Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA PIRES RODRIGUES | ||
Descritores: | INSTRUÇÃO INADMISSIBILIDADE SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/27/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | (da inteira responsabilidade da relatora) I. Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são os previstos no n.º 3, do artigo 287.º, do CPP, a saber: (i) a extemporaneidade do requerimento; (ii) a incompetência do juiz ou (iii) a inadmissibilidade legal da instrução; II. A decisão do Ministério Público de não aplicar o instituto da suspensão provisória do processo e de deduzir acusação é sindicável, sendo o meio processual adequado para o fazer, uma vez findo o inquérito, o requerimento de abertura de instrução; III. Apenas deve ser declarada aberta a instrução com vista a eventual aplicação do instituto da suspensão provisória do processo quando esta seja legalmente admissível, sob pena de a instrução se revelar inútil, o que é proibido por lei nos termos do artigo 130.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, justificando a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade lega; IV. Pretendendo o arguido, com o requerimento de abertura de instrução apresentado, “ver apreciada a adequação da suspensão provisória do processo ao seu caso”, sindicando as imputações que lhe são feitas na acusação [quer na sua vertente factual quer na sua vertente jurídica, impugnando parcialmente a factualidade que lhe é imputada e, bem assim, a valoração jurídica de tais factos] e relevando tais alegações para aferir o grau de culpa do arguido, a qual, enquanto pressuposto indispensável à aplicação do instituto da suspensão provisória do processo não pode ser elevada, assim como para aferir da satisfação das exigências de prevenção [pressupostos que a verificarem-se, juntamente com os demais estabelecidos no artigo 281.º do CPP, dão lugar à aplicação da suspensão provisória do processo, alcançando-se, desse modo, a finalidade última visada pelo arguido com a instrução, que é a de evitar a sua submissão a julgamento], não pode tribunal a quo decidir, com base na «violência inerente ao despacho acusatório», pela existência por parte do arguido de um grau de culpa elevado e pela insatisfação das exigências de prevenção, nem pode a discussão suscitada pelo arguido em torno da imputação fáctico-normativa constante da acusação ser feita no despacho liminar que recai sobre o requerimento de abertura da instrução, não podendo, pois, concluir pela inutilidade da instrução e, consequentemente, pela sua inadmissibilidade legal; V. Não podendo o Tribunal a quo concluir da análise do requerimento de abertura da instrução que a suspensão provisória do processo se encontra, desde logo, inviabilizada por falta de concordância do Juiz de instrução e do Ministério Público, deverá ser declarada aberta a instrução e, seguindo-se os ulteriores termos do processo, deverá o Juiz de instrução apreciar se se verificam, ou não, os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e, em caso afirmativo, diligenciar pela concordância do Ministério Público. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, as Juízas que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. No âmbito do processo que corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal (Juiz 6), sob o n.º 901/23.8PELSB, o arguido AA interpôs o presente recurso do despacho, proferido em 18.01.2024, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si apresentado, com fundamento na sua inadmissibilidade legal. 2. O Ministério Público proferiu despacho de acusação, imputando ao arguido, ora recorrente, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal. 3. Notificado, veio o arguido requerer a abertura da instrução, com os seguintes fundamentos: «(…) II Da matéria de facto incorrectamente imputada ao arguido 5. Em primeiro lugar, aponta-se que no artigo 3.º da acusação se escreve que "(...) o arguido AA, com uma frequência semanal começou a apelidar BB de “puta" (ênfase nossa). No entanto, ainda que assuma ter-se dirigido à namorada naqueles termos mais do que uma vez, o arguido nega expressamente tê-lo feito de forma regular (muito menos semanalmente), sendo antes um epíteto que afim em situações concretas e circunscritas a momentos de grandes discussões. É fundamental, ainda que mantendo uma inalienável censura acerca daquela acção, distinguir entre um comportamento reiterado, de teor persecutório e que activamente vise a constante menorização de uma vítima (como aquele que descreve o artigo em causa) e o proferir de uma ofensa no contexto de uma discussão acesa, em que ambas as partes activa e equitativamente participavam. 8. O juízo que se faça a seu respeito e a imagem global do facto que se retire dessa verificação, não é nem pode ser idêntico num caso e no outro. 9. O mesmo se dirá relativamente aos factos descritos no artigo 4.º da acusação, que imputa ao arguido ter "com uma frequência semanal, por motivo não apurado, desferi[do] murros, efectua[ado] buracos munido de facas de cozinha, de características não determinadas e usou objectos, tudo contra a parede" (ênfase nossa). 10. Com efeito, o arguido também não procedeu como descrito com uma frequência semanal, tendo aqueles actos sucedido, efectivamente, mas em número muito o inferior, associados, isolada e não reiteradamente, a episódios concretos de grande agitação emocional. 11. Por seu turno, o episódio descrito no artigo 5.º carece de explicação adicional: efectivamente, num dia do mês de ..., conforme ali descrito, o arguido "empurrou BB que se encontrava sentada numa cadeira, fazendo com que as costas da referida cadeira se partissem e aquela caísse ao chão (...)"; no entanto, este acto foi acidental e não desejado, tendo o arguido agido, no limite, com negligência inconsciente. 12. O ora requerente e a vítima encontravam-se a conversar, estando sentados um em frente ao outro, tendo o arguido os pés apoiados na cadeira em que sentada BB. 13. A certa altura, em reação de espanto a algo que BB dissera, o arguido reagiu automaticamente com um movimento de impulso do corpo/espasmo de guinada para trás, o que levou a que as pernas exercessem pressão na cadeira em que sentava a vítima, que, por já se encontrar em mau estado, cedeu e fez com que aquela caísse ao chão e se magoasse (tendo, deve também dizer-se, o arguido imediatamente acorrido à situação, socorrendo-a). 14. Assim, nos termos do artigo 13.º do Código Penal, não sendo a violência doméstica punível a título de negligência, deve o facto constante do artigo 5.º da acusação ser retirado daquele libelo. 15. Seguidamente, aponta-se que quanto ao descrito no artigo 7.º da acusação, o gesto de "espalh[ar] o cuspo com a mão [na cara da arguida]" não teve lugar, pelo que se impugna expressamente a parte final do ponto em questão. 16. Igualmente, quanto ao descrito no artigo 8.º, o arguido nunca disse que "leva[ria BB] consigo" se se atirasse da janela da residência, impugnando-se também expressamente a parte final do referido artigo. 17. Por último, assinala-se que o episódio descrito no artigo 16.º da acusação não sucedeu de todo conforme descrito. 18. Com efeito, na sequência dos factos descritos nos artigos anteriores, o arguido encontrava-se, então, sentado na cama, tendo a janela aberta atrás de si — coisa de que não tinha noção — e encontrando-se, então, BB de pé, c. arguido puxou-a em direcção a si, tendo esta, acidentalmente, batido com a cabeça na moldura da janela que ali estava atrás. 19. O arguido puxou-a, sim, mas não a empurrou, muito menos de encontro a uma janela e de modo algum com o objectivo de a lançar contra ela causando-lhe a ferida que causou. 20. Não poderia, pois, também quanto a este facto, ser-lhe imputado crime diverso de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º do código penal. 21. Por último, no que toca ao desacordo com o teor factual da acusação e, no que de tal pode e deve ser retirado quanto à imputação jurídica que se lhe dê, assinala-se ainda o seguinte: a acusação assume, no seu artigo 2.º, que "O aguido AA e BB, a partir do mês de … de 2022, fixaram residência comum, no quarto do primeiro, sito na residência universitária denominada ..., na ..., embora a última mantivesse um quarto naquele local' (ênfase nossa). 22. Ao longo de toda a acusação, no que toca aos factos que tiveram lugar no quarto do arguido, sempre aqueles são descritos como tendo ocorrido "no interior a residência comum", sendo que, a final, e por esse motivo, se lhe imputa um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, ou seja, agravando a moldura penal aplicável em resultado de uma circunstância que a lei considera fazer aumentar a culpa do agente e a censurabilidade do acto. 23. No entanto, é manifesto que o requerente e a então namorada, BB, não tinham fixado residência comum. 24. Tal decorre indubitavelmente do auto de inquirição de BB, de onde consta que "vivem os dois na mesma residencial, mas em quartos diferentes. Costumar pernoitar no quarto do suspeito, mas a testemunha não deixou de ter o seu próprio quarto na residencial' (cfr. Auto de inquirição de testemunha n.º 2, fls. 13, para. 9). 25. E tanto assim é que consta do mesmo parágrafo daquele auto de inquirição que: "(...) a Testemunha recebeu uma chamada de trabalho e é usual que as receba no seu quar4) (...)". (Idem, Ibid, ênfase e sublinhado nossos). 26. O mesmo se retira ainda do auto de denúncia, de fls. 35-verso, onde consta que denunciante afirmou que "possuem quartos separados mas que pernoitavam maioritariamente no espaço do suspeito", bem como do auto de inquirição testemunha n.º 1, onde se descreve que CC, residente na mesma residência de estudantes onde viviam AA e BB, afirmou. saber que os dois "namoram há menos de um ano, tendo cada um o seu quarto, no entanto, podem dormir no quarto um do outro, o que fatiem habitualmente" (cfr. fls. 11 dos autos). 27. Ora, com a incriminação especial dos factos típicos praticados no domicílio comum, o legislador quis agravar a sanção aplicável a quem, a coberto da intimidade e reclusão que a casa tende a oferecer, sujeite — na ausência de testemunhas e longe de quem possa acorrer a auxiliar — quem consigo ali viva a maus-tratos físicos ou psíquicos. 28. Conforme escreveu Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: "O propósito do legislador foi o de (...) censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas" (anotação 13 ao artigo 152.º do Código Penal, p. 406 da edição de 2000. 29. Ora, no caso concreto, é manifesto que o alcance daquela alínea da lei não tem correspondência com as circunstâncias em que vivia este jovem casal, tanto mais que não havia um espaço comum ou de acesso comum que justifique uma especial gravidade. 30. A vítima tinha o seu próprio quarto, que usava enquanto seu espaço Pessoal e autónomo, embora pernoitasse frequentemente com o arguido — o que é absolutamente normal entre um casal jovem de namoro recente e em nada se confunde, pode ou deve confundir com coabitar ou ter estabelecido residência comum. 31. Adicionalmente, os dois viviam numa residência de estudantes, partilhada com outros jovens e da qual ambos entravam e saíam sem constrangimentos, sendo conhecidos dos seus vizinhos de quartos, que estavam a par da sua relação, pelo que também por aqui se excluiria a ratio daquela agravação, que efectivamente não se adequa ao caso concreto, ou não fosse um salto lógico insustentável afirmar que por pernoitarem frequentemente um com um outro, dois namorados que têm, cada um, o seu quarto, haviam fixado domicílio comum. 32. Não poderia nunca, pois, o arguido ter sido acusado por referência à alínea a n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal. III — Da necessidade de ponderação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo e da verificação dos requisitos da sua adequação no caso concreto 33. A discordância de fundo do requerente face à dedução da acusação assenta, no entanto, na opção tomada quanto àquela que do ponto de vista político-criminal seria a solução mais adequada a satisfazer as necessidades de prevenção e 11 reacção no caso concreto, a qual foi o proferir de acusação vs. (pelo menos ponderação d)a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. (…) 36. Não tendo o Ministério Público lançado mão desse seu poder-dever, assiste ao requerente a faculdade de suscitar agora a ponderação judiciária e a fiscalização judicial dessa não aplicação ou sequer ponderação, ou de a suscitar sempre que se verifique uma alteração das circunstâncias do caso, bem com tal resulte da prova a produzir em fase de instrução, tendo em conta também a postura do arguido e a vontade da vítima e, sobretudo, a assunção da factualidade essencial e o juízo de autocensura e de procura de ajuda e terapia que não pode deixar de ser valorado. (…) 38. Com efeito, face ao até agora exposto, bem como dos elementos constantes do; autos, e dos que poderiam ter sido apurados pelos órgãos de policia criminal a requerimento do Ministério Público, nos termos da Directiva n.º 1/2014 e de que agora se vem dar conhecimento, constata-se que a suspensão provisória c. o processo, com tudo o que agora se conhece e dá a conhecer, é a solução mais adequada ao caso concreto. 39. O ora requerente não tem antecedentes criminais, admite compungido e lamenta profundamente a sua conduta nos temos supra explicitados, reconhecendo o seu carácter censurável e por ela se penitenciando, tanto que, ciente do erro e é o risco que gerou, deseja activamente não voltar a colocar-se (e, concomitantemente, a terceiros) em situação idêntica, o que o levou a procura»,,1 de imediato, ajuda terapêutica especializada, que mantém. 40. Como lhe era imposto, não mais voltou a aproximar-se da vítima, como aliás não poderia deixar de ser. 41. Por iniciativa própria e imediatamente a seguir ao episódio mais gravoso descrito na acusação e que originou os presentes autos, agendou uma consulta de psicoterapia (cfr. Doc. 2 junto com o requerimento apresentado a 14/7/2023) subsequentemente, inscreveu-se num “programa de combate à violência género” (“Programa de Atención a Personas Agressoras”, incluído no programa “Pacte Palma — Contra la violência de génere)”, oferecido pelo Estado .... (…) 43. O ora requerente frequenta o referido programa, ininterruptamente, desce 18/7/2023, tendo tido até à data 11 sessões individuais de terapia. (cfr. declaração emitida pelo Programa, que se junta como Doc. 2). 44. Mais recentemente, consultou também um médico psiquiatra, numa consulta requerida por sua iniciativa (cfr. comprovativo de pedido de consulta, que se junta corro Doc. 3), o que fez neste contexto — que tem sido sempre presente — de genuína preocupação com a sua saúde mental e no sentido de continuar a trabalhar para adquirir ferramentas para, progressivamente, a ir melhorando, sobretudo para nunca mais sujeitar ninguém ao que se envergonha de ter feito. 5. Aquele médico, no entanto, não considerou que o requerente necessitasse de acompanhamento daquela especialidade, motivo pelo qual se mantém a ser acompanhado pelo psicoterapeuta do programa de apoio a agressores supra referido, mas não iniciou consultas regulares de psiquiatria. 46. Ciente de que o seu equilíbrio, a sua estabilidade emocional e a boa evolução da sua personalidade e vida passam também, necessariamente, pela criação de uma rotina e pela possibilidade de prover por si, o requerente procurou igualmente trabalho, o que fez assim que voltou a fixar-se na casa materna, em .... 47. Inicialmente, conseguiu emprego temporário como empregado de mesa na empresa ..., tendo ali iniciado funções a 16/8/2023 (cfr. contrato de trabalho que se junta como Doc. 4). 8. Desejando, no entanto, uma situação de maior permanência e segurança, procurou e obteve lugar permanente no ... onde exerce funções como... desde 25/9/2023, tendo transitado para a categoria de ... por aditamento ao contrato de trabalho de 1/10/2023 (cfr. oferta de trabalho e contratos de trabalho que se juntam como Doc. 5). 49. Ora, é manifesto que o ora requerente tem feito um esforço activo e bem-sucedido — para, partindo do ponto e das circunstâncias vivenciais em que se encontrava em meados do mês de Julho passado, transformar a sua vida e procurar garantir por todos os meios que se mune de capacidades que lhe permitam não mais repetir os actos que aqui nos trazem nem quaisquer outros que possam vitimar quem quer que seja. 50. É também certo que as sanções penais e a sua ameaça têm como principal objectivo a prevenção da prática de crimes, desde logo a título de prevenção especial, pela eficácia que a aplicação de uma pena possa ter na inflexão de um determinado percurso de vida que venha a trilhar um arguido/condenado. 51. No caso concreto, é notório que a simples abertura do processo, em consequência dos muito infelizes eventos do dia 10/7/2023 foi já suficiente para operar no requerente todos os objectivos inerentes às finalidades das penas, uma! vez que aquele inverteu o seu rumo de vida, encontrando-se activamente a trabalhar no sentido de alterar comportamentos e corrigir os traços da suai personalidade cujo descontrolo ocasional levou à prática dos actos que se lhe imputam (com excepção dos que expressamente impugnou). 52. Por estes motivos, a suspensão provisória, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, é o meio suficiente e adequado ao caso concreto, desde logo - no que toca a reagir aos factos e a prevenir a prática de novos crimes, uma vez, que - com excepção da proposta da vítima, a quem ainda não foi colocada essa possibilidade - se encontram reunidos os pressupostos da sua aplicação. 53. Assim é, até porque a suspensão provisória visa exactamente reagir adequada e proporcionadamente aos factos e favorecer a reinserção social do arguido, permitindo-lhe manter a sua integração familiar, profissional e social, sendo, pois, este um dos casos em que se justifica a sua aplicação, uma vez que o requerente encontra-se agora familiar, social e profissionalmente devidamente inserido trilhando já - por sua própria e louvável iniciativa e sem que tal tivesse de lhe ser imposto - o caminho da auto-crítica e da evolução pessoal. 54. Desse modo, não subsiste uma exigência de pronúncia, a sujeição a julgamento ou mesmo o eventual cumprimento de determinada pena, para que se garanta o assegure as finalidades da punição, uma vez que os próprios fins das normas e c s fins das penas são exactamente a prevenção especial ou socialização era liberdade, a qual o requerente — sem dúvida à boleia dos factos que originaram ( s presentes autos — já vem trilhando. 55. A cuidada ponderação sobre as necessidades de prevenção geral e especial no caso concreto — que não foi feita pelo Ministério Público em antecipação da dedução da acusação, mas devia tê-lo sido se conheces se todas estas novas circunstâncias — leva a concluir que existem menores exigências de prevenção geral positiva, e de prevenção especial, nomeadamente em face do juízo de prognose positivo que já é possível tecer acerca da adequação do requerente à reintegração social, que sendo particularmente impressiva e sustentada, permite a suspensão do processo, sendo para tal precisa, naturalmente, a anuência da vítima — questão que se lhe deverá colocar. 56. Posto inversamente, não resultam das actuais condições de vida do requerente indicadores susceptíveis de fundamentar ou justificar uma eventual decisão de pronúncia, bem pelo contrário, existindo sim, indicadores suficientemente fortes que apontam no sentido de as finalidades que estão na base da suspensão provisória virem a ser integralmente alcançadas. 57. Aliás, perante a factualidade descrita, é mesmo possível concluir que há fundamento para formular um juízo favorável quanto ao comportamento futuro do requerente. 58. Deste modo, interromper a actual situação social e familiar em que o arguido se encontra, com o seu trabalho em curso de enfrentamento e tratamento das questões ligadas à personalidade e à saúde mental que motivaram as suas acções censuráveis, bem como tendo a sua inserção laboral "encaminhada", seria quebrar um percurso que o requerente está a seguir e, mais do que isso, seria frustrar as vias abertas pelo novo rumo que o próprio escolheu através de um processo de "ressocialização espontânea" em que pretende assumir e reparar o seu erro. 59. Tal opção é contrária ao espírito da Lei e dos Tratados, na medida em que impõe solução mais gravosa quando estão reunidas condições para que a infracção in caso seja corrigida por via da suspensão provisória do processo mediante a sujeição a injunções — ou seja, de modo menos lesivo para o futuro do arguido, sendo igualmente satisfatória para a sociedade de um modo geral, por via do peso da suspensão e da carga responsabilizante das injunções a cumprir, bem como adequada para a vítima, uma vez que só poderia ir avante dado o seu aval. 60. Havendo alternativa, é pois, desajustado, desproporcionado e excessivo o envio dos correntes autos para julgamento, devendo a decisão de acusar ser substituída por uma que admita a colocação à vítima da hipótese de admitir a suspensão provisória do processo, sujeita às injunções que vierem a ser consideradas adequadas e que naturalmente, dentro das suas possibilidades, o arguido aceitará. 61. Nestes termos, caso lhe seja dada essa oportunidade, o requerente assume desde já, como aliás não podia deixar de ser, o compromisso de cumprir com as injunções que forem entendidas como: i. adequadas à natureza dos factos, às circunstâncias e consequências da sua prática; ii. proporcionais à intensidade da concreta conduta e aos seus efeitos, tendo em conta a gravidade da pena com que seria punido; e iii. suficientes em face das exigências de prevenção que o caso concreto reclama. 62. Assim, conclui-se reiterando que deve ser aberta a instrução e ali com o conhecimento de todos os dados — devidamente ponderada a matéria dos autos e a invocada neste requerimento —, deverá concluir-se pela adequação da suspensão provisória do processo ao caso concreto, informando-se, consequentemente, a vítima da possibilidade da aplicação deste instituto, nos termos do n.º 2 do Capítulo X da Diretiva n.º 1/2014, de 24 de Janeiro. REQUERIMENTO PROBATÓRIO (…) Termos em que se requer a V. Exa. se digne declarar aberta a fase de instrução e, admitidas e produzidas as provas supra requeridas, após a realização do debate instrutório, proferir despacho de não pronúncia relativamente ao crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, e que, mediante a concordância do Ministério Público, determine que se informe pessoalmente BB de que pode formular requerimento de aplicação da suspensão provisória do processo, ou concordar com a medida de diversão, esclarecendo-a sobre este instituto, os seus objectivos, as medidas que podem ser impostas ao arguido e sobre as consequências da sua aplicação.» 4. Foi então proferida a decisão ora recorrida, com o seguinte teor: «O arguido AA apresentou requerimento de abertura de instrução, a fls. 459 a 466, pretendendo, em suma, que lhe seja aplicado o instituto da suspensão provisória do processo. O seu requerimento é tempestivo e o arguido tem legitimidade para requerer a instrução. A instrução é uma fase eventual e facultativa do processo penal, que, existindo, ocorrerá entre a fase de inquérito e a fase de julgamento, a requerimento, quer do arguido, quer do assistente, no prazo de vinte dias da notificação da decisão relativa à fase de inquérito (artigo 287.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal), e visa a comprovação judicial da decisão de submeter, ou de não submeter, uma causa a julgamento (286.º, n.º 1 e n.º 2, do mesmo diploma). Por o processo penal português ter uma estrutura acusatória (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), não cabe ao Juiz de Instrução Criminal levar a cabo actos que sejam de investigação, nem repetir diligências que são responsabilidade do Ministério Público, o qual, por força da lei, é o dominus da fase processual de inquérito—a função do Juiz de Instrução é «(...) reconduzida à sua dignidade jurídico-constitucional, consistente na prática de actos materialmente judiciais e não na de actos materialmente policiais». Assim, FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Para uma reforma global do processo penal português – da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais, in Para uma Nova Justiça Penal (AA. VV.), ..., Almedina, 1983, pp. 127 e ss. De igual modo, nesta fase não se pretende o conhecimento do mérito da causa, como que antecipando a fase de julgamento, visando-se, meramente, a verificação da (in)existência de indícios suficientes de que foram praticados determinados factos que poderão preencher um tipo crime e de que o arguido foi o seu agente. O Juiz de Instrução Criminal encontra-se, destarte, tematicamente vinculado ao objecto do processo, que, nesse momento, será enformado, consoante os casos, ou pela acusação, ou pelo requerimento de abertura da instrução (ou por ambos) — o que encontra reflexo no regime do artigo 303.º do Código de Processo Penal. Compulsado o teor do requerimento de abertura de instrução, apura-se que o arguido, apesar de pontualmente apresentar discordância de factualidade consignada na acusação e da qualificação jurídica de todos os factos como violência doméstica, admite os factos na sua generalidade e pugna pela suspensão provisória do processo, um mecanismo de diversão processual, cujo regime se encontra consagrado no artigo 281.º do Código de Processo Penal (ainda que, contraditoriamente, e que, por tal, se entenda ser um mero lapso, a fls. 466v se refira simultaneamente à suspensão provisória do processo e à não pronúncia). O artigo 281.º, no seu número 1, dispõe que «se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos: a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza; d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; e) Ausência de um grau de culpa elevado; e f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir». No caso dos autos, o arguido encontra-se acusado da prática de factos susceptíveis de consubstanciarem um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal. A jurisprudência aceita que o arguido possa requerer a abertura de instrução com o único propósito de requerer a suspensão provisória do processo - veja, e.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 06-11-2018, processo n.º 139/17.3T9VVC.E1, relatado pelo Desembargador Alberto Borges, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 15-01-2014, processo n.º 3132/10.3TACSC.L1-3, relatado pelo Desembargador Vasco Freitas (disponíveis in: www.dgsi.pt). Ao abrigo do artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporaneidade; por incompetência do juiz; ou por inadmissibilidade legal da instrução. No que concerne a este último fundamento, podem conceber-se diversas realidades que o preencham, como, inter alia, quando perante formas de processo especial (artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal); quando não haja legitimidade por, e.g., não ter o arguido sido acusado da prática de qualquer crime; não ter o assistente legitimidade para ocupar essa função; ou não ter o RAI aptidão para figurar como uma verdadeira acusação. Uma outra causa de inadmissibilidade legal da instrução tem de configurar-se, necessariamente, com a pretensão do arguido em que lhe seja aplicada a suspensão provisória do processo quando a mesma é impossível. Sob pena de a instrução ser inútil, exige-se que, no mínimo, se verifiquem os pressupostos formais para que, pelo menos, possa ser posto à consideração dos sujeitos processuais a adequação e pertinência da suspensão provisória do processo. O crime de que o arguido vem acusado comporta, como sobredito, uma pena de prisão até cinco anos, o que ainda coloca a incriminação em causa do âmbito de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. O arguido, no requerimento de abertura da instrução, não pugnou pela falta de indícios dos factos de que está acusado, nem pôs em causa, de maneira a procurar impedir a sua sujeição a julgamento, a acusação, pretendendo, somente, beneficiar da suspensão provisória do processo. Como se disse a aplicação da suspensão provisória do processo, tal como durante o inquérito, exige o acordo do Juiz de Instrução e, agora nesta fase em que deixa de ser o dominus, também do Ministério Público para que se possa, tão pouco, ponderar da adequação de quaisquer injunções (281.º, n.º 1, e 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Ademais exige-se que o arguido não tenha sido condenado em momento anterior por crime da mesma natureza, nem beneficiado, nesses termos de suspensão provisória do processo (artigo 281.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal); que inexista um grau de culpa elevado e que seja de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta seja suficiente para responder às exigências de prevenção que o caso convoca (alíneas e) e f), do citado artigo). Ponderados os pressupostos objectivos, o Juiz de Instrução, ao analisar os factos, nos termos da acusação, também têm de avaliar se a culpa do arguido se revelou, no momento da prática dos factos, elevada, e se há um juízo de prognose favorável com a aplicação de injunções e sem sujeição a julgamento. O Ministério Público já se posicionou, em sede de inquérito, decidindo acusar, ao invés, de aplicar a suspensão provisória do processo. Compulsado o libelo acusatório e os elementos de prova dos autos, cabe, desde já, à signatária justificar a sua oposição à suspensão provisória do processo, obstando-se à prática de actos inúteis, pois sem a concordância do Juiz de Instrução Criminal, sempre se torna impossível o recurso a este mecanismo e fica, dessarte, esvaziada de objecto útil a instrução requerida, sendo a mesma inadmissível. Vejamos. A dinâmica relacional entre o arguido e a ofendida concerne às relações de intimidade; a sua conduta prolongou-se no tempo, desde pelo menos, na óptica da acusação, do Verão de 2022 e 10-07-2023. O arguido nasceu a …-…-2000, pelo que tinha, somente 22 e 23 anos aquando da prática dos factos, contudo, a conduta do arguido evidencia manifesto desprezo pelos bens jurídicos tutelados pela incriminação; o arguido usou de violência física e psicológica; não se coibiu de agredir a ofendida em diferentes dias e de diferentes modos, aparentemente sem qualquer contexto perceptível (ainda que, em qualquer caso, nunca justificador), o que transmite que a dinâmica relacional diária era imprevisível e susceptível de criar um clima de medo na ofendida; na óptica da acusação, o arguido praticou actos de agressão especialmente vexatórios (como espalhar saliva na cara da ofendida); ameaçou-a de morte mais do que uma vez e chegou a restringir a sua respiração, seja com a técnica de mata-leão, seja tapando-lhe o nariz e a boca; a conduta do arguido para com a ofendida demonstra um ímpeto de controlo e vontade de subjugação intensas, controlando até os seus aspectos laborais. Não obstante o arrazoado trazido pelo arguido no requerimento de abertura de instrução quanto aos seus esforços para mitigar a sua conduta de violência na intimidade, julga-se que a violência inerente ao despacho acusatório, o que é ainda mais significativo atentando à idade jovem do arguido, não é previsível que a sua não sujeição a julgamento, com mera aplicação de injunções em sede de suspensão provisória do processo, seja suficiente para acautelar as fortes exigências de prevenção que se fazem sentir, e, de igual modo, não é possível formular um juízo de que a culpa do arguido não tenha sido elevada. Há, por isso, evidências de uma personalidade empenhada na prática dos factos, um forte sentimento de controlo e subjugação da ofendida, e ausência de refreamento de impulsos e condutas. Entende-se que o arguido, dada a persistência na conduta e desprezo que revela pela ofendida, agiu com culpa elevada, e não há qualquer juízo de prognose favorável de que o cumprimento das injunções e regras de conduta seja suficiente para as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir. Não estão, deste modo, verificados os requisitos do artigo 281.º, n.º 1, alínea e) e f), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que não merece o requerido recurso ao mecanismo de diversão processual a concordância da signatária. Não havendo concordância do Juiz de Instrução deixa de ser possível ponderar a aplicação da suspensão provisória do processo e sempre seria a realização do debate instrutório contrária à natureza urgente do processo e inútil, pois esgotou-se o objecto da presente instrução, que se revela, por isso, inadmissível. Por tal, e atento o arrazoado supra, sendo objectivamente impossível recorrer ao instituto da suspensão provisória do processo no caso dos autos, revela-se que o presente requerimento de abertura de instrução, elaborado somente com esse fito, comporta uma instrução legalmente inadmissível, impondo-se, ex vi artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a sua rejeição, o que se determina.» 5. O recorrente extrai da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: «A. O arguido, ora recorrente, requereu a abertura da instrução para que pudesse ver apreciada a adequação da suspensão provisória do processo ao seu caso. B. Em respeito pelos requisitos ínsitos no artigo 287.º do Código de Processo Penal, o arguido apresentou as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à acusação, sendo que a principal de entre elas é o facto de a sua própria prolação resultar da ausência de ponderação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo ao seu caso, o qual reúne todos os pressupostos que o artigo 281.º do mesmo código requer para a sua aplicação. C. Aproveitou também este requerimento para assinalar vários erros de facto que ocorrem na acusação. D. O despacho recorrido decidiu pela impossibilidade da abertura da instrução, com fundamento no facto de aquela ter sido requerida, fundamentalmente, para ver apreciada a aplicação da suspensão provisória do processo, suspensão provisória do processo essa que, no entender da decisão recorrida, não poderia sequer ser ponderada, uma vez que lhe era imediatamente possível concluir do teor da acusação que o arguido agira com um grau de culpa elevado, bem como que não era previsível que a sua não sujeição a julgamento, com mera aplicação de injunções em sede de suspensão provisória do processo, fosse suficiente para acautelar as fortes exigências de prevenção que estariam em causa. E. Os motivos de recusa de um requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, da abertura daquela, estão previstos no n.º 3 do artigo 278.º do Código de Processo Penal e são taxativos: (i) extemporaneidade do pedido; (ii) incompetência do juiz ou (iii) inadmissibilidade legal da instrução. F. Concluir pela inadmissibilidade da instrução por via de um juízo subjectivo feito a priori, à margem da audição do arguido, que expressamente a requereu, viola os artigos 61.º, n.º 1) als. a), b) e g), 281.º, n.º 1 e 287.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, e ainda os artigos 20.º, n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, conforme se explana em maior detalhe nos pontos 6 a 36 da motivação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. G. Por serem violadoras do direito ao juiz, a uma defesa efectiva, a ser ouvido por juiz de instrução e do direito ao acesso efectivo a uma fase processual que requereu legitimamente, devem ser reconhecidas as violações invocadas e substituído o despacho recorrido por outro que admita a abertura da fase da instrução, o que permitirá a boa decisão da causa e a descoberta da verdade.» 6. O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso no sentido do seu não provimento, nos seguintes termos: «Não tem razão o arguido. Adere-se à decisão e fundamentação da Sra. JIC no despacho recorrido. Como se refere na decisão recorrida, o arguido, no RAI, apesar de pontualmente apresentar discordância quanto a alguma matéria de facto da acusação, admite os factos de um modo geral e pretende que lhe seja aplicada a S.P.P. Portanto, o arguido não sustenta a falta de indícios dos factos da acusação, não pretende impedir o seu julgamento com base nessa fundamentação, pretendendo apenas beneficiar da S.P.P. Ora, a conduta do arguido vertida na acusação não permite um juízo favorável à S.P.P.. Isto porque, como também refere o despacho da Sra. JIC, a violência física e psicológica e os actos vexatórios exercidos sobre a ofendida, sua namorada, bem como a persistência dos mesmos no tempo, revelam um grau de culpa elevado, evidenciando um sentimento de controlo e subjugação da vítima e ausência de refreamento de impulsos. Por isso, diz a Sra. JIC, e bem, que não é favorável à S.P.P. porque não estão verificados os requisitos legais. E não sendo possível a S.P.P., é inadmissível a instrução. Pelo que, em conclusão, fez bem a Sra. JIC em não admitir a instrução, devendo rejeitar-se o recurso e manter-se a decisão recorrida.» 7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, com os seguintes fundamentos: «O arguido foi acusado da prática, como autor, com dolo direto, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal). Dispõe o artigo 286º, do C.P.Penal sob a epígrafe de "finalidade da instrução”, no seu n.º 1, que a instrução visa a comprovação judicial de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Por seu turno, dispõe o art.º 287º, n.º 1, al. a) do CPP, no que aqui releva, que o arguido pode requerer a abertura de instrução, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação da acusação… relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. O critério para avaliar da admissibilidade da instrução é, com efeito, sempre o mesmo e encontra-se alternatividade recortada pela lei: arquivar os autos ou submeter a causa a julgamento. […] Só que o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível” Neste sentido, entre outros, Ac. da RE de 08/05/2012, Proc.º N.º 226/09.1PBEVR.E1, www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Ac. da RP de 04/06/2014, Proc.º N.º 1584/13.9JAPRT-A.P1, www.dgsi.pt. A mera leitura do requerimento instrutório mostra que a requerente, pese embora impugne alguns factos, conforma-se com a acusação e só pugna pela suspensão provisória do processo. Paulo Pinto de Albuquerque que considera que, em regra, a instrução visa discutir factos, e não apenas a sua qualificação jurídica, acrescentando que “o legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência de julgamento a discussão de «todas as soluções jurídicas pertinentes» (artigo 339.º, n.º 4), não se justificando a abertura da instrução com o exclusivo fito da antecipação dessa discussão jurídica” (Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição actualizada, UCE, p. 751). O artigo 281.º, no seu número 1, dispõe que «se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos: a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza; d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; e) Ausência de um grau de culpa elevado; e f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir». Ora, nos presentes autos, para que se viesse a concluir pela aplicação da SPP teria de se entender que a culpa do arguido é diminuta (e) Ausência de um grau de culpa elevado). Porém, como refere a Exmª JIC: «(…) Há, por isso, evidências de uma personalidade empenhada na prática dos factos, um forte sentimento de controlo e subjugação da ofendida, e ausência de refreamento de impulsos e condutas. Entende-se que o arguido, dada a persistência na conduta e desprezo que revela pela ofendida, agiu com culpa elevada, e não há qualquer juízo de prognose favorável de que o cumprimento das injunções e regras de conduta seja suficiente para as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir. Dessa forma, quer por ser elevada a culpa do arguido, demonstrada nos factos descritos na acusação, quer por ausência de concordância da Exmª JIC e do MP, nunca seria possível a aplicação do instituto da SPP. Concordando-se com o decidido e pugnado pelo MP junto da 1ª instância, entende-se que não estão verificados os requisitos do artigo 281.º, n.º 1, alínea e) e f), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que não merece o requerido recurso.» 8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), o arguido respondeu, reiterando os fundamentos e o pedido do recurso apresentado. 9. Colhidos os vistos, foram os autos remetidos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Delimitação do objeto do recurso Conforme doutrina e jurisprudência sedimentada, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (vd., por todos, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335, e Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1). Assim, atentas as conclusões apresentadas, cumpre decidir da admissibilidade legal da instrução no caso em apreço. 2. Apreciação do mérito do recurso A factualidade relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório que antecede. Tal como decorre do disposto no artigo 286.º do CPP, quando requerida pelo arguido, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, isto é, visa discutir essa decisão, por forma a aferir se se justifica, ou não, submeter o arguido a julgamento, terminando com um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante o juiz venha a concluir num ou noutro sentido. Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são os previstos no n.º 3, do artigo 287.º, do CPP, a saber: (i) a extemporaneidade do requerimento; (ii) a incompetência do juiz ou (iii) a inadmissibilidade legal da instrução. Temos entendido, com a maioria da jurisprudência e da doutrina, que a decisão do Ministério Público de não aplicar o instituto da suspensão provisória do processo e de deduzir acusação é sindicável, sendo o meio processual adequado para o fazer, uma vez findo o inquérito, o requerimento de abertura de instrução. Conforme podemos ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.09.2022, relatado por Maria Clara Figueiredo, tal solução «constitui a solução mais consentânea com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente asseguradas pelo artigo 32º, n.º 1, da CRP. Acresce que tal possibilidade não se encontra excluída pelos preceitos processuais penais que estabelecem as finalidades da instrução e os casos da sua rejeição, concretamente os artigos 286º, n.º 1 e 287º, n.º 3, do CPP, encontrando-se, ademais, prevista no artigo 307º, n.º 2, do CPP como um dos desfechos possíveis da fase de instrução.» E temos ainda defendido, conforme posição assumida na decisão recorrida, que apenas deve ser declarada aberta a instrução com vista a eventual aplicação do instituto da suspensão provisória do processo quando esta seja legalmente admissível, sob pena de a instrução se revelar inútil, o que é proibido por lei nos termos do artigo 130.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, justificando a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.05.2024, relatado pela aqui adjunta Amélia Carolina Teixeira. Desçamos ao caso concreto. Entendeu o tribunal recorrido que não se mostram verificados os requisitos do artigo 281.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, mais concretamente, que considerando «a violência inerente ao despacho acusatório, o que é ainda mais significativo atentando à idade jovem do arguido, não é previsível que a sua não sujeição a julgamento, com mera aplicação de injunções em sede de suspensão provisória do processo, seja suficiente para acautelar as fortes exigências de prevenção que se fazem sentir, e, de igual modo, não é possível formular um juízo de que a culpa do arguido não tenha sido elevada», concluindo que «não havendo concordância do Juiz de Instrução deixa de ser possível ponderar a aplicação da suspensão provisória do processo e sempre seria a realização do debate instrutório contrária à natureza urgente do processo e inútil, pois esgotou-se o objecto da presente instrução, que se revela, por isso, inadmissível.» Vejamos. O Ministério Público deduziu acusação, imputando ao recorrente, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal. No requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente, este pretende “ver apreciada a adequação da suspensão provisória do processo ao seu caso”, sindicando as imputações que lhe são feitas na acusação, quer na sua vertente factual quer na sua vertente jurídica, impugnando parcialmente a factualidade que lhe é imputada e, bem assim, a valoração jurídica de tais factos. Concretizando, o arguido impugnou a frequência dos atos relatados nos artigos 3.º e 4.º da acusação, alegando que os primeiros se verificaram “em situações concretas e circunscritos a momentos de grandes discussões” e os segundo ocorreram “associados, isolada e não reiteradamente, a episódios concretos de grande agitação emocional.”, alegou que o ato descrito no artigo 5. “foi acidental e não desejado, tendo o arguido agido, no limite, com negligência inconsciente”, negou parcialmente os factos descritos nos artigos 7.º e 8, negou que tenha empurrado a ofendida nos termos descritos no artigo 16.º e defendeu o afastamento da agravante da alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal, para além de descrever o comportamento que adotou posteriormente aos factos, traduzido, em particular, na procura de ajuda terapêutica especializada. Tais alegações relevam para aferir o grau de culpa do arguido, a qual, enquanto pressuposto indispensável à aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não pode ser elevada, ou seja, não pode estar acima da média em comparação com outros crimes semelhantes (cf. Comentário Judiciário ao CPP, 2.ª ed., Tomo III, p. 1152), assim como para aferir da satisfação das exigências de prevenção, pressupostos que a verificarem-se, juntamente com os demais estabelecidos no artigo 281.º do CPP, dão lugar à aplicação da suspensão provisória do processo, alcançando-se, desse modo, a finalidade última visada pelo arguido com a instrução, que é a de evitar a sua submissão a julgamento. Considerando os termos do requerimento de abertura da instrução, não podia o tribunal a quo decidir, com base na «violência inerente ao despacho acusatório», pela existência por parte do arguido de um grau de culpa elevado e pela insatisfação das exigências de prevenção, nem pode a discussão suscitada pelo arguido em torno da imputação fáctico-normativa constante da acusação ser feita no despacho liminar que recai sobre o requerimento em análise. Entendemos, assim, não se poder concluir pela inutilidade da instrução e, consequentemente, pela sua inadmissibilidade legal, visando a instrução precisamente comprovar se se verificam, ou não, os pressupostos da suspensão, o que supõe, no mínimo, a análise dos fundamentos invocados pelo arguido para fundamentar tal pretensão, da competência do Juiz de instrução. Não pode, pois, proceder o argumento de que a suspensão provisória do processo se encontra, desde logo, inviabilizada por falta de concordância do Juiz de instrução e do Ministério Público. Deverá ser declarada aberta a instrução e, seguindo-se os ulteriores termos do processo, deverá o Juiz de instrução apreciar se se verificam, ou não, os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e, em caso afirmativo, diligenciar pela concordância do Ministério Público. Nesta conformidade, não se estando perante um caso de “inadmissibilidade legal da instrução”, não pode subsistir o despacho recorrido, impondo-se a sua revogação e substituição por outro, que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, declarando aberta a instrução e seguindo-se os ulteriores termos do processo. Consequentemente, o recurso merece provimento. III. DECISÃO Pelo exposto, acordam as Juízas que integram a 9.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando que o tribunal a quo a substitua por outra que admita o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido recorrente, declarando aberta essa fase processual e seguindo-se os ulteriores termos do processo Sem custas. Notifique. Lisboa, 27 de junho de 2024 As Juízas Desembargadoras, Micaela Pires Rodrigues (Relatora) Paula Cristina Bizarro (1.ª Adjunta) Amélia Carolina Marques Dias Teixeira (2.ª Adjunta) |