Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL CRISTINA GAIO FERREIRA DE CASTRO | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO GARANTIAS DO PROCESSO CRIMINAL NOTIFICAÇÃO ELEMENTOS ESSENCIAIS NULIDADE ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - A decisão administrativa tem necessariamente de revestir-se de garantias processuais muito próximas das previstas para o processo penal, prevendo o artigo 41º, n.º 1, do RGC a aplicação subsidiária da legislação processual penal. II - Quando a notificação efetuada em cumprimento do disposto no artigo 50º do RGC não fornecer todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer os aspetos relevantes, de facto e de direito, para a decisão ocorre nulidade sanável, que é arguível no prazo de 10 dias, perante a própria administração ou, judicialmente, mediante a impugnação da decisão administrativa, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 105º, n.º 1, 120º, n.ºs 1 e 3, al. c), e 283º, n.º 3, do CPP e 41º, n.º 1, do RGC; III - No âmbito da decisão administrativa em matéria de ilícito contraordenacional não se colocam com a mesma profundidade e grau de exigência as necessidades de fundamentação impostas à elaboração da sentença penal. IV - Se a alteração da qualificação jurídica operada na decisão judicial já havia sido suscitada na defesa materializada na impugnação judicial não há lugar à comunicação prevista no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. - RELATÓRIO 1. - No Processo n.º ….5TNLSB, a correr termos no Juízo Marítimo – Juiz 2, do Tribunal Marítimo de Lisboa, por sentença de 28.11.2022 foi julgada improcedente a impugnação judicial deduzida por AR e VN Lda.’ contra a decisão proferida pelo Senhor Comandante da Capitania do Porto de Setúbal no processo de contra-ordenação n.º …/19, que aplicou ao primeiro arguido a coima de €275,00 e à sociedade arguida a coima de €425,00. 2. - Inconformados com tal decisão, dela vieram os arguidos interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo que, no termo da motivação, formularam as seguintes conclusões e petitório [transcrição]: I- A douta sentença não se pronunciou sobre o facto do auto de noticia e da comunicação que acompanhou a sua notificação aos arguidos não conterem a comunicação integral dos factos imputados aos arguidos, nomeadamente a sua caracterização subjetiva, elementos que se reputam imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contraordenacionalmente relevante. II- Tal omissão de pronúncia determina a nulidade da sentença prevista no artigo 379º nº 1 c) do CPP, o que se invoca. III- Também da decisão administrativa, apesar das frases citadas na douta sentença, omite a caracterização subjectiva dos factos na conduta dos arguidos. IV- Assim, caso não seja considerado o arguido no ponto precedente, este Tribunal da Relação deverá revogar a douta sentença e invalidar a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações], o que se requer. V- Refere a decisão final que os arguidos violaram o nº 2 do artigo 68º do DL 280/2001 e que esse facto é punível pelo artigo 79º do mesmo diploma. VI- A douta sentença recorrida, contrariando o apontado na decisão condenatória, indica que os arguidos violaram a norma prevista pelo art.º 16º, 1, c), e 3, do DL. No 149/2014, de 10/10. VII- Ou seja, a douta sentença, em vez de revogar a sanção nos termos solicitados pelos arguidos, veio aplicar uma sanção por violação de norma distinta à indicada na acusação. VIII- Ora, confrontando o teor do DL 280/2001, de 23.10 (aplicado na decisão administrativa) com o teor do D.L. 149/2014 (o aplicado na decisão recorrida) temos que é grande a diferença entre estes nomeadamente no que respeita aos responsáveis pela infracção, ao âmbito da sua aplicação quanto ao tipo de embarcações e ao processo administrativo tendente à fixação da lotação de segurança. IX- Assim sendo, só poderá concluir-se que a alteração da qualificação jurídica operada foi relevante para a decisão da causa e, teria de ter sido comunicada nos termos e para os efeitos do artigoº 358º nº 1 e 3 do C.P.P. X- Não o tendo sido, ocorre mais uma nulidade, que se invoca. XI- A acusação tinha que alegar e demonstrar, sem sombra de dúvidas, que a arguida VN estava a exercer uma animação turística mediante a utilização de uma embarcação com fins lucrativos, numa modalidade distinta do aluguer sem tripulação e que a embarcação em causa tinha uma determinada lotação de segurança, fixada previamente, e que não estava a ser cumprida. XII- A acusação não logrou provar tudo o que acima se indicou. XIII- Nem o auto de notícia, nem a decisão final da entidade instrutora nem a douta sentença referem qual a modalidade da actividade marítimo turística que era exercida. XIV- A acusação sempre teria que alegar e demonstrar que os arguidos exerciam, na embarcação dos autos, a actividade marítimo turística na modalidade de aluguer com tripulação. XV- Sem a prova de que era esta a modalidade em causa nunca poderia a douta sentença concluir pela violação da norma citada uma vez que a mesma só se aplica na modalidade de aluguer com tripulação. XVI- De qualquer forma, não existindo qualquer certeza quanto à natureza da actividade efectivamente exercida, sempre deviam os arguidos ter sido absolvidos. XVII- A douta sentença nunca poderia ter dado como provado que: em 02/06/2016 foi emitido o Certificado de Lotação de Segurança que exige, no mínimo, dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro Patrão de Costa. XVIII- Esse documento, de folhas 139, só foi assinado pelo Sr. Capitão do Porto em 24 de Junho de 2016, pelo que só se pode considerar emitido após essa data, a da sua subscrição, até essa data, o documento em causa não era qualquer certificado. XIX- Seguindo os passos indicados pela lei, arguida VN, tinha apresentado, em 24 de Maio de 2016, o requerimento previsto no nº 4 do artigo 9º do DL 149/2014 que juntou sob o doc. 2 da impugnação e cuja matéria foi dada como provada, com a sua proposta de lotação de segurança. XX- Nos termos do nº 6 do artigo 9º do DL 194/2014, a lei considera que a entidade competente para a fixação da lotação de segurança se pronunciou favoravelmente em relação ao pedido de fixação da lotação de segurança apresentado pela arguida se nada disser 10 dias úteis após o pedido lhe ser apresentado. XXI- Como tal foi alegado, a douta sentença teria que ter verificado que a Capitania, no prazo legal de 10 dias úteis, nada respondeu. XXII- Ou seja, o prazo de 10 dias úteis terminou no dia 7 de Junho de 2016, data em que, nos termos da disposição citada e do artigo 130º do CPA ocorreu o deferimento tácito do requerimento de lotação de segurança apresentado pela arguida. XXIII- Assim, por ter ocorrido o deferimento tácito do pedido da arguida, no dia dos factos, Julho de 2019, a embarcação em causa sempre estaria a navegar com a lotação mínima de segurança fixada ou seja: 1 patrão local, sendo irrelevante o certificado de lotação citado pela sentença uma vez que foi emitido em data posterior ao deferimento tácito da lotação apresentada pela arguida e não revogou, de forma expressa, esse acto tácito. XXIV- Estas razões determinam, só por si, que a impugnação tivesse sido considerada procedente uma vez que a embarcação não violou a lotação de segurança fixada pelo deferimento tácito. XXV- A aplicação ao caso dos autos do disposto no DL 149/2014 nunca determinaria a aplicação de duas coimas, uma ao timoneiro e outra ao proprietário da embarcação. XXVI- Apenas o proprietário da embarcação fica sujeito a coima, uma vez que os dispositivos sancionatórios desta legislação não prevêem a responsabilidade solidária. XXVII- O Tribunal recorrido, sem qualquer fundamentação e sem ter apurado a situação económica dos arguidos, decidiu fixar em 4 UCs o valor da taxa de justiça a pagar, por cada arguido. XXVIII- Tal valor, além de injustificadamente excessivo, ultrapassa o valor máximo de 374,10 euros fixado pelo nº 4 do artigo 93º do RGOC. XXIX- Além disso, o valor da taxa de justiça é referente ao processo e não a cada arguido uma vez que o processo é o mesmo. XXX- Também quanto a este aspecto deve a douta decisão ser revogada e as custas fixadas de acordo com os critérios legais e com os limites da lei. XXXI- A douta sentença violou o principio do in dubio pro reo, não conheceu de toda a matéria que lhe foi colocada pela defesa, tem insanáveis contradições quanto à matéria de facto e de direito e violou o disposto nos artigos 121º, 122º, 127º, 358º, 379º nº 1 c), 410.º n.º 2, do CPP, 3º, 4º do DL 108/2009, 3º e 8º nº 6 e 9º do DL 149/2014 e 41º, 130º do CPA e nº 4 do artigo 93º do RGOC. Face ao exposto deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que revogue a decisão administrativa e absolva os arguidos» 3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões que infra se transcrevem: «1. Tanto as pessoas singulares, como as coletivas, não se conformando com a sentença condenatória podem impugná-la judicialmente após terem sido notificadas, apresentando por escrito o respetivo recurso onde constem alegações e conclusões, dirigido ao Tribunal competente 2. Acontece que, apesar do alegado pelos recorrentes, a sentença ora impugnada, não padece de qualquer nulidade, uma vez que apreciou todas as questões suscitadas, durante a fase administrativa do processo contraordenacional, nomeadamente o Auto de Notícia, a notificação e a decisão administrativa. 3. Tendo esta concluído pela inexistência de qualquer nulidade, pois que foram participados aos arguidos, aqui recorrentes, todos os elementos de facto e de direito que permitiram gizar a sua defesa. 4. Com efeito do Auto de Notícia constam todos os factos (dia, hora, local, circunstâncias) que constituem contraordenação. 5. Assim como, resulta do mesmo a referência ás normas que punem a título de dolo. 6. Acresce que quanto à notificação prescreve o artigo 50 do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que: «Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.» 7. Referindo a sentença que «Na fórmula utilizada pelo Assento n.º 1/2003, de 16-10-2002, do Supremo Tribunal de Justiça, os direitos de defesa e audiência assegurados no âmbito do processo contra-ordenacional implicarão, em síntese, que ao arguido seja dada previamente a conhecer «a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito.». 8. Ainda de acordo com a Jurisprudência fixada neste Assento (sufragado nomeadamente pelos Acórdãos da Relação do porto de 10.01.2007 e Relação de Évora de 05.04.2022) «a omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação (…). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa (…). Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objeto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada.» 9. Ou seja, no caso de a notificação para exercício do direito de defesa em sede administrativa não fornecer todos os elementos necessários para que os arguidos fiquem a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o que não ocorreu, o vício será o da nulidade sanável, arguível pelo arguido/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação. Porém, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada. 10. Ora, muito embora os arguidos, no seu requerimento de recurso, tenham invocado tal nulidade, também não deixaram de negam a factualidade ínsita na decisão administrativa. 11. Assim, se existisse alguma irregularidade/nulidade, o que não se concebe, deve a mesma ser considerada sanada. 12. Já quanto á decisão administrativa, apesar dos recorrentes invocarem a omissão da caracterização subjetiva dos factos na conduta dos arguidos, verifica-se que, da decisão administrativa condenatória resulta que: «Analisados os factos… praticaram ilícitos de mera ordenação social, empreendendo conduta, bem sabendo que a sua acção poderia resultar em facto punível, conformando-se com ele, pelo que, ao fazê-lo, considero que agiram com dolo directo…» 13. Sendo que, para além do exposto a sentença se pronunciou no sentido de que: «No caso dos autos, a análise da decisão recorrida revela que a mesma é completa a respeito dos factos que integram os elementos subjectivo do tipo contra-ordenacional imputado assim como a culpa dos Arguidos. E mais à frente «Assim, resulta claro dos elementos probatórios constantes dos autos que, os arguidos versados no exercício das actividades marítimo-turísticas, com recurso a embarcações de recreio, como qualquer pessoa medianamente informada, são conhecedores das normas e regulamentos em vigor, bem sabendo, que quando as embarcações em actividade marítimo-turística se encontram a navegar, têm que ser observadas e executadas cautelosamente todas as normas e regras de segurança da navegação, devendo manter a bordo toda a documentação, meios de segurança e socorro, devidamente inspecionados e validados, assim como, cumprir escrupulosamente o estabelecido no Certificado de lotação de Segurança, pelo que, ao infringir reiteradamente, navegando com embarcação sem possuir marinheiro, num claro desrespeito pelas leis e normas estabelecidas, atenta contra o princípio da igualdade para com todos os operadores MT, que cumprem na íntegra os seus deveres e obrigações, bem como, contra os mecanismos reguladores da actividade e em particular contra a segurança da navegação, colocando em risco os próprios utentes dos serviços.» Estes trechos da decisão recorrida evidencia à saciedade os elementos cognitivo e volitivo das acções típicas imputadas aos Arguidos.» 14. Por sua vez, acresce salientar que ficou provado, nomeadamente que: «a) A sociedade ‘VN, Lda.’ é proprietária da embarcação de recreio ‘VN III’, com o conjunto de identificação 4614SB4 (cfr. fls. 15 e 138) e ostentando o dístico ‘MT’ (cfr. fls.2). c) O certificado de lotação de segurança da referida embarcação, emitido em 02/06/2016 pela Delegação Marítima de Sesimbra da Autoridade Marítima Nacional, exige um mínimo de dois tripulantes, sendo um o marinheiro e outro com a categoria mínima de patrão de costa, tendo como número máximo de pessoas a bordo 20. (cfr. fls. 3 e 37) d) No dia 17/07/2019, pelas 12:30 horas, em águas interiores marítimas junto à linha de costa, defronte da praia da Ribeira do Cavalo, Sesimbra, nas coordenadas geográficas Lat:38º25.937 N/Long. 009º07.270W Datum (WGS84), a embarcação ‘VN III’, encontrava-se a navegar junto à linha de costa sob o governo do arguido AR, único tripulante a bordo da mencionada embarcação, de propriedade da sociedade ‘VN’, a efectuar o passeio de um grupo de 16 pessoas. (cfr. doc. 2 auto de noticia). e) O Arguido AR é, juntamente com JS, sócio gerente da sociedade Arguida ‘VN, Lda.’ (…) f) O Certificado de Lotação de Segurança foi exibido por AR na data da fiscalização. (cfr. fls. 2).» 15. Ora, o certificado de lotação tem em vista garantir as boas condições de navegabilidade: área de navegação e tipo de atividade a que a embarcação se destina; tipo, características e requisitos técnicos da embarcação; qualificação profissional dos tripulantes, bem como garantir a segurança da navegação, dos tripulantes, dos passageiros, da embarcação e das cargas ou capturas, bem como a proteção do meio ambiente marinho. 16. Deste modo, não estava garantida a segurança da navegação, dos tripulantes e passageiros, das cargas e capturas, bem como a proteção do meio marinho, uma vez que o único marítimo era patrão de costa, faltando um marinheiro. Não estando, portanto, em conformidade com o Certificado de lotação. 17. Constando ainda como factos provados que o arguido quis e soube comandar a dita embarcação sem estar acompanhado do outro elemento que compunha a tripulação da mesma e a sociedade arguida quis e facultou a saída da referida embarcação, sabendo que a mesma iria ficar a navegar apenas com um tripulante a bordo. 18. Não tendo ficado provado que a embarcação em causa tivesse sido alugada sem tripulação. 19. De facto, em termos de produção e valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efetuada pelo Código de Processo Penal, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador. 20. Encontrando-se a sentença na decisão de facto fundamentada de forma clara, de acordo com as regras de experiência comum e os critérios de razoabilidade e de lógica, oferecendo segurança para alicerçar uma conclusão acerca da verificação dos factos e na sua inclusão nos factos não provados, não espelhando de qualquer forma qualquer dúvida que conduzisse à aplicação do Princípio in dúbio pro reo (como pretendem os recorrentes) 21. Ademais, quanto á sanção aplicável, entendeu a Mmª. Juiz que «… a decisão administrativa tendo, incorretamente, chamado à colação os diplomas referentes à actividade profissional dos marítimos (RIM), aplicou a coima que decorre do disposto nos art.ºs 68º, 71º, 75º e 79º do DL 280/2001, de 23/10.» Sendo que «os diplomas que sustentaram a fixação das coimas aplicadas, não têm aplicação aos autos em apreço, pois tais diplomas prendem-se, concretamente, com a actividade dos marítimos e não com a actividade dos navegadores de recreio, que não são profissionais marítimos.» 22. Concluindo: «Assim sendo, a coima a aplicar pela falta da tripulação mínima de segurança exigida para a actividade em causa, seria a que resulta do nº 3, do art.º 16º do DL nº 149/2014, ou seja, no mínimo €300,00 para o arguido AR e €500,00 para a sociedade arguida. Contudo, tendo em consideração que nos termos do disposto no art.º 72-A, 1, do RGCOC a sanção aplicada não pode ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, mais não resta do que decidir pela improcedência da presente impugnação judicial, mantendo-se a decisão administrativa no que concerne às coimas aplicadas aos arguidos» 23. Ora, entendem os Recorrentes que tal alteração teria de ser comunicada aos arguidos. 24. Acontece que, se por um lado, o objeto do processo manteve-se inalterável, não se verificando qualquer alteração factual, por outro lado, como refere a sentença, os arguidos entendiam que «Por estar em causa uma embarcação de recreio afecta à actividade marítimo-turística, ficam excluídas as regras impostas pelos D.L n.º 280/2001 e 166/2019». 25. Em face do exposto entende-se que não havia necessidade de qualquer comunicação, nomeadamente quando essa alteração deriva da posição da defesa ou de uma forma equivalente de manifestação do mesmo tipo legal. 26. Finalmente, recorrem os arguidos da fixação de 4 UC do valor da taxa de justiça a pagar, uma vez que ultrapassa o valor máximo fixado no nº4 do art.º 93º. Do D.L. 433/82, de 27 de outubro 27. Ora, nesta linha já singrou a posição da Jurisprudência e Doutrina de que este nº4 do artigo 93 já havia sido revogado pelo Código das Custas Judiciais, aprovado pelo D.L. 224/96. Sendo, portanto, aplicável os limites das UC aí estabelecidos. 28. Afigurando-se adequada as 4 (quatro) UC aplicada. 29. Em face de tudo o exposto, conclui-se que os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão espelham os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituiu o substrato racional que conduziu à convicção do julgador. Nesta conformidade, entendemos que a sentença da Mma. Juiz «a quo» não merece qualquer reparo, sendo que procedeu a uma correta interpretação das normas atinentes ao caso em apreço. Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de v. Excelências, se deve negar provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida, assim se fazendo ao tão costumada JUSTIÇA». 4. - Na vista a que se refere o art.º 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto acolheu os argumentos aduzidos pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, emitindo parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. 5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo o recorrente apresentado resposta. 6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir. * II. – FUNDAMENTAÇÃO 1. - Decorre das disposições conjugadas dos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida. Especificamente no caso de recurso em matéria de contraordenação, regem os artigos 73º a 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Ademais, importa ter em atenção o decidido no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2019[1] - “Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”. Da conjugação do sobredito regime legal com a transcrita jurisprudência fixada extraem-se as seguintes conclusões relativamente aos processos de contraordenação: - A impugnação da decisão da autoridade administrativa não assume a natureza de um verdadeiro recurso, sendo antes a causa retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial – o tribunal; - O Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 41º, n.º 1, e 74º, n.º 4, do referido RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito[2]. Tendo em perspetiva o que vimos referindo sobre o concreto âmbito dos recursos de contraordenação e considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir: - Nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente a questão invocada pelos recorrentes na impugnação da decisão administrativa; - Nulidade da decisão administrativa por não conter a descrição dos factos atinentes ao elemento subjetivo da infração; - Nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal; - Enquadramento jurídico e responsabilidade contraordenacional dos recorrentes; - Fixação da taxa de justiça. 2. - A sentença recorrida tem o seguinte teor [transcrição]: I. Relatório. AR e VN Lda.’ impugnaram judicialmente a decisão proferida pelo Senhor Comandante da Capitania do Porto de Setúbal no processo de contra-ordenação n.º 355/19 e no âmbito do qual foi, ao primeiro arguido, aplicada a coima de €275,00 e à sociedade arguida a coima de €425,00 por terem navegado com uma embarcação que exercia a actividade marítimo-turística, na modalidade de aluguer com tripulação, sem ter a bordo a tripulação que constituía a lotação mínima de segurança exigida pelo competente certificado de lotação. Nas conclusões da sua minuta recursiva, os recorrentes sustentaram que o auto não de notícia não continha os elementos de facto e de direito necessários para que ficassem a conhecer os aspectos relevantes para a decisão, não foi efectuada a caracterização dos elementos subjectivos da conduta, ocorreu a omissão da audição dos arguidos na instrução contra-ordenacional, pelo que toda a instrução administrativa é nula. Por estar em causa uma embarcação de recreio afecta à actividade marítimo-turística, ficam excluídas as regras impostas pelos DLºs 280/2001 e 166/2019. A arguida VN apresentou em 14/05/2016 o requerimento previsto no nº4 do artigo 9º do DL 149/2014, propondo que a lotação de segurança da embarcação fosse, de 16/09 a 31/05 até às 3 milhas de um porto de navegação com 1 patrão local ou categoria superior e de 1/06 a 15/09 até às 10 milhas de um porto de abrigo ou 5 milhas da costa, navegação com 1 patrão local ou categoria superior, não tendo a capitania dado qualquer resposta no prazo de 10 dais, pelo que ocorreu o deferimento tácito e à data dos factos a lotação mínima de segurança fixada era de 1 patrão local. A embarcação tinha sido alugada na modalidade de aluguer sem tripulação. Por tudo isto, concluem pela procedência do recurso e pugnam pelas suas absolvições e consequente arquivamento dos autos. * A autoridade administrativa não revogou a referida decisão e remeteu os autos à Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, a qual os apresentou em juízo, tendo validado tal acto como acusação. * Foi proferido despacho de recebimento do recurso. Procedeu-se à audiência de julgamento com observância do formalismo legal. * O Tribunal é absolutamente competente. Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra oficiosamente conhecer. * Questões a decidir. As questões suscitadas nas conclusões do recurso de impugnação consistem em determinar se ocorreram as nulidades invocadas no processo administrativo e se os recorrentes praticaram os factos integradores da contra-ordenação pela qual foram condenados pela autoridade administrativa e se se mostra correcta a sua subsunção jurídica. * A nulidade do procedimento e da decisão administrativa. O regime processual do direito de mera ordenação. Um dos segmentos em que a autonomia do direito das contra-ordenações se afirma face ao Direito Penal é o do regime processual, o qual, apesar das ligações que mantém com o processo penal, distancia-se deste, quer na estrutura do processo, quer no regime de múltiplos actos processuais. De facto, concebido o direito das contra-ordenações como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória no sentido de dar maior eficácia à acção administrativa, o núcleo fundamental dos poderes sancionatórios, quer ao nível da iniciativa processual, quer ao nível decisório propriamente dito, é atribuído à Administração, relegando a intervenção judiciária para um nível de subsidiariedade. Incumbe deste modo à Administração o conhecimento das infracções e o respectivo sancionamento, sendo os tribunais chamados apenas a intervir, pela via do recurso de impugnação, em caso de discordância dos condenados relativamente às decisões proferidas, em primeiro nível, pela Administração. O processo contra-ordenacional é passível de se desdobrar em duas fases, sendo a primeira de verificação obrigatória. A saber: − A fase pré-judicial ou administrativa do processo, que vai da notícia da infracção à decisão proferida pela Autoridade Administrativa (art.ºs 33.º a 58.º do RGCOC); − A fase judicial, a qual compreende o conjunto de actos processuais que vão da interposição do recurso à decisão deste nos tribunais (art.ºs 62.º e ss. do RGCOC). A fase administrativa do processo – a única que agora importa cuidar – pode ser dividida em três grandes etapas. A saber: − Da notícia da infracção ao cumprimento do disposto no art.º 50.º do RGCOC; − Os actos subsequentes à intervenção prevista no referido art.º 50.º do RGCOC; − A decisão final. De entre o conjunto de actos que integram cada um dos referidos momentos da fase administrativa do processo contra-ordenacional, merecem especial atenção aqueles que se referem aos segundo e terceiro estádios referidos, atenta a questão suscitada pelos Recorrentes. O direito à audição e ao contraditório do arguido encontra-se previsto no art.º 50.º do RGCOC. Este normativo corresponde à consagração no plano ordinário do comando constitucional vertido no art.º 32.º, n.º 10, da Lei Fundamental, segundo o qual é inviável a aplicação de qualquer tipo de sanção contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade. Sem prejuízo dos demais direitos que outras normas constitucionais incluem no conjunto das garantias asseguradas aos arguidos em processos sancionatórios (cf. art.º 20.º da CRP), o alcance atribuível à norma do n.º 10 do art.º 32.º é, todavia, conforme tem acentuado a jurisprudência constitucional (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 344/93), o de que o processo contra-ordenacional, embora esteja envolto num conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, não é equiparável, contudo, ao processo penal e, nessa medida, não conduz, no plano da aplicação do direito ordinário, à directa transposição para o primeiro de todas e quaisquer regras expressamente previstas para o segundo, designadamente em termos de os elementos que este particularmente inclui se tornarem, só por isso, comuns àquele. Ou seja, o processo contra-ordenacional, por ser sancionatório, encontra-se subordinado ao reconhecimento de um conjunto de garantias que o aproximam do processo penal; mas tais garantias não são equivalentes ou equiparáveis às garantias asseguradas no âmbito do processo criminal, designadamente em termos de viabilizar a conversão daquela aproximação numa sobreposição integral de regimes. Significa isto que a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do seu art.º 32.º, para o processo criminal. Porém, o reconhecimento da inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é, ainda assim, conciliável com a necessidade de serem observados determinados princípios comuns, sendo que um desses princípios, transversal a todos os processos sancionatórios, será desde logo, por directa imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inserido num desenvolvimento processual em que o contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da actuação dos poderes públicos, Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 469/97. E, sob a epígrafe “Direito de audição e defesa do arguido”, de facto, o art.º 50.º do RGCOC estabelece que «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.» Está pois, legalmente incrementado o direito de audição e de defesa do arguido no processo contraordenacional relativamente aos factos que lhe são imputáveis e a sua subsunção jurídica. Na fórmula utilizada pelo Assento n.º 1/2003, de 16-10-2002, do Supremo Tribunal de Justiça, os direitos de defesa e audiência assegurados no âmbito do processo contra-ordenacional implicarão, em síntese, que ao arguido seja dada previamente a conhecer «a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito.» A intervenção prevista no art.º 50.º do RGCOC surge, assim, como um momento fulcral do processo, situado entre a investigação preliminar e a decisão, assumindo-se como o espaço natural da defesa e do contraditório. O regime geral das contra-ordenações não especifica a forma através da qual a audição deva ser efectuada: o que exige é que ao arguido seja dado conhecimento da factualidade que lhe é imputada e da respectiva qualificação jurídica. Tal conhecimento tanto pode ser levado a cabo numa audição formal, como através da notificação de uma peça processual – uma acusação - que integre aqueles elementos, ou da notificação dos elementos do processo que os contenham. Na sequência dessa audição, o arguido pode requerer quaisquer diligências probatórias que repute de relevantes para a sua defesa e ponham em causa a factualidade que lhe é imputada, pedido esse que deve passar pelo crivo da autoridade administrativa, que as deferirá, salvo no caso de manifesta impertinência das mesmas. Nesse contexto, e por forma a salvaguardar a integridade do princípio contido no mencionado art.º 32.º, n.º 10, da CRP, o arguido beneficia do direito de participar na produção dos meios de prova por si solicitada, quer pessoalmente, quer através do seu defensor. * No caso vertente, a análise dos autos evidencia a seguinte realidade processual relevante: a) A data da diligência que deu início a estes autos e que consta do ‘Auto de Notícia’ de fls. 2 é de 17/07/2019. Daí consta que o Agente autuante, subchefe PM, C., acompanhado por P. , Chefe PM, a bordo da lancha semirrígida ‘Espadarte’, procedeu à fiscalização da embarcação ‘VN III’, governada por AR, único tripulante que se encontrava a navegar junto à linha de costa nas imediações da praia Ribeiro do Cavalo, a efectuar passeio a um grupo de 16 passageiros, no âmbito da actividade Marítimo-Turistica. Perante a análise do documento ‘Certificado de Lotação de Segurança da Embarcação de Recreio em Actividade Marítimo-Turistica, constatou-se que o número mínimo de tripulantes a constituir a lotação de segurança é composto por dois elementos, sendo um com a categoria mínima de patrão de costa e o outro de marinheiro. Confrontado AR da possibilidade de se encontrar no local o elemento em falta, o mesmo referiu que não se encontrava mais ninguém habilitado a bordo. Assim, AR, na qualidade de responsável pelo governo da citada embarcação de recreio, por operar com a mesma, no exercício da actividade marítimo-turística, sem cumprir o estipulado no Certificado de lotação de Segurança, bem como a Companhia proprietária da embarcação, infringiram as disposições constantes nos números 1 e 2 do artigo 68, Capítulo VII, do Decreto-Lei nº 280/2001, de 23 de outubro, com as alterações dadas pelo Decreto-Lei 206/2005, de 28/ de Novembro, o que nos termos do nº1 do artigo 79º constitui uma contraordenação punível com coima montante mínimo de €249,40 e máximo de €3.740,98, sendo que os montantes máximos das coimas, quando aplicáveis a pessoas colectivas, são elevadas para o triplo, nos termos do nº5 do citado artigo. Do auto de notícia consta uma fotografia do certificado de Segurança, datado de 02/06/2016. b) No dia 28/08/2019, o Comando Local de Setúbal da Polícia Marítima remeteu a cada um dos Recorrentes uma notificação, recebida pelo Arguido AR em Setembro de 2019 (dia ilegível) e recebida pela VN também em Setembro de 2019 (dia 19) – com o seguinte teor relevante: Ao Arguido AR: «Nos termos da alínea b), nº1 e 2 do artigo 113º´, do Código de processo penal, conjugado com os artigos 46º, 47º e 50º do Regime Geral das contraordenaçãoes (RGCO), aprovado pelo D/L nº 433/82, de 27/10, na sua actual redacção cujo texto foi republicado em anexo ao D/L nº 244/95, de 14/09, a partir do terceiro dia útil a contar do registo da presente notificação nos CTT, fica V.Exa. notificado, de que deve considerar-se arguido no processo de contraordenação acima identificado, pelo motivo e infração, abaixo descriminada, conforme consta do Auto de noticia, cuja cópia se junta e de que dispõe de 10 (dez) dias úteis, para se pronunciar, querendo, sobre os factos que lhe são imputados e sobre a (s) sanção (ões) em que incorre, incluindo eventual (ais) sanção (ões) acessórias que venham a ser aplicadas pela Autoridade Administrativa competente, podendo fazê-lo oralmente comparecendo no Comando local da polícia Marítima de Setúbal – Secção de justiça, através de marcação prévia com o Agente AP (…) ou por escrito, facultando toda e qualquer documentação probatória de que disponha, (…), assim como testemunhas, se as tiver, até um número de três, juntando, também elementos comprovativos da sua situação económica, (cópia da declaração do IRS), indicação de eventuais benefícios que possa ter retirado da prática da contraordenação (…)» «Fica ainda o arguido notificado de que futuras notificações serão efectuadas por via postal simples com prova de depósito para a presente morada, exceto se indicar outra (…)» LEGISLAÇÃO INFRINGIDA E COIMA APLICÁVEL: «Assim, AR, timoneiro responsável pelo governo da embarcação de recreio denominada “ … III”, por ter navegado no exercício da actividade Marítimo Turística, sem satisfazer os requisitos relativos ao estipulado no Certificado de Lotação de Segurança, violou o disposto no nºs. 1 e 2, do artigo 68º, do Regulamento de Inscrição Marítima (RIM), aprovado pelo D/L nº 280/2001, de 23/10, com as alterações introduzidas pelo D/L nº 206/2005, de 28/11, facto que, de acordo com o nº 1, do artigo 79º, do mencionado Diploma constitui contraordenação punível com a coima a graduar de €249,40 a €3.740,98.» À Arguida ‘VN, Lda.’, na pessoa do seu sócio gerente : Nos termos da alínea b), nº1 e 2 do artigo 113º´, do Código de processo penal, conjugado com os artigos 46º, 47º e 50º do Regime Geral das Contraordenaçãoes (RGCO), aprovado pelo D/L nº 433/82, de 27/10, na sua actual redacção cujo texto foi republicado em anexo ao D/L nº 244/95, de 14/09, a partir do terceiro dia útil a contar do registo da presente notificação nos CTT, fica V.Exa. notificado, de que a empresa VN, Lda., proprietária da embarcação de recreio denominada “… III”, com o conjunto de identificação 4614SB4, e por si representadada foi constituída arguida no processo de contraordenação acima identificado, pelos motivos e infrações, abaixo descriminada, conforme consta do Auto de Noticia, cuja cópia se junta e de que dispõe de 10 (dez) dias úteis, para se pronunciar, querendo, poderá nomear um legal representante para comparecer no Comando Local da Policia Marítima de Setúbal – Serviço de Justiça, (…) a fim de se pronunciar sobre os factos que são imputados à empresa (…). - Em alternativa, poderá ainda, no período acima referido, pronunciar-se por escrito sobre a infração que lhe é imputada, facultando toda e qualquer documentação probatória de que disponha e testemunhas, se as tiver, até um número de três, juntando, também elementos comprovativos da sua situação económica, (cópia da declaração do IRS), indicação de eventuais benefícios que possa ter retirado da prática da contraordenação (…)» «Fica ainda o arguido notificado de que futuras notificações serão efectuadas por via postal simples com prova de depósito para a presente morada, exceto se indicar outra (…)» LEGISLAÇÃO INFRINGIDA E COIMA APLICÁVEL: «Assim, a empresa VN Lda., proprietária da embarcação de recreio supra citada, por ter permitido que a mesma navegasse e operasse no exercício da actividade Marítimo Turística, sem satisfazer os requisitos relativos ao estipulado no Certificado de Lotação de Segurança, violou o disposto no nºs. 1 e 2, do artigo 68º, do Regulamento de Inscrição Marítima (RIM), aprovado pelo D/L nº 280/2001, de 23/10, com as alterações introduzidas pelo D/L nº 206/2005, de 28/11, facto que, de acordo com o nº 1, do artigo 79º, do mencionado Diploma constitui contraordenação punível com a coima a graduar de €249,40 a €11.222,94.» Daqui se constata que durante a fase administrativa dos autos foram participados aos Recorrentes todos os elementos de facto e de direito que lhe permitiriam gizar a sua defesa relativamente a uma actuação objectivamente muito específica: navegação da embarcação … III, afecta à actividade Marítimo Turística em desconformidade com o Certificado de Lotação de Segurança. Dos autos consta ainda que tanto o Recorrente AR, como a Recorrente VN, Lda. apresentaram as suas defesas, negando a prática dos factos, mas não requerendo a inquirição de qualquer testemunha, cfr. fls. 12 a 14 e 24 a 26. Foram inquiridos C. e P., os dois agentes da Polícia Marítima que presenciaram os factos em causa, cfr. fls. 32 e 33. Conforme resulta da factualidade elencada, a Autoridade Administrativa notificou devidamente os Recorrentes para indicarem a prova e esclarecerem os factos, caso assim o entendessem. Contudo, nada foi por aqueles requerido. Dos autos constam os depoimentos das duas testemunhas que presenciaram os factos – os Agentes da Polícia Marítima. Os Recorrentes têm acesso aos mesmos e desses se constata aquilo que resulta do auto de notícia, assim sendo não se vislumbra que tenha sido preterido qualquer direito dos Arguidos, e inexiste qualquer vício procedimental. Nestes termos, e com tais fundamentos, julgo improcedente a excepção da nulidade do procedimento administrativo por preterição do direito de defesa. A nulidade da decisão administrativa por falta de indicação dos factos provados reveladores dos elementos subjectivos das infracções imputadas e o caso vertente. Um dos outros casos de nulidade da decisão administrativa fixados pelo n.º 1 do art.º 379.º do CPP (ex vi art.º 41.º do RGCOC) é o que resulta da al. a) daquele número e ocorre quando «(…) não contiver as menções referidas no n.º 2 (...) do artigo 374.º (...)», entre as quais se conta a «(...) enumeração dos factos provados (...)». A respeito da observância deste requisito da decisão condenatória – descrição dos factos imputados – pode discutir-se se o mesmo se concretiza com uma indicação menos rigorosa do que aquela que deve ser feita na sentença ou, pelo contrário, se é necessário algo mais, como o relato preciso e não genérico, concreto e não conclusivo, que recorte com nitidez os factos que são relevantes para a caracterização do comportamento contra-ordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar. Crê-se que a interpretação puramente literal do art.º 58.º, n.º 1, al. b), do RGCOC aponta decisivamente no segundo sentido, já que refere expressamente a «descrição dos factos imputados», em termos aliás semelhantes aos preconizados pelos art.ºs 374.º, n.º 2 do CPP («enumeração dos factos provados») e 659.º, n.º 2, do CPC («discriminar os factos que considera provados») para as sentenças criminais e cíveis, respectivamente. * No caso dos autos, a análise da decisão recorrida revela que a mesma é completa a respeito dos factos que integram os elementos subjectivo do tipo contra-ordenacional imputado assim como a culpa dos Arguidos. Com efeito, e no que diz respeito ao elemento subjectivo, a Autoridade Administrativa considerou que: − A arguida, «O arguido AR e a empresa arguida VN, Lda., quiseram e souberam usar a embarcação de recreio denominada “…III”, com o conjunto de identificação …, no exercício da actividade marítimo-turística, em passeio com 16 passageiros, sem cumprir a lotação de segurança, faltando 1(um) tripulante com a função de Marinheiro». E mais à frente «Assim, resulta claro dos elementos probatórios constantes dos autos que, os arguidos versados no exercício das actividades marítimo-turísticas, com recurso a embarcações de recreio, como qualquer pessoa medianamente informada, são conhecedores das normas e regulamentos em vigor, bem sabendo, que quando as embarcações em actividade marítimo-turística se encontram a navegar, têm que ser observadas e executadas cautelosamente todas as normas e regras de segurança da navegação, devendo manter a bordo toda a documentação, meios de segurança e socorro, devidamente inspecionados e validados, assim como, cumprir escrupulosamente o estabelecido no Certificado de lotação de Segurança, pelo que, ao infringir reiteradamente, navegando com embarcação sem possuir marinheiro, num claro desrespeito pelas leis e normas estabelecidas, atenta contra o princípio da igualdade para com todos os operadores MT, que cumprem na íntegra os seus deveres e obrigações, bem como, contra os mecanismos reguladores da actividade e em particular contra a segurança da navegação, colocando em risco os próprios utentes dos serviços.» Estes trechos da decisão recorrida evidencia à saciedade os elementos cognitivo e volitivo das acções típicas imputadas aos Arguidos. E ainda que assim não se entendesse, sempre se poderia dizer que apenas a falta absoluta (e não a parcial) da realidade respeitante a tais elementos conduziria à arguida nulidade, o que de todo não sucedeu no caso vertente, porquanto a sobredita factualidade descreve variadíssimos acontecimentos da vida real e não meros juízos conclusivos ou de direito. Improcede, pois, também esta invocada nulidade. * Nestes termos, e com tais fundamentos, julgo improcedentes todas as nulidades do procedimento e da decisão administrativa arguidas na impugnação judicial em apreço. * II. Fundamentação de facto. Factos provados. Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa: a) A sociedade ‘VN, Lda.’ é proprietária da embarcação de recreio ‘… III’, com o conjunto de identificação … (cfr. fls. 15 e 138) e ostentando o dístico ‘MT’ (cfr. fls.2). b) O auto de notícia junto aos autos foi elaborado em data posterior à ocorrência dos factos. (Disse próprio Carlos C. que foi o agente autuante e tendo sido o autor da elaboração do auto de notícia constante de fls. 2). c) O certificado de lotação de segurança da referida embarcação, emitido em 02/06/2016 pela Delegação Marítima de Sesimbra da Autoridade Marítima Nacional, exige um mínimo de dois tripulantes, sendo um o marinheiro e outro com a categoria mínima de patrão de costa, tendo como número máximo de pessoas a bordo 20. (cfr. fls. 3 e 37). d) No dia 17/07/2019, pelas 12:30 horas, em águas interiores marítimas junto à linha de costa, defronte da praia da Ribeira do Cavalo, Sesimbra, nas coordenadas geográficas Lat:38º25.937 N/Long. 009º07.270W Datum (WGS84), a embarcação ‘… III’, encontrava-se a navegar junto à linha de costa sob o governo do arguido AR, único tripulante a bordo da mencionada embarcação, de propriedade da sociedade ‘VN’, a efectuar o passeio de um grupo de 16 pessoas. (cfr. doc. 2 auto de noticia). e) O Arguido AR é, juntamente com JS, sócio gerente da sociedade Arguida ‘VN Lda.’ (cfr. Certidão Permanente junta na audiência de julgamento, na sequência do arguido AR recusar responder a tal questão, quando inquirido sobre dados de identificação). f) O Certificado de Lotação de Segurança foi exibido por AR na data da fiscalização. (cfr. fls. 2). g) O Certificado de Lotação de Segurança exige a bordo dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro, no mínimo, Patrão de Costa, com uma lotação máxima de 20 pessoas a bordo. (cfr. fls. 3 e 37); h) O arguido AR era, nada data dos factos, portador da carta de Patrão de Alto Mar. (este facto resultou do depoimento credível do Chefe da Polícia Marítima, C., que presenciou os factos, por ter sido o agente fiscalizador). i) No processo administrativo nº …/19 pendente contra a sociedade ‘VN Lda.’ decorre das averiguações a decorrer, que ocorreu um sinistro nesta embarcação de recreio em causa ‘… III’, quando a mesma se encontrava a ser utilizada em passeio no exercício da actividade marítimo-Turística, e o responsável pelo comando, à data AS, navegando com utentes a bordo em condições análogas a estes autos, sem marinheiro a bordo, ficou indisposto e faleceu de morte súbita, no mar e ao comando da embarcação. (cfr. cota de fls. 38). j) A 24/05/2016 a sociedade Arguida apresentou, no que respeita à embarcação ‘… III’, requerimento ao Capitão do Porto de Setúbal pedindo, entre outros, que no período compreendido entre 01/062016 e 15/09/2016 fosse permitida a navegação até 10 milhas de um porto de abrigo e 5 milhas da costa – 1 patrão local ou categoria superior e a navegação para lá das 10 milhas e nunca superior a 20 milhas de um porto e para lá das 5 milhas da costa e nunca superior das 6 milhas da costa – um patrão de costa ou categoria superior. (cfr. fls. 137). k) Em 02/06/2016 foi emitido o Certificado de Lotação de Segurança que exige, no mínimo, dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro Patrão de Costa (fls. 139 e que corresponde ao exibido pelo Arguido AR na data dos factos). l) O arguido AR quis e soube comandar a dita embarcação sem estar acompanhado do outro elemento que compunha a tripulação da mesma. m) A sociedade arguida ‘VN’ quis e facultou a saída da referida embarcação em passeio de 16 passageiros, sabendo que a mesma iria navegar apenas com um tripulante a bordo. n) Os arguidos agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. o) O arguido AR não tem antecedentes contra-ordenacionais na matéria em discussão, (fls.38), contudo tem um processo pendente a correr termos contra si, pelos mesmos factos (fls. 148). p) A arguida ‘VN’ tem três processos pendentes por infracção à lotação de segurança, e um outro em que procedeu ao pagamento voluntário da coima. (fls. 136.) * Factos não provados. Da discussão da causa resultaram não provados todos os factos relevantes que foram alegados e que estão em oposição com os acima assentes, designadamente, que: 1. A embarcação em causa foi alugada sem tripulação. * Motivação. Na fixação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal procedeu à valoração global dos depoimentos das testemunhas inquiridas, no caso dos dois agentes da Polícia Marítima que depuseram com credibilidade e isenção sobre os factos constantes do auto de noticia e dos documentos juntos aos autos e referenciados supra. Estes dois agentes, mais esclareceram que o auto de notícia não é, geralmente, elaborado no próprio dia da fiscalização, mas sim em um dos dois dias seguintes. Os arguidos não quiseram prestar declarações e não arrolaram qualquer testemunha ou comprovativo da sua situação económica. * Os factos dados como não provados resultaram da falta de prova suficiente a corroborar os mesmos, designadamente que a embarcação tenha sido alugada sem tripulação, pois que da factura junta aos autos a fls. 95 não decorre que aquela tenha sido emitida a favor de quem quer que seja, nem que respeite ao dia e grupo em causa, para além de estranhamente corresponder ao original, pois que este é sempre entregue ao cliente, ficando a empresa prestadora de serviços com mera cópia. * III. Fundamentação de direito. Apurada a matéria de facto assente, cumpre agora proceder à respectiva subsunção jurídica. Aos recorrentes são imputadas as contra-ordenações de governo de embarcações sem respeitar a lotação mínima de segurança de tripulantes, prevista e punida no art.º 8º do Regulamento da Actividade Marítimo-Turística, aprovado pelo DL n.º 149/2014, de 10/10. * Apesar dos recorrentes terem referido que o auto de noticia não foi elaborado na hora dos factos, mas posteriormente e com informação sobre a tripulação mínima de segurança exigida para a embarcação ‘VN’, o certo é que não obstante tal, o auto de noticia dispõe de todos os elementos exigidos pelo disposto no art.º 243º, 1, a), b) e c) do CPP, assim como foi dado cumprimento ao art.º 50º do RGCOC, tendo-se garantido aos arguidos o exercício do direito de defesa. Sendo que o citado art.º 243º do CPP, expressamente refere que «Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) Os factos que constituem o crime; b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos.» Por outro lado, não foi coartada qualquer possibilidade de os arguidos se pronunciarem sobre a contra-ordenação que lhes era imputada, nos termos do citado art.º 50º do RGCOC, tendo ambos se pronunciado sobre a mesma, conforme claramente resulta dos autos. Assim sendo, nada há a apontar ao auto de notícia junto aos autos, aliás, como supra já se referiu. Posto isto, vejamos então se a conduta dos Recorrentes consubstancia ou não uma contra-ordenação por infracção do estipulado na 1ª parte do disposto no art.º 16º, 1, c), do RAMT (Regulamento da Actividade Marítimo-Turística) aprovado pelo DL. Nº 149/2014, de 10/10, e pelo facto de não terem a bordo o Certificado de Lotação de Segurança e terem timonado uma embarcação de recreio, no exercício da actividade marítimo-turística sem que o arguido AR estivesse permanentemente acompanhado de outro tripulante, o marinheiro, conforme o estabelecido no Certificado de Lotação de Segurança. Em causa está uma questão de segurança relacionada com a utilização de embarcações, como embarcação auxiliar, de actividades marítimo-turísticas (com fins comerciais), que há muito são preocupação do legislador, (vg. DL nº 564/80, de 06/12 e o DL nº 21/2002, de 31/01). Nos termos do disposto no art.º 2º, e), do RAMT, embarcação marítimo turística, é a embarcação auxiliar classificada para o exercício da actividade marítimo-turística. E, de harmonia com o disposto na alínea g) do mesmo preceito legal, «lotação de segurança», é o número mínimo de tripulantes fixado para cada embarcação, com o objectivo de garantir a segurança da embarcação e das pessoas embarcadas e a protecção do meio marinho. Por seu turno, o art.º 8º, 1, do diploma a que vimos fazendo referência, dispõe que a lotação de segurança das embarcações referidas nas alíneas a) a d) do artigo 3º. Que embarquem mais de 12 pessoas, excluindo a tripulação, só pode ser constituída por inscritos marítimos. E o nº 2, refere que ‘Em casos excepcionais ou de comprovada insuficiência de inscritos marítimos, a Direcção-Geral dos Recursos naturais, Segurança e Serviços marítimos (DGRM) ou os órgãos locais da DGAM, no âmbito das suas competências, podem autorizar que a lotação de segurança das embarcações marítimo-turísticas seja constituída por navegadores de recreio devidamente habilitados.’ Também o nº 5 dispõe que ‘Nas embarcações referidas na alínea e) do artigo 3º, a lotação de segurança deve ser constituída por inscritos marítimos ou por navegadores de recreio detentores de carta adequada ao tipo de embarcação e à área de navegação.’ No caso, a embarcação em causa é uma embarcação de recreio a que se refere a citada alínea e) do artigo 3, afecta à actividade Marítimo-Turística. Nos termos do art.º 9º, 1, a), a lotação de segurança é fixada de acordo com as características e a área de navegação das embarcações, sendo competentes para o efeito «os órgãos locais da DGAM, para todas as embarcações locais e para as embarcações de recreio do tipo 4 e 5», como é o caso da embarcação em causa nestes autos (embarcação tipo 4). Também decorre dos factos provados que a tripulação de segurança fixada para a embarcação em causa nos autos foi de 2 tripulantes, sendo um marinheiro e um patrão de costa. De harmonia com o disposto no art.º 16º, 1, c), do DL nº 149/2014, de 10/10, que constitui contraordenação a «utilização de embarcações que não satisfaçam as normas de segurança (...)». Dúvidas não há de que a exigência legal de se fixar um número de tripulação de segurança para as embarcações se prende com questões de segurança, não só da própria embarcação, como das pessoas embarcadas e da protecção do meio marinho (cfr. citado art.º 2º, g), do RAMT. Assim sendo, o desrespeito pelo que foi fixado como o número mínimo de tripulação para uma embarcação marítimo-turística, constitui uma contraordenação. No caso, a embarcação em causa estava afecta a uma actividade marítimo-turística, no caso o passeio. O arguido AR era o timoneiro daquela, pelo que a sua função era, antes de mais, garantir a segurança desta e de todos e cada um dos passageiros. Assim, obviamente que a existência de um segundo tripulante na embarcação, que possa intervir, a qualquer momento, em auxílio de qualquer um dos passageiros, implica uma segurança acrescida na actividade em causa, já que o outro tripulante necessariamente terá de ficar a assegurar a segurança da embarcação. Aliás, como se viu da factualidade provada, já anteriormente numa situação idêntica, o timoneiro veio a falecer repentinamente com os passageiros a bordo. Mais, se lermos o art.º 6º, 2, do DL 149/2014, verificamos que dali decorre que até as embarcações de apoio às principais terão de ser governadas por inscritos marítimos ou navegadores de recreio em número a definir pela DGAM e mesmo quando a embarcação principal estiver fundeada, essa norma de segurança terá de ser cumprida. Também, o Ac. da RL de 14/01/2020, disponível em www.dgsi.pt , citando esse mesmo preceito legal conclui: «Se assim é, em relação a embarcações de apoio que manterão sempre algum contacto com a embarcação principal, não se pode reconhecer a inutilidade da manutenção da lotação de segurança em embarcação fundeada quando um dos seus elementos está em mergulho, pois nesta situação o mesmo não manterá qualquer contacto com a embarcação. Embora a embarcação esteja fundeada, continuam a existir riscos para a sua segurança, para as pessoas embarcadas e para a protecção do meio marinho, pois os riscos para uma embarcação que está no mar não advêm, apenas, da sua navegação, mas também de circunstâncias exteriores à própria embarcação, nomeadamente outras embarcações e as próprias condições do mar. Não é, pois, inútil a permanência da lotação de segurança na embarcação quando está fundeada no mar em pleno exercício de actividade marítimo-turística.» Embora este Acórdão se reporte à actividade de mergulho, o certo é que um passeio marítimo pela costa é igualmente uma actividade marítimo-turística que implica risco e consequentemente acompanhamento devido dos seus passageiros na embarcação de auxílio. E, no caso, a mesma não tinha o número de tripulantes exigido pelo Certificado de Lotação de Segurança. É certo que AR, sendo, na data, titular da carta de Patrão de Alto Mar, podia governar uma embarcação de recreio do tipo 4, como era o caso da …III. Porém, não podia fazê-lo sem ter consigo a bordo o outro tripulante que, juntamente consigo, compunha a lotação de segurança daquela e a sociedade arguida bem sabia que a sua embarcação para os fins afectos a passeios costeiros marítimos, necessitava de ter a bordo dois tripulantes, que compunham a lotação de segurança fixada pela DGAM e cuja utilização temporária e tripulação tinham sido cedidas, onerosamente, pela sociedade arguida ao grupo que praticou tal actividade no dia 17 de Julho de 2019. Ademais se demonstrou que ambos os arguidos quiseram que a dita embarcação estivesse afecta à actividade marítimo-turística de passeio, sem estarem a bordo dois elementos que teriam de compor a tripulação mínima da mesma. E ainda que agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, sendo certo que não actuaram no âmbito de alguma circunstância que impusesse ou autorizasse esse seu comportamento. Não tendo cumprido esta regra de segurança, ambos os arguidos cometeram a contraordenação prevista e púnica pelo art.º 16º, 1, c), e 3, do DL. Nº 149/2014, de 10/10. ** Determinação da sanção concreta. A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação (art.º 18.º, n.º 1, do RGCOC). Por referência ao caso dos autos, a gravidade da contra-ordenação referida é acentuada, pois atenta contra bens ou interesses jurídicos relevantes: a vida e a integridade física de quem se encontra na embarcação, por um lado, e a segurança desta e da navegação em geral, por outro, devido à incapacidade de uma resposta pronta numa situação de emergência que a ausência de marítimos habilitados representa. A culpa dos arguidos é relevante porque os mesmos agiram com dolo directo. Desconhecem-se as suas condições sócio-económicas concretas. O benefício económico obtido com a comissão da infracção não foi apurado. Tudo visto, e tendo em conta que a sanção a aplicar reveste-se de natureza preventiva geral e deve ser entendida como sendo uma especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, entende o tribunal que, face ao exposto, seria de aplicar ao recorrente uma coima que se situasse próximo do limite mínimo previsto na lei, fundando-se tal asserção na circunstância de a existência do presente processo e a sua efectiva condenação serem suficientes para que, de ora em diante, os arguidos venham a observar o dever legal de cuidado a que estão obrigados no exercício da sua actividade marítima. Assim deveria o arguido JL ser condenado no pagamento da coima de €300,00 e a sociedade VN na coima de €500,00. Contudo, a decisão administrativa tendo, incorretamente, chamado à colação os diplomas referentes à actividade profissional dos marítimos (RIM), aplicou a coima que decorre do disposto nos art.ºs 68º, 71º, 75º e 79º do DL 280/2001, de 23/10. Nessa sequência condenou o arguido AR no pagamento da coima de €275,00 e a arguida ‘VN Lda.’ no pagamento da coima de €425,00. Com se disse, os diplomas que sustentaram a fixação das coimas aplicadas, não têm aplicação aos autos em apreço, pois tais diplomas prendem-se, concretamente, com a actividade dos marítimos e não com a actividade dos navegadores de recreio, que não são profissionais marítimos. Por outro lado, em causa apenas está uma actividade marítimo-turística, no caso, passeio marítimo-turístico, a qual não exige que seja governada por inscritos marítimos, cfr. artigo 8º,5, do DL nº 149/2014. Assim sendo, a coima a aplicar pela falta da tripulação mínima de segurança exigida para a actividade em causa, seria a que resulta do nº 3, do art.º 16º do DL nº 149/2014, ou seja, no mínimo €300,00 para o arguido AR e €500,00 para a sociedade arguida. Contudo, tendo em consideração que nos termos do disposto no art.º 72-A, 1, do RGCOC a sanção aplicada não pode ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, mais não resta do que decidir pela improcedência da presente impugnação judicial, mantendo-se a decisão administrativa no que concerne às coimas aplicadas aos arguidos. * IV. DECISÃO: Nestes termos, e com tais fundamentos, decido julgar improcedente o presente recurso de impugnação e, com consequência, mantenho integralmente a decisão recorrida. Condeno ainda os recorrentes no pagamento das custas do presente processo, fixando em 4 (quatro) UC’s a taxa de justiça devida por cada um, nos termos do art.º 93.º, n.º 3, do RGCOC. Após trânsito, comunique à autoridade administrativa recorrida (art.º 70.º, n.º 4, do RGCOC). Proceda-se ao depósito da presente sentença. Notifique. * 3. - Apreciação do recurso - Nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente a questão invocada pelos recorrentes na impugnação da decisão administrativa; Alegam os recorrentes que a sentença incorre em nulidade, por não se ter pronunciado sobre o facto de o auto de notícia e a comunicação que acompanhou a sua notificação não conterem a comunicação integral dos factos que lhes são imputados, nomeadamente a sua caracterização subjetiva, imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contra-ordenacionalmente relevante, questão que suscitaram, tendo-se, antes pronunciado quanto aos elementos comunicados na decisão administrativa condenatória, matéria que não foi objeto de impugnação. Estabelece o artigo 379º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe nulidade da sentença: “1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º (…).” A omissão de pronúncia prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal traduz-se na ausência de posição ou de decisão, ou insuficiência desta, por parte do tribunal sobre as matérias cujo conhecimento a lei impõe – incluindo as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação –, e não sobre aquelas que as partes, subjetivamente, entendam relevantes para apoiarem as suas pretensões. Com efeito, conforme vem entendendo a jurisprudência, a pronúncia cuja falta ou omissão determina a nulidade da decisão é a que incide na matéria submetida à cognição do tribunal, entendendo-se como questão para este efeito o dissídio ou problema concreto a decidir, sendo irrelevante para a invalidade processual que o tribunal deixe de apreciar e de rebater argumentos e fundamentos ou razões em que os sujeitos processuais se apoiam para sustentar a sua pretensão[3]. Analisada a sentença recorrida, constata-se que a páginas 3 a 9, após análise das caraterísticas do processo de contra ordenação nas suas diversas fases, debruçando-se especificamente sobre os contornos do direito à audição e ao contraditório do arguido nesse âmbito por comparação com o processo penal, se sufraga o entendimento de que, para efeito do artigo 50º do RGC, apenas é exigível que se dê conhecimento ao arguido da factualidade que lhe é imputada e da respetiva qualificação jurídica, que lhe permita gizar a sua defesa. Como decorrência de tal entendimento, analisaram-se discriminadamente todos os elementos constantes dos autos pertinentes para facultar aos arguidos o direito de defesa, concluindo-se que “durante a fase administrativa dos autos foram participados aos recorrentes todos os elementos de facto e de direito que lhes permitiram gizar a sua defesa (…)”. Conforme deflui de toda a fundamentação expendida neste âmbito, a decisão recorrida não considera indispensável a comunicação aos arguidos dos factos suscetíveis de integrarem o elemento subjetivo da contra-ordenação. Pese embora se discorde do referido entendimento, certo é que a sentença se pronunciou sobre a questão suscitada pelos recorrentes na impugnação judicial, ainda que em sentido desfavorável à pretensão dos arguidos, pelo que não ocorre omissão de pronúncia e/ou ausência de fundamentação e, em consequência, a pretendida nulidade da sentença. Não obstante, sempre se dirá o seguinte: Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.04.2022, sobre a questão suscitada pelos recorrentes na impugnação judicial já amplamente a doutrina[4] e a jurisprudência dos tribunais superiores[5], formando entendimento – que se afigura maioritário e que subscrevemos – no sentido de que a densificação da estatuição do artigo 50.° do RGCO impõe a conclusão de que o processo contraordenacional deverá garantir o efetivo exercício do direito ao contraditório prévio à decisão, desiderato que apenas se conseguirá realizar na sua plenitude mediante a comunicação integral dos factos imputados, o que implicará a sua descrição objetiva, localizada no espaço e no tempo, assim como a sua caracterização subjetiva, elementos que se reputam imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contraordenacionalmente relevante. No mesmo sentido tem vindo a confluir a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aqui se convocando, atendendo à sua clareza, o acórdão do TC n.º 99/09[6], relatado pelo Conselheiro Moura Ramos, no qual podemos ler: “(…) dos direitos de audição e de defesa consagrados no artigo 32°, n.°10, da CRP, e densificados no artigo 50° do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo contraordenacional deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão; que este só poderá ser plenamente exercido mediante a comunicação dos factos imputados; que a comunicação dos factos imputados implica a descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante; e que essa descrição deve contemplar a caracterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate." Tal entendimento está em consonância com o subjacente ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, de 16.10.2002, que pôs, de algum modo, termo às divergências jurisprudenciais existentes sobre a extensão com que devia ser assegurado o direito de audição e defesa do arguido e as consequências da sua violação. Atentemos na fundamentação do referido acórdão de fixação de jurisprudência, que infra transcrevemos parcialmente para melhor compreensão da discussão em torno da referida questão e, bem assim, das que analisaremos de seguida: « (…) 11.3 - Em suma, a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma «condenação», pois que, se impugnada, «tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação». (…) 11.5 - Na outra hipótese, ou seja, na de impugnação judicial da «decisão administrativa», já os «preceitos reguladores do processo criminal» a haverão de encarar como se de uma «acusação» se tratasse. Donde que a equiparação da instrução contra-ordenacional ao inquérito criminal deva conduzir a que a preterição do «direito de audição» no decurso daquela (assemelhável ao incumprimento, neste, da obrigatoriedade de interrogar como arguido a pessoa determinada contra quem corra o inquérito - artigo 272.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal)(ver nota 34) haja de ser tratada, simplesmente, como «insuficiência do inquérito» [artigo 120.º, n.º 2, alínea d)], implicando, por isso, «nulidade dependente de arguição» (artigo 120.º, n.º 1) em prazo limitado (ver nota 35). (…) 11.8 - De qualquer modo, a eventual preterição, no decurso da instrução contra-ordenacional, do «direito (processual) de audição» garantido pelo artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações haveria de ficar «sanada» (ver nota 39) - por força do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal - se o arguido viesse a prevalecer-se, na impugnação judicial da «acusação» administrativa, do direito (de defesa) «a cujo exercício o acto anulável se dirigia». 11.9 - Com efeito, não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) (ver nota 40) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) (ver nota 41) da «decisão de deduzir acusação». 11.10 - Com essa excepção (sanação do vício por os participantes processuais se terem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia), «o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o acto, apesar de imperfeito, cumpriu os objectivos para os quais foi pensado pelo legislador [...], não se justifica a sua repetição» (ver nota 42). 12 - Deficiente cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O (…) 12.2 - Se - em caso de impugnação judicial da decisão administrativa - constitui nulidade (sanável) a omissão (absoluta) da audição do arguido na instrução contra-ordenacional, a deficiente satisfação, por parte da administração, desse direito do arguido (nomeadamente, em caso de audiência escrita, por a notificação do interessado «para dizer o que se lhe oferecer» não lhe conceder um «prazo razoável» (ver nota 43) ou não lhe «fornecer os elementos necessários para que fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito») (ver nota 44), também não poderá constituir - mesmo que se equipare essa «notificação» à «acusação» que, em processo penal, necessariamente precede a «decisão condenatória» (ver nota 45) - um vício formal (ver nota 46) mais gravoso que a «nulidade» (sanável) (ver nota 47) cominada, pelo artigo 283.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, para a acusação penal que não contenha «a indicação das disposições legais aplicáveis» [alínea c)] ou «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena [...], incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» [alínea b)]. 12.3 - «Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa-fé processuais [...]. O segundo impede que os sujeitos processuais possam 'aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado' (Tribunal Constitucional, acórdão n.º 429/95, de 6 de Julho, Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995). [...] O legislador português [...] criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do acto imperfeito e se aproxima do seu epílogo [...]. No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do acto processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos actos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita» (João Conde Correia, ob. cit., pp. 146, nota 328, e 177 a 179). (…)”. A final, são extraídas as seguintes conclusões: “(…) 13 - Conclusões (ver nota 48) I - Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido (ver nota 49), notificá-lo-á para - no prazo que o regime específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a 10 dias - dizer o que se lhes oferecer (cf. artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo) (ver nota 50). II - A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (artigo 101.º, n.º 2) e, na resposta, o interessado pode pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (artigo 101.º, n.º 3)(ver nota 51). III - A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação [artigos 120.º, n.ºs 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações] (ver nota 52). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. IV - (ver nota a) - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações)(ver nota 53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. (…)». Nos termos do artigo 445º, n.º 3, do Código de Processo Penal “a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”. Como tal, ainda que os acórdãos de uniformização de jurisprudência não sejam vinculativos, a não ser no âmbito dos processos em que foram proferidos, apenas uma divergência substancial justificará um desvio à jurisprudência fixada e a sua explanação sempre imporá, não uma genérica fundamentação, mas o cumprimento de um dever especial de fundamentação destinado a explicitar as razões de tal desvio. E tal apenas poderá ocorrer quando houver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada», o que sucederá, por exemplo, quando «o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada», ou «se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso», ou ainda «a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada». O que não sucede quando o tribunal judicial se limita a não acatar «a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem perceção da alteração das conceções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a solução legal»[7]. Como, de forma impressiva, se concluiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.02.2011, «os tribunais só podem divergir da jurisprudência uniformizada do STJ quando tenham argumentos nela não debatidos, ou seja, a divergência tem de se fundamentar em argumentos novos que não aqueles constantes da tese que ficou vencida no acórdão para fixação de jurisprudência, sob pena de a uniformização não ter qualquer efeito e os tribunais continuarem com base nos mesmos argumentos a produzirem decisões desencontradas»[8]. Não se vislumbram motivos para nos desviarmos da jurisprudência fixada pelo mencionado acórdão uniformizador. Assim sendo, analisando a situação concreta dos autos à luz da jurisprudência fixada, resulta o seguinte quadro: - Tendo o órgão instrutor optado, em cumprimento do disposto no artigo 50º do RGCO, pela audiência escrita dos arguidos, notificou-os fornecendo-lhes apenas os elementos constantes do auto de notícia, nos quais se não incluiu a indicação dos factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional necessários para que aqueles ficassem a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito; - Não tendo a referida notificação fornecido todos os elementos necessários para que o interessado ficasse a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, encontra-se a mesma ferida de nulidade sanável, em conformidade como disposto nos artigos 283.º, n.º 3, do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO, pelo que o tribunal recorrido devia tê-la considerado verificada. - Tal nulidade é arguível pelo interessado/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação da decisão administrativa, nos termos preceituados conjugadamente pelos artigos 120.º, n.º 1 e n.º 3, alínea c) e 105.º, n.º 1 do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO. - Uma vez que a impugnação judicial da decisão administrativa não se limitou a arguir a nulidade, tendo-se os impugnantes prevalecido na impugnação judicial do direito preterido – tendo abarcando na sua defesa os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, concretamente os atinentes aos elementos subjetivos do tipo contraordenacional que lhes vinha imputado – a nulidade encontra-se sanada, em conformidade com o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO, o que deveria ter sido declarado pelo tribunal a quo. Em suma, pese embora se considere ter-se verificado a nulidade decorrente da violação do direito de audição previsto no artigo 50º do RGCO arguida pelos recorrentes, que deveria ter sido reconhecida pelo tribunal a quo, mostra-se a mesma sanada, ainda que assim não tenha sido antes declarado. Na verdade, só a total omissão de cumprimento do artigo 50.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, por parte da entidade administrativa e a consequente não concessão aos arguidos da possibilidade de serem ouvidos sobre a contraordenação que lhes é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorrem poeria configurar uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do n.º 1 do artigo 119.º do Código de Processo Penal. Improcede, assim, a arguição de nulidade da sentença recorrida. - Nulidade da decisão administrativa por não conter a descrição dos factos atinentes ao elemento subjetivo da infração; Prosseguem os recorrentes argumentando que também a decisão administrativa é nula por não descrever os elementos subjetivos da contraordenação, ao invés do afirmado na sentença recorrida. Sobre a decisão condenatória, dispõe o artigo 58º do RGC: “1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias. (…)” É inquestionável que a decisão administrativa, à semelhança da sentença penal, tem que conter, além do mais, a descrição dos factos relevantes para a existência ou inexistência da contraordenação e a punibilidade ou não punibilidade do arguido, bem como as normas jurídicas correspondentes. Os sobreditos requisitos visam, fundamentalmente, a salvaguarda da possibilidade de o arguido exercer efetivamente os seus direitos de defesa, o que só poderá suceder com o conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão[9]. Por isso, e pese embora não se preveja no RGC a consequência da ausência da menção dos elementos indicados no artigo 58º, a aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal (ex vi do artigo 41.º do referido regime) determina a nulidade da decisão, de harmonia com o disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas a) e c), e 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal[10]. Todavia, como se vem assinalando, no âmbito da decisão administrativa em matéria de ilícito contraordenacional não se colocam com a mesma profundidade e grau de exigência as necessidades de fundamentação impostas à elaboração da sentença penal. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 09.07.2009, do Tribunal da Relação do Porto de 12.09.2007[11], transcrevendo-se o seguinte excerto deste último: “Tal decisão insere-se numa fase administrativa do processo de contraordenação, razão pela qual lhe são aplicáveis os princípios fundamentais de direito e do processo administrativo. Com efeito, o legislador ao distinguir duas fases - a administrativa e a judicial -, certamente não teve em mente a aplicação dos princípios processuais penais à fase administrativa. Por outro lado, atentos os princípios fundamentais do direito administrativo e o disposto no artº 58º do RGCOC, o que se deve exigir numa decisão administrativa (…), é o respeito por três princípios essenciais, que são: a suficiência, a clareza e a congruência. Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contraordenacional, transcreva a respetiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e normas imputadas. Acresce, que a culpa nas contraordenações não se baseia em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao agente.” E, ainda, o recentíssimo acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 07.02.2023, em cujo sumário podemos ler: «I–A decisão administrativa que aplica uma coima em processo de contraordenação, ainda que apresente “alguma homologia” com a sentença penal condenatória, não consubstancia uma verdadeira e própria sentença, nem é qualificada como tal pela lei, razão pela qual não tem que obedecer ao mesmo grau de formalismo exigido para aquela última. II–Sendo que o correspondente dever de fundamentação terá também que ser perspetivado em função da natureza do respetivo tipo de ilícito, a fase em que a referida decisão se insere, e as caraterísticas de celeridade e simplicidade que caracterizam o correspondente processo. III–Não se exige, pois, da entidade administrativa, uma concretização factual modelar e profundamente detalhada, sendo bastante, a esse nível, uma alegação de factos minimamente escorreita, passível de compreensão e alcance ao homem médio, quanto às condutas adotadas ou omitidas, circunstanciadas e contextualizadas no tempo, lugar e espaço, e o respetivo tipo de imputação subjetiva.» Ademais, como defendem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, «[o] que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando […] um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada.»[12] Não obstante, não podemos ignorar que, apesar de o ilícito de mera ordenação social abranger um conjunto de situações cujo grau de censurabilidade ética é inferior às situações tratadas pelo nosso ordenamento como ilícitos penais e, em virtude disso, reclamar um tratamento menos exigente do ponto de vista formal e substantivo, ficando a sua apreciação a cargo das entidades administrativas, isto não significa, porém, que a administração possa tratar estas questões de forma ligeira ou arbitrária. Antes pelo contrário, uma vez que permite a punição do agente com sanções diversas e, muitas vezes, bastante gravosas, tem necessariamente de revestir-se de garantias processuais muito próximas das previstas para o processo penal, prevendo o artigo 41º, n.º 1, do RGC a aplicação subsidiária da legislação processual penal. Por seu lado, no domínio substantivo, ilícito de mera ordenação social assenta, à semelhança do ilícito penal, no princípio da tipicidade, consagrado no artigo 1º do RGC, que dispõe que “[c]onstitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (cfr. artigo 1º, n.º 1, do Código Penal), e no princípio da culpa, materializado no artigo 8º, n.º 1, que estabelece que“[s]ó é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos expressamente previstos nas lei, com negligência” (cfr. artigo 13º do Código Penal), expressão normativa do princípio nulla poena sine culpa, que se traduz no facto de não poder haver sanção sem culpa e a medida da sanção ser a medida da culpa sempre aferida em concreto. Como tipos de culpa temos o dolo e a negligência, não sendo possível afirmar-se fora destes dois tipos uma personalidade ético-jurídica censurável. A diferenciação entre dolo e negligência assume grande importância, uma vez que só as infrações dolosas são, em princípio, puníveis, enquanto a negligência só excecionalmente o é e nos casos expressamente previstos na lei, nos termos do citado preceito legal. A determinação do conteúdo de cada um destes tipos de culpa, há de ser feita com base na posição ética do agente perante o dever ser jurídico. Como decorrência, apesar da natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional é exigível a descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da contra-ordenação de modo a permitir que, pelo menos, se possa concluir se estamos perante uma imputação a título de dolo ou de negligência, o que tem óbvios reflexos, desde logo, quanto à gravidade da punição correspondente. Tendo em perspetiva o entendimento exposto, afigura-se-nos que a decisão administrativa, sindicada na sentença recorrida, está suficientemente fundamentada, dentro da lógica processual que a enforma, ainda que de forma pouco estruturada, na medida em que os factos atinentes ao elemento subjetivo não estão discriminados autonomamente, antes resultando da motivação, técnica incorreta, do ponto de vista formal, mas que não impede a sua inteligibilidade. Assim, e no que diz respeito ao elemento subjetivo, a Autoridade Administrativa considerou que: «O arguido AR e a empresa arguida VN, Actividades Ecológicas e naturais, Lda., quiseram e souberam usar a embarcação de recreio denominada “..III”, com o conjunto de identificação …, no exercício da actividade marítimo-turística, em passeio com 16 passageiros, sem cumprir a lotação de segurança, faltando 1(um) tripulante com a função de Marinheiro». E mais à frente «Assim, resulta claro dos elementos probatórios constantes dos autos que, os arguidos versados no exercício das actividades marítimo-turísticas, com recurso a embarcações de recreio, como qualquer pessoa medianamente informada, são conhecedores das normas e regulamentos em vigor, bem sabendo, que quando as embarcações em actividade marítimo-turística se encontram a navegar, têm que ser observadas e executadas cautelosamente todas as normas e regras de segurança da navegação, devendo manter a bordo toda a documentação, meios de segurança e socorro, devidamente inspecionados e validados, assim como, cumprir escrupulosamente o estabelecido no Certificado de lotação de Segurança, pelo que, ao infringir reiteradamente, navegando com embarcação sem possuir marinheiro, num claro desrespeito pelas leis e normas estabelecidas, atenta contra o princípio da igualdade para com todos os operadores MT, que cumprem na íntegra os seus deveres e obrigações, bem como, contra os mecanismos reguladores da actividade e em particular contra a segurança da navegação, colocando em risco os próprios utentes dos serviços.» Estes trechos da decisão recorrida evidenciam, como se concluiu na sentença recorrida, os elementos cognitivo e volitivo das ações típicas imputadas aos arguidos, que não têm que corresponder necessariamente a fórmulas habitualmente utilizadas, antes descrever os factos da vida interior do agente que permitam alcançar as conclusões sobre o preenchimento, ou não, do elemento subjetivo da infração e, bem assim, se a conduta é imputada a título de dolo ou de negligência. De resto, como se depreende do teor da impugnação judicial que apresentaram, os arguidos compreenderam perfeitamente o sentido e alcance da decisão administrativa, o que lhes permitiu exercerem os seus direitos de defesa. Improcede, assim, igualmente a arguição de nulidade da decisão administrativa. Nulidade da sentença recorrida por violação do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal. Alegam os recorrentes, neste conspecto, que a decisão administrativa refere que violaram o nº 2 do artigo 68º do DL 280/2001 e que esse facto é punível pelo artigo 79º do mesmo diploma, todavia, a sentença recorrida, contrariando o apontado naquela decisão, indica que os arguidos violaram a norma prevista pelo art.º 16º, 1, c), e 3, do DL n.º 149/2014, de 10/10. Ou seja, em vez de revogar a sanção nos termos solicitados pelos arguidos, a sentença veio aplicar uma sanção por violação de norma distinta à indicada na acusação. Ora, confrontando o teor do DL 280/2001, de 23.10 (aplicado na decisão administrativa) com o teor do D.L. 149/2014 (o aplicado na decisão recorrida) temos que é grande a diferença entre estes nomeadamente no que respeita aos responsáveis pela infracção, ao âmbito da sua aplicação quanto ao tipo de embarcações e ao processo administrativo tendente à fixação da lotação de segurança. Assim sendo, só poderá concluir-se que a alteração da qualificação jurídica operada foi relevante para a decisão da causa e teria de ter sido comunicada nos termos e para os efeitos do artigo 358º nº 1 e 3 do C.P.P. Não o tendo sido, ocorre mais uma nulidade, que se invoca. Recorde-se que de acordo com o supra transcrito artigo 379º do Código de Processo Penal, é nula a sentença “[q]ue condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º” [al. b) do n.º 1]. Por seu turno, estatui o artigo 358º do Código de Processo Penal, que para o caso releva: “1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” Paulo Pinto de Albuquerque[13] afirmar que não há necessidade de comunicação da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica dos factos nos seguintes casos: a. a alteração derivada da posição da defesa [...] b. a condenação por um crime menos grave do que o da acusação por força da redução da matéria de facto na sentença [...] c. a condenação do arguido por uma forma equivalente de manifestação do mesmo tipo penal [...] d. a ponderação para efeito da determinação concreta da pena de factos posteriores ao crime, reiteradamente praticados pelo arguido desde momento anterior e desprovidos de relevância típica [...] e. a declaração da perda de bens e vantagens decorrentes do crime [...] f. a condenação do arguido na sanção acessória”. Por seu turno, Frederico Isasca1[14] que o que se visa impedir é que os arguidos sejam surpreendidos com factos novos, diferentes dos que lhe foram imputados pela e na acusação. Não é a alteração em si da qualificação jurídica que gera uma alteração dos factos, mas sim uma alteração dos factos que, servindo de fundamento a uma diferente qualificação jurídica, implica a qualificação daquela alteração de factos. Ora, no caso vertente, os recorrentes sustentaram, na impugnação judicial que deduziram, que não era aplicável ao acaso o DL n.º 280/2001, de 23 de outubro, mas antes o DL n.º 149/14, de 10 de outubro, pelas razões ali desenvolvidas e sintetizadas sob as conclusões VIII a XIX, ainda que propugnassem pela sua absolvição. Assim sendo, a alteração da qualificação jurídica já emergia da própria defesa dos arguidos, pelo que não constituiu qualquer surpresa para aqueles, não fazendo sentido comunicar-lhes algo que os próprios haviam suscitado e, até, propugnado, sob pena de se praticarem atos inúteis, proibidos por lei. Ademais, apesar de o regime emergente do DL n.º 149/14, de 10 de outubro, contemplar punição mais gravosa que o do DL n.º 280/2001, de 23 de outubro, na sentença recorrida foi observado o disposto no artigo 72º-A do RGC – proibição da reformatio in pejus –, mantendo-se as coimas que haviam sido aplicadas em sede administrativa, pelo que também, a final, da alteração efetuada não resultou qualquer prejuízo para os arguidos/recorrentes. Improcede, pois, também esta arguição de nulidade. Impugnação da matéria de facto Alegam os recorrentes que a limitação deste recurso ao reexame da matéria de direito não impede este Tribunal da Relação de conhecer oficiosamente dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, como este tribunal vem afirmando em jurisprudência constante. Se bem compreendemos a alegação, os recorrentes visam impugnar a matéria de facto, concretamente quanto ao segmento em que foi considerado provado que em 02/06/2016 foi emitido o Certificado de Lotação de Segurança que exige, no mínimo, dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro Patrão de Costa, sustentando, em resumo, que a prova documental impunha outra decisão – que propõe –, tal como o princípio in dubio pro reo. Efetivamente, como começámos por assinalar, nos termos do estatuído nos artigos 73.º a 75º RGC, nos recursos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410º, n.º 2, CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, n.º 1, e 74.º, n.º 4, do RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito. Tais vícios têm, porém – tal como assinalado, de forma expressa, no referido artigo 410º, n.º 2 –, que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, mais concretamente do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam externos, para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento[15]. Constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo. Neste âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina o processo para novo julgamento. Concretamente, ocorre erro notório na apreciação da prova – que se afigura ser o implicitamente invocado in casu pelos recorrentes – quando a decisão ostenta um erro de apreciação dos meios probatórios observável por um homem de formação média, que, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou, até, contraditórios, ou as regras sobre a prova vinculada e/ou das legis artis. No caso em apreço, perscrutando a sentença tendo em particular atenção as perplexidades manifestadas pelos recorrentes, não se vislumbra qualquer um dos enunciados vícios, mormente o erro notório na apreciação da prova, relembrando-se que, como supra referimos, o tribunal não está obrigado a rebater todos os argumentos aduzidos pelos sujeitos processuais. Também não se deteta a violação do princípio in dubio pro reo, que tem que resultar do texto da decisão. Com efeito, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida, razoável e fundada, sobre os factos e que, perante essa dúvida, o Tribunal decida a favor do arguido. Como tal, o tribunal tem que explicitar a análise probatória e o raciocínio que efetuou e que redundou em dúvida séria e inultrapassável que, como tal, consta necessariamente da sentença. Ora, no caso em apreço não resulta da sentença recorrida que o julgador se tenha deparado com qualquer dúvida, pelo que não se coloca a questão. Improcede, por conseguinte, a impugnação da matéria de facto por via da invocação dos vícios decisórios. Enquadramento jurídico e responsabilidade contraordenacional dos recorrentes Neste domínio, alegam os recorrentes, em síntese, que para a sentença concluir pela violação da norma citada tinha que estar alegado e demonstrado, sem sombra de dúvidas, que a sociedade VN estava a exercer uma animação turística mediante a utilização de uma embarcação com fins lucrativos, numa modalidade distinta do aluguer sem tripulação e que a embarcação em causa tinha uma determinada lotação de segurança, fixada previamente, e que não estava a ser cumprida. Todavia, a acusação não logrou provar tudo o que acima se indicou, nomeadamente que era a modalidade de aluguer com tripulação que estava em causa e que tinha sido previamente fixada determinada lotação de segurança. De qualquer forma, não existindo qualquer certeza quanto à natureza da atividade efetivamente exercida, sempre deviam os arguidos ter sido absolvidos [cfr. conclusões XI a XV]. O exercício desenvolvido pelos recorrentes assenta nas enunciadas premissas, ignorando, por um lado, que foi exarado como não provado, sob o ponto 1., que «A embarcação foi alugada sem tripulação» [fls. 13 da sentença] e, por outro lado, que foi considerado provado que «O certificado de lotação de segurança da referida embarcação, emitido em 02/06/2016 pela Delegação Marítima de Sesimbra da Autoridade Marítima Nacional, exige um mínimo de dois tripulantes, sendo um o marinheiro e outro com a categoria mínima de patrão de costa (…)» [cfr. fls. 11], facto que impugnaram, sem sucesso, como vimos na apreciação da questão anterior. Com efeito, provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão: «a) A sociedade ‘VN, Lda.’ é proprietária da embarcação de recreio “… III’, com o conjunto de identificação … (cfr. fls. 15 e 138) e ostentando o dístico ‘MT’ (cfr. fls. 2). (...) c) O certificado de lotação de segurança da referida embarcação, emitido em 02/06/2016 pela Delegação Marítima de Sesimbra da Autoridade Marítima Nacional, exige um mínimo de dois tripulantes, sendo um o marinheiro e outro com a categoria mínima de patrão de costa, tendo como número máximo de pessoas a bordo 20. (cfr. fls. 3 e 37) d) No dia 17/07/2019, pelas 12:30 horas, em águas interiores marítimas junto à linha de costa, defronte da praia da Ribeira do Cavalo, Sesimbra, nas coordenadas geográficas Lat:38º25.937 N/Long. 009º07.270W Datum (WGS84), a embarcação ‘VN III’, encontrava-se a navegar junto à linha de costa sob o governo do arguido AR, único tripulante a bordo da mencionada embarcação, de propriedade da sociedade ‘VN’, a efectuar o passeio de um grupo de 16 pessoas. (cfr. doc. 2 auto de notícia). e) O Arguido AR é, juntamente com JS, sócio gerente da sociedade Arguida ‘VN –, Lda.’ (...) f) O Certificado de Lotação de Segurança foi exibido por AR na data da fiscalização. (cfr. fls. 2). g) O Certificado de Lotação de Segurança exige a bordo dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro, no mínimo, Patrão de Costa, com uma lotação máxima de 20 pessoas a bordo. (cfr. fls. 3 e 37) (...) k) Em 02/06/2016 foi emitido o Certificado de Lotação de Segurança que exige, no mínimo, dois tripulantes, sendo um Marinheiro e outro Patrão de Costa (fls. 139 e que corresponde ao exibido pelo Arguido AR na data dos factos). l) O arguido AR quis e soube comandar a dita embarcação sem estar acompanhado do outro elemento que compunha a tripulação da mesma. m) A sociedade arguida ‘VN’ quis e facultou a saída da referida embarcação em passeio de 16 passageiros, sabendo que a mesma iria navegar apenas com um tripulante a bordo.» [fls. 11 a 13 da sentença]. Ora, em face da factualidade efetivamente provada e do teor das disposições legais citadas na sentença, nenhuma censura merece a subsunção jurídica nesta efetuada, para a qual se remete sem necessidade de mais considerandos sobre a argumentação dos recorrentes para a colocarem em causa, tanto mais que assenta em pressupostos que não têm respaldo naquela materialidade fáctica. De igual modo, em face da factualidade provada imputada individualizadamente a cada um dos arguidos/recorrentes e correspondente responsabilidade contraordenacional, nenhuma censura merece a condenação de ambos. Improcede também este segmento do recurso. Fixação da taxa de justiça Por fim, insurgem-se os recorrentes contra a tributação, alegando, em suma, que o Tribunal recorrido, sem qualquer fundamentação e sem ter apurado a sua situação económica, decidiu fixar em 4 UCs o valor da taxa de justiça a pagar, por cada arguido, que, além de injustificadamente excessivo, ultrapassa o valor máximo de 374,10 euros fixado pelo nº 4 do artigo 93º do RGOC, sendo que o valor da taxa de justiça é referente ao processo e não a cada arguido uma vez que o processo é o mesmo, pelo que também quanto a este aspeto deve a douta decisão ser revogada e as custas fixadas de acordo com os critérios legais e com os limites da lei. Estipula o Artigo 92.º do do RGCOC: “1 – Se o contrário não resultar desta lei, as custas em processo de contra-ordenação regular-se-ão pelos preceitos reguladores das custas em processo criminal. 2 – As decisões das autoridades administrativas que decidam sobre a matéria do processo deverão fixar o montante das custas e determinar quem as deve suportar. 3 - As custas abrangem, nos termos gerais, a taxa de justiça, os honorários dos defensores oficiosos, os emolumentos a pagar aos peritos e os demais encargos resultantes do processo.” Por seu turno, prescrevem os n.ºs 3 e 4 do artigo 93.º do mesmo diploma: “3 - Dão lugar ao pagamento de taxa de justiça todas as decisões judiciais desfavoráveis ao arguido. 4 - A taxa de justiça não será inferior a (euro) 0,75 nem superior a (euro) 374,10, devendo o seu montante ser fixado em razão da situação económica do infractor, bem como da complexidade do processo.” Sucede que, como esclarecem Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa[16], «[p]osteriormente à entrada em vigor da redação dada pelo Decreto-Lei nº. 244/95 ao nº 2 deste artigo, foi publicado o Novo Código das Custas Judiciais, pelo Decreto-Lei nº. 224/96 de 26 de Novembro, em que se prevê que nos recursos de decisões proferidas por autoridades administrativas em processos de contra-ordenação é devida taxa de justiça, a fixar entre 1 UC e 20 UC (art.º 87º nº1 al. c). (...) No nº 4 deste artigo 93º fixam-se limites para a taxa de justiça que devem considerar-se revogados pelo Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 224/96 que, como se refere na anotação anterior, fixou tais limites entre 1UC e 20 UC». Também, no mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque[17] escreve: «No tocante à taxa de Justiça para interposição da impugnação das decisões administrativas ou judiciais, há que ter em conta que o artigo 93 nºs 2 e 4 do RGCO foi revogado pelo CCJ, que por sua vez foi revogado pelo RCP (...)» Também no acórdão da Relação do Porto de 03.04.2013[18] se decidiu que: «I – O n.º 4 do art.º 8º do RCP obriga ao pagamento de taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas no âmbito dos processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada. II – Sendo esta a vontade expressa do legislador, entende-se que está revogada a norma do art.º 93º do RGCO, por incompatibilidade». Dispõe o artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais, sob a epígrafe taxa de justiça em processo penal e contra-ordenacional “(…) 7 - É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas, no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito. 8 - A taxa de justiça referida no número anterior é autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação ao arguido da data de marcação da audiência de julgamento ou do despacho que a considere desnecessária, devendo ser expressamente indicado ao arguido o prazo e os modos de pagamento da mesma. 9 - Nos restantes casos a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii. 10 - Se o juiz não fixar a taxa de justiça nos termos do número anterior, considera-se a mesma fixada no dobro do seu limite mínimo.” E, nos termos do artigo 513º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a condenação em taxa de justiça é sempre individual. Assim sendo, em face do total decaimento, atendendo à atividade processual desenvolvida e aos limites estabelecidos na tabela III – 1 a 5 UC – afigura-se-nos ajustada a fixação da taxa de justiça individual em 4 (quatro) UC. Também nesta parte improcede o recurso. Também neste tribunal ad quem suportarão os recorrentes a taxa de justiça devida pela sucumbência total, que se afigura ser de fixar em igual proporção, atento o conjunto de questões suscitadas. * III. – DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos e confirmar a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça individual na quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta. * (Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal) * Lisboa, 22 de fevereiro de 2023 Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro Rui Gonçalves – Junta declaração de voto Maria Elisa Marques DECLARAÇÃO DE VOTO Não subscrevo a afirmação plasmada a p. 33 do aresto: «(..) O ilícito de mera ordenação social abrange um conjunto de situações cujo grau de censurabilidade ética é inferior às situações tratadas pelo nosso ordenamento como ilícitos penais e, em virtude disso, teclam [a] um tratamento menos exigente do ponto de vista formal e substantivo» Aduzo em apertada síntese o seguinte: Como é consabido, Figueiredo Dias [19] e Germano Marques da Silva [20] propõem para a distinção entre os ilícitos criminal e o de mera ordenação social o critério da relevância ou irrelevância ética das condutas, ou seja, um critério repousante em características materiais ou qualitativas, não sendo, pois, um critério meramente formal. Afigura-se-me que o juízo de culpa no direito contraordenacional funda-se unicamente na atribuição ao agente de uma responsabilidade social pelo facto. A conduta encerra um desvalor ou traduz-se na violação da ordenação ou da potenciação da ordenação. Contempla interesses de caráter funcional ou organizatório. No meu modesto entendimento, na esteira de Eberhard Schmit [21] a culpa própria do facto penal espelha carga ético-social da personalidade do agente na sua relação global com a ordem jurídica. Corresponde a uma censurável inimizade para com o Direito que faz entrar em consideração a autónoma personalidade ética do agente, implicando que seja esta personalidade o único objeto da pena enquanto expiação. Já na contraordenação, se bem vejo, falta a conexão da culpa com a personalidade ética do agente. Traduz-se num defeito da vontade que se direciona no sentido da desobediência administrativa, pese embora o conhecimento de uma ordem administrativa em contrário. A meu ver, no âmbito contraordenacional a censura pela culpa não atinge a esfera da ética, trata-se, por isso, de um domínio onde não é afetada a personalidade ética dos indivíduos. Como bem ensinava o saudoso Eduardo Correia, as sanções contraordenacionais estão desligadas do pathos que caracteriza as sanções criminais “e não desqualificam o agente a quem são impostas com a mácula de uma reprovação ético-jurídica”[22] Assim, se bem vejo, o objeto da conexão desta culpa não é a autónoma personalidade ética na relação com a ordem jurídica, mas antes a vontade do agente submetido ao poder administrativo na sua relação com as existências da administração ordenadora. Com efeito, por a responsabilidade contraordenacional não estar associada à personalidade ética do agente é que se mostra admissível responsabilizar as pessoas coletivas pela prática de contraordenações. Assim, a meu ver, a culpa própria do direito de ordenação social coenvolve apenas um censura social desligada de qualquer tipo de retribuição ou de expiação ética. Está muito longe de merecer um juízo ético-jurídico de censura, essa censura não deve traduzir-se em mais do que uma mera advertência, evitando a imposição de qualquer mácula social [23] Contudo, como é bom de ver, ainda que desprovida de qualquer carga ética esta censura não pode prescindir da imputação subjetiva, como bem ensinava Eduardo Correia “enquanto a imputação subjetiva do ilícito criminal de justiça — em virtude de uma estreita ligação com os valores éticos da vida social — supõe sempre um juízo pessoal de censura ao agente por ter agido como agiu, a do ilícito criminal administrativo pode bem bastar-se com a produção de um evento proibido a título de dolo ou negligência (sem que tenha que intervir o elemento ético-jurídico da censura), isto é, com a existência de um nexo psicológico entre o facto cometido e o seu autor”[24]. Por tudo isto, não subscrevo o considerando plasmado no aresto em causa acima apontado, e quanto ao mais voto a decisão. * Lisboa, 22-fev.-2023 (processado e revisto pelo signatário) _______________________________________________________ [1] Publicado no Diário da República, Iª Série, de 02.07.2019 [2] Neste sentido, o recente acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05.04.2022, que aqui seguiremos de muito perto pela similitude das situações e por nos revermos na respetiva fundamentação, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt [3] Neste sentido, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-03-2006, proc. 06P461, Simas Santos, de 19-11-2008, proc. 08P3776, Santos Cabral, de 27-10-2010, proc. 131/11.1YFLSB, Pires da Graça, de 09-02-2012, proc. 131/11.1YFLSB, Oliveira Mendes, de 17-06-2015, proc. 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1, entre outros, todos acessíveis in disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt [4] Em anotação ao artigo 50.° do RGCO, afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, pag 363: “O n.º 10 garante ao arguido em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar, ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e, possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender.”. No mesmo sentido, Leones Dantas, no seu estudo “Os direito de audição e defesa no processo das contraordenações”, in Revista do CEJ, 2. ° semestre 2010, n.º 14, páginas 298, 299 e 331, reportando-se ao momento a que alude o disposto no artigo 50.° do RGCO, qualifica-o como o "espaço processual por excelência para o arguido ser confrontado com a factualidade que lhe é imputada no processo e respetiva qualificação o jurídica". [5] No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão da Relação de Coimbra de 16.05.2018, relatado pelo Desembargador Brízida Martins; Acórdão Relação de Lisboa de 09.04.2019, relatado pela Desembargadora Ana Sebastião; Acórdão Relação de Guimarães de 25.03.2019, relatado pela Desembargadora Cândida Martinho. [6] Disponível em tribunalconstitucional.pt [7] Vide Sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2003, in http://www.stj.pt [8] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt [9] Vide Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas”, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p. 334, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar [10] Em sentido idêntico, veja-se o acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 11.11.2020 [11] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt [12] In «Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas», Almedina, 2.º edição, pág. 159. [12] In «Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas», Almedina, 2.º edição, pág. 159. [13] In «Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, pág. 930 e 931 [14] In «Alteração Substancial dos factos e sua relevância no processo penal português» Coimbra, Livraria Almadina, pág. 108 [15] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77. [16] In «Contra-ordenações- Anotações ao Regime Geral» VISLIS Editores, Pág. 490 [17] In «Comentário ao Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República, da Convenção Europeia dos direitos Humanos e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia» 2ª Edição actualizada. Universidade Católica Editora, pág. 407 [18] Relatora: Airisa Caldinho, Processo nº. 5570/12.2TBSTS-A.P1, consultável in www.dgsi.pt [19] DIAS, Jorge de Figueiredo, O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, in jornadas de Direito Criminal, o Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, 1983, C.E.J., 327. [20] SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Português, 1997, Parte Geral, I, pp.140-141. Vide ainda quanto a este problemático com muito interesse: ANDRADE, Manuel da Costa, Contributo para o conceito de contraordenação (A experiência alemã) na Revista de Direito e Economia, anos VI/VII — 1980/1981, pp. 81 e ss., 117 e 118); e BRANDÀO, Nuno, Crimes e Contra-ordenações da Cisão à Convergência Material, Coimbra, Coimbra Editora, jan.-2016, pp. 57, 80, 157 a., 260 s., 285, 818 ss.,822 ss., 931 ss.. [21] SCHMIDT, Eberhard, Das Neue Westdeutsche wirtschafsstrajrecbt, grundsatplichcs cçu seiner Ansgestaltung und Anwendung Tiibingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1950, p. 57. [22] (3) CORREIA, Eduardo, Direito penal e direito de mera ordenação social, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 49, p. 279, e Ac. do TC n.°s 245/2000, de 12-abr.-2000 (Bravo Serra), proc. n.° 438/99, 2.a Secção, disponível em: <http://ww.tribunalconstituciona1.pt/lc/:icordaos/2000(>245.btml>. Acedido em 21-fev.-2023; e Ac. do TC n.° 191/2002 (Paulo Mota Pinto), proc. n.° 295/01, 2.° Secção, disponível em: http: // www.tribunal- constitucional.pt/rc/acordaos/20020191 html. Acedido em 21-fev.-2023. [23] Cf. neste sentido CORREIA, Eduardo, Direito penal e direito de mera ordenação social, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 49,1973, pp. 257-281 [24] Cf. CORREIA Eduardo, Direito Criminal, I, Coimbra, Almedina, 1963, p. 29 |