Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
101/22.4T8LSB.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DELIBERAÇÃO SOCIAL
DANO APRECIÁVEL
OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES NÃO DELIBERADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A suspensão cautelar de deliberações sociais destina-se a evitar o dano, ‘apreciável’, que a deliberação impugnada é apta a produzir dali para a frente e no lapso de tempo que demanda a prolação de decisão final, antecipando os efeitos desta e conservando os direitos dos sócios e/ou o interesse societário visados tutelar com a destruição da deliberação ilegal.
II - O dano apreciável decorrente da execução da deliberação impugnada não se confunde com os fundamentos que sustentam a ilegalidade da deliberação, os quais não pressupõem ou contêm em si mesmo, sequer por ficção legal, o periculum in mora que justifica o procedimento cautelar.
III - Não obstante a proximidade funcional entre a obrigação de prestação suplementar e a obrigação de prestação de capital a cargo do sócio, a primeira não se confunde nem interfere com o valor do capital social e a sua previsão estatutária está na disponibilidade das partes; ao contrário do que sucede com o valor do capital social, que é elemento imperativo do contrato de sociedade.
IV - A obrigação de prestações suplementares constitui fonte de financiamento da sociedade por recurso a capitais próprios cuja constituição exige, num primeiro momento, seja objeto de previsão no pacto social e, num segundo momento, objeto de deliberação pelos sócios.
V - A lei admite que os credores sociais exijam aos sócios as entradas iniciais não realizadas antes de elas se tornarem exigíveis (cfr. art. 30º, nº 1, al. b) CSC), e proíbe essa possibilidade para a obrigação de prestação suplementar não deliberada (cfr. art. 212º, nº 4 CSC).
VI - Só é possível afirmar que uma determinada lesão é consequência dos efeitos de uma deliberação se, ficcionando a inexistência ou a suspensão dos efeitos por esta produzidos, for possível afirmar que aquela lesão não seria produzida.
VII - A suspensão da deliberação, tomada com o voto do sócio titular de mais de 2/3 do capital social, de eliminação da cláusula estatutária que prevê a possibilidade de a sociedade exigir prestações suplementares a esse mesmo sócio, não é apta a evitar uma potencial situação de incumprimento da sociedade perante os seus credores ou de qualquer outra que constitua o prelúdio de uma situação de insolvência da sociedade ou conduza à perda do seu estabelecimento, na medida em que a exigibilidade de prestações suplementares a esse sócio estaria sempre dependente de deliberação tomada com o seu voto favorável.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – RELATÓRIO
1. T… instaurou providência cautelar contra A…, Ldª pedindo a suspensão da deliberação social tomada em Assembleia Geral de sócios de 22.12.2021, de eliminação do nº 2 do artigo 5º do Contrato de Sociedade, que prevê que “Poderão ser exigidas apenas ao sócio AM… prestações suplementares de capital, até ao montante de € 10.000.000,00 (dez milhões de Euros), sendo este sócio responsável pela totalidade das prestações suplementares exigidas, nos termos e condições que forem aprovados pela assembleia geral.
Alega em fundamento, em síntese, que a deliberação é inválida nos termos do art. 58º, nº 1, al. a) do CSC porque foi tomada: i) com o voto único do sócio AM…, detentor de 78% do capital social, em violação do seu impedimento de voto por, nos termos do art. 251º, nº 3 do CSC, encontrar-se em situação de conflito de interesses com a sociedade, o que desde logo fundamenta a imediata suspensão da deliberação; ii) em violação das finalidades societárias em prol dos interesses pessoais daquele sócio, porque as prestações suplementares representam um reforço do capital próprio da requerida que foi assumido pelo sócio AM… e a eliminação da cláusula que prevê a obrigação a cargo deste sócio equivaleria a uma exoneração unilateral dessa obrigação e a uma redução injustificada de capital próprio da requerida num valor de até €10M, que alega consubstanciar abuso de direito do porque tomada com a consciência de que bastaria o seu voto para a aprovar, e com violação do direito dos restantes sócios que vêm defraudadas as legítimas expectativas relativamente ao pacto social que contrataram nos termos acordados, sendo por isso anulável também nos termos do art. 58º, nº 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o que por si só justifica a imediata suspensão da deliberação. Mais alega que as prestações suplementares são essenciais para a sobrevivência da requerida porque encontra-se encerrada, sem receitas e sem perspetiva de as gerar, e tem um encargo mensal de € 48.000,00 referente a financiamento de € 7M, pelo que existe o risco iminente e sério de a requerida incumprir as suas obrigações que, no limite, poderá conduzir à sua insolvência técnica e à perda do seu único ativo (o hotel …).
Arrolou testemunhas e juntou documentos.
2. Ordenada e cumprida a citação, a requerida deduziu oposição requerendo a) a declaração da inutilidade superveniente da lide pugnando pelo indeferimento da providência ou, assim não se entendendo, a improcedência da providência cautelar. Em síntese, invocou: a) a inutilidade superveniente da lide com fundamento legal no art. 59º, nº 2 do CSC e na caducidade do direito de ação de anulação da deliberação de 22.12.2021, que até 21.02.2022 não foi instaurada; b) ausência de ilegalidade da deliberação por i) não se verificar impedimento de voto do sócio maioritário porque, da mera previsão das prestações suplementares nos Estatutos, não resulta qualquer expectativa frustrada dos interesses da requerida ou do requerente na medida em que a aprovação dessa chamada de capital continua dependente da vontade da assembleia geral, na qual o sócio AM... é maioritário, sócio que sempre se mostrou diligente perante a requerida e os seus fins conforme o demonstram os suprimentos que nos últimos 5 anos prestou à requerida no montante total de € 3.096.900,00, e a prestação suplementar no valor de € 6.590.000,00 que a seu cargo aprovou em assembleia geral de 02.06.2016, do que decorre o seu racional interesse que a requerida prossiga a sua atividade para gerar meios necessários ao reembolso dos empréstimos feitos; e ii) porque a deliberação foi tomada com a maioria legalmente exigível, de 2/3 dos votos correspondentes ao capital social, e não é abusiva só pelo facto de ter sido votada pelo sócio maioritário, e da deliberação não decorre a perda do direito da sociedade às prestações suplementares na medida em que se o sócio maioritário não as quiser prestar poderia sempre votar desfavoravelmente nas assembleias em que aquelas fossem a deliberação pelo que, ainda que a cláusula objeto da deliberada eliminação se mantivesse nos estatutos, tanto não garantiria financiamento correspondente porque este dependeria da deliberação maioritária que o aprovasse, deliberação que não existe nem existirá sem o acordo do acionista maioritário, não demonstrando o requerente como ultrapassaria a votação maioritária da assembleia geral necessária à operacionalização da exigibilidade das prestações ao sócio que detém a maioria de 2/3 do capital social e que não quer estar vinculado às mesmas; c) e a ausência de dano apreciável iminente, quer porque a requerida não tem quaisquer incumprimentos perante os seus credores e tem um crédito de € 5M sobre sociedade administrada pelo requerente, quer porque o requerente não apresenta argumentos que sustentem o perigo sério e real de possível incumprimento da prestação mensal de € 48.000,00, nem o nexo de causalidade entre este e a deliberada alteração aos estatutos, questão que co-envolve matéria de facto e matéria de direito, sendo que o requerente não concretizou os supostos danos.
Arrolou testemunhas e juntou documentos.
3. O requerente invocou o art. 3º, nº 3 do Código de Processo Civil (CPC) e respondeu ao pedido de declaração da inutilidade superveniente da lide alegando que a deliberação objeto da providência requerida também é nula nos termos do art. 56º, nº 1, al. d) do CSC por violar norma imperativa estabelecida pelo art. 212º, nº 3 do CSC, sendo que a nulidade é de conhecimento oficioso e invocável a qualquer momento, e não apenas no prazo de 30 dias.
4. Sobre o pedido cautelar recaiu a seguinte decisão:
“Pelo exposto, indefiro liminarmente o presente procedimento cautelar de suspensão de deliberação social porquanto não se encontram, e independentemente da prova que pudesse vir a ser produzida nos autos, reunidos os requisitos para a sua admissibilidade, nomeadamente, o dano apreciável.”
5. Inconformado o requerente interpôs o presente recurso. Requereu a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por acórdão que julgue a providência procedente e determine a suspensão da deliberação social ou, subsidiariamente, que determine a baixa dos autos para prosseguimento normal do procedimento cautelar. Formulou as seguintes conclusões:
i. Do erro da decisão do Tribunal a quo, ao considerar “não estar preenchido o requisito do dano apreciável”.
A. No dia 3 de janeiro de 2021, o Recorrente instaurou o presente procedimento cautelar, alegando, resumidamente, que a deliberação social adotada pela Recorrida no dia 22 de dezembro de 2021, e que aprovou a eliminação do n.º 2 do artigo 5.º do Contrato de Sociedade, constitui uma deliberação contrária à lei, e suscetível de causar dano apreciável à sociedade, nos termos do artigo 380.º do CPC. Por esse motivo, o ora Recorrente peticionou a suspensão da execução dessa deliberação social.
B. O n.º 2 do artigo 5.º do Contrato de Sociedade da Recorrida dispõe o seguinte: “Poderão ser exigidas apenas ao sócio AM… prestações suplementares de capital, até ao montante de € 10.000.000,00 (dez milhões de Euros), sendo este sócio responsável pela totalidade das prestações suplementares exigidas, nos termos e condições que forem aprovados pela assembleia geral”.
C. No dia 15 de março de 2022, o Tribunal a quo proferiu despacho através do qual indeferiu liminarmente a providência cautelar requerida, considerando “não estar preenchido o requisito do dano apreciável decorrente da execução das deliberações”. O Recorrente discorda desta decisão, bem como da fundamentação que lhe serve de respaldo, e por isso apresenta o presente recurso.
D. Conforme dispõe o n.º 1 do artigo 380.º do CPC, “Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.”
E. A deliberação cuja execução se requereu fosse suspensa consubstanciou uma desobrigação do sócio AM..., ao qual a sociedade deixou de poder exigir a realização de prestações suplementares.
F. Aquando da celebração do Contrato de Sociedade da Recorrida, o sócio AM... vinculou-se, nos termos do artigo 210.º do Código das Sociedades Comerciais, à realização de prestações suplementares, se e quando estas fossem exigidas pela sociedade Recorrida.
G. Até ao dia 22 de dezembro de 2021, a Recorrida era titular de um direito potestativo que lhe permitia, mediante uma simples deliberação, obter financiamento até um valor limite de dez milhões de euros – montante esse que constituiria capital vinculado e responsável pelas dívidas sociais (n.º 3 do artigo 213.º do CSC), e que não venceria juros (n.º 5 do artigo 210.º do CSC).
H. Através da deliberação de 22 de dezembro de 2021, que é nula, nos termos conjugados do n.º 3 do artigo 212.º e do n.º 1 do artigo 56.º do CSC, a Recorrida viu ser-lhe retirado esse direito potestativo, que lhe dava acesso a dez milhões de euros em capital social.
I. A perda deste direito potestativo, que é, por si só, um inegável dano patrimonial para a Recorrida, constituindo um dano especialmente gravoso dada a sua precária situação financeira, que já foi descrita – e que não poderá deixar de ser considerado um dano apreciável, nos termos e para os efeitos do artigo 380.º do CPC.
J. Até ao dia 22 de dezembro de 2021, e apesar, por um lado, da sua absoluta falta de receitas, e, por outro, do montante avultado das suas dívidas, a sociedade Recorrida dispunha de um meio simples de financiamento, que se encontrava previsto no seu Pacto Social. Mas a partir desse dia, a sociedade Recorrida vê-se financeiramente a descoberto, podendo contar apenas, para o seu financiamento, com o seu capital social (no valor de EUR 25.000,00) e com os seus ativos (um hotel encerrado, sem previsão para reabrir).
K. O que não pode deixar de constituir, mais que um dano apreciável, um dano verdadeiramente devastador para a sua saúde financeira.
L. O Tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência cautelar requerida pela ora Recorrente, por ter considerado que não existia dano apreciável para a Recorrida, tendo fundamentado a sua decisão através de uma tese segundo a qual, resumidamente, a perda do direito da sociedade a exigir prestações suplementares ao sócio não operaria qualquer dano juridicamente atendível, sem que tenha havido uma deliberação que exija ao sócio essas prestações suplementares.
M. Esta tese não é sustentável. A previsão no Contrato de Sociedade da sujeição de um sócio à exigibilidade de prestações suplementares confere um direito potestativo à sociedade, exercível a qualquer momento e por qualquer motivo, e que possui, por si só, um valor patrimonial avultadíssimo.
N. Na verdade, o montante de dez milhões de euros previsto para as prestações suplementares de AM... pode ser exigido pela sociedade a qualquer momento e por qualquer motivo; e o montante exigido constituirá capital próprio da sociedade, que responderia pelas suas dívidas, e que nunca venceria juros a favor do sócio AM.... Trata-se de um valor com o qual a sociedade poderia contar para o futuro; e que, mesmo que não fizesse ainda parte do seu património à data da deliberação, não deixava de constituir um seu direito.
O. Ora: por arte de uma deliberação nula, tomada no dia 22 de dezembro de 2021, com o voto único do sócio AM..., esse direito da sociedade Recorrida desintegrou-se por completo. De um dia para o outro, a sociedade deixou de poder contar com a possibilidade de se financiar com os dez milhões de euros que, até à aprovação da deliberação sub judice, fizeram sempre parte da sua capacidade financeira.
P. A obrigação, a que o sócio AM... se comprometeu aquando da assinatura do Contrato de Sociedade, de se sujeitar ao pagamento de prestações suplementares assim que tal lhe fosse exigido constitui uma obrigação fundacional, ou constitutiva da sociedade; sendo expectável que os restantes sócios apenas tenham aceitado o Contrato de Sociedade mediante a aceitação dessa cláusula pelo sócio AM....
Q. Desta forma, a eliminação da cláusula onde se encontra consagrada essa obrigação constitui não só um gravíssimo (e, como não pode deixar de ser, apreciável) dano patrimonial para a Recorrida, como ainda consubstancia um grave dano para a própria relação societária.
R. A tese do Tribunal a quo, segundo a qual “não tendo havido prévia deliberação a exigir a realização da prestação suplementar estatuariamente autorizada, a execução da deliberação social em causa nestes autos não importa para a sociedade qualquer dano juridicamente atendível”, parece ignorar que a existência da cláusula 5.2. do Contrato de Sociedade constitui condição sine qua non para que existam deliberações a exigir a realização de prestações suplementares.
S. Assim, a eliminação daquela cláusula constitui, num certo sentido, a eliminação da premissa maior, que permite deliberações (premissas menores) que exigirão, em concreto, as prestações suplementares. O que significa que a deliberação que elimina a cláusula 5.2 é logicamente muito mais gravosa (e um dano muito mais atendível) do que uma deliberação que, por exemplo, negasse a exigibilidade de determinada prestação suplementar a AM....
T. Por esse motivo, não tem qualquer sentido útil a tese do Tribunal segundo a qual seria necessária “deliberação prévia que tornasse exigível a prestação social” para que houvesse lugar a um “dano juridicamente atendível”. Na verdade, a deliberação sub judice destrói, por completo, qualquer possibilidade de algum dia virem a ser exigidas quaisquer prestações suplementares ao sócio AM... – o que a torna muito mais danosa que qualquer eventual deliberação que versasse sobre a exigibilidade concreta de uma prestação suplementar de qualquer montante.
U. O Tribunal a quo refere ainda que “[não] decorre da execução da deliberação social aqui em causa o risco iminente e sério de a requerida incumprir as suas obrigações no âmbito do financiamento que contratou”.
V. Sempre se esclareça que o risco iminente e sério não é requisito para o provimento da providência cautelar requerida, bastando o dano apreciável resultante da aprovação da deliberação. Dano esse que já se demonstrou à saciedade. Ainda assim, sempre se refira que dada a situação financeira presente da Recorrida existe um evidente perigo na demora de uma decisão que venha a destruir os efeitos da deliberação de 22 de dezembro de 2021.
W. A Recorrida, de momento, não aufere quaisquer receitas; e o seu único ativo é um hotel que se encontra encerrado, sem que se preveja data para a sua reabertura. A Recorrida encontra-se também obrigada a pagar uma mensalidade de EUR 48.000,00, referente a um contrato de financiamento cujo capital em dívida totaliza os EUR 7.000.000,00.
X. Por isso, caso a deliberação da Recorrida de 22 de dezembro de 2021 seja executada (e o seu efeito não seja suspenso por efeito da providência cautelar requerida), a Recorrida perderá um meio de financiamento no valor de dez milhões de euros.
Y. Dadas as obrigações de pagamento a que a Recorrida está vinculada, é previsível, se não mesmo expectável, que a Recorrida venha a ver-se obrigada a socorrer-se de algum tipo de financiamento num futuro próximo. Por essa razão, a Recorrida não pode dar-se ao luxo de aguardar pelo desfecho de um longo processo judicial que culminará na declaração de nulidade da deliberação social de 22 de dezembro de 2021.
Z. Para o caso, que se revela previsível, de a Recorrida vir a necessitar de financiamento ao longo dos próximos meses, é essencial que a deliberação social de 22 de dezembro de 2021 permaneça suspensa, permitindo assim que a Recorrida possa exigir prestações suplementares ao sócio AM..., caso essa necessidade surja.
AA. Pelo que existe um real e atual periculum in mora associado à decisão final de declaração da nulidade da deliberação social de 22 de dezembro de 2022: deliberação essa que, para além de criar por si só dano apreciável na esfera jurídica da Recorrida, cria ainda um perigo de insuficiência de financiamento (e, possivelmente, insolvência), que será cada vez maior quanto maior for a demora da decisão que a declare nula, e assim extinga todos os seus efeitos no tráfego jurídico.
ii. Do Conhecimento do objeto da Apelação pelo Venerando Tribunal ad quem
BB. Nos termos do n.º 2 do artigo 665.º do CPC, “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.”
CC. In casu, a procedência do pedido do Recorrente depende apenas da apreciação de dois requisitos, estabelecidos pelo artigo 380.º do CPC: a existência de uma deliberação contrária à lei, e a demonstração de que a execução dessa deliberação pode causar dano apreciável.
DD. O Recorrente já demonstrou supra à saciedade que a execução da deliberação de 22 de dezembro de 2021 causaria à Recorrida dano apreciável.
EE. E, como melhor se explicou em sede de Requerimento Inicial e de Requerimento apresentado em 7 de março de 2022, a deliberação sub judice é nula, porque frontalmente contrária ao n.º 3 do artigo 212.º do CSC.
FF. Nulidade essa que é insanável, que pode ser conhecida oficiosamente e a todo o tempo, e cujo conhecimento depende apenas de uma averiguação da conformidade da deliberação aprovada (cujo texto se encontra comprovado por ata junta pela Recorrida como Doc. n.º 1 à sua Oposição) com a Lei vigente.
GG. Conforme disposto no n.º 3 do artigo 212.º do CSC, “a sociedade não pode exonerar os sócios da obrigação de efetuar prestações suplementares, estejam ou não estas exigidas”.
HH. Ao deliberar pela eliminação da citada cláusula do seu Contrato de Sociedade, a Recorrida exonerou o sócio AM... da sua obrigação de efetuar prestações suplementares, pelo que o conteúdo dessa deliberação violou frontalmente a norma imperativa estabelecida pelo n.º 3 do artigo 212.º do CSC.
II. Nos termos a alínea d) do n.º 1 do artigo 56.º do CSC, “São nulas as deliberações dos sócios […] Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.”
JJ. Afigura-se evidente que a deliberação pela qual a Recorrida eliminou o n.º 2 da cláusula 5.ª do seu Contrato de Sociedade constitui uma deliberação cujo conteúdo ofende um preceito legal – o n.º 3 do artigo 212.º do CSC – que não pode ser derrogado, nem por vontade unânime dos sócios.
KK. Por conseguinte, a deliberação da Recorrida que é objeto da providência cautelar requerida é nula, por força da alínea d) do n.º 1 do artigo 56.º do CSC.
LL. Estando, assim, verificados ambos os requisitos para o decretamento da providência cautelar requerida – a existência de uma deliberação contrária à lei, e a demonstração de que a execução dessa deliberação pode causar dano apreciável – impõe-se que o Venerando Tribunal ad quem revogue o despacho do Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar, e que, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 665.º do CPC, declare procedente a presente ação, e conceda a providência cautelar requerida de suspensão da deliberação social.
MM. Sem prejuízo, e para o caso, que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, de o Venerando Tribunal ad quem não considerar ter à sua disposição todos os elementos necessários para se pronunciar sobre a procedência do pedido, pede-se subsidiariamente que este Venerando Tribunal revogue o despacho do Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar, e determine a baixa dos autos para prosseguimento normal do procedimento cautelar.
6. A requerida/recorrida apresentou contra-alegações. Requereu o não provimento do recurso e a manutenção da decisão recorrida. Formulou as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo considerou ainda que o Requerente não logrou demonstrar que da execução da deliberação social decorresse risco iminente e sério de incumprimento das obrigações da Requerida.
B. A Lei impõe que deliberação a suspender cause à Requerida um dano apreciável.
C. Aquele pressuposto é aferido através de um juízo de certeza, ou pelo menos uma probabilidade muito forte e séria, de que a deliberação poderá causar um dano apreciável.
D. No caso sub judice, o Requerente apenas alegou a possibilidade de uma eventual falta de pagamento de uma mensalidade de 48.000,00 € (quarenta e oito mil euros).
E. Referindo ainda que aquela deliberação “causa já dano na esfera jurídica do Requerente”.
F. Mas nãos e alegam quaisquer factos que o comprovem.
G. Ou seja, os danos alegados pelo Requerente são meramente hipotéticos e virtuais.
H. Além disso, não só não existe qualquer dano com a alteração de uma disposição do contrato de sociedade, como também não há nenhum possível nexo de causalidade que nos pudesse levar a esse entendimento.
I. No que diz respeito ao alegado dano já causado na esfera jurídica do Requerente, este não concretizou, demonstrou ou provou qualquer facto que permita conclui por um dano que efetivamente já tenha ocorrido.
J. Como tal, a alegação do Requerente não carreia qualquer matéria de facto que, provada, pudesse caracterizar-se como a situação de “dano apreciável” a que alude o artigo 380º do CPC, para o efeito de suspensão da deliberação social.
K. Importando, para mais, ter presente que o Requerente não interpôs qualquer ação principal de anulação da deliberação que qui pretende suspender e tinha um prazo para tanto, o qual já passou.
L. E no que diz respeito ao procedimento cautelar, nunca logrou demonstrar quaisquer fundamentos reais para a urgência desta suspensão, quando tal é precisamente o que a providência cautelar visa prevenir, ou seja, acautelar a utilidade prática da sentença de anulação da deliberação social contra o risco da duração do respetivo processo.
M. Ficando ainda e também por alegar e demostrar, para efeitos de utilidade e substanciação, como ultrapassaria o Requerente a necessidade de conseguir a votação maioritária da Assembleia Geral, necessária à operacionalização da factualidade de exigir as prestações ao sócio que não quer estar às mesmas vinculado e que tem o valor de 78% dos votos.
N. Exatamente porque, como refere e bem o Tribunal a quo, a previsão contratual de prestações suplementares trata-se de uma mera possibilidade sujeita a deliberação em assembleia geral pelo que a sua eliminação dos estatutos nunca poderia causar, por si só, um dano apreciável, dado que a referida possibilidade não é auto exequível dependendo sempre do resultado de uma deliberação maioritária concordante que lhe defina os termos, momento e demais condições.
O. Razão pela qual tema sentença recorrida absoluta razão quando julgou que não estão demonstrados os factos suscetíveis de integrar o requisito do dano apreciável exigido pelo artigo 380º do CPC.
P. Por último, vem ainda o Requerente invocar a nulidade da deliberação por violação da lei, nomeadamente o n.º 3.º do art.º 212.º do CSC
Q. O n.º 3 do artigo 212.º, n.º 3 prevê a proibição da sociedade beneficiária das prestações suplementares exonerar os sócios que estão adstritos àquela obrigação, quer aquelas estejam ou não exigidas.
R. Note-se, no entanto, e tal como vem sido defendido pela melhor Doutrina que tal não impede que a sociedade possa, nas situações em que a exigibilidade de prestações suplementares ainda foi deliberada, como era e ainda é aqui o caso, reduzir ou mesmo eliminar esta obrigação mediante alteração do contrato de sociedade.
S. Nestes termos apenas resta concluir pela validade da deliberação que o Requerente pretende ver declarada nula, que deve ser confirmada, in totum, com a devida vénia.
7. O recurso foi corretamente admitido.
II– DO OBJECTO DO RECURSO:
De acordo com o disposto nos artigos 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC), balizado o objeto do recurso pelo objeto do processo e, este, pelo âmbito das conclusões do recorrente, sem prejuízo de outras questões que oficiosamente cumpra conhecer cumpre apreciar:
1. Se os factos alegados na petição inicial integram fattispecie concretizadora do periculum in mora pressuposto pela providência cautelar de suspensão de deliberação de sócios.
Na positiva, e de acordo com a regra da substituição prevista pelo art. 665º do CPC,
2. Se ocorre inutilidade superveniente da lide pela ausência de instauração da ação de que estes autos de procedimento cautelar são preliminar no prazo de 30 dias previsto pelo art. 59º, nº 2 do CSC, o que implica aferir se a deliberação padece ou não do vício de nulidade que o recorrente lhe imputa com fundamento em violação de norma imperativa (arts. 212º, nº 3 e 56º, nº 1, al. d) CSC).
Na negativa,
3. Se as deliberações padecem dos vícios de anulabilidade que o recorrente lhes imputa com fundamento na formação da deliberação com o voto de sócio impedido de votar e abusivo (art. 58º, nº 1, als. a) e b) CSC).
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Remete-se para o descrito no relatório supra.
B) De Direito
As deliberações são os atos jurídicos através dos quais, e através dos votos dos sócios, as sociedades formam e manifestam a sua vontade, refletindo em princípio a vontade da maioria simples, salva a exigência legal ou estatutária de maiorias qualificadas para determinadas matérias, como urge ser a alteração do pacto social que, conforme prevê o art. 265º, nº 1 do CSC, só pode ser deliberada por maioria qualificada, no mínimo, de três quartos dos votos correspondentes ao capital social. O procedimento cautelar e a ação principal de que aquele é dependência estão processual e teleologicamente previstos e orientados para fins distintos: se, finalisticamente, a ação de impugnação para anulação de deliberação social constitui o meio legalmente previsto de controlo, pelos sócios, da licitude das deliberações das assembleias gerais, o direito à suspensão da execução de tais deliberações constitui a via legalmente prevista para os sócios obstarem à produção das consequências danosas resultantes da execução dessas mesmas deliberações durante a pendência da ação principal, para assim obviar aos prejuízos que decorram do  maior retardamento ou demora na sentença que naquela compete proferir para composição definitiva do litígio[1]. É precisamente em função do objetivo legalmente visado tutelar/prevenir com o procedimento cautelar de suspensão de deliberação social que um dos respetivos legais requisitos consiste na alegação e prova da possibilidade da produção de dano, elemento/fundamento que integra a complexa causa de pedir de procedimentos desta natureza - exige que a execução (ou continuação da execução) da deliberação possa causar um dano à sociedade ou ao sócio requerente; o designado periculum in mora, que a lei densifica com o qualificativo ‘apreciável’, “mas sem atingir, por outro lado, o ponto da irrecuperabilidade ou da grave danosidade”[2]. Assim, a suspensão de deliberações sociais consiste numa providência cautelar de natureza conservatória, destinada a evitar a produção de dano apreciável emergente da deliberação e durante a pendência da ação principal.
Na ausência de menção e de regulação da suspensão de deliberação social no CSC, o exercício de tal direito é processualmente regulado pelo art. 380º do CPC que, sob a epigrafe Pressupostos e formalidades, prevê nos seguintes termos:
1. Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.
Para que seja decretada a suspensão de deliberações sociais o art. 380º nº1 do CPC exige, para além da qualidade de sócio, a ocorrência simultânea de dois elementos, distintos entre si - a ilegalidade da deliberação por violação da lei ou dos estatutos, e a possibilidade da produção de dano apreciável. A inobservância de um deles inviabiliza a possibilidade do seu deferimento e justifica que se declare prejudicado o conhecimento de mérito do que demais vem alegado[3].
No caso o requerente alegou e justificou a sua qualidade de sócio e imputou à deliberação impugnada vícios de procedimento – por violação do impedimento de voto do único sócio que votou favoravelmente - e de conteúdo – por corresponder a exoneração unilateral da obrigação contratualmente assumida pelo sócio AM... e, assim, tratar-se de deliberação tomada em benefício do mesmo e em prejuízo da requerida. Justificou o dano apreciável com o risco iminente de a requerida incumprir a obrigação de pagamento de prestação mensal a instituição bancária e, no limite, a insolvência técnica da sociedade e a perda do seu único ativo (hotel ...), risco que justificou com o facto de a sociedade não exercer atividade e não gerar receitas, e de a deliberação ter “reduzido drasticamente o seu capital próprio num valor até dez milhões de euros”. A decisão recorrida não se pronunciou sobre os vícios imputados à deliberação porque, “ainda que todos os factos alegados no requerimento inicial ficassem provados, sempre a presente ação cautelar seria improcedente, por não estar preenchido o requisito do dano apreciável decorrente da execução das deliberações.”; em síntese, porque a obrigação de realização de prestação suplementar pelo sócio depende de prévia deliberação a exigir a sua realização, pelo que a inexigibilidade de prestações suplementares e o risco de a requerida incumprir as suas obrigações não decorre da alteração estatutária objeto da deliberação impugnada, mas da inexistência de deliberação anterior a exigir a sua realização. Em sede de alegações o requerente-recorrente mantém que a deliberação causa dano apreciável à sociedade porque lhe retirou o direito potestativo de a qualquer momento e por qualquer motivo exigir prestação suplementar ao sócio AM... e de obter financiamento até €10M sem vencimento de juros, o que por si só constitui dano patrimonial, que é gravoso para a requerida atenta a sua absoluta falta de receitas e o valor das suas dívidas, e para os demais sócios por ser expectável que apenas tenham aceitado o contrato mediante a aceitação dessa cláusula pelo sócio AM…, mais aduzindo que a sociedade não pode aguardar a decisão de declaração de nulidade da deliberação porque não aufere receitas e está obrigada a pagar uma prestação mensal de € 48.000,00 emergente de contrato de financiamento no montante de € 7M.
Por referência à apreciação levada a cabo pela decisão recorrida, em discussão está, antes de mais, a verificação ou não do requisito do periculum in mora que, no âmbito da providência cautelar de suspensão da execução de deliberação social, se traduz em ‘dano apreciável’.
Conforme se disse, a suspensão das deliberações sociais destina-se a evitar o dano que a deliberação impugnada é apta a produzir dali para a frente e no lapso de tempo que demanda a prolação de decisão final, antecipando os efeitos desta e conservando os direitos dos sócios e/ou o interesse societário visados tutelar com a destruição da deliberação ilegal[4]. Nesta matéria a lei não se basta com um qualquer receio de prejuízo, pois que exige a demonstração de dano apreciável decorrente da execução da deliberação impugnada, que não se confunde com os fundamentos que sustentam a ilegalidade da deliberação, os quais não pressupõem ou contêm em si mesmo, sequer por ficção legal, o periculum in mora que justifica o procedimento cautelar.
Nas palavras de Alberto dos Reis[5], Definimos a figura geral da providência cautelar como uma decisão provisória destinada a antecipar o efeito jurídico duma providência definitiva, em atenção ao periculum in mora, isto é, ao dano jurídico que pode resultar da necessidade de que a decisão definitiva seja o termo dum longo percurso processual. A apreciação jurisdicional de que emerge a providência cautelar ou preventiva se traduz em dois juízos: 1º Um juízo de simples probabilidade (verificação de que o requerente é titular dum direito aparente); 2º Um juízo de certeza ou, pelo menos, de probabilidade muito forte (verificação da ameaça de dano jurídico). A providência é decretada em defesa do direito aparente e para impedir que o dano se produza. (…) A verificação do 1º requisito põe ao tribunal uma questão de direito; a do 2º suscita uma questão de facto.
Decorre então a exigência da alegação de factos que, para além dos que fundamentam os vícios imputados à deliberação, demonstrem a concreta e forte possibilidade de a sua execução causar dano apreciável em termos que justifique a antecipação do efeito jurídico a que tende a decisão definitiva. O que desde já se antecipa pela negativa na medida em que, apesar de o requerente ter identificado um risco de lesão grave e dificilmente reparável para a sociedade - como urge ser a anunciada situação de insolvência e de perda do seu único ativo produtivo por falta de liquidez para cumprir as suas obrigações -, no contexto da estrutura de capital da recorrida e por referência ao regime legal das prestações suplementares aquela não surge como consequência da deliberação em questão; ou seja, a falta de liquidez e/ou o incumprimento das obrigações e/ou a incursão da recorrida em situação de insolvência não são efeitos produzidos pela eliminação da cláusula estatutária que prevê o direito da requerida deliberar a exigência de prestações suplementares para o futuro ao sócio maioritário.
As prestações suplementares são um meio de financiamento das sociedades por recurso a capitais próprios, regulado nos arts. 210º a 213º do CSC. Conforme art. 210º, nº 2 do CSC, têm sempre dinheiro por objeto e, contrariamente ao que sucede com as prestações acessórias (arts. 209º e ss. do CSC) e com os suprimentos, não configuram empréstimos dos sócios à sociedade; como a própria designação revela, “operam como um suplemento patrimonial da sociedade[6] que, na esfera dos sócios corresponde a um suplemento à obrigação de constituição do capital social e, na esfera da sociedade, a um reforço dos capitais próprios pelos sócios sem afetação do valor nominal das respetivas participações e, por isso, sem afetação do capital social.
Prevê o art. 210º, nº 1 do CSC que Se o contrato de sociedade assim o permitir, podem os sócios deliberar que lhes sejam exigidas prestações suplementares. Acrescenta o art. 211º, nº 1 CSC que A exigibilidade das prestações suplementares depende sempre de deliberação dos sócios que fixe o montante tornado exigível e o prazo de prestação, o qual não pode ser inferior a 30 dias a contar da comunicação aos sócios.[7]
Assim, [o] primeiro e essencial requisito das prestações suplementares é estar convencionada no contrato de sociedade a obrigação de as prestar. E só no contrato de sociedade podem as prestações suplementares ser convencionadas; (…).[8] O segundo requisito é a sua deliberação pelos sócios, que torna exigível a realização de prestação suplementar permitida pelo contrato, e até ao limite por este previsto. Por referência ao processo de constituição da obrigação de prestações suplementares em dois momentos ou fases distintas – estipulação contratual e deliberação -, Raúl Ventura considera que o primeiro ato gera uma relação de crédito-obrigação de cariz genérico entre a sociedade e o sócio - à semelhança dos direitos genéricos dos sócios sobre a sociedade -, que é concretizada ou ativada pela deliberação. Posição que fundamenta no facto de o art. 211º tratar a deliberação como requisito de exigibilidade das prestações suplementares e de o elemento literal do nº 3 do art. 212º do CSC fazer referência à obrigação dos sócios efetuarem prestações suplementares “estejam ou não estas já exigidas[9].
A proximidade das prestações suplementares com as entradas iniciais (prestações de capital) dos sócios justifica que, uma vez validamente deliberadas/exigidas pela sociedade, aquelas sejam efetivamente prestadas, que os sócios que não cumpram a obrigação de as efetuar fiquem sujeitos às consequências que a lei prevê para o incumprimento da obrigação de entrada do capital social (cfr. art. 212º, nº 1 CSC), que não possam extinguir-se por compensação (art. 212º, nº 2 CSC), que os sócios não possam ser exonerados pela sociedade da obrigação de as efetuar (art. 212º, nº 3 CSC), e que as realizadas não vençam juros (art. 210º, nº 5 CSC).
A proibição de compensação das prestações suplementares (com créditos dos sócios sobre a sociedade) incide necessariamente sobre a gerência enquanto órgão titular dos poderes-deveres de gestão da sociedade. Já a proibição de exoneração dos sócios da obrigação de efetuar prestações suplementares inclui atos de gerência e deliberação dos sócios mas, conforme afirma Paulo Tarso Domingues, “esta proibição só existirá enquanto se mantiver a cláusula contratual que permita as prestações suplementares de capital aos sócios. Nada obsta, contudo, que os sócios deliberem suprimir tal cláusula e, consequentemente, eliminem a possibilidade de lhes ser exigidas prestações suplementares de capital.[10] No mesmo sentido, Raúl Ventura: “quanto a prestações suplementares ainda não exigidas, a sociedade pode eliminar a respectiva obrigação, ou reduzi-la, por meio de alteração do contrato de sociedade. Com efeito, não existe para a redução do montante das prestações suplementares constante do contrato algo de semelhante ao processo de redução do capital.[11] O que se compreende porque, não obstante a proximidade funcional entre esta e a prestação de capital a cargo do sócio, a prestação suplementar não se confunde nem interfere com o valor do capital social, que é elemento imperativo do contrato de sociedade (art. 9º, nº 1, al. f) CSC), ao contrário do que sucede com a prestação suplementar, cuja previsão contratual está na disponibilidade dos sócios. Distinção que explica a diferença de regime entre uma e outra obrigação, designadamente, ao nível da sua exigibilidade pelos credores, que a lei admite para as entradas iniciais não realizadas antes de elas se tornarem exigíveis (cfr. art. 30º, nº 1, al. b) CSC), e proíbe para as prestações suplementares não deliberadas (cfr. art. 212º, nº 4 CSC). Nas palavras de Raúl Ventura, “(…) o credor quando contrata com a sociedade sabe que a concretização da obrigação de prestação suplementar depende de deliberação dos sócios e, portanto, não deve contar com ela, ao contrário do que sucede com a prestação de capital, cuja efectivação apenas está dependente de um prazo, até ao máximo estabelecido pela lei.[12]
Da conjugação do descrito regime legal das prestações suplementares com a estrutura do capital social da recorrida resulta manifesta a ausência da relação de causa e efeito entre a deliberação pretendida suspender – de alteração ao pacto social da recorrida através da eliminação da cláusula que prevê que Poderão ser exigidas apenas ao sócio AM... prestações suplementares de capital, até ao montante de € 10.000.000,00 (dez milhões de Euros), sendo este sócio responsável pela totalidade das prestações suplementares exigidas, nos termos e condições que forem aprovados pela assembleia geral.” - e o dano preconizado pelo recorrente – de futura incursão da recorrida em situação de insolvência e/ou de perda do único ativo que detém para o exercício da sua atividade. Dito de outro modo, só é possível afirmar que uma determinada lesão é consequência dos efeitos de uma deliberação se, ficcionando a inexistência ou a suspensão dos efeitos por esta produzidos, for possível afirmar que aquela lesão não seria produzida. No caso a suspensão da deliberação não detém a virtualidade de obstar à verificação das situações preconizadas pelo recorrente posto que, contrariamente ao que alega, não é da deliberação que resulta uma qualquer redução da liquidez ou do capital próprio da recorrida. Não é possível reduzir o que não existe, que só poderia existir se anteriormente a sociedade tivesse deliberado a chamada de prestação suplementar (cuja exigibilidade e realização não era posta em causa nem prejudicada pela deliberação), e que só poderia vir a existir se a sociedade assim o viesse a deliberar; deliberação que estaria dependente do voto favorável do sócio que votou a eliminação dessa obrigação na medida em que, conforme é facto assente entre as partes, é titular de mais de 2/3 do capital social da recorrida (art. 250º, nº 3 CSC). Conforme esclarece Raúl Ventura a propósito da natureza genérica do direito da sociedade à prestação suplementar prevista no pacto social, justifica-se que “a situação activa da sociedade [sobre os sócios] não seja transmissível nem penhorável nem susceptível de inclusão no balanço uma vez que a sua concretização depende de um facto voluntário dos obrigados.[13]
Neste cenário não é possível concretizar uma qualquer utilidade prática suscetível de justificar o recurso à providência cautelar de suspensão da deliberação na precisa medida em que o recorrente não esclarece ou justifica em que termos estaria garantida a exigibilidade de prestações suplementares ao sócio titular de mais de 2/3 do capital social caso entretanto essa fosse a única possibilidade de a recorrida obter financiamento para angariar liquidez e, no limite, obstar à perda do seu estabelecimento e/ou à criação de uma situação de insolvência[14]. O risco de lesão que imputa à deliberação não passa de mera alegação especulativa na medida em que, per se, a sua suspensão não é apta a evitar a potencial situação de incumprimento ou qualquer outra que constitua o prelúdio de uma situação de insolvência da recorrida ou conduza à perda do seu estabelecimento. Conforme acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2002, “A mera alegação de juízos de valor, conjecturas, receios não fundamentados ou conclusões acerca do "dano apreciável" não são suficientes para decretar a referida providência.” No mesmo sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 28.02.2008: “O fundado receio da lesão só pode ser afirmado com a prova de factos que, alegados, provados e analisados com objectividade, façam concluir pela seriedade e actualidade da ameaça, não sendo suficiente que deles se extraia a simples possibilidade de que tal lesão venha a ocorrer.
Com o que se acompanha a sentença recorrida ao concluir que, independentemente da bondade dos fundamentos da invocada ilicitude da deliberação, a providência cautelar estaria sempre votada ao insucesso por ausência de factos suscetíveis de concretizar um dos elementos integrantes da causa de pedir – a produção de dano apreciável. Nesse sentido, e também por referência a alegada possibilidade de verificação de um dano identificado como “o agravamento do passivo e o risco de insolvência da sociedade requerida, ainda não concretizáveis”, acórdão da Relação de Lisboa de 27.06.2006[15]: “Num procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, é de indeferir liminarmente o requerimento inicial quando não se mostre verificada a irregularidade da convocatória consubstanciada na não fundamentação da mesma e quando o dano alegado o foi sob a forma de possibilidade, nada se dizendo quanto à existência de dano resultante da demora da acção principal.
Ainda que assim não fosse, considerando que do acima exposto resulta que o art. 212º, nº 3 CSC não prevê a proibição de os sócios deliberarem a eliminação da cláusula estatutária que prevê a possibilidade de a sociedade deliberar a exigência de prestações suplementares, na ausência de outro fundamento suscetível de enquadrar o vício da nulidade sempre cumpriria declarar a invocada inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277º, al. e) do CPC com fundamento na falta de interposição da ação de anulação principal no prazo de 30 dias previsto pelo art. 59º, nº 2 do CSC, falta que a recorrente não pôs em causa.
Em qualquer caso sempre resultaria prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.

V - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam as juízas desta secção em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Tendo decaído na pretensão recursória que deduziu, as custas do recurso são a cargo do recorrente (art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 21.06.2022
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
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[1] Nesse sentido, entre muitos outros, acórdão da RC de 28.11.2018, proc. 4039/17.9T8LRA-A.C1, e acórdão do STJ de 14.06.2018, Revista nº 0435/18, ambos disponíveis na página da dgsi.
[2] A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, CPC Anotado, GPS, Vol. I, 2ª ed., p. 471.
[3] Entre outros, acórdão da Relação de Lisboa de 17.11.2009, disponível na página da dgsi
[4] Vd. Paulo Olavo Cunha, Deliberações Sociais, Formação e Impugnação, Almedina, 2020, p. 257-258.
[5] CPC Anotado, Vol. I, p. 677 e ss.
[6] Januário da Costa Gomes, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação Menezes Cordeiro, Almedina, 2009, p. 561.
[7] No art. 246º, nº 1, al. a) do CSC também se prevê que Dependem de deliberação dos sócios os seguintes actos, além de outros que a lei ou o contrato indicarem: a) A chamada e a restituição de prestações suplementares;
[8] Raul Ventura, Sociedade por Quotas, Vol. I, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 4ª reimpressão da 2ª ed. de 1989, p. 240.
[9] Ob. cit., p. 251-253.
[10] O Financiamento Societário pelos Sócios (e o seu reverso), Almedina, 2022, 2ª ed., p. 584.
[11] Ob. cit., p. 262.
[12] Ob. cit., p. 262.
[13] Ob. cit., p. 252.
[14] Sendo certo que, apesar de alegar que o único ativo da recorrida é o hotel relativamente ao qual esta contraiu financiamento bancário de €7M e que atualmente não gera rendimentos, o recorrente não alega que a recorrida já se encontra em atual situação de incumprimento, sendo certo que também nada esclarece sobre os meios com os quais até à data a recorrida cumpre a prestação bancária emergente daquele financiamento, no valor mensal de € 48.000,00.
[15] Processo nº 3303/2006-1, disponível na página da dgsi.