vicio de violação de lei, pois faz uma incorreta subsunção do direito aos factos.
6. A – QUANTO À INCORRETA AVALIAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA a Douta Sentença ora recorrida considera provado que “A caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem” (4.1.13), sendo que para fundamentar este facto a Douta Sentença teve em consideração “as fotografias juntas com a contestação da Ré seguradora com o relatório de peritagem onde relativamente às componente da caldeira é possível verificar a existência de ferrugem e desgaste (cfr. fotografias 9 a 12 e 15), bem como, da avaliação feita pela Sr.ª Inspetora da ACT e que consta do seu relatório a mesma ao ter observado os destroços da caldeira no dia do acidente refere que revelam sinais de ferrugem e degradação (foto n.º 11) e ainda constando desse relatório que o mau estado de conservação da caldeira era notório.
Pese embora, as testemunhas BB e CC referirem que a caldeira estava pintada e não estava com buracos ou mau estado de conservação, o certo é que das fotografias acima referidas é possível verificar a existência de ferrugem, corrosão e de desgaste tanto mais que a mesma era de 1996, sendo consentâneo, nomeadamente, com o depoimento de DD que referiu que os destroços da caldeira demonstravam que a mesma estava com sinais de desgaste e ferrugem (esta já lá estava).”
7. No que se refere às fotos juntas com a contestação da Ré seguradora importa dizer, conforme depoimento da testemunha EE (gravação a 14:48 – 15:20) que as mesmas foram tiradas no dia 21.03.2024, ou seja, depois do acidente ter ocorrido, e que foram tiradas quando “O local em si já estava bastante descaracterizado”.
8. Quanto ao relatório elaborado pela ACT importa referir que, o mesmo descreve o estado da caldeira após a explosão da mesma, constando do referido Relatório que a “falta de manutenção que pode ter sido uma das causas da explosão”
9. No depoimento prestado pela testemunha, FF, Inspetora da ACT, a mesma afirma que (gravação a 14:08-14:46):
a) “Não sei o que aconteceu”, “É só a impressão”;
b) Acaba por assumir que sinais de desgaste e de ferrugem podem ter sido por causa da explosão;
c) Afirma que para a caldeira ter explodido era porque não estava muito bem;
d) É necessário um curso de fogueiro;
e) Tem de ser uma “caldeira industrial, grande”;
f) Questionada sobre se teve acesso a alguma análise de isco, afirmou “Eu não me recordo, não vi nada, a nenhuma análise. A própria análise não fazia referência”
g) “A caldeira estava cá fora, estava ao ar livre”;
h) Questionada sobre quais eram as regras de manutenção da caldeira, respondeu “Não sei”.
10. Ora consta provado nos autos que a caldeira não estava no exterior, ar livre, mas sim, “26) – A caldeira em causa encontrava-se no interior de uma “casa” que foi construída pelo trabalhador sinistrado.” (4.1.26).
11. Pergunta-se, como é que é possível dar credibilidade a uma testemunha cujo depoimento em parte é totalmente desmentido pela restante prova produzida; um depoimento que afirma que a caldeira era industrial porque era grande; e que afirma que tudo o que diz resulta da sua impressão.
12. Acresce que, se o Tribunal deu credibilidade a esta testemunha, então, também deveria ter dado como provado que existe relatório de análise de risco, mas que o mesmo não fazia qualquer referência à caldeira.
13. O Tribunal a quo teve, também, em consideração o depoimento da testemunha, EE, perita em seguros e advogada (gravação a 14:48-15:20) afirmou que:
a) a caldeira está no exterior, ar livre
b) Não é perita em caldeiras;
c) “O local em si já estava bastante descaracterizado”
d) A analise que fez foi em” peças que se presumem ser da caldeira”
e) Fez a “análise possível face às circunstâncias”;
f) Solicitada para distinguir uma caldeira doméstica de uma caldeira industrial afirmou que o que as distingue é “a dimensão e capacidade da mesma e o objetivo de utilização”, contudo, quando questionada sobre qual a dimensão de uma caldeira doméstica de uma caldeira industrial afirmou “não sei dizer qual a dimensão”
g) Afirmou, também, que nas nossas “casas não é muito habitual haver caldeiras”. –
h) Não conseguir dizer qual a causa da explosão da caldeira, afirmou “Só consigo fazer deduções”
14. Ora consta provado nos autos que a caldeira não estava no exterior, ar livre, mas sim, “26) – A caldeira em causa encontrava-se no interior de uma “casa” que foi construída pelo trabalhador sinistrado.” (4.1.26)
15. É facto notório que a afirmação que nas nossas “casas não é muito habitual haver caldeiras “ não tem qualquer correspondência com a realidade.
16. Pergunta-se, como é que é possível dar credibilidade a uma testemunha cujo depoimento em parte é totalmente desmentido pela restante prova produzida; um depoimento que denota um total desconhecimento da realidade; um depoimento cujas afirmações no que respeita à causa de explosão da caldeira são meras deduções; um depoimento que apesar de afirmar que a caldeira dos autos é uma caldeira industrial não consegue distinguir, tão pouco, em termos de definição, uma caldeira doméstica de uma caldeira industrial.
17. Entendemos, pois que os depoimentos destas testemunhas nunca poderiam ter sido valorados de forma a permitir considerar como provado os pontos 4.1.11, 4.1.12 e 4.1.13.
18. Acresce que o Tribunal a quo considerou como não provado “4) Que os registos de manutenção efetuados pelo trabalhador encontravam-se junto da caldeira” (4.2.4), sendo que a testemunha, GG, referiu no seu depoimento (12:13-12:40) que:
a) No próprio dia do acidente o sinistrado lhe disse “eu vou fazer uma limpeza”;
b) “O check List ficava na casota que o Sr. HH tinha acesso”;
c) “Ele às vezes pedia para eu imprimir, pois era ele que guardava tudo”.
19. Não existe na Douta Sentença ora recorrida nada que justifique a descredibilização do depoimento desta testemunha. Tanto mais que era colega de trabalho do sinistrado.
20. Desta forma, entende-se que este facto deveria ter sido nado como provado e que a último documento que a Ré possuía era o documento datado de 2017, uma vez, que todos os outros ficaram destruídos com a explosão da caldeira.
21. Por tudo o exposto entende-se que os factos constantes dos pontos 4.1.11, 4.1.12 e 4.1.13 deveriam ter sido dados como não provados.
22. B – QUANTO À INSUFICIÊNCIA DOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS, entende a Ré, XX, Lda. que, os factos dados como provados na Douta Sentença recorrida, são insuficientes para uma correta fundamentação da sentença proferida, ou seja, dos factos dados como provados não é possível reconhecer que o acidente ocorrido no dia 14.03.2022 aconteceu por falta de observação pela Ré, XX, Lda. das regras sobre segurança e saúde no trabalho
23. Vejamos:
. A Douta Sentença ora recorrida dá por provado que a caldeira não tinha certificação CE, mas
em momento algum dá como provado que a caldeira em causa tinha de ter Certificação CE;
. A Douta Sentença ora recorrida dá por provado que a Ré empregadora não efetuou inspeções
à caldeira, mas em momento algum dá como provado quais as inspeções de que a caldeira carecia, tanto mais que, dá como provado que “A Ré tinha instruções de segurança da caldeira”
(4.1.24) e que “Era o trabalhador sinistrado que assegurava a regular limpeza das cinzas da caldeira.” (4.1.18) não dando como provado que, para além dessa limpeza, eram necessárias outras manutenções;
. a Douta Sentença ora recorrida dá por provado que “Ao Sinistrado não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro.” (4.1.28), sendo que quanto a este facto a Douta Sentença recorrida remete-nos para o artigo 18º do Regulamento de Fogueiro aprovado pelo Decreto nº 46989 de 30 de abril de 1966.
Contudo, esse Regulamento só determina as características pessoais e competências técnicas de quem pode exercer a categoria de fogueiro, não nos diz, quando é necessário ter a categoria de fogueiro.
24. A Douta Sentença recorrida deu como facto provado que “…nas instalações da sua entidade empregadora,…..uma caldeira de água quente explodiu…”. (4.1.2), ora o Decreto nº 46989 de 30 de abril de 1966 não nos diz se para manusear uma caldeira de água quente era necessário ter formação especifica na categoria de fogueiro.
25. Além de que, em momento algum da Douta sentença se dá como provado que o curso de fogueiro era necessário para a pessoa que manuseava a caldeira de água quente em causa.
26. Nós estamos numa fase prévia ao apuramento de saber se as circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se,”, estamos, pois numa fase anterior à prova do nexo causal.
27. Nós não estamos ainda na chamada dinâmica do acidente. Nós estamos na fase de apurar quais as violações que neste caso concreto se traduziram num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente.
28. Nós estamos na fase do apuramento do facto concreto, ou seja, na fase do apuramento de quais as normas de segurança e higiene no trabalho que deveriam ter sido cumpridas e não o foram. Só depois desse apuramento é que poderemos dizer mesmo em termos abstratos e gerais que a violação dessas normas é adequada e apropriada para provocar o dano.
29. Se não sabemos e não damos como provado as regras de segurança que deveriam ter sido cumpridas pela entidade empregadora, a Ré, XX, Lda., não podemos dizer que as mesmas foram violadas.
30. Tanto mais que foi considerado provado que “18) …o trabalhador sinistrado…assegurava a regular limpeza das cinzas da caldeira” (4.1.18) e que “22) o combustível utilizado na caldeira em causa era lenha seca, sem qualquer cola, resinosos ou outros semelhantes” e que “24) A ré tinha instruções de segurança da caldeira”
31. Ora, tal como consta da Douta sentença ora recorrida, nos termos do disposto no artigo 342º do Código Civil é ao beneficiário do direito à reparação por acidente de trabalho e às seguradoras que pretendam ver reconhecido o seu direito de regresso, o ónus de alegar e provar os factos demonstrativos da atuação culposa do empregador, ou seja, são eles que têm o ónus de invocar e provar quais as regras de segurança que deveriam ter sido cumpridas e não o foram e que terão provavelmente influído na ocorrência do acidente.
32. Isso não se verifica nos presentes autos, conforme supra alegado, existindo, assim, uma insuficiência dos factos dados como provados que permitam fundamentar a Douta Sentença recorrida, pelo que nos termos do disposto no artigo 615º nº c) do Código Processo Civil a mesma é nula por falta de fundamentação.
33. C – QUANTO À INCORRETA SUBSUNÇÃO DO DIREITO AO CASO CONCRETO
A Douta Sentença recorrida considerou que existiu violação das regras de segurança por parte da Ré empregadora quanto ao disposto nos artigos 3º, alíneas a) e e) e artigo 6º, nºs 2 e 4, por referência ao artigo 2.º, alíneas a), b) e g), todos, do Decreto-Lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro e ainda artigos 15º, nºs 1, 2, alíneas a), d) e e), 3, art.º 73.º-B, n.º1, alíneas b) e e) da Lei n.º 102/2009, de 10/09.
E ainda que, pela Ré empregadora não foram observadas as previstas nos artigos 3.º, alíneas a) e e) e artigo 6º, nºs 2 e 4, por referência ao artigo 2º, alíneas a), b) e g) desse diploma.
34. Ora todas estas disposições legais remetem para medidas de manutenção adequadas dos equipamentos, para verificações periódicas necessárias.
35. No caso sub judice, não constam nenhuma medida concreta que a Ré, entidade empregadora tivesse de tomar, conforme supra alegado.
36. Não se pode dizer que violou sem especificar o que foi violado.
37. No caso em concreto, consta como facto provado que “…nas instalações da sua entidade empregadora,… uma caldeira de água quente explodiu…”. (4.1.2), ou seja, está provado que a caldeira que explodiu era uma caldeira de água quente.
38. Uma caldeira de água quente não é um gerador de vapor.
39. Ora o curso de fogueiro só é necessário para o manuseamento de geradores de vapor que nos termos do regulamento de caldeiras, aprovado pelo decreto nº 8332 de 17.08.1992 não sejam geradores de valor dispensados de prova, nos termos do decreto-lei nº 45106, de 2 de julho.
40. Não sendo um gerador de vapor não se aplica a necessidade de o seu manuseamento ser feito por quem tem a categoria de fogueiro.
41. É dado no ponto 4.1.21 como provado “21) - A caldeira em causa, aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus.
42. É facto notório, que o ponto de ebulição da água é 100graus, logo não estamos nunca a falar de um gerador a vapor, ou seja, de uma caldeira a vapor.
43. Consequentemente, o curso de fogueiro não era necessário.
44. Desta forma, não se pode concluir que o facto de o trabalhador que manuseava a caldeira não ter formação específica da categoria de fogueiro, se traduz num incumprimento por parte da entidade empregadora.
45. Acresce que, consta da Douta Sentença ora recorrida como facto provado que “A caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem” (4.1.13).
46. Independentemente de se entender que este facto não poderia ter sido dado como provado, conforme supra alegado, a verdade é que, dando-se este facto como provado, nunca o mesmo poderia ter sido entendido como causa da explosão da caldeira em causa.
47. Consta dos presentes autos como facto provado que “A explosão causou ainda danos graves no edifício (destruição de parte da parede, telhado e portão) levando à suspensão dos trabalhos, num veículo que ali se encontrava, tendo alguns dos componentes da caldeira sido projetados para a via pública a cerca de 300 metros do local onde se encontrava.” (4.1.27)
48. É considerado facto notório que, a corrosão, o desgaste e a ferrugem podem ser causa de explosão de uma caldeira, mas nunca de uma explosão como a que ocorreu nos presentes autos e vitimou, o trabalhador, HH.
49. Nunca a explosão de uma caldeira provocada pela corrosão, o desgaste e a ferrugem podem ser causa de uma explosão em que os danos são os causados nos presentes autos com componentes da caldeira a serem projetados a cerca de 300metros do local onde se encontrava.
50. Isto porque, se existir corrosão, desgaste ou ferrugem significa que existem pontos de saída da pressão do interior da caldeira, ou seja existe uma dissipação da energia mais rápido do interior da caldeira, consequentemente, o rebentamento nunca pode ser tão grande, nunca pode ter a dimensão que teve nos presentes autos.
51. É facto notório que todos os rebentamentos de caldeiras provocados por essas causas resultam em danos, que podem ser graves, para as pessoas que se encontram perto da caldeira, mas não para outras pessoas que até poderão estar no mesmo espaço da caldeira, mas não tão próximo da mesma.
52. Acresce que, também é um facto notório do conhecimento geral que se a caldeira não estivesse limpa a lenha não ardia bem, podendo mesmo dizer que não funcionada, não acendia.
53. Perante todas estas evidências, do conhecimento geral, que são factos notórios não se compreende por que razão a Douta Sentença ora recorrida reconheceu que o acidente ocorreu por falta de observação da Ré, XX, Lda., das regras sobre segurança e saúde no trabalho em vez de ter dado como provado que a explosão da caldeira ocorreu por algo que não estava sob o domínio da Ré, entidade empregadora.
54. Até porque se é verdade que a Ré, XX, Lda., não possuía o registo das últimas manutenções efetuadas à caldeira em causa (pois estes foram destruídos pela explosão), sendo eu o último registo que possuía data de 2017, não é menos verdade que, que as manutenções eram feitas e nada foi provado que as manutenções que eram feitas não eram as suficientes e as necessárias para o efeito.
55. Importa referir que não foi efetuada nenhuma perícia à caldeira para se poder atestar o estado da mesma.
56. O Decreto-lei nº 136/94, de 20 de maio estabelece as exigências de rendimento das novas caldeiras de água quente alimentadas com combustíveis líquidos e gasosos, estando excluído do âmbito desse diploma as caldeiras de água quente alimentadas com mais de um combustível, dos quais um é combustível sólido – artigo 2º, nº 2 alínea a) de tal diploma legal.
57. A caldeira dos autos era uma caldeira de água quente alimentada com lenha conforme é dado como provado “22) - O combustível utilizado na caldeira em causa era lenha seca, sem qualquer cola, resinosos ou outros semelhantes” (4.1.22).
58. A lenha é um combustível sólido e, sendo a lenha definida como troncos, ramos, ou pedaços de madeira utilizados como combustíveis, é forçoso concluir que o supra referido diploma legal não se aplica à caldeira dos autos.
59. Acresce que, as caldeiras de água quente são equipamentos sob pressão (ESP), sendo que quanto a este tipo de equipamentos, o Decreto-lei nº 131/2019, de 30 de agosto aprova o Regulamento de instalação e funcionamento de recipientes sob pressão simples e equipamentos sob pressão. Contudo o artigo 2º nº2, alínea a), iii), I exclui do seu âmbito de aplicação os ESP com pressão máxima igual ou menor que 4 bar.
60. É considerado facto provado pela Douta Sentença ora recorrida que “9) – A caldeira foi adquirida à empresa ZZ, Lda. em conjunto com a estufa de pintura, tinha o modelo “Estrela”, pressão até 3 bar e tinha capacidade de 300 litros.” (4.1.9)
61. O Despacho nº 2957/2022, de 9 de março que aprova a instrução técnica complementar que estabelece as regras técnicas relativas à instalação e funcionamento dos recipientes destinados a conter ar, oxigênio ou gases inertes comprimidos ao abrigo do artigo 37º, nº 2 do Decreto-lei nº 131/2019, de 30 de agosto excluem do seu âmbito de aplicação os equipamentos abrangidos pela alínea), iii do nº 2 do artigo 2º deste Decreto-lei – Anexo 1.3 alínea d) -.
62. Desta forma, não existe qualquer legislação especifica que imponha à entidade empregadora outro tipo de manutenção para além daquela que a mesma efetuava.
63. Não se compreendendo por que razão a Douta Sentença ora recorrida refere que “não foi feita prova que o mesmo limpasse os tubos da caldeira, no mínimo, uma vez por semana.” (4.3.2. – pontos 1 a 6).
64. Pergunta-se: onde consta a obrigação da limpeza dos tubos ter de ser feita, no mínimo, uma vez por semana?
65. Desta forma, entende-se que existe a Douta Sentença ora recorrida faz uma incorreta aplicação do direito, não existindo por parte da Ré XX, Lda. nenhuma violação das regras sobre segurança e saúde no trabalho.
66. Por tudo o exposto, se entende que a douta Sentença ora recorrida deverá ser revogada, por ter feito uma incorreta avaliação da prova produzida, por falta de fundamentação, e por uma incorreta aplicação do direito.
LUSITÂNIA- COMPANHIA DE SEGUROS SA., notificada das Alegações da R. XX, Lda., vem apresentar as suas Contra-Alegações, nas quais conclui assim:
1-Não cumpriu a Recorrente com os ónus, a seu cargo, indicados nos Artigos 1 do C.PT e 640 nº1 e 2 do C.P.C, pelo que as alegações da Recorrente não devem ser admitidas.
2- O recurso apresentado pela Recorrente foi apresentado fora de prazo já que devia ter sido apresentado até ao dia 12-07-2024, sendo que este foi somente apresentado no dia 22-07-2024, não podendo a Recorrente usufruir do prazo de mais 10 dias, indicado no artigo 80 nº3 do C.P.T, uma vez que não cumpriu o ónus do artigo 640º, nº1, al. b) e nº 2 do C.P.Civil.
3- A Recorrida conforma-se com a Sentença proferida pelo douto Tribunal “A Quo”.
4- Não encontra a Recorrida na referida Sentença qualquer vício, e entende não ser de retirar conclusões diversas da matéria de direito e de facto, concordando integralmente com a aplicação do Direito ao caso concreto.
5- Não pode a Recorrida concordar com o teor do ponto B e C das suas alegações da Recorrente.
6- Ignora a Recorrente que em Portugal, a legislação relativa à segurança e manutenção de caldeiras industriais com o objetivo de garantir a segurança dos trabalhadores e a eficiência dos equipamentos cuja regulamentação é baseada em normas nacionais e europeias.
AA, A. nos autos referenciados, vem apresentar as suas Contra-Alegações, defendendo que:
1 - O recurso apresentado não deve ser admitido pela razão de não cumprir com o ónus a seu cargo nos termos das normas do n.º 1 do CP Trabalho e n.º 1 e 2 do artigo 640º do CP Civil;
2 – Mais deve ser rejeitado o recurso por falta total de Conclusões nos termos legalmente exigidos, violando as normas do n.º 1 do artigo 639º e segs.do CP Civil, pois o ónus imposto ao recorrente visa delimitar o objeto do recurso pelo que a cominação prevista pela norma legal para a sua omissão deve ser aplicada. Pois são as conclusões pela recorrente extraídas da motivação do recurso que - sintetizando as razões do pedido - recortam o thema decidendum. Tanto mais que o recurso pretende versar matéria de direito e de facto. Sendo certo, ainda, que na verdade a recorrente cuidou de apresentar as suas alegações nas Conclusões.
3 – A aqui recorrida concorda na íntegra com a sentença propalada, pois a mesma não enferma de quaisquer vícios e não ser possível retirar-se outra conclusão da matéria de facto provada e das normas aplicáveis existentes à data dos factos, nomeadamente toda a legislação relativa à Segurança e Saúde no Trabalho e mais em concreto à legislação sobre a segurança e manutenção das caldeiras industriais e seu uso, nomeadamente quanto à sua inspeção, registo e certificação.
4 - A recorrente violou tais normas e por isso a conclusão a retirar apenas poderia ser de atuação culposa da mesma, sofrendo com essa atuação a reparação dos danos nos termos estabelecidos na doura sentença.
5 –Deve ser mantida a sentença do tribunal a quo nos seus precisos termos, assim se confirmando a mesma.
Ouviu-se a Recrte. acerca da pretendida rejeição, vindo a mesma refutá-la.
O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer do qual decorre dever ser mantida a decisão sobre a matéria de facto, inexistindo a invocada contradição, estando demonstrada a falta de observação de regras sobre segurança e saúde no trabalho e bem assim o nexo causal entre essa ausência de implementação de regras e falta de formação e a ocorrência do acidente, devendo a sentença ser mantida na íntegra.
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Apresentamos seguidamente um breve resumo dos autos:
AA demandou Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A. e XX, Lda.., alegando, em síntese, que: HH estava sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª Ré desde 03/12/2018, data de readmissão, pois tinha sido admitido em 01-06-1995 e encontrava-se reformado desde 23/09/2018 e tinha a categoria profissional de motorista/pedreiro. No dia 14 de março de 2022, cerca das 11.45 horas, na localidade de ..., ocorreu um acidente de trabalho, no qual perdeu a vida HH, cônjuge da beneficiária, quando aquele se encontrava nas instalações da sua entidade empregadora, uma caldeira de água quente explodiu, tendo a explosão e respetivos escombros atingido o referido HH, de que resultou a sua morte. A Ré entidade empregadora não comprovou, por falta de fichas de verificação, que assegurava a manutenção adequada do equipamento de trabalho durante o seu período de utilização, respeitando, assim, os requisitos mínimos de segurança. A caldeira causadora do acidente era de 1996 e não reunia condições de operacionalidade pois não estava licenciada nem tinha marcação CE, não tinha placa de identificação emitida pelo IPQ,IP, nem foi inspecionada por este organismo. A entidade empregadora não comprovou que HH, o trabalhador sinistrado, possuísse formação adequada para ser o responsável da verificação e alimentação combustível da caldeira.
Conclui peticionando: Ser a Ré entidade empregadora condenada no pagamento à Autora beneficiária nas quantias de:
- € 15.597,20 de pensão anual e atualizável, devida desde o dia 15/03/2022 acrescida de juros legais contados desde a data de vencimento e até integral pagamento (artigos 47º n.º 1 al.g), 56º n.º 1 e 2, 57º n.º 1, al.a), 18 n.º 4 al.a) e n.º 5 da Lei 98/2009 de 04/09;
- A quantia de € 1.808,97 de despesas de funeral nos termos do artigo 66º da Lei 98/2009 de 04/09, acrescida de juros legais desde a data de vencimento até integral pagamento;
- €5.850,24 por subsídio de morte, nos termos do artigo 65 n.º 2 al. b) da Lei 98/2009 de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data de vencimento até integral pagamento; e
- A quantia de €6,00 de despesas de transporte com as deslocações obrigatórias ao tribunal acrescida de juros legais desde a data de vencimento até integral pagamento.
Ser a Ré companhia de seguros condenada no pagamento à Beneficiária das prestações que seriam devidas sem a atuação culposa da 1ª Ré.
A Ré Lusitânia – Companhia de Seguros, SA apresentou contestação alegando em síntese que: No dia 14 de março de 2022, pelas 11:50 horas, nas Instalações da Ré entidade empregadora, ocorreu a explosão da caldeira a lenha que terá atingido o Sinistrado que se encontrava nas imediações, projetando-o contra um murete onde ficou prostrado com vários detritos decorrentes da explosão sobre o mesmo, de que veio a resultar a morte do mesmo. A Ré entidade empregadora não efetuou manutenções à caldeira em violação do disposto no art.º 10.º a 29.º do Decreto-Lei 50/2005 de 25 de fevereiro conjugado com a al. e) do n.º 2 da Lei 102/2009 de 10 de setembro, nem efetuou inspeções à caldeira nem procedeu à avaliação de risco / análise de risco (nomeadamente de explosão), não cumprindo assim com o disposto no art.º 15.º n.º 3 da Lei 102/2009 de 10 de setembro. Ao Sinistrado não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro. O acidente dos autos deveu-se à 1ª Ré por violação das normas de segurança acima descritas de acordo com o art.º 18 nº 1, conjugado com o nº 3 do art.º 79.º nº 3 da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro.
Termina peticionando que:
a) Deve ser declarado que o acidente ocorreu por atuação culposa do empregador, 1ª Ré e a ora Contestante absolvida do pedido; ou caso assim não se entenda,
b) Deve ser declarado que o acidente ocorreu por atuação culposa do empregador, tendo ora Contestante, contra a 1ª Ré, direito de regresso da nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 79.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, das quantias a que for eventualmente condenada. ou
c) Demonstrando-se que aquando do acidente o Sinistrado falecido se encontrava fora do âmbito da execução de serviços determinados pela 1ª Ré ou por ela consentidos e por isso não se encontrando sob a autoridade da entidade daquela, deve a ora Contestante ser absolvida do pedido.
A Ré XX, Lda.. apresentou contestação alegando em síntese que: A A. não alega qual a regra ou regras de segurança específicas e densificadas nos seus contornos que foram violadas e que foram a causa do acidente que sinistrou o trabalhador. A função da caldeira em causa era aquecer a estufa de pintura e não, como se poderia pensar, secar a madeira. A caldeira em causa, aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus, o que significa que nunca se encontra em pressão. A caldeira em causa não necessitava de manutenção por entidade certificada. Inclusive a 1º Ré faz as manutenções com o Instituto português da Qualidade (IPQ) ao compressor que se encontrava junto da caldeira em causa e nunca os inspetores mencionaram a necessidade de fazerem qualquer intervenção na mesma. O combustível utilizado na caldeira em causa era lenha seca, sem qualquer cola, resinosos ou outros semelhantes. Junto à caldeira encontrava-se as instruções de segurança da máquina. Os registos de manutenção efetuados pelo trabalhador se encontravam junto da caldeira. O trabalhador sinistrado passava a maior parte dos seus dias nas instalações da 1ª Ré, mas sem estar sob as ordens e direção desta.
Termina concluindo pela improcedência da ação e a sua absolvição dos pedidos.
Foi realizado julgamento e, após, proferida sentença que julga a ação totalmente procedente, e em consequência:
1. Reconhece que o acidente ocorrido no dia 14/03/2022 aconteceu por falta de observação pela Ré XX, Lda.. das regras sobre segurança e saúde no trabalho,
2. Condena a Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A, sem prejuízo do posterior exercício de direito de regresso contra a Ré XX, Lda.., a pagar à beneficiária AA:
a) € 4.679, 16 a titulo de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 6.238,88, com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.
b)- 5.850,24€ por subsídio de morte, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 15/03/2022 até integral pagamento.
c) € 1.808,97 a título de despesas de funeral, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento
d) 6,00€ a título de despesas de transportes com as deslocações obrigatórias a este tribunal, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento.
3- Condena a Ré XX, Lda.. a pagar à beneficiária AA:
a)- € 10.918,04 (15.597,20€ - 4.679,16€) a titulo de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 9.358,32 (15.597,20€ - 6.238,88€), com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.
4- Condena as Rés companhia de seguros e empregadora no pagamento das custas na proporção dos respetivos decaimentos que fixa respetivamente em 33,14% e 66,86%.
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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – A sentença fez incorreta avaliação da prova?
2ª – Dos factos dados como provados não é possível reconhecer que o acidente ocorreu por falta de observação, pela R., das regras sobre segurança e saúde no trabalho?
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FUNDAMENTAÇÃO:
Previamente às questões suscitadas na apelação, a pretendida rejeição do recurso por falta de conclusões.
Esta questão vem suscitada pela Apelada AA sustentando-se na circunstância de as conclusões conterem alegações e não a síntese legalmente exigida.
Compulsada a peça de recurso, é uma evidência que as conclusões repetem as alegações, nada sintetizando. Prática, infelizmente, muito comum!
Contudo, nem por isso a consequência se traduz na rejeição do recurso.
Esta patologia fere as conclusões de falta de síntese e, logo, traduz uma deficiência que conduz, conforme prescrito no Artº 639º/3 do CPC, à formulação de convite ao aperfeiçoamento. Convite que no caso desconsiderámos por, não obstante a sua extensão, as conclusões conterem questões facilmente apreensíveis.
Termos em que improcede a questão em apreciação.
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A 1ª questão a dirimir prende-se com um erro no julgamento da matéria de facto.
Em causa os pontos de facto 11, 12 e 13 do acervo provado e o ponto 4 do não provado.
Pretende-se a inversão das respostas.
Em causa a credibilidade das testemunhas FF e EE relativamente às quais a Apelante defende não poderem ser valorados por forma a permitir a resposta de provado e, por outro lado, invoca-se o depoimento de GG cuja valoração se reclama.
Ambas as Apeladas suscitam a rejeição do recurso nesta parte, fundando-se na inobservância dos ónus prescritos no Artº 640º do CPC. Mais propriamente na circunstância de a Apelante não ter procedido à indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, apresentando apenas o resumo da prova gravada, por si interpretada, sem transcrição dos depoimentos prestados por testemunhas e peritos.
Decidindo!
O Artº 640º do CPC permitindo, embora, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, impõe ao recorrente a obrigação de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que impõem distinta decisão e a decisão a proferir sobre cada uma das questões de facto impugnadas (nº 1).
Estes ónus mostram-se cumpridos.
Decorre ainda do nº 2-a) do Artº 640º que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso nesta parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Ouvida sobre esta questão a Recrte. veio dizer que indicou o início e o termo da gravação dos respetivos depoimentos e indicou determinados segmentos da gravação dos mesmos e que a alínea a) do nº 2 do Artº 640º deve ser interpretada no sentido de a impugnação tanto se poder fazer mediante indicação dos concretos segmentos da gravação, como mediante a transcrição deles, citando para o efeito o Ac. do STJ de 15/10/2024, Proc.º 84/14.2T8PVZ-D.
Compulsada a alegação, constatamos que nunca é efetuada a precisa indicação das passagens da gravação a que se pretende dar relevância. Também não vem junta qualquer transcrição. A Apelante limita-se a referenciar o início e o termo de uma gravação cujo ficheiro nem sequer identifica.
Não cumpre, pois, o ónus que lhe é imposto.
Nesta medida, rejeita-se o recurso nesta parte.
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A Apelada Seguradora suscita ainda a extemporaneidade do recurso fundando-se na seguinte argumentação: o recurso apresentado pela Recorrente foi apresentado fora de prazo já que devia ter sido apresentado até ao dia 12-07-2024, sendo que este foi somente apresentado no dia 22-07-2024, não podendo a Recorrente usufruir do prazo de mais 10 dias, indicado no artigo 80 nº3 do C.P.T, uma vez que não cumpriu o ónus do artigo 640º, nº1, al. b) e nº 2 do C.P.C.
Sobre esta questão a Apelada nada disse, ou antes, considerou-a prejudicada pela improcedência da precedente.
Cumpre decidir!
A impugnação da decisão que contém a matéria de facto confere ao recorrente um alargamento do prazo de interposição do recurso, conforme disposto no Artº 80º/3 do CPT, extensão que foi aproveitada pela Apelante.
Conforme supra dito o recurso da decisão que contém a matéria de facto é rejeitado.
Daqui não emerge, contudo, a extemporaneidade do recurso propriamente dito.
Na verdade, não obstante a deficiência relevada, o certo é que das conclusões emerge claramente a impugnação da decisão de facto. Se ela obtém sucesso ou não, ou se a mesma se mostra corretamente invocada ou não, é questão distinta da tempestividade do recurso. Esta afere-se pela aparência decorrente das conclusões que, como dito, impunham a seleção, como questão a decidir, do erro de julgamento de facto. Assim, refletindo o recurso a necessidade de reapreciação, o Apelante deve beneficiar da extensão do prazo em referência. Só assim não seria se as conclusões fossem omissas quanto a tal questão. Neste sentido o Ac. do STJ de 9/02/2017, Proc.º 471/10.7TTCSC. No mesmo sentido os Ac. do STJ de 1/03/2007, Proc.º 06S979 e o de 25/03/2010, Proc.º 740/07.3TTALM.
Termos em que improcede a questão em apreciação.
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OS FACTOS:
1) - No dia 14 de março de 2022, cerca das 11.45 horas, na localidade de ..., ocorreu um acidente, no qual perdeu a vida HH, cônjuge da beneficiária AA.
2) - Quando aquele se encontrava nas instalações da sua entidade empregadora, a XX, Lda., uma caldeira de água quente explodiu, tendo a explosão e respetivos escombros atingido o referido HH, de que resultou a sua morte.
3) - A entidade empregadora tinha transferido para a 2ª Ré a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho pela apólice n.º 8363711 e em função da seguinte retribuição; € 705/MX14 meses (salário base); €6.83/diaX22diasX11 meses (subsídio de alimentação) e € 4.074,34X1 (hora extra), a que corresponde a retribuição anual de €15.597,20.
4) - O trabalhador sinistrado tinha a categoria profissional de motorista/pedreiro, tendo sido, contudo, ele quem realizou a verificação periódica de manutenção da caldeira segundo a última verificação datada de 2017.
5) - A caldeira causadora do acidente era de 1996.
6) - HH estava sob as ordens, direção e fiscalização da 1ª Ré no momento do acidente, o que já acontecia desde 03/12/2018, data de readmissão, e encontrava-se reformado desde 23/09/2018, com a categoria profissional de pedreiro/motorista ligeiros.
7) - À data do acidente HH auferia as seguintes quantias: €400x14M/salário base) +€6,83diax22 dias X11M (subsídio de alimentação) + €4.074,34x1 (horas extra), a que corresponde a retribuição anual de €11.327,20.
8) – No âmbito da averiguação do acidente, foi solicitado à 1ª Ré diversos elementos, nomeadamente: a) Identificação do modelo e características técnicas da caldeira tais como qual a potência; b) Manual de instruções da caldeira e certificação; c) Registo das manutenções efetuadas à caldeira; d) Registo das inspeções efetuadas à caldeira; e) Avaliação de risco / análise de risco da caldeira; f) Fatura da caldeira;
9) – A caldeira foi adquirida à empresa ZZ, Lda. em conjunto com a estufa de pintura, tinha o modelo “Estrela”, pressão até 3 bar e tinha capacidade de 300 litros.
10) – A Ré empregadora não sabe qual a potência da caldeira.
11) – A Ré empregadora não possui Manual de instruções da caldeira, nem a certificação CE.
12) – A Ré empregadora não efetuou inspeções à caldeira, nem procedeu à avaliação de risco / análise de risco.
13) – A caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem.
14) - O trabalhador operava a caldeira, segundo as ordens da entidade empregadora, tendo o mesmo um “Curso básico de segurança no trabalho” ministrado em 16/02/2011.
15) - O último trabalhador que colocou lenha/resíduos de madeira na caldeira foi HH, o sinistrado.
16) - O trabalhador sinistrado nasceu em 22.5.1952 e trabalhava a tempo parcial das 8h às 12.00 horas.
17) A Autora teve despesas com o funeral do marido no valor de € 1.808,97.
18) – Era o trabalhador sinistrado que assegurava a regular limpeza das cinzas da caldeira.
19) - A 1ª Ré, entidade empregadora, XX, Lda., é uma pessoa coletiva cujo objeto social é a fabricação e montagem de obras de carpintaria e caixilharia para construção, revestimento de pavimentos e de paredes, fabrico de móveis, incluindo mobiliário para escritório, mobiliário de cozinha e mobiliário para outros fins, com exploração de estabelecimento de marcenaria e carpintaria, serração, aplainamento e impregnação de madeira, e fabricação de embalagens de madeira. Comércio a retalho de móveis, de artigos de iluminação e de outros artigos para lar e ainda comércio a retalho para colchões, ferragens e de vidro.
20) - A função da caldeira em causa era aquecer a estufa de pintura e não secar a madeira.
21) - A caldeira em causa, aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus.
22) - O combustível utilizado na caldeira em causa era lenha seca, sem qualquer cola, resinosos ou outros semelhantes.
23) - A caldeira só era utilizada em dias de inverno.
24) – A Ré tinha instruções de segurança da caldeira.
25) - No momento da explosão a caldeira não se encontrava a ser “manuseada” pelo trabalhador sinistrado.
26) – A caldeira em causa encontrava-se no interior de uma “casa” que foi construída pelo trabalhador sinistrado.
27) – A explosão causou ainda danos graves no edifício (destruição de parte da parede, telhado e portão) levando à suspensão dos trabalhos, num veículo que ali se encontrava, tendo alguns dos componentes da caldeira sido projetados para a via pública a cerca de 300 metros do local onde se encontrava.
28) - Ao Sinistrado não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro.
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O DIREITO:
Deter-nos-emos seguidamente na 2ª questãoo acidente não ocorreu por inobservância das regras sobre segurança e saúde no trabalho?
No essencial a Apelante sustenta que não se apuraram quaisquer normas cuja violação sustente a sua condenação – ou seja, quais as normas de segurança violadas?- e, por outro lado, que os factos cuja prova se obteve -corrosão, desgaste, ferrugem – não são adequados à explosão.
Ponderou-se na sentença que “dos factos provados verifica-se que a Ré empregadora não procedeu em relação à caldeira que explodiu às verificações periódicas da mesma por pessoa competente, ou seja, não procedeu ao exame detalhado feito por pessoa competente destinado a obter uma conclusão fiável no que respeita à segurança de um equipamento de trabalho, porquanto, a última verificação de manutenção foi efetuada pelo trabalhador sinistrado já no ano de 2017, ou seja, cerca de 5 anos antes, (apesar de ser o mesmo quem se ocupava da caldeira e assegurava a regular limpeza das cinzas – 4.1.18), sem que tivesse sequer formação específica para a manutenção e verificação da caldeira, nem tinha os requisitos de apoio à categoria de fogueiro previstos no art.º 18.º do Regulamento da Profissão de Fogueiro aprovado pelo Decreto n.º 46989 de 30 de abril de 1966, sendo a categoria profissional do sinistrado de motorista/pedreiro (4.1.4., 4.1.14 e 4.1.28).
Conviria, não só limpar regularmente as cinzas, mas, por exemplo, o equipamento a pressão ser verificado com periodicidade por pessoa competência técnica ou o tubo de exaustão ser limpo com periodicidade e, neste último caso, da prova efetuada o mesmo apenas foi limpo em 1997 (4.1.4) e sem ser como se referiu por pessoa com formação competente para o efeito.
Ora, por lei o empregador deve conservar os relatórios da última verificação e de outras verificações ou ensaios efetuados nos dois anos anteriores, acontece como se referiu, no caso concreto, por um lado, não foi feita verificação ao equipamento, nem a sua manutenção por pessoa competente para o efeito e, por outro lado, a que foi feita, sem ser por pessoa com formação competente, já tinha 5 anos (exigindo-se também uma verificação mais regular em face do tipo de equipamento), assim, houve violação das regras de segurança por parte da Ré empregadora quanto ao disposto nos art.ºs 3.º, als. a) e) e art.º 6.º, n.ºs 2 e 4, por referência ao art.º 2.º, als. a), b) e g), todos, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro e ainda art.ºs 15.º, n.ºs 1, 2, als.a), d) e e), 3, art.º 73.º-B, n.º1, als b) e e) da Lei n.º 102/2009, de 10/09.
Acrescenta-se que tal como decorre do art.º 1.º do referido Decreto-lei n.º 50/2005, este diploma estabelece as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho e, no caso em concreto, pela Ré empregadora não foram observadas as previstas nos art.ºs 3.º, als. a) e e) e art.º 6.º, n.ºs 2 e 4, por referência ao art.º 2.º, als. a), b) e g) desse diploma.
Incumprindo tais regras de segurança, que se lhe impunham perante a identificação de um risco previsível como seria a possibilidade de explosão de uma caldeira já de 1996, de 300 litros, utilizada no inverno (4.1.23) na sua indústria, que já estava com ferrugem, corrosão e desgastada (4.1.13) era exigido à Ré empregadora um maior cuidado pois a falta da exigida e obrigatória verificação periódica e manutenção da caldeira por pessoa com formação adequada não é indiferente à ocorrência da explosão (Cfr. Ac. do TRP de 17.4.2023, Proc. n.º 1321/20.1T8OAZ.P1 in www.dgsi.pt) e terá provavelmente aumentado a sua ocorrência porquanto não foram alegadas, nem apuradas quaisquer outras circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas que tenham intercedido no caso concreto e a omissão do comportamento da Ré não permitiu reduzir o nível de risco de explosão da caldeira, nem aumentar o nível de proteção dos trabalhadores.
Assim, a empregadora contribuiu assim de forma decisiva para a ocorrência do acidente pois não assegurou nem a eliminação do risco, nem tão-pouco a minimização desse risco, sendo assim possível estabelecer nexo de causalidade adequado entre a inobservância dessas regras sobre segurança no trabalho por parte da empregadora e a ocorrência do acidente.
Por tudo o exposto se conclui que o acidente de trabalho efetivamente resultou de atuação culposa da empregadora, traduzida na inobservância de regras de segurança que se lhe impunham para eliminação ou, pelo menos, minimização, de um risco que seria previsível em face da natureza do equipamento.
O acidente reportado nos autos traduziu-se numa explosão de uma caldeira, explosão essa cujos escombros atingiram mortalmente o sinistrado, sem que, contudo, este estivesse a manuseá-la.
A sentença recorrida considerou verificada a situação enunciada no Artº 18º/1 da Lei 98/2009 de 4/09 – atuação culposa do empregador traduzida na inobservância de regras de segurança.
Do Artº 18º/1 da LAT decorre que, resultando o acidente da inobservância de regras de segurança pelo empregador, será o mesmo responsável pelas consequências daquele.
A responsabilidade, principal e agravada, do empregador pode ter dois fundamentos autónomos: um comportamento culposo da sua parte; a violação, pelo mesmo empregador, de preceitos legais ou regulamentares ou de diretrizes sobre higiene e segurança no trabalho.
Esclareceu-se na sentença que “No caso em apreço nos autos não está de alguma forma em causa a possibilidade do acidente tiver sido provocado pela empregadora, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, mas sim se o acidente pode ter resultado da falta de observação, pela empregadora, de regras sobre segurança no trabalho.
Tal como dito no Ac. do STJ de 3/02/2010, Proc.º 304/07.1TTSNT, a diferença existente entre ambos reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo. Decorre tal asserção da circunstância de, estando em causa a violação de preceitos legais ou regulamentares sobre higiene e segurança no trabalho, tal violação constituir fundamento autónomo bastante para o postulado agravamento e, bem assim, de a mencionada violação consubstanciar, por si mesma, a omissão concreta de um especial dever de cuidado imposto por lei.
Do que se não prescinde, tanto num caso, como noutro, é da prova do nexo causal entre o ato ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.
Como pressupostos de aplicação deste normativo temos, pois, invocada que está a violação de regras de segurança, por um lado, a inobservância por parte do empregador de alguma regra sobre segurança, higiene e saúde e, bem assim, o nexo causal entre esta e o acidente. Ou seja, não basta que ocorra tal inobservância, impõe-se que ela seja determinante na produção do evento. Neste sentido o Ac. do STJ de 3/11/2023, Proc.º 151/21.8T8OAZ. Donde, estar afastada a possibilidade de enquadramento neste título de responsabilidade de todas e quaisquer violações de princípios ou normas sobre segurança se de tal violação não resultar o evento.
A lei exige, pois, nesta matéria, que a violação ou inobservância de regras de segurança seja determinante do acidente, pelo que a primeira operação de subsunção do caso à lei aplicável consiste na determinação da norma de segurança violada.
A este propósito cabe, desde já, salientar que a lei não se basta com a violação de um qualquer dever de cuidado ou de alguma genérica obrigação de segurança. Tais violações inserem-se nos riscos próprios da atividade e são absorvidas pela responsabilidade geral (objetiva) decorrente de acidentes de trabalho. Neste sentido o Ac. do STJ de 13/10/2016, Proc.º 443/13.0TTVNF. O que no Artº 18º da LAT se prevê é a responsabilidade decorrente da concreta violação de uma específica regra de segurança, causal do acidente.
No caso em apreciação deu-se a explosão de uma caldeira, modelo “Estrela”, pressão até 3 bar com capacidade de 300 litros, relativamente à qual a Ré empregadora não efetuou inspeções, nem procedeu à avaliação de risco / análise de risco. Esta caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem e tinha como função aquecer a estufa de pintura, utilizando como combustível, lenha seca. A caldeira em causa aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus.
Da Lei n.º 102/2009, de 10/09 decorre a obrigação de o empregador assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho, para o que deve cumprir um conjunto de princípios gerais de prevenção que passam por evitar riscos, planificar a prevenção, identificar riscos, adotar medidas adequadas à respetiva proteção.
Estas são obrigações gerais de segurança no trabalho que devem ser complementadas com específicas regras de segurança aplicáveis à atividade em curso.
Para o efeito impõe o Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, relativamente à utilização de equipamentos de trabalho, que, para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve:
a)Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;
(…)
e) Assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos artigos 10.º a 29.º e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores (Artº 3º) e deve proceder a verificações periódicas e, se necessário, a ensaios periódicos dos equipamentos de trabalho sujeitos a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos (Artº 6º/2).
Conforme emerge do que acima transcrevemos a sentença relevou a circunstância de a R. não ter procedido a verificações periódicas da caldeira por pessoa competente salientando que o sinistrado, que foi quem fez alguma manutenção, não tinha formação específica para a manutenção e verificação da caldeira, nem tinha os requisitos de apoio à categoria de fogueiro previstos no art.º 18.º do Regulamento da Profissão de Fogueiro aprovado pelo Decreto n.º 46989 de 30 de abril de 1966.
Examinados os factos, não consta que o sinistrado fizesse mais do que a regular limpeza das cinzas da caldeira. Mas é um facto que o operador da caldeira era o sinistrado e que a este não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro.
Ocorre, porém, que o acidente não ocorreu por o sinistrado estar a operar na caldeira. O acidente ocorreu devido a uma explosão num momento em que ninguém ali operava, desconhecendo-se a razão que levou à explosão.
Donde, não nos parece que possamos retirar alguma consequência da circunstância de o sinistrado não possuir competências de fogueiro.
De outro ponto de vista também não vemos como relevar a circunstância de a última manutenção ter sido efetuada em 2017 e de o tubo de exaustão ter sido limpo em 1997, factualidade que não encontra apoio no elenco provado.
É, contudo, certo, que a R. não efetuou inspeções à caldeira. Deveria tê-las efetuado?
Conforme supra dito, o Artº 6º/2 do DL 50/2005 dispõe que o empregador deve proceder a verificações periódicas dos equipamentos de trabalho.
A Apelada Seguradora alega que a legislação relativa à segurança e manutenção de caldeiras industriais é bastante rigorosa, remetendo para o Regulamento de Instalações e Equipamentos Sob Pressão (RIEP), ao que supomos1 aprovado pelo DL 131/2019 de 30/08.
Este diploma aplica-se, entre outros, aos equipamentos sob pressão (ESP), visando alinhar-se com as disposições do Decreto-Lei n.º 111-D/2017, de 31 de agosto que transpôs opara a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2014/68/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014. Trata-se de diploma relativo à disponibilização no mercado de equipamentos sob pressão (aqui não aplicável).
A Apelante aceita que as caldeiras de água quente são equipamentos sob pressão, mas defende que aquele diploma legal –o DL 131/2019- exclui do seu âmbito de aplicação os ESP com pressão máxima igual ou menor que 4 bar.
Efetivamente, do Artº 2º/2-a)iii l resulta que:
- Excluem-se do âmbito de aplicação do Regulamento os RSPS2 não abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 37/2017, de 29 de março, os ESP3 não abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 111-D/2017, de 31 de agosto, bem como os Recipientes e Equipamentos em relação aos quais se verifique uma das seguintes condições:
a) Destinados a:
iii) Conter gases, gases liquefeitos e vapores do grupo 2 com:
I) PS (igual ou menor que) 4 bar;
Tendo-se provado que a caldeira é de pressão até 3 bar, a mesma está excluída do âmbito de aplicação deste diploma.
Resta, pois, como violada a regra emergente do DL 50/2005 – obrigação de verificações periódicas.
Partindo da inobservância desta regra, cumpre apurar se a mesma foi causal do acidente.
Consta da sentença recorrida que “a empregadora contribuiu assim de forma decisiva para a ocorrência do acidente pois não assegurou nem a eliminação do risco, nem tão-pouco a minimização desse risco, sendo assim possível estabelecer nexo de causalidade adequado entre a inobservância dessas regras sobre segurança no trabalho por parte da empregadora e a ocorrência do acidente.
Como se vem repetidamente afirmando a responsabilização da entidade empregadora nos termos do Artº 18º/1 exige que se demonstre (cabendo esse ónus a quem vier a tirar proveito dessa forma mais acentuada de responsabilização) um nexo causal entre a postergação das regras de segurança, saúde e higiene no trabalho e o evento infortunístico.
Significa isto que “a responsabilidade agravada do empregador com fundamento na violação de preceitos legais ou regulamentares ou de diretrizes sobre higiene e segurança no trabalho pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) que sobre o empregador recaia o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim se omitindo o cuidado exigível a um empregador normal; (ii) que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada” (Ac. do STJ de 19/06/2013, Proc.º 3529/04.8TTSLB, disponível no mesmo sítio).
O Artº 563.º do CC adotou, a propósito do nexo de causalidade, e como é reconhecido pela generalidade da doutrina, a teoria da causalidade adequada.
Conforme ensina Antunes Varela, “um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª Ed., Almedina, 800).
Como se escreveu no Ac. do STJ de 12/11/2009, Proc.º 632/06.3TTMR “a apreciação do nexo de causalidade envolve dois patamares. O primeiro prende-se com a determinação naturalística dos factos, em ordem a determinar a sua causa-efeito e constitui matéria de facto... e que, por isso, implica uma avaliação de prova. O segundo implica o confronto daquela sequência cronológica com as regras jurídicas que delimitam o conceito de causalidade adequada, o que já é uma operação de subsunção jurídica.”
Assim, ainda que, em abstrato, se constate a violação de alguma norma de segurança, em concreto será necessário que a factualidade seja reveladora, não só da existência da anomalia ou omissão, como também de que a mesma foi causal do evento, de modo a permitir estabelecer a correspondência entre a omissão registada e a ocorrência.
No Acórdão do STJ n.º 6/2024 de 13/05 uniformizou-se jurisprudência no sentido de que “Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.”
Pergunta-se então: será o acidente que ocorreu uma consequência normal, previsível da violação da regra de segurança identificada?
Conforme se provou esta era uma caldeira de 1996, que apresentava desgaste, corrosão e ferrugem. A caldeira em causa aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus. Por outro lado, a caldeira em causa encontrava-se no interior de uma “casa”.
Com estas características, não há como não concluir que a falta de verificações periódicas aumentou a probabilidade de ocorrência de um acidente. Mas, e deste acidente?
Argumenta a Apelante que a corrosão, o desgaste e a ferrugem nunca poderiam ser causa de uma explosão semelhante à que ocorreu e que apresenta os danos verificados nos autos, a saber projeção de componentes da caldeira a cerca de 300 metros do local onde a mesma se encontrava. Afirma que aquelas características produzem dissipação de energia desde o interior da caldeira, o que significa que o rebentamento nunca pode ter a dimensão que teve.
Numa breve consulta efetuada tendo por base a questão “o que pode provocar a explosão de uma caldeira alimentada a lenha” não é, todavia, essa a conclusão a que chegamos. Veja-se https://multiagua.com.br/as-7-principais-causas-de-explosao-em-caldeiras/
Considerando o disposto no Artº 342º/1 e 2 do CC, que faz recair sobre aquele que invoca um direito o ónus de alegar e provar os factos que o enformam, e sobre aquele contra quem a invocação é feita, a alegação e prova dos factos impeditivos do direito invocado, afigura-se-nos que está suficientemente fundamentada a integração da situação relatada nos autos no Artº 18º/1 da LAT, não nos merecendo, por isso, censura, a sentença.
O acervo fático não revela matéria capaz de sustentar a improbabilidade invocada pela Apelante, improbabilidade que, em presença do AU supra citado, carece de prova, já que se fixou jurisprudência no sentido de bastar apurar se nas circunstâncias do caso concreto a violação de uma regra de segurança se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente. Esse aumento é revelado pelo circunstancialismo acima mencionado.
Improcede, assim, a apelação.
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As custas são da responsabilidade da Apelante, visto ter ficado vencida (Artº 527º do CPC).

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Custas pela Apelante.
Notifique.

Lisboa, 15/01/2025
MANUELA FIALHO
ALDA MARTINS
PAULA POTT
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1. A Apelada não identifica a proveniência de tal regulamento
2. Recipientes sob pressão simples
3. Equipamentos sob pressão