Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
403/20.4SILSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: VALIDADE DE CARTA DE CONDUÇÃO ESTRANGEIRA
INSUFICIÊNCIA PARA A MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I– A carta de condução de Cabo Verde de que o arguido alega ser titular só será válida em Portugal se este, não tendo fixado residência no nosso país, nele tiver entrado há menos de 185 dias, contados sobre 9 de abril de 2020, ou se aqui tendo fixado residência, sobre a data de fixação da residência em Portugal, tivesse encetado o procedimento para troca do título de condução caboverdiana pela portuguesa, no prazo de 90 dias.Caso contrário, a carta de condução emitida por Cabo Verde deixa de ser válida em Portugal.Com efeito, é isso que resulta da conjugação do Decreto n.º 10/2007, de 5 de junho, que aprovou e pôs em vigor o Acordo bilateral entre Portugal e Cabo Verde de reconhecimento recíproco da validade dos títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais, com o art. 125.º, n.ºs 1, alínea d), 3 e 4, do Código da Estrada;

II– Ao não ter feito o tribunal a quo tal apuramento, quando o arguido ter dito ab initio ser titular de carta de condução emitida por Cabo Verde e tal ter já no pretérito respaldo nos autos, já no momento em que tem lugar a audiência de discussão e julgamento, mormente face ao seu Registo Individual de Condutor, importava apurar se tal era verdade ou não, e na afirmativa, apurar então se era cidadão residente em Portugal ou não e desde quando ou em que períodos temporais, face à relevância jurídica de uma e outra situações, pelo que face à situação concreta, impunha-se, que o tribunal a quo, apurasse os factos na sua exata contextualização e enquadramento, incorrendo no vicio da al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I–Relatório


1.–No âmbito do processo abreviado n.º 403/20.4SILSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 4, foi submetido a julgamento, na ausência e com intervenção de Tribunal Singular, o arguido AA, filho de ……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………, vindo a ser condenado, por sentença proferida em 7 de outubro de 2020, “pela prática em 09 de abril de 2020, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º2/98, de 3 de janeiro e 121.º, n.º 1 e n.º 4 do Código da Estrada, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a importância global de €750,00 (setecentos e cinquenta euros).”

2.O arguido, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

A.-A quando da sua Detenção e elaboração do Auto de Notícia, o arguido informou o O.P.C. que era titular de carta de condução emitida em Cabo Verde, e que havia solicitado a sua renovação naquele País;
B.-Este facto é comprovado pela declaração anexa, apesar do autuante não o ter mencionado no Auto de Notícia de fls. 2, ainda que tenha indicado a profissão do arguido como "Motorista".
C.-O arguido é, de facto, titular da carta de condução no ………., emitida em …………. para a categoria A, em ……………. para a categoria B, em …………….. para a categoria C e em ………….. para a categoria F, que ora se junta.
D.-O arguido não fez prova em audiência de julgamento dos factos ora alegados, por não ter sido notificado na morada do T.I.R. da data da sua realização, como se comprova pelos avisos de recepção anexos, constantes dos autos,
A sentença recorrida, por erro notório na apreciação da prova, nomeadamente por A. omissão de procedimentos legais e não valoração de informações e documentos constantes dos próprios autos, incorreu no vício do artigo 410º, nºs 1 e 2, alínea c) do C.P. Penal;
F.-Devendo ser decretada a nulidade da sentença e repetido o julgamento, em obediência ao disposto no artº. 379º do C.P. Penal, porquanto, na data dos factos, o arguido era titular da carta de condução nº ……….., emitida em Cabo Verde, como consta do RIC junto aos autos em 27-3111.-2020, tendo a audiência de julgamento sido realizada em 07-10­2020, e a sentença recorrida proferida na mesma data.
Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser revogada, como supra alegado, assim fazendo Vossas Excelências, a esperada JUSTIÇA." (fim de transcrição).

3.-Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso (cfr. referência Citius n.º 404685051).

4.-Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1)-Não enferma a decisão ora em crise do vício apontado pelo arguido no que tange à sua notificação para julgamento;
2)-No que concerne à titularidade de carta de condução, comprovando-se ser o mesmo titular à data dos factos de documento que o habilitava à condução em território nacional, deverá pois a decisão sub judice ser diversa daquela que o veio a condenar.
Destarte, será por V. Exas. feita, como vem sendo hábito, a costumada e desejada Justiça." (fim de transcrição).

5.-Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve neles “Vista” e emitiu o seguinte parecer:
“Visto – artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (C.P.P.).
*

I–Das questões preliminares:
- Recurso próprio e tempestivo [artigo 411.º, n.º 1, al.) a), do C.P.P.], interposto por quem tem a necessária legitimidade para o efeito [artigo 401.º, n.º 1, al. b), do C.P.P.].
- O momento, a forma da sua subida e o efeito que lhe foi fixado são os legais [artigos 407.º, n.º 2, al.) a), 406.º, n.º 1, e 408.º, n.º 1, al.) a), todos do C.P.P.].
- Deve ser julgado em conferência [artigo 419.º, n.º 3, al. c), do C.P.P.].
***

II–Do recurso:

1–Recorre o arguido AA da sentença proferida em 7/10/2020, por via do qual foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante global de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
2–O recorrente invoca os fundamentos de facto e de direito constantes da motivação de recurso patente de fls. 95 a 97, considerando, em síntese, que a sentença recorrida, por erro notório na apreciação da prova, nomeadamente por omissão de procedimentos legais e não valoração de informações e documentos constantes dos próprios autos, incorreu no vício do artigo 410º, nºs 1 e 2 do C.P .Penal (conclusão E) e, devendo ser decretada a nulidade da sentença e repetido o julgamento, em obediência ao disposto no artº. 379º do C.P. Penal porquanto, na data dos factos, o arguido era titular da carta de condução nº S-12216, emitida em Cabo Verde, como consta do RIC junto aos autos m 27-Jul.-2020, tendo a audiência de julgamento sido realizada em 07-10-2020, e a sentença recorrida proferida na mesma data (conclusão F), referindo ainda que não fez prova em audiência de julgamento dos factos ora alegados, por não ter sido notificado na morada do T.I.R. da data da sua realização (conclusão D).
3–O Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta ao recurso, concluindo por dizer que (1) não enferma a decisão ora em crise do vício apontado pelo arguido no que tange à sua notificação para julgamento, e (2) no que concerne à titularidade de carta de condução, comprovando-se ser o mesmo titular à data dos factos de documento que o habilitava à condução em território nacional, deverá pois a decisão sub judice ser diversa daquela que o veio a condenar (cfr. 110 e v.º).
4– No acompanhamento da resposta do Ministério Público, dir-se-á, desde logo, e no que se refere à alegada irregularidade relativa à realização da audiência de julgamento na ausência do arguido/recorrente decorrente de a sua notificação para a realização desse acto processual ter sido efectuada para uma morada que não era a sua, que, como se vê dos autos, a notificação em questão foi expedida para a morada que, para o efeito concreto (morada para notificações) consta do TIR oportunamente prestado pelo arguido/recorrente (cfr. fls. 4, 24, 25, 59, 60 e 64).
Nada haverá, por conseguinte, a censurar neste campo.
5–Argui o recorrente a nulidade da sentença porquanto, na data dos factos, o arguido era titular da carta de condução ……….., emitida em Cabo Verde, como consta do RIC junto aos autos m 27-Jul.-2020, tendo a audiência de julgamento sido realizada em 07-10-2020, e a sentença recorrida proferida na mesma data.
Compulsada a sentença recorrida, constata-se que a mesma, na verdade, não comporta a menor alusão ao facto invocado pelo recorrente quanto a ser titular de licença de condução cabo-verdiana, o que se imporia face ao conteúdo do documento junto a fls. 66, consubstanciado pelo registo individual do condutor que foi solicitado pelo Tribunal a quo nas diligências preparatórias do julgamento que veio a ter lugar (cfr. despacho de fls. 24).
Não tendo sido conhecida, sequer considerada, tal matéria, que se recorta fundamental na apreciação da responsabilidade jurídico-criminal do recorrente, afigura-se que a decisão recorrida se encontra ferida da nulidade a que se refere o artigo 379.º, n.º 1, al.) c), primeira parte, do C.P.P., tempestivamente arguida por quem dispõe de legitimidade para o efeito, nos termos e com as consequências previstas nos artigos 379.º, n.º 2, 120.º, n.º 1 e 2, e 122.º, todos do mesmo diploma legal.
6– Assim sendo, e por razões de precedência lógica, a verificação da apontada nulidade prejudica o conhecimento das demais questões equacionadas no recurso em apreço.
7–Pelo que fica exposto, emite-se parecer no sentido de o recurso dever ser julgado procedente nos sobreditos termos.” (fim de transcrição).

6.Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP).

7.Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8.Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II–Fundamentação

1.Questão Prévia
Com a motivação do recurso veio o arguido e ora recorrente AA juntar aos autos diversos documentos (vd. referência Citius n.º 28936542).
Relativamente aos que são mera cópia de outros já anteriormente existentes nos autos e também anteriores à sentença recorrida, nada se impõe dizer.
Relativamente ao sem número, que se trata do requerimento formulado pelo arguido junto da Segurança Social, em 11 de Abril de 2021, pedindo apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxas e encargos, tem-se o mesmo desde já em consideração e aguardar-se-á o que por aquela instância venha a ser decidido nesta matéria.
Como Doc. 1, junta o recorrente uma “Declaração” da “DG Transportes Rodoviários de Cabo Verde”, emitida na cidade da Praia, por um “Director”, a “25/03/2021”.
Como Doc. 4, junta o recorrente fotocópias, certificadas a 25 de março de 2021, da frente e verso da sua carta de condução n.º …………, emitida, pelas autoridades de Cabo Verde, em sede de renovação, a “………”, e emitida em ………… para a categoria A, em ……………. para a categoria B, em …………….. para a categoria C e em ………….. para a categoria F, e válida para todas aquelas categorias até ao 1º trimestre de 2024.
Relativamente a estes Doc. 1 e Doc. 4, dir-se-á que de acordo com o disposto no art. 165.º do CPP, em princípio, todos os documentos devem ser juntos até ao encerramento da audiência em 1.ª instância, para que tais pretensas provas pudessem ter sido contraditadas, devidamente apreciadas e consideradas aquando da prolação da decisão de que ora se recorre.

Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2012, proferido no âmbito do Proc. 130/10.0JAFAR.F1.S1, disponível in www.dgsi.pt “(...) o processo, diga-se, não é um palco onde, sem qualquer limite temporal, se podem praticar quaisquer actos, e a esmo, sem submissão a regras ou limites, sob pena de se afectar o encadeamento lógico em que se traduz em ordem a atingir-se um objectivo final predefinido.
O art.º 165.º n.º 1 do CPP estabeleceu como limite temporal à junção de documentos o encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, embora o momento normal seja ao longo do inquérito ou da instrução, mais concretamente o seu encerramento, não faltando quem imponha a alegação e expressa comprovação, no caso de apresentação posterior, mas sempre com aquele limite, de que só nesse momento a junção haja sido possível.
Quer a doutrina quer a jurisprudência acordam em fixar o momento limite da junção o encerramento da audiência de discussão e julgamento em 1.ª instância, como resultado da natureza do recurso penal ordinário – cfr. Acs. do STJ, de 30.11.94, in CJ, Acs. do STJ , ano II, T III, 262 e de 10.11.99, do TRC, de 10.11.99, CJ, Ano XXIV, T V, 47 e Maia Gonçalves, in CPP, Anotado, 2005, 376. Os recentes acórdãos de 16.6.2011 e de 28.9.2011, in P.º s n.ºs 600/09.JAPRT.P1.S1 e 715/07.2PPPRT.P1.S1, respectivamente, enraízam esse entendimento na consideração de que a partir do momento em que o juiz concede a palavra para alegações ao M.º P.º, assistente, demandantes cíveis e defensores, está configurada a impossibilidade de junção de documentos.
(...) importa ter presente que a função do recurso no quadro institucional que nos rege é a de remédio para correcção de erros “in judicando ou in procedendo” em que tenha incorrido a instância recorrida, processo de reapreciação pelo tribunal superior de questões já decididas e não de resolução de questões novas, ainda não suscitadas no decurso do processo.”
E, ainda, um pouco mais à frente “A renovação de prova não autoriza a apresentação e reexame de novas provas, havendo que mover-se o requerente no âmbito das que já foram produzidas.
A inércia, em tal caso, do sujeito processual no tribunal de 1.ª instância em juntar documentos conhecidos é-lhe, pois, imputável e preclude o direito a juntá-los num momento posterior.”

Refira-se que esta interpretação, que por regra fazemos, não é violadora de quaisquer princípios constitucionais, mormente os previstos no art. 32.° n.ºs 1 a 3 da CRP.

Sucede que in casu o encerramento da audiência em 1.ª instância deu-se a 7 de outubro de 2020 e os documentos em causa estão ambos datados de 25 de março de 2021, pelo que, por um lado, comprovadamente, não podiam ter sido juntos anteriormente, e, por outro lado, podem, aliás devem, vir a ser ainda apreciados pela primeira instância, face ao que a final se decidirá no presente acórdão. Acrescendo que, com esses documentos não se coloca uma questão nova mas questão já tempestivamente suscitada e não decidida, por omissão de pronúncia, na sentença ora recorrida.

Termos em que, pelos motivos supra apontados, que são de justificada excecionalidade e que se inserem no direito do arguido a que o processo se desenrole de acordo com o due process of law, tão caro aos sistemas judiciais não totalitários (a ideia de que os processos judiciais devem ser justos1), defere-se a junção dos documentos ora oferecidos pelo recorrente sob n.ºs 1 e 4.

2.Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
As questões suscitadas pelo recorrente, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento da segunda ficar prejudicado pela solução dada àquela que a antecede, são, em síntese, as seguintes:
- o arguido não fez prova em audiência de julgamento de que era titular de carta de condução (emitida em Cabo Verde), por não ter sido notificado na morada que para o efeito indicou quando prestou T.I.R. da data da sua realização, como se comprova pelos avisos de recepção anexos, constantes dos autos, e àquela (audiência de julgamento) não ter, por isso, comparecido, devendo ser decretada a nulidade, revogada a sentença e repetido o julgamento;
- mesmo que assim não se entenda, sendo o arguido titular da carta de condução n.º ………, emitida em Cabo Verde em ………….. para a categoria A, em ………….. para a categoria B, em ………… para a categoria C e em ………….. para a categoria F, junta e como consta do RIC junto aos autos em ………….., a sentença recorrida, por erro notório na apreciação da prova, nomeadamente por omissão de procedimentos legais e não valoração de informações e documentos constantes dos próprios autos, incorreu no vício do artigo 410.º, nºs 1 e 2, alínea c) do C.P. Penal, devendo ser decretada a nulidade da sentença e repetido o julgamento, em obediência ao disposto no art. 379.º do CPP.

3.Dá-se aqui por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos, o teor da decisão recorrida que consta da gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo e também em Media Studio da plataforma Citius, de que na acta da audiência de discussão e julgamento, com a refª Citius n.º 399345012, apenas consta o respetivo dispositivo, e que este tribunal ad quem não só escutou a partir do ficheiro áudio 20201007110902_20017323_2871198 como transcreve abaixo, do minuto 7 segundos 36 até ao minuto 9 e 52 segundos, no tocante aos factos assentes pelo tribunal a quo.

4.Vejamos se assiste razão ao recorrente.

4.1.-Atentemos na primeira questão suscitada pelo recorrente.
Compulsados os autos resulta que, na fase de inquérito, o arguido AA, ao ser constituído nessa qualidade em 9 de abril de 2020, prestou, na mesma data, o termo de identidade e residência (doravante TIR) constante de fls. 4, tendo indicado como “Morada: ………………….. QUELUZ” e como “Morada para notificações: ……………………………………………………. CARNAXIDE.
Em sede de recurso vem agora alegar, e passamos a transcrever, que:
O arguido, ora recorrente, invoca desde já a divergência, com consequências nefastas para si, por ter o M°P° indicado na acusação a residência do arguido como sendo:
Rua …………………. Queluz (vide fls. 4, a morada para notificações).
O que está correcto e conforme com a residência do T.I.R., prestado a fls. 4. Diversamente, a acusação foi notificada na Rua ……………………..Carnaxide.
O arguido desconhece como veio aos autos a indicação de outra morada para notificações diferente do T.I.R., embora tal procedimento esteja previsto no art°. 196°, no 2, do C.P. Penal.” (fim de transcrição).

Ora, o que agora alega o recorrente AA, está em desconformidade com o referido TIR, como consignou este tribunal ad quem logo no primeiro parágrafo da presente fundamentação, sendo que o TIR em causa está por ele assinado e pese embora a sua estranheza, ao referir que desconhece como veio aos autos a indicação de outra morada para notificações”, o certo é que não invoca a falsidade do TIR.


Foi, aliás, precisamente face ao teor do TIR em causa que o Ministério Público, na acusação, que deduziu em 20 de maio de 2020 (consta na refª Citius n.º 396096317), exarou:
“O Ministério Público, em processo abreviado e para julgamento em Tribunal Singular, deduz acusação contra:
AA, filho de ………………………………………, residente na Rua ……………………………………, Queluz (vidé fls. 4, a morada para notificações);” (fim de transcrição).

Sendo, em conformidade, o arguido notificado da acusação, por via postal simples com prova de depósito, na “Rua ……………………….Carnaxide”, como se alcança na na refª Citius n.º 396311665 (ofício da 13ª Secção do DIAO de Lisboa, datado de 21 de maio de 2020).
Constando tal prova de depósito, efectuada a 22 de maio de 2020, na refª Citius n.º 396953529.

É também por isso que o Ministério Público na sua resposta ao recurso em primeira instância afirma, assertivamente, a dado-passo:
“Quanto ao vício apontado na notificação do arguido, não se afigura que esta possa merecer censura, porquanto efetuada na morada que, no Termo de Identidade e Residência, foi indicada para notificações, como bem resulta dos autos.” (fim de transcrição).

O que igualmente reafirma o Ministério Público nesta segunda instância quando a dado momento do seu parecer expende:
“no que se refere à alegada irregularidade relativa à realização da audiência de julgamento na ausência do arguido/recorrente decorrente de a sua notificação para a realização desse acto processual ter sido efectuada para uma morada que não era a sua, que, como se vê dos autos, a notificação em questão foi expedida para a morada que, para o efeito concreto (morada para notificações) consta do TIR oportunamente prestado pelo arguido/recorrente (cfr. fls. 4, 24, 25, 59, 60 e 64).
Nada haverá, por conseguinte, a censurar neste campo.” (fim de transcrição).

Por outro lado, quando a Mmª Juíza designou, por despacho de 30 de junho de 2020 (cfr. refª Citius n.º 397190786), a data de 7 de outubro de 2020 para realização da audiência de discussão e julgamento, ordenando a notificação do arguido, este foi-o, igualmente na Rua ………………. Carnaxide, como consta da prova de depósito, efectuada a 16 de julho de 2020, existente na refª Citius n.º 26751528.

Sendo assim, ao ser o arguido AA notificado, como o foi, quer da acusação quer da data para realização da audiência de discussão e julgamento, na Rua …………………… Carnaxide, foi-o na morada que ele próprio indicou para efeito de notificações, não vislumbrando este tribunal ad quem que tenham aqui sido cometidas quaisquer irregularidades/nulidades.
E bem andou a Mmª Juíza a quo quando no início da audiência de discussão e julgamento proferiu o seguinte DESPACHO:
"Nos termos dos artigos 116.º, n.º 2 e 117.º do Código de Processo Penal tendo em conta que o arguido, regularmente notificado, não compareceu, nem justificou por qualquer meio a sua ausência, vai o mesmo condenado em multa processual, que fixo em 2 (duas) unidades de conta.
Mais determino, na senda do doutamente promovido, o início da presente audiência, na ausência do arguido, porquanto não se considera imprescindível, desde já, a sua presença, nos termos do artigo 333.º, n.º1 do Código de Processo Penal.
Notifique e d.n.” (fim de transcrição).

Isto depois de, como igualmente resulta da respectiva acta (in refª Citius n.º 399345012), ter dado a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Público para se pronunciar face à falta do arguido, tendo, no uso da mesma, promovido este o início da audiência na ausência do mesmo, por se encontrar, regularmente, notificado e mais promoveu a sua condenação em multa processual, após o que, pela Mmª Juiz foi dada a palavra, para o mesmo efeito, ao Ilustre Defensor oficioso, tendo a mesmo declarado nada ter a opor.

Destarte, improcede o recurso neste segmento.

4.2.Passemos a apreciar a segunda questão suscitada pelo arguido que recorde-se tem que ver com a circunstância de ser titular da carta de condução nº ………….., emitida em Cabo Verde.

O tribunal a quo deu apenas como provada a seguinte factualidade (transcrição feita por este tribunal ad quem a partir do ficheiro áudio 20201007110902_20017323_2871198, disponível na plataforma Citius, do minuto 7 segundos 36 até ao minuto 9 e 52 segundos):
“No dia 9 de abril de 2020, pelas 11h45, o arguido conduzia o veículo motociclo de matrícula …………, no IP7, em Lisboa, sem que fosse titular de carta de condução válida ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que não era titular de carta de condução, bem sabendo que só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
Não obstante, o arguido quis e levou a cabo tal conduta, bem sabendo que a mesma não era permitida e era punida por lei penal.
Mais se provou que o arguido foi condenado na pena de quatro anos de prisão, suspensa pelo mesmo período de tempo, com sujeição a regime de prova, pela prática de dois crimes de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1, do Código Penal, sendo um cometido a 10 de junho de 2014 e o outro a 21 de junho de 2014, por Acórdão, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz 5, proferido a 23 de fevereiro de 2018, no âmbito do processo n.º 653/14.2PHSNT e transitado em julgado a 3 de abril de 2018.
Com interesse para a decisão da casa não existem factos não provados” (fim de transcrição).

Como douta e pertinentemente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso:
“Quanto à titularidade de carta de condução do arguido, importará dizer como segue:
No momento em que foi proferida sentença, era desconhecida qualquer documentação que sustentasse a titularidade pelo arguido de qualquer documento que o habilitasse ao exercício de condução na data da prática dos factos; é certo que constava um Registo Individual de Condutor o que todavia, por si, não comprova a titularidade de habilitação para conduzir à data dos factos, considerando as múltiplas vicissitudes que podem ocorrer ao condutor e respetiva carta; todavia, havendo tal documento sido junto e uma vez havendo sido a existência de carta de condução alvitrada em sede de inquérito, designadamente pelo arguido conforme referência no auto de notícia, admite-se poder ter sido prematura a remessa dos autos para julgamento sem que a situação fosse exaustivamente apurada.

Da carta que o arguido veio alegar possuir consta data de emissão posterior à dos factos na origem dos autos, todavia havendo a habilitação para as diversas categorias ser anterior àquela, bem como a infração constante do RIC, sendo idêntica a referência ao número do documento.

Desconhece-se pois qual em concreto a situação da carta do arguido no momento da prática dos factos, todavia não se olvidando que no período em causa, por força de legislação posterior, foi a validade dos títulos de condução prolongada para além da sua data de validade originária.

Com efeito e por outra banda, a corresponder à realidade ser o arguido titular da carta de condução que veio alegar possuir, atento o disposto no Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho, que aprovou e pôs em vigor o Acordo bilateral entre Portugal e Cabo Verde de reconhecimento recíproco da validade dos títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais, constituindo uma lei não penal mas com repercussão na lei criminal, ter-se-ia o arguido por legalmente habilitado a conduzir em Portugal com o título de condução que alega ser titular ao tempo dos factos (cfr., AC TRL P.º 5086/07-9, de 21.6.2007).” (fim de transcrição).

Ora, afigura-se a este tribunal superior que, tendo o arguido AA, logo no momento da sua detenção, como se alcança do auto de notícia lavrado pela PSP em 9 de abril de 2020 e constante na refª Citius n.º 260268, afirmado ser possuidor de carta de condução emitida por Cabo Verde, país da sua naturalidade e nacionalidade, que, embora não tendo exibido na ocasião, era corroborado pelo seu, já existente nos autos, desde 27 de julho de 2020 (cfr. refª Citius n.º 26783791), Registo Individual de Condutor (RIC), facultado aos mesmos, a solicitação do tribunal a quo (formulada por ofício de 15 de julho de 2020 – vd. refª Citius n.º 397710863), pela Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, onde figura ser titular da carta de condução nº …………., do número de contribuinte ………… e da Autorização de Residência …………. e a menção a “Resid. Em Portugal .... Sim” (bem como a condenação em 24 de fevereiro de 2016, por transitar a 31 de outubro de 2015, sem seguro de responsabilidade civil obrigatório, infracção com que foi punido com 30 dias de inibição de conduzir), não podia a sentença deixar de se pronunciar sobre tal matéria, devendo ainda, no apuramento global da relevante materialidade efectuar/ordenar, oficiosamente, as diligências que nesse âmbito se mostrassem pertinentes, nos termos do art. 340.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, para descoberta da verdade e boa decisão da causa, nomeadamente quer no tocante a tal título de condução, respectiva natureza e contornos, quer a ser o arguido residente habitual em Portugal ou não, e, na afirmativa, desde quando.
Porquê?
Porque apesar do ora recorrente AA surgir no “Auto de Notícia por Detenção”, de fls. 1, bem como no “Auto de Constituição de Arguido”, de fls. 3, no “Termo de identidade e residência”, de fls. 4, na sua notificação, de fls. 6, para apresentação de defesa e testemunhas, e ainda na Comunicação de detenção da PSP ao MP, de fls. 8 e 9, tudo datado de 9 de abril de 2020, apenas identificado pelo seu passaporte de Cabo Verde, n.º …………., que foi o documento de identificação que exibiu à autoridade policial, o certo é que, pelo menos em 2015 e 2018, o arguido era titular da Autorização de Residência ………………., como resulta, respectivamente, do boletim n.º 1, emitido em 17 de abril de 2018, do seu Certificado do Registo Criminal de fls. 10 e 11, emitido em 11 de abril de 2020, e do seu Registo Individual de Condutor.

O facto de em 2015 e 2018 o arguido e ora recorrente AA ser residente em Portugal, não quer dizer que o fosse em 2020 (momento da prática dos factos ora em apreço nos presentes autos), porquanto, entretanto, pode ter regressado a Cabo Verde e estar de novo em Portugal à data de 9 de abril de 2020 há menos de 185 dias, já sem estatuto de residente, o que importa ser apurado, designadamente oficiando-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para cabal esclarecimento.

É que, salvo melhor opinião, mas isso caberá ser decidido em primeira instância, a carta de condução de Cabo Verde de que o arguido é titular só será válida em Portugal se este, não tendo fixado residência no nosso país, nele tiver entrado há menos de 185 dias, contados sobre 9 de abril de 2020, ou se aqui tendo fixado residência, sobre a data de fixação da residência em Portugal, tivesse encetado o procedimento para troca do título de condução caboverdiana pela portuguesa, no prazo de 90 dias.

Caso contrário, a carta de condução emitida por Cabo Verde deixa de ser válida em Portugal.

Com efeito, é isso que resulta da conjugação do Decreto n.º 10/2007, de 5 de junho, que aprovou e pôs em vigor o Acordo bilateral entre Portugal e Cabo Verde de reconhecimento recíproco da validade dos títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais, com o art. 125.º, n.ºs 1, alínea d), 3 e 4, do Código da Estrada, sendo que quem, sendo titular de licença válida, infringir o disposto nos referidos n.os 3 e 4, daquele art. 125.º, é sancionado com coima de € 300,00 a € 1500,00, nos termos do n.º 8 da mesma norma estradal.

Ao não ter feito o tribunal a quo tal apuramento, não incorreu a sentença revidenda no invocado, pelo recorrente, vício de erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, mas, segundo este tribunal ad quem, com o devido respeito e salva melhor opinião, no da insuficiência, a que se reporta a alínea a), da mesma norma, que, embora não vindo alegado sempre é de conhecimento oficioso.


Vejamos.
Segundo n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, "mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação;
c)-Erro notório na apreciação da prova".

Características comuns a todos aqueles vícios, além de serem, como se disse, de conhecimento oficioso, são os de fundamentarem o reenvio do processo para outro julgamento quando insanáveis no tribunal de recurso (artigos 426.º e 436.º CPP) e resultarem, como não é demais sublinhá-lo, do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.
Vícios da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, página 121). Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida.
O erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve, portanto, resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar2.

E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis3.
«Tem que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio e não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida», lê-se no Acórdão do STJ, de 24 de janeiro de 2008, Proc. n.º 4085/064.
Para avaliar se a decisão padece de qualquer dos vícios enunciados nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, há que apreciar, por um lado, a matéria de facto e, por outro, a respetiva fundamentação (os fundamentos da convicção), designadamente a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que conduziram o Tribunal a determinadas conclusões.

No que respeita a este último aspecto, relevam, para além dos meios de prova diretos, como sejam os documentos, depoimentos, exames periciais, etc., os procedimentos lógicos de prova indireta: as presunções.
«A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c).»5
A fundamentação (a partir da reforma do CPP de 1998, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999) não se compadece com uma simples enumeração dos meios de prova utilizados, sendo necessária uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado.
Esse exame crítico da prova, lê-se no Acórdão do STJ de 25 de junho de 2008, Proc. n.º 2046/076, «é o filtro da razão e da lógica utilizado após a produção da prova; é a explicitação do valor atribuído aos documentos ou à fiabilidade dos depoimentos, das razões de ciência, do porquê de uma determinada opção em detrimento de outra, que à partida pareceria igualmente possível, do uso das presunções, das regras de experiência ou das inferências dedutivas.»
No texto da sentença recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, isto é, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não descortina este tribunal ad quem o alegado erro notório na apreciação da prova.
Por seu turno, a insuficiência prevista na alínea a), do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa.
Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto. Na tarefa da descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o fazendo, a decisão formou-se incorretamente por deficiência da premissa menor.

Este vício não abrange, portanto, toda e qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Se o tribunal ficou impossibilitado de prosseguir na descoberta da verdade material, então apreciou toda a matéria de facto e, por conseguinte, aquela insuficiência, a existir em tal hipótese, traduz um erro na qualificação jurídica dos factos provados, que constitui, não um erro de facto, mas sim um erro de direito, um erro de julgamento, que dá lugar à revogação da decisão recorrida, não ao reenvio do processo para novo julgamento.
A insuficiência a que se refere a alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Só existe o aludido vício quando os factos provados são insuficientes para justificar uma decisão de direito, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação.
Ou seja, há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido.
Situação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que, como é de fácil verificação, descortina este tribunal ad quem e perante os factos provados na sentença recorrida, ter acontecido no presente caso e em dois momentos. Num primeiro momento no que concerne a ser o arguido titular de carta de condução emitida por Cabo Verde e qual o seu estatuto de permanência em Portugal e num segundo momento quanto às suas condições pessoais e socioeconómicas, por serem estas imprescindíveis à determinação da medida da pena principal e da sanção acessória.
Com efeito, produzida toda a prova em audiência de julgamento, na fase de deliberação deve o tribunal valorar os factos descritos na acusação ou na pronúncia juntamente com os que constam, caso existam tais peças processuais, na contestação oferecida pelo arguido, no pedido de indemnização civil e na contestação civil, bem como daqueles que resultaram da discussão da causa (art. 368.º, n.º 2, do CPP).
Determina o art. 374.º, n.º 2, do CPP sobre os requisitos da sentença que: "Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".
E, segundo o art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, "é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374.º (...)".
Por isso, a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a "enumeração dos factos provados e não provados" - art. 374.º, n.º 2, do CPP -, os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes da origem antes referida.
Esta exigência visa garantir que o tribunal contemplou todos os factos que foram submetidos à sua apreciação; como se disse no Ac. do STJ de 26 de março de 1992, BMJ 415º-499, "a lei visa assegurar ou garantir o desempenho da exaustiva cognição, a abranger a totalidade do «thema probandum»".

Esta garantia tem que ser articulada com o fim em vista - a decisão de uma causa -, só tendo sentido enquanto se refere a factos úteis a essa decisão, na aplicação da ideia de que compete ao tribunal proceder a uma condensação que expurgue aquilo que não interessa.

É certo que, no caso concreto, estava em causa ao tribunal a quo apurar, como lhe era imputado na acusação pública, se, no dia 9 de abril de 2020, pelas 11h45, o arguido Armando Pereira conduzia o veículo motociclo de matrícula …………., no IP7, em Lisboa, sem que fosse titular de carta de condução válida ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, ciente de que não era titular de carta de condução.

Ora, tendo o arguido dito ab initio ser titular de carta de condução emitida por Cabo Verde e tal ter respaldo nos autos, já no momento em que tem lugar a audiência de discussão e julgamento, mormente face ao seu Registo Individual de Condutor, importava apurar se tal era verdade ou não, e na afirmativa, apurar então se era cidadão residente em Portugal ou não e desde quando ou em que períodos temporais, face à relevância jurídica de uma e outra situações.

Assim, perante o exposto, impunha-se, que o tribunal a quo, apurasse os factos na sua exata contextualização e enquadramento.

Como tem sido entendido, a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação (cfr. Ac. do STJ de 3 de abril de 1991, CJ, Ano XVI, Tomo II, pág. 19), e não compreende os factos que não influam no proferimento da decisão (cfr. Ac. do STJ de 28 de setembro de 1994, CJ (Acs. do STJ), Ano II, Tomo III, pág. 206).
Isto é igualmente de entender quanto aos factos alegados em defesa do arguido, embora as garantias desta apenas obrigam a que se considere o que foi alegado utilmente na sua ótica, e não o que é matéria irrelevante e excrescente.

Salvo melhor opinião, o alegado pelo arguido quanto a ser titular de carta de condução emitida por Cabo Verde o que era corroborado por documento junto aos autos, devia ser considerada matéria do thema probandum, por ser determinante para a apreciação das concretas circunstâncias fácticas, Deviam mas não foram pelo Tribunal a quo ponderadas, tampouco analisadas, donde resulta que não decidiu em conformidade com a apreciação da realidade dos factos, mas, ao invés, de acordo apenas com uma versão quiçá incompleta da verdade.
Aliás, como doutamente expendeu o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer:
“Compulsada a sentença recorrida, constata-se que a mesma, na verdade, não comporta a menor alusão ao facto invocado pelo recorrente quanto a ser titular de licença de condução cabo-verdiana, o que se imporia face ao conteúdo do documento junto a fls. 66, consubstanciado pelo registo individual do condutor que foi solicitado pelo Tribunal a quo nas diligências preparatórias do julgamento que veio a ter lugar (cfr. despacho de fls. 24).”
(fim de transcrição).

No entanto, em sede de fundamentação da matéria de facto a Mmª juíza a quo disse que chegou à convicção dos factos que deu como provados tendo em consideração a inquirição, em sede de julgamento, da testemunha JJ, chefe da P.S.P e agente autuante em “acção de fiscalização no âmbito do estado de emergência” (em vigor perante a pandemia da Covid-19), depoimento que disse ter sido “directo, objectivo e sem qualquer hesitação” e “em sintonia com o constante da acusação” “e em sintonia também com o constante nas bases de dados do IMTT a fls. 2 e com o Auto de notícia por detenção de fls. 1 e 1 verso” e com o Certificado do Registo Criminal de fls. 10 e 11, mas tudo isto depois de igualmente afirmar que o fazia com base “nos elementos probatórios que constam nos autos” e nos autos também estava, como elemento de prova documental, o Registo Individual de Condutor de fls. 66.

Por outro lado, a sentença recorrida não deu como provados ou não provados quaisquer factos relativamente às condições pessoais, profissionais e socioeconómicas do arguido, que, como supra dissemos, são imprescindíveis à determinação da medida da pena principal e da sanção acessória.

Não o fez, mas, em sede de fundamentação da matéria de direito, no momento de fixação do quantum da pena de multa, a Mmª juíza a quo disse que na sua aplicação tinha em conta “quanto às condições socioeconómicas do arguido resultar dos relatórios que apresenta situação financeira precária, tem problemas de saúde e atualmente encontra-se a viver sozinho” (vd. ficheiro áudio 20201007110902_20017323_2871198 como transcreve abaixo, ao minuto 15 do 1º a 15º segundo).

Sucede que, no âmbito dos presentes autos não foi solicitada a elaboração do relatório social, a que alude os artigos 369.º e 370.º do CPP, em vista do apuramento das condições socioeconómicas do arguido AA para determinação da medida das penas a aplicar.

O que, compulsando os autos, constata este tribunal ad quem, é que neles existem cópias de diversos relatórios todos elaborados pela DGRSP no âmbito de um outro processo (o n.º 653/14.2PHSNT do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz 5 e por este remetidos aos presentes, a solicitação da Mmª Juíza que nestes recebeu a acusação, bem como o respectivo acórdão, proferido naquele a 23 de fevereiro de 2018, e no presente integradas a 2 de julho de 2020 – cfr. refª Citius n.º 26579072).

No primeiro desses relatórios, elaborado a 29 de maio de 2018 para Plano de Reinserção Social, diz-se:
“O arguido reside na morada constante dos autos7 com uma companheira, dois filhos e dois netos desta, todos menores de idade. A companheira trabalha em limpezas regularmente. A casa de residência é própria com empréstimo bancário, do qual pagam cerca de 320€ mensais.
O arguido está a trabalhar como pedreiro da construção civil, com contrato, segundo nos informou e aufere cerca de 800€ mensais.” (fim de transcrição).

No segundo, elaborado a 5 de abril de 2019, sendo “periódico” de “Execução” do Plano Individual de Reinserção Social em curso face à “Suspensão de execução da pena com regime de prova”, diz-se:
“O atual cenário vivencial do probando encontra-se severamente condicionado pela condição frágil de saúde que apresenta, sendo acompanhado no Hospital Egas Moniz. Com efeito, devido a problemas na coluna e à sujeição a duas cirurgias, permanece incapacitado para o exercício de uma atividade profissional desde junho de 2018, sendo que se mantém a aguardar a marcação de nova cirurgia.
Refira-se que no período que antecedeu a baixa clínica, AA dedicava-se à realização de trabalhos precários e indiferenciados no ramo da construção civil.
Não obstante a inexistência de fonte de rendimento do próprio, bem como a dependência material perante a companheira, a situação económica do núcleo doméstico (composto pela companheira, dois filhos e dois netos desta), é considerada meramente suficiente para o pagamento das despesas variáveis e fixas existentes, designadamente a prestação bancária resultante do crédito à habitação no montante de 230 euros mensais.
A companheira aufere cerca de 1000 euros por mês em função as limpezas que efetua em firmas especializadas e, adicionalmente, em casas de particulares. Por outro lado, aquela usufrui de rendimentos prediais referentes a um imóvel situado em Cabo Verde, em montantes não especificados.
A dinâmica familiar é caracterizada como harmoniosa, sendo realçada a coesão dos laços afetivos entre todos os elementos do núcleo familiar descrito.” (fim de transcrição).

No terceiro, elaborado a 12 de novembro de 2019, sendo também “periódico” de “Execução” do Plano Individual de Reinserção Social em curso face à “Suspensão de execução da pena com regime de prova”, diz-se:
“Os seus problemas de saúde ao nível da coluna determinaram a manutenção da incapacitação para o exercício de uma atividade profissional no período compreendido entre junho de 2018 e setembro de 2019, encontrando-se no presente momento a aguardar a marcação de nova cirurgia.
A inexistência prolongada de uma fonte de rendimento espoletou a necessidade imperiosa de procurar uma ocupação remunerada, o que veio a suceder a 09.09.2019 mediante integração na área das entregas ao domicílio.
Todavia, devido a um acidente de trabalho sofrido a 16.09.2019, a sua capacidade foi uma vez mais afetada, encontrando-se desempregado desde então, pese embora refira ter comparecido recentemente a entrevistas de seleção por sentir melhoria generalizada na sua condição de saúde.
No plano familiar assinalam-se alterações atendendo à separação marital verificada em maio do corrente ano. Ainda neste âmbito, o probando menciona que a causa da rutura residiu no comportamento persecutório e disruptivo assumido pela ex-companheira, com impacto ao nível da deterioração da dinâmica relacional do casal.
Atendendo à ausência de uma solução residencial, o arguido encontra-se na dependência material de um primo paterno, cujo agregado integra no momento atual.” (fim de transcrição).

No quarto desses relatórios, elaborado a 3 de junho de 2020, sendo igualmente “periódico” de “Execução” do Plano Individual de Reinserção Social em curso face à “Suspensão de execução da pena com regime de prova”, diz-se:
“Atendendo à manutenção da incapacidade para o exercício de uma atividade profissional, verificada entre junho de 2018 e setembro de 2019 e espoletada pelos problemas de saúde ao nível da coluna e, bem ainda, pela ocorrência de um acidente de trabalho em setembro de 2019, a inexistência de uma fonte regular de rendimento determinou o agravamento da sua situação económica.
Todavia, no final do ano transato, o probando diligenciou ativamente pela retoma de ocupação laboral junto da Associação O Companheiro, encontrando-se desde o final do ano transato a exercer funções de vigilância num parque privado de estacionamento localizado em Lisboa, pelas quais aufere o salário mínimo.
Pese embora não disponha de vínculo contratual, as funções referidas coadunam-se com as limitações decorrentes da sua frágil condição de saúde, pelo facto de não implicarem um acentuado esforço físico.
AA mantém-se a residir num quarto arrendado na casa de um primo paterno, situação em que permanece desde a separação marital, efetuando um pagamento de 300 euros por mês.
De acordo com o verbalizado, o probando não manifesta intenção em reconciliar-se com a ex-companheira, sendo o clima relacional atualmente existente caracterizado como conflituoso e tenso, na sequência da alegada dificuldade da ex-companheira em lidar com a rejeição.” (fim de transcrição).

Presumimos que a Mmª Juíza a quo se tenha baseado neste último mencionado relatório por ser o mais recente, mas, por um lado, temos por seguro que a natureza daqueles relatórios, dado o fim a que se destinavam, nada tem que ver com o que ora importava tivesse sido ordenado fosse elaborado para os presentes autos, e, por outro lado, não temos por seguro que o quadro de vida do arguido Armando Pereira não se tenha alterado entre 3 de junho de 2020 e 7 de outubro de 2020, perante sucessivas e radicais alterações verificadas nos dois anos anteriores. Assim se impondo, e perante a ausência do arguido em julgamento, fosse e seja determinado nos presentes autos a elaboração do competente e actualizado relatório social.

Deste modo, procede o recurso nestoutro segmento, pese embora com fundamentos não totalmente coincidentes com os alegados pelo recorrente.

IIIDecisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se a decisão recorrida, que padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), do n.º 2 do art. 410.º do CPP, determinando-se, visto o disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPP, o reenvio parcial dos autos à primeira instância para apuramento da matéria supra referida (mormente junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, quanto a estatuto de residente do arguido, e da DGRSP, quanto às condições pessoais e socioeconómicas do arguido, apreciando-se ainda neste contexto os documentos ora oferecidos pelo recorrente sob n.ºs 1 e 4, e pronunciando-se sobre a existência e respectiva validade ou invalidade da carta de condução emitida por Cabo Verde, de que o arguido alega ser titular e de que consta referência no seu Registo Individual de Condutor de fls. 66, perante as concretas circunstâncias do caso ora em apreço), em julgamento a realizar nos termos do art. 426.º-A do CPP, assegurando-se o necessário contraditório, antes da prolação de nova sentença.
Sem custas
Notifique nos termos legais.


(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto art. 94.º, n.º 2, do CPP)



Lisboa, 24 de junho de 2021

(Calheiros da Gama)
(Abrunhosa de Carvalho)



1- Cf. Ac. do STJ de 26-02-2009, Proc. n.º 3270/08 - 5.ª, in www.stj.pt
2- Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª Ed., pág. 341, precisa que o requisito da notoriedade se afere «pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.» No mesmo sentido se pronuncia o Senhor Conselheiro Pereira Madeira, em anotação ao Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1359: «Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente aplicada. Certo que o erro tem que ser «notório». Mas basta para assegurar essa notoriedade eu ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem comum – e sopesado à luz das regras da experiência. (...)»
3- Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 6.ª edição, págs. 67 e ss.
4- Ibidem.
5- Cf. Acs. do STJ de 17-03-2004, Proc. n.º 2612/03 - 3.ª, e de 23-02-2011, Proc. n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2 -3.ª, ambos in www.dgsi.pt
6- Ibidem.
7- Avenida Dom Luís, n.º 39, 4.º direito, Amadora, logo diferente das dos presentes autos.