Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184/2004-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: A interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir.
A compressão ou restrição do direito de propriedade de um imóvel em benefício de outrem que dele não carece para a satisfação das suas necessidades habitacionais escapa a qualquer função social da propriedade para passar a ser chocante e intolerável, porque ostensivamente desconforme ao equilíbrio, que se quer saudável e socialmente justo, entre os interesses dos proprietários e dos inquilinos.
A ideia do legislador é a de não conceder o direito à transmissão do arrendamento para habitação a qualquer das pessoas discriminadas nas várias alíneas do nº 1 do art. 85º do RAU, sempre que não necessitem da casa para habitar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

P. Costa intentou acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra M. Borges, pedindo seja declarado que o contrato de arrendamento celebrado com M. Domingos, pai da Ré, respeitante ao segundo andar e sótão do prédio urbano sito na Rua de São Félix, nºs --, em Lisboa, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 739, cessou por caducidade, face ao falecimento, em 9-2-98, do arrendatário, condenando-se a Ré na restituição, livre de pessoas e bens, desse imóvel que vêm ocupando, bem como no pagamento da quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença, a título de indemnização pelos prejuízos causados.

A Ré contestou por excepção e impugnação e reconvencionou ainda o pagamento de benfeitorias que levou a cabo no arrendado.

Após resposta da A., foi proferido despacho saneador, seguido da condensação, sem reclamação, da matéria de facto tida por pertinente, devidamente repartida entre "factos assentes" e "base instrutória".

Procedeu-se a julgamento, após o que o Sr. Juíz proferiu sentença em que julgou a acção e a reconvenção improcedentes.

Inconformado com esta decisão, dela o A. interpôs recurso de apelação, em cujas conclusões, devidamente resumidas - artº 690º, nº 1 do CPC -, questiona a interpretação que se fêz do artº 86º do RAU.

A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, atenta a factualidade apurada na instância recorrida e constante da decisão impugnada, para a qual, por não ter sido posta em causa nem haver lugar à sua alteração, se remete, ao abrigo do disposto no nº 6 do artº 713º do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12.

Dispõe o artº 86º do RAU: "O direito à transmissão previsto no artigo anterior não se verifica se o titular desse direito tiver residência nas comarcas de Lisboa e Porto e suas límitrofes, ou na respectiva localidade quanto ao resto do País, à data da morte do respectivo arrendatário".
Vem provado que a Ré era, à data da morte do arrendatário, seu pai, a única proprietária de uma casa, sita na comarca de Oeiras, susceptível de satisfazer as suas necessidades habitacionais (al. I) dos factos assentes e resposta ao quesito 2º da base instrutória).
Na sentença sindicanda desatendeu-se a pretensão do A., na consideração de que a Ré provou a sua convivência com o primitivo arrendatário, seu pai, há mais de dois anos, à data da morte deste (al. b), do nº 1 do artº 85º do RAU), não sendo de entender que tivesse residência, no sentido de "domicílio habitual e permanente", noutra casa, afastando-se, por isso, a excepção do artº 86º do RAU, a este segmento da decisão se atendo exclusivamente o dissídio do recorrente.
É certo que não vem provado que a Ré morasse ou residisse na casa de que é proprietária em Oeiras. Mas será que a lei exige, à configuração da excepção à transmissão do arrendamento por morte do primitivo arrendatário, que o respectivo beneficiário tenha, na data do óbito, residência, no sentido jurídico desta, noutra casa?
A redacção do normativo em referência é, na verdade, tudo menos feliz, como vem sendo salientado pela doutrina (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 656 e Menezes Cordeiro, Novo Regime do Arrendamento Urbano, pág. 127), apelidando, por tal e apropriadamente, Januário Gomes de "enigmática" excepção, "porque a redacção utilizada conduz a uma de duas situações: ou o legislador não quis dizer o que disse e a redacção peca por ser infeliz; ou quis dizer o que efectivamente diz e então o âmbito de casos abrangidos pela excepção é tão limitado que a excepção quase passa a fazer parte do número de curiosidades legislativas" (Arrendamento para Habitação, 2ª ed., pág. 181).
Não obstante a dubitativa redacção deste texto legal, há que precisar o seu sentido e alcance, por aqui passando a resposta à questão que se equacionou.
Prescreve o nº 1, do artº 9º do C.C. que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.
No nº 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal.
Finalmente, no nº 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o interprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. I, 3ª ed., págs. 58 e 59).
No fundo, o referido normativo expressa os princípios doutrinários consagrados ao longo do tempo sobre a interpretação das leis, designadamente o apelo ao elemento literal, por um lado, e aos de origem lógica - mens legis ou fim da lei, histórico ou sistemático - por outro.
Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145).
Daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do art. 9º do Código Civil, a regra não é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir, mas, ao invés, a de que onde a lei não distingue deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham.
Como é sabido e se retem do preâmbulo do DL nº 321-B/90, de 15/10, o RAU visa garantir, da forma socialmente mais justa, o cumprimento do direito constitucional de todos os cidadãos à habitação, destino que, há-de convir-se, se realizará tanto melhor, quanto maior for o número de locais disponíveis no respectivo mercado; e estes, como é óbvio, aumentarão, limitando-se o direito à transmissão do arrendamento para a habitação àqueles que, na área da residência do transmitente, não tenham outra casa que possam habitar.
Como observam Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artº 86º do RAU, "a ideia do legislador parece ser a de não conceder o direito à transmissão do arrendamento (para habitação) a qualquer das pessoas discriminadas nas várias alíneas do nº 1 do artigo anterior, sempre que ela não necessite da casa para habitar" (ob. cit, vol. II, 4ª ed., pág. 656).
Daí que, acompanhemos Aragão Seia no entendimento de que o termo residência não foi empregue no preceito legal em estudo no seu preciso sentido jurídico, mas sim no de o beneficiário da transmissão ter outra casa onda possa morar, por ser dela proprietário ou por ser co-titular de qualquer outro direito que lhe permita habitá-la e, inclusive, por a ter tomado de arrendamento, já que, com a excepção, observa o mesmo Autor, " não se pretende afastar da área de residência do transmitente - tendo sido considerada a facilidade de transportes nas comarcas de Lisboa e Porto e suas limítrofes - o titular do direito à transmissão; o que se pretende é que este, tendo habitação disponível que satisfaça as suas necessidades habitacionais onde possa residir, liberte a habitação ocupada até então pelo falecido, permitindo ao senhorio cedê-la a outrem ou vendê-la" (Arrendamento Urbano, 7ª ed., págs. 591/592).
E só esta interpretação e não já a que se prende com o significado jurídico de residência, nos parece poder coadunar-se com os critérios interpretativos que supra se enunciaram, nomeadamente com o da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, havendo que dar prevalência à razão de ser da lei, colocando-se esta, na dúvida, acima da sua expressão material (neste sentido, Alberto dos Reis, RLJ, 65º, pág. 397).
Exigindo-se aos beneficiários da transmissão do arrendamento a residência permanente no arrendado, sem o que, atentos os requisitos apontados no artº 85º do RAU, nem sequer se chega a colocar a possibilidade dessa transmissão, não parece lógico condicionar a verificação da excepção que nos ocupa à existência, na mesma área do arrendado, de outra residência que, para ser relevante, não pode deixar de ser entendida como uma segunda residência habitual (artº 82, 1 do CC); desde logo, porque claramente contrária à dinamização do mercado do arrendamento, presente no horizonte do próprio RAU (cfr. o preâmbulo do DL nº 321-B/90, que o aprovou) e, depois, porque limitar o âmbito da excepção aos casos de dupla residência equivale, na prática, à sua inverificação, por tão raro ocorrerem tais casos; seja, a norma interpretanda não passaria, na sua aplicação, do campo meramente virtual.
Por isso, a pertinente dúvida de Pires de Lima e Antunes Varela: "Para excluir esse direito à transmissão do arrendamento, a lei parece exigir, portanto, neste artº 86º, que o parente (descendente ou ascendente) ou afim do primitivo arrendatário possua uma dupla residência. E será dessa hipótese singular de dupla residência que a lei se socorre para, levando-a realmente a sério, fazer dela uma excepção ao regime geral traçado ao artº 85º?" (ob cit., vol. II, 4ª ed., pág. 657).
Por outro lado, temos para nós que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir.
Como se escreve, lapidarmente, no Ac. do STJ, de 19-9-89, "...a ponderação das consequências constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida" (BMJ nº 389, pág. 536).
Ora, aceitando-se que o nosso projecto económico, social e político constitucional implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionais associados à propriedade privada, desde que justificado na sua função social que, "em nome do princípio da solidariedade social que enforma o Estado de Direito, chama os senhorios a colaborar com o Estado na tarefa de satisfazer as necessidades habitacionais dos arrendatários que são, em regra, cidadãos mais carenciados" (Aragão Seia, ob. cit., pág. 588), a compressão ou restrição do direito de propriedade, privando desta o seu titular em benefício de outrém que dela não carece para a satisfação das suas necessidades habitacionais, escapa, de todo em todo, a qualquer função social da mesma, para passar a ser chocante e intolerável, porque ostensivamente desconforme ao equilíbrio, que se quer saudável e socialmente justo, entre os interesses dos proprietários e dos inquilinos, tendente "a garantir as melhores condições para o cumprimento de um preceito constitucional - o direito à habitação" (ainda do preâmbulo do DL 321-B/90).
Posto isto e na interpretação que defendemos do artº 86º do RAU, não pode, na atenção da factualidade provada e que supra se referenciou, deixar de se concluir que o A. logrou provar, como lhe competia (artº 342º, 2 do CC), a excepção à transmissão para a Ré do arrendamento ajuizado por morte do primitivo arrendatário, sobrando, por isso, a sua caducidade (artº 1051º, al. d) do CC e 83º do RAU) e, por força desta, o atendimento da pretensão do A..

Pelo exposto e não se nos oferecendo outras considerações, acorda-se em dar provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, na parte em que julgou a acção improcedente e, julgando esta procedente, em declarar caduco o contrato de arrendamento ajuizado, condenando-se a Ré a restituir ao A., livres e devolutos, o andar e sótão objectos do mesmo e a pagar-lhe a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença, a título de compensação pelos prejuízos decorrentes da ocupação que desses espaços vem fazendo.

Custas pela apelada.
Lisboa, 12/2/04

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Alvito Sousa