Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | OCTÁVIO DOS SANTOS DIOGO | ||
Descritores: | VEÍCULO AUTOMÓVEL DIREITO DE PROPRIEDADE ACÇÃO DE RECONHECIMENTO PRESUNÇÃO RESULTANTE DO REGISTO RESERVA DE PROPRIEDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Mostrando-se afastada a presunção que deriva do registo, não existindo factos provados que permitam afirmar qualquer modo de aquisição do direito de propriedade sobre o veículo em causa nos autos, impõe-se a improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade invocado pela Autora. 2. A admissão da validade de reserva de propriedade a favor do financiador, não titular do direito de propriedade sobre o veículo cuja aquisição por terceiro financiou, assenta numa contradição insuperável. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório. B. move a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra: 1. P. 2. M. 3. A. 4. S. 5. F. 6. O. 7. J. Apresenta os seguintes pedidos: Que a ação seja considerada procedente, por provada, e, em consequência, seja judicialmente reconhecido e declarado o incumprimento e resolução do contrato de mútuo celebrado entre a Autora e o primeiro Réu. Que seja ainda reconhecida e declarada propriedade da Autora sobre a viatura de marca “Mercedes”, modelo “M”, de matrícula “XX-XX-XX”, com carácter pleno, e, em consequência, determinado o registo de propriedade exclusivamente a seu favor, junto da Conservatória do Registo de Automóveis, eliminando-se as demais inscrições existentes. Caso o Tribunal entenda que não pode declarar, desde já, a plena propriedade da Autora sobre a viatura referida nos autos, deve ser ordenada a reposição da situação registral que existia em momento anterior ao da “falsificação” (cancelamento da reserva de propriedade) de modo a permitir à Autora o accionamento daquela reserva de propriedade junto da CRA, transformando-a, por força do incumprimento contratual, em propriedade plena Deverá ainda ser ordenada a apreensão da viatura supra referida, pelas autoridades policiais competentes, onde quer que esta se encontre a circular e ainda que a mesma seja entregue à Autora. Citados os Réus vieram A., C. S., F. e J. apresentar contestação, alegando, em sumula nada saber sobre os factos constantes da petição relativos a negócios anteriores sobre a viatura que adquiriram na convicção de que a mesma pertencia aos respectivos vendedores, alegando ter feito tal aquisição de boa fé, invocando excepção peremptória de direito material, impeditiva do reconhecimento e declaração de propriedade que a autora pretende fazer valer, a seu favor, e excepção de nulidade da cláusula de reserva de propriedade registada a favor do Autor invocando ainda o Réu S. a excepção da sua ilegitimidade . O Autor requereu ainda a intervenção principal provocada passiva de COVIATOP – comércio de Automóveis, Lda. que foi admitida, tendo sido realizada a sua citação. Finalmente foi requerida a intervenção principal provocada passiva de F. que foi igualmente admitida, tendo este sido citado e apresentado contestação, na qual invoca a nulidade da reserva de propriedade a favor do Autor, alegando ter adquirido o veículo de boa fé e ter registado o mesmo antes do registo da presente acção. Foi elaborado o despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pelo Réu S., fixado o objecto do litígio e selecionados os temas de prova. Na pendência da ação foi extinta a 1ª Ré que foi substituída pelos seus dois sócios. Julgada a causa foi proferida sentença que julgando a ação improcedente absolveu os Réus dos pedidos. Inconformada, com o decidido, veio a Autora interpor recurso de apelação sustentando que, na procedência do recurso, deve a decisão ora apelada ser revogada e substituída por outra que reconheça o direito de propriedade da Autora sobre o veículo objeto dos autos, determine o registo de propriedade exclusivamente a seu favor, determinando ainda a sua entrega à Recorrente e a sua apreensão, tudo como peticionado na ação, tendo, após doutas alegações, apresentado as seguintes conclusões: 1. Recorre-se da sentença proferida nos autos que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus dos pedidos. 2. A Autora no exercício do seu objecto social e no âmbito de um contrato de financiamento viu a reserva de propriedade que detinha sobre a viatura identificada nos autos cancelada, sem a sua autorização e sem o seu conhecimento, sendo que as assinaturas constantes no documento de extinção de registo da reserva de propriedade não foram efectuadas por qualquer seu representante ou por alguém que a vinculasse. 3. A esse cancelamento fraudulento, seguiu-se uma cadeia de transmissões que, por terem início num cancelamento nulo, são transmissões do direito de propriedade sobre coisa alheia, ineficazes perante si, operando a ineficácia ipso iure. 4. Nenhum dos intervenientes dessa cadeia será um “terceiro de boa fé” porquanto nenhum adquiriu, de um autor comum, direitos incompatíveis entre si. 5. Foram dados como provados os factos contantes da Sentença recorrida, mas, para o objecto do recurso, relevam os seguintes: “8. A fim de cumprir a sua prestação contratual, a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor, da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento) (DOC 4)” 11. As assinaturas constantes no documento de extinção de registo, não foram efectuadas por qualquer representante do Autor, ou por alguém que a vinculasse na qualidade de seu procurador. 6. Não foi considerada toda a prova existente nos autos e produzida em audiência, havendo erro na decisão de facto, para além de se discordar da interpretação feita pelo Tribunal recorrido dos art.º 408º e 409º do Código Civil, quanto à admissibilidade de reserva de propriedade a favor do financiador (ainda que essa questão se coloque apenas ficcionalmente). 7. Foi junta aos autos e não impugnada certidão completa de registo automóvel de onde resulta que: 1) a Autora adquiriu e registou em seu nome a viatura e que 2) a vendeu ao “mutuário”, com reserva de propriedade. 8. Esse facto resulta igualmente da “motivação” do Tribunal recorrido perante o depoimento da testemunha SM . 9. Que refere que o negócio celebrado envolveu a inscrição no registo quer da propriedade quer da sua reserva a favor do Autor, encontrando-se nos autos os comprovativos de registo respectivos. 10. O facto provado como n.º 8 omite esse registo de propriedade a favor da Autora, prévio à venda com reserva de propriedade ao “mutuário”. 11. O ponto 8 dos factos provados foi incorrectamente julgado. 12. Quer a certidão junta aos autos quer o depoimento da testemunha da Autora SM. implicariam que fosse dado como provado que a Autora adquiriu e registou em seu nome a viatura objecto dos autos, que posteriormente vendeu no âmbito do financiamento ao mutuário, com reserva de propriedade e não apenas que “A fim de cumprir a sua prestação contratual, a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor, da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento)” 13. A reserva de propriedade a favor da Autora/Recorrente é válida. 14. Toda a cadeia subsequente de actos, que por terem início num cancelamento nulo (facto dado como provado no ponto 11), são transmissões do direito de propriedade sobre coisa alheia, ineficazes perante a Autora, que é, então, a legítima proprietária da viatura objecto dos autos. 15. Em virtude também de incorrecta avaliação da matéria de facto, como aflorado supra, o Tribunal recorrido fez uma indevida aplicação do direito ao caso em análise. 16. Sendo proprietária e vendendo a viatura ao mutuário, reservado para si a propriedade, não se coloca a questão de saber se é válida a clausula de reserva de propriedade a favor do financiador, qualidade que, no enquadramento do negócio, a Autora/Recorrente também tem, porque, na realidade, também é a proprietária. 17. E esse facto resulta da certidão de registo automóvel junta aos autos e não foi valorado pelo Tribunal. 18. A resolução do contrato releva no contexto da existência da reserva porquanto conduz também à procedência dos pedidos. Em face dela, o Tribunal estaria em condições de reconhecer o direito de propriedade da Autora/Recorrente, proferindo sentença que permitisse, regularizar a situação registral da viatura. 19. É comum e legítimo que no âmbito de processos de financiamento as empresas que financiam aquisições por terceiros adquiram primeiro os bens ou equipamentos que de seguida vendem, como no presente caso. 20. O Tribunal descontextualizou a aquisição pela Autora da viatura de matrícula XX-XX-XX, aquisição legítima e compatível com o seu objecto social, com o objectivo de a vender, reservando para si a propriedade até integral pagamento do preço do financiamento. 21. A reserva de propriedade feita a favor do proprietário e financiador, como no caso presente, é válida. 22. O seu cancelamento, por ter sido feito com base em assinaturas que não foram efectuadas por qualquer representante da Autora ou por alguém que a vinculasse na qualidade de seu procurador é nulo. 23. A cadeia de transmissões (venda de coisa alheia) assim iniciada, por ter início num cancelamento nulo, é ineficaz perante a Autora que é, hoje, a sua legítima proprietária. 24. Nenhum dos intervenientes dessa cadeia de transmissões é um “terceiro de boa fé”. 25. Não se pode ficcionar que a aquisição da viatura por parte da Autora, documentada na certidão de registo automóvel, não existe e que esta é apenas a financiadora. SEM CONCEDER 26. A questão da validade da clausula da reserva de propriedade a favor das entidades financiadoras vem sendo debatida nos tribunais superiores, mas a realidade e a dinâmica das relações jurídicas justificam a sua admissão, como vem sendo entendido, por exemplo em: Acórdão do STJ, processo 844/09.8TVLSB.L1.S1 A reserva de propriedade é uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço. É válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador. A cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art. 236.º, n.º 1 do CC, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor (art. 591.º, n.ºs 1 e 2 do CC). O Código Civil, ao remeter, no art. 9.º, n.º 1, para as “condições específicas do tempo em que a norma é aplicada” aderiu ao actualismo, considerando que é legítimo ao intérprete ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da elaboração da norma e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo actual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida. 27. Na Doutrina, com MENÉRES CAMPOS, in “A Reserva de Propriedade: do Vendedor ao Financiador, Coimbra, Coimbra Editora”, preconiza-se uma interpretação ampla e actualista do art. 409º do código civil, redigido a pensar na venda a prestações, ainda antes do surgimento de sociedades cujo objecto social é a concessão de créditos. 28. Na legislação, a coligação contratual e tudo o que ela implica quer na génese quer na subsistência e vicissitudes de (ambos) os contratos, leva a que se deva considerar a validade desta clausula, mesmo quando constituída a favor do financiador – o que, recorda-se, não é sequer o caso dos presentes autos. 29. O Tribunal andou mal ao não ter dado como provado que a Autora/Recorrente adquiriu a viatura objecto dos autos e a registou em seu nome (ponto 8 da matéria provada), e que de seguida vendeu ao mutuário com reserva de propriedade. 30. Esse facto implicaria a procedência da acção por força da ineficácia perante si das transmissões dessa viatura após o cancelamento da sua reserva de propriedade com recurso a documentos e assinaturas falsificadas. 31. Mesmo ficcionando a inexistência da aquisição da viatura por parte da Autora/Recorrente – que não foi sequer impugnada ou posta em causa pelas partes – entende a recorrente que a reserva de propriedade a favor do terceiro financiador é válida – situação que, repete-se, não se concebe no âmbito dos presentes autos. 32. Não se concorda por isso também com a interpretação do Tribunal dos art.º 408º e 409º do Código Civil no sentido de que não é admissível a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador nas relações trilaterais de financiamento para a aquisição de bens. Responderam os Apelados, F., O., e J., 5º, 6º e 7º Réus, sustentando que deve a Apelação ser julgada improcedente por não provada, mantendo-se ipsis verbis a sentença proferida, tendo, após doutas alegações, apresentado as seguintes conclusões: 1. Os autos tiveram origem numa acção judicial proposta em 10.06.2013 [pelo Recorrente] contra os aqui Recorridos [e demais Réus], onde foi requerido [1] o reconhecimento do incumprimento e da resolução do contrato de mútuo celebrado com o 1º Réu, [2] o reconhecimento da propriedade plena do veículo XX-XX-XX a favor do Autor/Recorrente de compra e ineficácia das sucessivas transmissões por compra e venda referentes ao veículo com a matrícula XX-XX-XX. 2. O Autor afirma ser proprietário, alegando que adquiriu o supra referido veículo ao vendedor PRK-SPORT Unip. Ld.ª, tendo posteriormente, na modalidade de mútuo financiado a compra do sobredito veículo ao 1º Réu [Petro ……] reservando para si a propriedade do veículo, até cumprimento efectivo e integral do contrato de mútuo. 3. A sentença da qual o Recorrente interpôs recurso julgou nula a reserva pelo Recorrente ser financiador de um mútuo, não podendo nessa qualidade reservar para si a propriedade sobre o referido veículo. 4. Julgamos que a decisão proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo. 5. Em todo o caso, cumprirá sempre referir que, não obstante o fundamento da improcedência da acção, o sobredito veículo foi objecto de sucessivas transmissões, pelo que, são ora Recorridos Terceiros de boa fé, dispõe o art. 291.º do Cód.Civil que “1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.” 6. Pretende este normativo soluccionar um problema de conflito de direitos entre o primeiro alienante, o verdadeiro proprietário e o terceiro subadquirente de boa fé. 7. Todas as sucessivas transmissões foram dadas como provadas pelo Tribunal a quo - Petroserras Combustíveis e Lubrificantes em 07.03.2008, M. em 10.07.2008, A. Comércio Autom. Unip. Ld.ª em 07.08.2008, S. em 28.10.2010, Fundaserra Construções Ld.ª em 10.09.2009, Obripostura Ld.ª em 12.11.2009, J. em 17.10.2011 e F. em 05.11.2014. 8. Todas as inscrições supra referenciadas foram factos dados como provados na sentença proferida pelo Tribunal a quo. 9. Alega a Recorrente que o 1.º negócio é ineficaz, facto que não logrou provar. 10. Consequentemente o veículo foi objecto de sucessivas transmissões e a sua propriedade foi sempre registada a favor do seu respectivo transmitente e adquirente. 11. A Recorrente até 10.0602013 não apresentou quaquer acção judicial, nem tampouco procedeu ao seu registo, diligência que a ser tomada, aquando tomou conhecimento da inscrição do veículo a favor de outrém [no ano de 2009], evitaria as transmissões posteriores. 12. Por se encontrarem verificados os requisitos do art 291.º do Cód.Civil, a saber, as transmissões respeitam ao referido veículo [objecto móvel sujeito a registo], aquisição a título oneroso, boa fé do terceiro adquirente, que desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo, o registo da aquisição a favor de terceiro, o registo da aquisição ser anterior relativamente ao registo da acção da nulidade ou de anulação. 13. Prevê o disposto no art. 291.º n.º 2 do Cód.Civil um prazo de 3 anos como excepção à não salvaguarda dos direitos do terceiro que reunam os referidos pressupostos, ou seja, os direitos dos terceiros não são reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio alegadamente nulo, o que in casu não se verificou. 14. Por se encontrarem verificados os requisitos e face ao tempo decorrido entre o conhecimento do negócio alegadamente nulo, por parte do Recorrente e a entrada da acção judicial só em 10.06.2013 e o registo da acção apenas em 05.06.2015, não podendo sobre as transmissões subsquentes imputar-se os efeitos da inércia do Recorrente. 15. Em bom abono da verdade, o Recorrente não registou nem propôs qualquer acção judicial dentro do prazo legalmente exigível, 3 anos, com vista à declaração de nulidade do negócio alegadamente viciado; 16. O Recorrente não logrou provar que o cancelamento da reserva foi abusivamente cancelado, logo na qualidade de proprietário do referido veículo o Recorrente foi alienante no negócio em questão. 17. Sendo alienante, o negócio foi celebrado com o proprietário do bem, logo aplica-se o disposto no art 291.º do Cód.Civil, e o direito do Recorrente encontra-se caducado. 18. Mais, por se tratar de sucessivas transmissões que respeitam a diversos adquirentes, os todos os posteriores proprietários são considerados terceiros de boa fé, pois desconheciam qualquer vício de negócios anteriores, por inexistência de registo de qualquer ónus sobre o veículo. 19. Concomitantemente, o Recorrente não impugnou a matéria dada como provada nem requereu qualquer reapreciação da matéria de facto. 20. Pelo que, e sendo alienante na transmissão do referido bem ao 1.º Réu, conforme decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância, se aplicará disposto no art 291.º do Cód.Civil, com vista a soluccionar um conflito de direitos entre o proprietário inicial, o primeiro alienante e o terceio adquirente de boa fé, que desconhecia, sem culpa, o vício do negócio, pagou o preço, actuou de forma honesta, com a diligência exigível ao homem médio e registou a sua aquisição. 21. Mais, o prazo de 3 anos previsto no art 291.º nº 2 do Cód.Civil, que fazem com que os direitos do terceiro não sejam todavia reconhecidos, não obstante verificados todos os outros requisitos, já se encontra ultrapassado, pelo que os efeitos de nulidade ou da anulação cedem perante o direito do terceiro adquirente. 22. Efectivamente todos os registos de aquisição foram anteriores ao registo da acção, acautelando todos os seus direitos e a segurança do comércio jurídico. 23. O Recorrente nem no período de tempo que o art 291.ºn.º 2 do CC prevê – 3 anos, propôs a acção judicial, de forma a reaver o veículo e evitando sucessivas transmissões. 24. As exigências legalmente previstas [art. 291.º n.º 1 do CC], a propositura e o registo da acção dentro do referido prazo daria publicidade à situação jurídica do veículo e impediria todo e qualquer negócio que recaísse sobre o mesmo. 25. Considerando todo o exposto encontram-se preenchidos os requisitos do art. 291.º do Cód.Civil, sendo os ora Recorridos terceiros de boa fé, perante todo o trato sucessivo. 26. Porquanto se revela na única posição que se compadece com os princípios estruturantes do registo, como o princípio da publicidade e o princípio da segurança jurídica do comércio. * Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa apreciar e decidir. * II - Mérito do recurso 1. Objeto do recurso Este objeto, como é sabido, é, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC)]. Assim, observando este critério, no caso presente, o objeto do recurso é saber se: 1º - Deve ser alterada a matéria de facto. 2º - Deve ser revogada a sentença e reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o veículo objeto dos autos. 2. Fundamentação de facto. 2.1. Na sentença sob recurso deram-se como provados os seguintes factos: 2.1.1. A Autora é uma sociedade comercial anónima, cujo objecto social consiste, designadamente, na celebração de contratos de financiamento (locação/aluguer e mútuo), relativos a veículos automóveis. 2.1.2. Neste contexto, a Autora recebe propostas de fornecedores (empresas dedicadas à comercialização de automóveis) com vista ao financiamento da aquisição de viaturas. 2.1.3. Em Abril de 2008, a Autora recebeu, através do fornecedor PKK Sport, Unipessoal, L.da, uma proposta para celebração de um contrato de mútuo, no qual seria mutuário Petroterras, Combustíveis Lubrificantes, L.da (DOC 1) 2.1.4. A proposta previa o financiamento à aquisição, pelo mutuário, de um veículo automóvel, de marca “Mercedes”, modelo “M Diesel”, com a matrícula “XX-XX-XX”. 2.1.5. O crédito concedido seria no valor de € 76 000.00, a reembolsar nos termos e condições do contrato de mútuo que se junta como (DOC 2) 2.1.6. Com vista à instrução de tal proposta, nos termos descritos no supra art.º 3º, o referido fornecedor enviou à Autora documentos relativos quer à viatura, quer ao mutuário, como é usual neste tipo de contratos. 2.1.7. Com base nos pressupostos referidos e após análise dos documentos recebidos, a proposta veio a ser aprovada e, em consequência, o contrato de mútuo junto como DOC 2 foi formalizado. 2.1.8. A fim de cumprir a sua prestação contratual, a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor, da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento) (DOC 4) 2.1.9. Na vigência do contrato apenas foi paga uma prestação. Na sequência do incumprimento, os serviços de recuperações da Autora procuraram contactar o mutuário, sem ter, contudo, sucesso, tendo expedido a carta que se junta como DOC 3, interpelando para cumprimento e advertindo para a verificação do incumprimento definitivo, caso não houvesse pagamento. 2.1.10. Ao verificar a situação registral da viatura de matrícula XX-XX-XX, sobre a qual detinha uma reserva de propriedade, a Autora constatou que havia sido cancelada a reserva de propriedade de que era beneficiária a Autora sobre a viatura de matrícula XX-XX-XX (AP 3103de 10/07/2008) (Documento 4 fls 18). 2.1.11. As assinaturas constantes no documento de extinção de registo, não foram efectuadas por qualquer representante do Autor, ou por alguém que a vinculasse na qualidade de seu procurador. 2.1.12. Através da ap. 3104, da mesma data, a aquisição do veículo foi registado a favor de M. (2ª Réu). 2.1.13. Através da ap. 8259 de 07/08/2008, a aquisição do veículo foi registada a favor de A., Comércio de Automóveis, L.da (3º Réu). 2.1.14. Posteriormente, a aquisição do veículo foi registada a favor de S. (4º Réu) – Ap 5168 de 28/10/2008. 2.1.15. Seguindo-se a Fundaserra, Construções, L.da (5º Réu) – Ap. 209 de 10/09/2009. 2.1.16. E a Obripostura, L.da (6º Réu) – Ap. 3612 de 12/11/2009. 2.1.17. E ainda a J. (7º Réu) – que tem a mesma morada no registo automóvel que o 5º Réu. 2.1.18. O 3º Réu, exerce a sua actividade de comércio de automóveis, que consubstancia a compra e venda de automóveis. 2.1.19. É no exercício dessa sua actividade que lhe foi apresentada por M. a proposta para venda de uma viatura de marca Mercedes-Benz, modelo M Diesel com a matrícula XX-XX-XX. 2.1.20. À data da aquisição pelo 3º Réu da referida viatura Mercedes Benz a M. não existiam no registo automóvel quaisquer ónus ou encargos inscritos sobre a viatura. 2.1.21. O Réu S. comprou o veículo à sociedade Coviatop Comércio de Automóveis, Lda., na sequência de proposta de compra e venda celebrada a 20 de Agosto de 2008, tendo procedido ao pagamento do preço estipulado no contrato que celebrou com essa empresa, no montante total de €63.000,00 (sessenta e três mil euros), efectuado em três prestações, uma de €8.000,00 (oito mil euros), paga a 29 de Julho de 2008, outra de €15.000,00 (quinze mil euros), paga a 20 de Agosto de 2008, aquando da celebração proposta de compra e venda, e uma outra no valor de €40.000,00 (quarenta mil euros), paga a 4 de Setembro de 2008, cfr. Docs. 1 e 4 a 7 2.1.22. Em 30 de Julho de 2009, o Réu, por novo contrato celebrado com a mesma empresa Coviatop–Comércio de Automóveis, Lda., entregou a esta o veículo em questão, para troca por um outro automóvel, cfr. Doc. 8. 2.1.23. A 7 de Setembro de 2009, a ora adiante designada 5ª Ré comprou o veículo automóvel ao 4º Réu, S., por intermédio da empresa de comércio de automóveis, Coviatop, Lda 2.1.24. O documento único automóvel entregue à 5ª Ré não continha a menção de qualquer tipo de ónus ou encargos sobre o veículo automóvel, 2.1.25. A 5ª Ré promoveu o registo da propriedade automóvel em seu nome a 07 de Setembro de 2009 (vide documento n.º 4 junto com a douta petição inicial). 2.1.26. Por sua vez, a 15 de Outubro de 2009, a 5ª Ré vendeu à 6ª Ré o veículo automóvel em litígio, conforme documento nº 3 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 2.1.27. A 6ª Ré procedeu ao registo de transmissão de propriedade, após ter comprovado através da verificação dos elementos constantes do documento único automóvel, de que sob o veículo automóvel não impendiam quaisquer ónus ou encargos (vide documento n.º4 junto com a douta petição inicial). 2.1.28. A 20 de Novembro de 2009, a 6ª Ré vendeu o veículo automóvel em crise ao 7º Réu, 2.1.29. O 7º Réu procedeu ao registo de transmissão de propriedade a seu favor, a 15 de Outubro de 2011. 2.1.30. Na altura da transmissão, os réus desconheciam que o respectivo registo padecesse de qualquer vício. 2.1.31. O Réu F. comprou o veículo automóvel no ano de 2014 e registou a aquisição em 05/11/2014 – Ap 01374; 2.1.32. O veículo foi adquirido através da sociedade comercial JOVILUCAS, que se dedica ao comércio de automóveis e serviços de reboque; 2.1.33. Pelo preço de € 22.000,00; 2.1.34. Foi o vendedor quem, enquanto profissional do ramo automóvel, tratou do registo do automóvel, sendo que não constavam quaisquer ónus, reserva de propriedade ou acções pendentes no registo automóvel. 3. Fundamentação de direito. 3.1. Da reapreciação da matéria de facto. Na tese da Apelante, “o Tribunal recorrido não teve em consideração toda a prova existente nos autos e produzida em audiência havendo, por isso, erro na decisão de facto, desde logo porque foi junta aos autos e não foi impugnada pelas partes a certidão completa de registo automóvel relativa à viatura objeto dos autos e dela que a Autora, no âmbito do financiamento, adquiriu e registou em seu nome essa viatura e que a vendeu ao “mutuário”, com reserva de propriedade, ssse facto resulta igualmente da “motivação” do Tribunal recorrido, quando refere que “A testemunha (SM) referida supra confirmou ainda a existência da cláusula de reserva de propriedade para garantia do mútuo, confirmando tal natureza do negócio celebrado que envolveu a inscrição no registo quer da propriedade quer da sua reserva a favor do Autor, encontrando-se nos autos os comprovativos de registo respectivos, razão pela qual foi dado como provado o facto nº 8”. Ora, o facto provado como n.º 8 omite esse registo de propriedade a favor da Autora, prévio à venda com reserva de propriedade ao “mutuário”. Por isso, entende a Recorrente que o ponto 8 dos factos provados foi incorrectamente julgado, porquanto quer a certidão junta aos autos quer o depoimento da testemunha da Autora SM. referido pelo Tribunal como a sua “motivação” implicariam que fosse dado como provado que a Autora adquiriu e registou em seu nome a viatura objecto dos autos, que posteriormente vendeu no âmbito do financiamento ao mutuário, com reserva de propriedade e não apenas que “8. A fim de cumprir a sua prestação contratual, a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor, da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento) (DOC 4)”. Cumpre apreciar e decidir. Pese embora, não constar do facto provado como nº 8 que a propriedade do veículo objeto dos autos foi registada em nome da Autora, certo é que o tribunal recorrido, aquando da apreciação e decisão das questões discutidas nestes autos deu como assente esse registo. Ou seja, analisou e interpretou esse facto nº 8 como abrangendo, também o registo da propriedade do veículo em nome da A. Com efeito, na sentença em crise escreveu-se - “O que nos parece fundamental sublinhar é que o Autor, apesar de referir ter registado o veículo a seu favor e reservado para si a propriedade não pede a resolução de um contrato de compra e venda. Pede o reconhecimento da resolução do contrato de mútuo efectivamente celebrado com o seu cliente. Não sendo o registo constitutivo, afigura-se-nos que o próprio Autor admite não ter adquirido através de contrato de compra e venda o veículo aqui em causa, não alegando ter tido vontade de adquirir para si o veículo, pagando o respectivo preço e obtendo a entrega do mesmo para sua utilização mas antes, como é confessado pelo próprio, financiado a sua aquisição pelo seu cliente, o 1º Réu, registando a propriedade do veículo para obstar à eventual declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo que igualmente registou a seu favor. Consideramos, assim, ilidida a presunção que deriva do registo de aquisição. Pelo que a única questão que se coloca é de saber se é válida ou não a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do Autor …”. (sublinhados nosso) Em conclusão, o tribunal recorrido deu como assente que a Autora teve registado em seu nome o veículo dos autos, mas considerou ilidida a presunção, do direito de propriedade da Autora, que deriva do registo, donde, afigura-se irrelevante fazer ou não constar dos factos provados que a propriedade do veículo dos autos esteve registada em nome da A., porém, tendo em conta o teor da certidão da CRA e depoimento da testemunha nada obsta a que se altere a redação do ponto 2.1.8. dos factos provados passando o mesmo a ter a seguinte redação: “A Autora registou em seu nome a viatura objeto dos autos, a fim de cumprir a sua prestação contratual a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento)”. 3.2. Deve ser revogada a sentença e reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o veículo objeto dos autos. O tribunal recorrido, considerou ilidida a presunção do direito de propriedade da Autora sobre o veículo objeto dos autos, que deriva do registo de aquisição, porquanto, o próprio Autor não alega ter tido vontade de adquirir para si o veículo, pagando o respetivo preço e obtendo a entrega do mesmo para sua utilização mas antes, como é confessado pelo próprio, financiado a sua aquisição pelo seu cliente, o 1º Réu, registando a propriedade do veículo para obstar à eventual declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo que igualmente registou a seu favor. Compulsada a petição inicial, parece-nos que o raciocínio do tribunal “a quo” não merece qualquer reparo. Com efeito, em parte alguma da petição inicial é afirmado pela Autora que adquiriu o veículo em causa, para de seguida o vender a terceiro, pelo contrário, o que resulta da petição inicial é que a vontade da Autora foi financiar a aquisição direta do veículo discutido nos autos pelo mutuário, aqui 1ª Ré. Veja-se o teor dos seguintes artigos, daquela peça processual: 3.º - Em Abril de 2008, a Autora recebeu, através do fornecedor PKK Sport, Unipessoal, L.da, uma proposta para celebração de um contrato de mútuo, no qual seria mutuário Petroterras, Combustíveis Lubrificantes, L.da (DOC 1) 4.º - A proposta previa o financiamento à aquisição, pelo mutuário, de um veículo automóvel, de marca “Mercedes”, modelo “M Diesel”, com a matrícula “XX-XX-XX”. 5.º - O crédito concedido seria no valor de € 76 000.00, a reembolsar nos termos e condições do contrato de mútuo que se junta como (DOC 2) 6.º - Com vista à instrução de tal proposta, nos termos descritos no supra art.º 3º, o referido fornecedor enviou à Autora documentos relativos quer à viatura, quer ao mutuário, como é usual neste tipo de contratos. 7.º - Com base nos pressupostos referidos e após análise dos documentos recebidos, a proposta veio a ser aprovada e, em consequência, o contrato de mútuo junto como DOC 2 foi formalizado. 8.º - A fim de cumprir a sua prestação contratual, a Autora procedeu ao pagamento ao fornecedor, da quantia mutuada. Foi ainda feita a inscrição da propriedade da viatura em nome do mutuário, tendo sido efectuado o competente registo de reserva de propriedade a favor da Autora (como garantia de pagamento) (DOC 4), fls 10 ss). Os artigos seguintes da petição inicial referem-se ao incumprimento do contrato de mútuo, resolução do mesmo e à averiguação da situação registral da viatura, sobre a qual detinha uma reserva de propriedade. Assim, mostrando-se afastada a presunção que deriva do registo do direito de propriedade da Autora, não existindo factos provados que permitam afirmar, por qualquer modo de aquisição, o direito de propriedade da A. sobre o veículo em causa nos autos, impunha-se, como decidiu o tribunal “a quo”, a improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o veículo objeto dos autos. Por outro lado, como vamos demonstrar de seguida, também não merece reparo, a análise e decisão do tribunal “a quo” sobre a questão da validade ou não a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da Autora que financiou a compra efetuada pelo 1º Réu a terceiro, do veículo automóvel identificado e se, em caso de incumprimento do contrato de financiamento, lhe deve ser reconhecida a propriedade do veículo, permitindo-se-lhe pedir a restituição deste ao seu detentor. O raciocínio desenvolvido pela Autora assente nos seguintes pressupostos: - A Autora financiou a aquisição do veículo pela 1ª Ré; - Para garantia desse financiamento reservou para si propriedade do veículo; - Com fundamento no incumprimento pela Ré, o contrato de mútuo foi resolvido; - Tendo a Autora suportado o preço integral do financiamento, e nunca a tendo “vendido”, esta é sua plena e exclusiva propriedade, tanto mais que o contrato terá sido, nos termos contratuais, resolvido, e a Autora era a detentora de uma reserva de propriedade sobre a viatura. Desde já se afirma que não aceitamos a tese da Autora, a qual assenta na construção da reserva de propriedade como um direito real de garantia, o que não é admissível face ao principio da tipicidade das restrições ao direito de propriedade, cf. art.º 1306º do Código Civil. Estipula o art.º 409º do Código Civil (Reserva de propriedade). 1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. 2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros. O estabelecido neste normativo, constitui uma exceção à eficácia real dos contratos prevista no art.º 408º Código Civil e, mesmo que as partes atribuam à reserva de propriedade a função de garantia do cumprimento do contrato de financiamento, não tem natureza real, atento o principio da tipicidade dos direitos reais. Cf. art.º 1306º Código Civil. Aliás, não se entende, face ao alegado, como pode a A. ter reservado para si a propriedade do veículo financiado. Com efeito, nos termos do citado nº 1, do art.º 409º do Código civil, só o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa … ., ainda que essa reserva seja feita no interesse de terceiro. Em contratos de crédito como o dos autos, coligados sistematicamente a contratos de compra e venda até porque, em muitos casos, vendedora e financiadora são empresas que se encontram numa relação de grupo, pode admitir-se que a reserva de propriedade, a favor da vendedora, seja feita até ao cumprimento total do contrato de crédito, mas nunca que essa reserva de propriedade seja feita a favor da financiadora. O artigo 409.º do Código Civil limita claramente a possibilidade de se estipularem reservas da propriedade aos contratos de alienação, ou seja, aos contratos translativos da propriedade sobre coisas. Como liminarmente flui do nº 1 do citado normativo, só aquele que pretende alienar a coisa pode reservar para si a propriedade da mesma, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. Reservar, significa pôr de parte algo. Ora, o financiador, a aqui Autora não pode reservar, pôr de parte, algo que nunca teve, no caso, a propriedade do veículo. Com efeito, se a Autora financiou a aquisição pela 1ª Ré do veículo discutido nos autos, não se enxerga como é possível, com base num raciocínio lógico, dizer que a Autora pode pôr de parte, para si, a propriedade daquele veículo que nunca foi seu, até que a 1ª Ré cumpra integralmente o contrato de financiamento. Na doutrina e jurisprudência, uns entendem que é válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador outros defendem o contrário. Para nós, a admissão da validade de reserva de propriedade a favor do financiador, não titular do direito de propriedade sobre o veículo cuja aquisição por terceiro financiou, assenta numa contradição insuperável. 3.2. Do pedido de restituição do veículo e cancelamento dos registos. Pese embora as partes terem estabelecido no contrato de financiamento a possibilidade da A. reservar para si a propriedade do veículo para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, cláusula inválida como se demonstrou, a restituição do veículo sempre pressuporia a resolução do contrato de compra e venda. Como pode fundamentar-se a restituição do veículo sem ser resolvido o contrato de compra e venda. A A. nem sequer formulou o pedido de resolução do contrato de compra e venda, por outro lado, não se vê com que fundamento se poderia declarar a resolução deste contrato. A A. não invocou qualquer facto que possa conduzir à resolução do contrato de compra e venda. Aliás, como já se disse, não se entende, face ao alegado, como pode a A. ter reservado para si a propriedade do veículo financiado. Admite-se que a reserva de propriedade, a favor da vendedora, seja feita até ao cumprimento total do contrato de crédito, o que não pode é a reserva ser feita a favor da financiadora, porque, só ao alienante é licito reservar para si o direito de propriedade da coisa, admitindo-se que essa reserva seja feita no interesse de terceiro. O terceiro (neste caso a A./financiadora) não pode reservar para si a propriedade do veiculo, porque não é proprietária. Não resulta do clausulado do contrato de financiamento que o incumprimento deste contrato de financiamento conferia à A. (que nem sequer é parte no contrato de compra e venda) a faculdade de resolver o contrato de compra e venda e, como já se disse, nem a A. tal alegou ou pediu na petição inicial. Assim nesta parte, o pedido carece de total fundamento. Este entendimento em nada contraria o já decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos doutos Ac. de 27/06/2006 e de 29/04/2004, ambos in www.dgsi.pt, pois, nestes casos, a reserva de propriedade, apesar de se destinar a garantir o bom cumprimento do financiamento, estava constituída a favor do alienante, jurisprudência com a qual, apesar de douta, não se concorda na íntegra, adotando-se, antes, a jurisprudência defendida no douto ac. do STJ de 12-05-2005, CJ ANO XIII, TOMO II, 2005. Naqueles Acs. da Relação de Lisboa, entendeu-se, sinteticamente, que resolvido o contrato de financiamento, dada a interdependência entre aquele e o contrato de compra e venda, teríamos que concluir pela resolução, simultânea do contrato de compra e venda e, tendo em conta a reserva de propriedade a favor da alienante, reconhecer-lhe a sua propriedade sobre o bem financiado, pelo contrário, no Ac. do STJ, entendeu-se, sinteticamente, citando L.P. Moitinho de Almeida “tendo o veículo sido comprado com reserva de propriedade, é o vendedor quem tem legitimidade para requerer a apreensão do veículo, nos termos do art. 15º do Dec-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, e não a entidade terceira que financiou essa aquisição. A interpretação mais adequada aos preceitos em vigor e à própria natureza da reserva de propriedade é a que tem defendido que só o vendedor do veículo a prestações, titular do registo de reserva de propriedade, pode requerer o processo cautelar de apreensão”. Aplicando esta jurisprudência do STJ, conclui-se que a A., ainda que fosse considerada válida a cláusula de reserva de propriedade, nunca teria legitimidade para propor a ação de resolução do contrato de alienação e, mais importante, nem tal alegou ou pediu nestes autos, donde, bem andou o tribunal “a quo” ao concluir pela improcedência do pedido na parte em que pede a condenação dos Réus a reconhecer o direito de propriedade sobre o veiculo a restituição do mesmo e o cancelamento dos registos. A reserva de propriedade, vista por uns como uma condição resolutiva e por outros como condição suspensiva, encontra-se sempre ligada às vicissitudes do contrato de alienação, nunca a qualquer outro contrato. Ao verificar-se o evento a que as partes condicionaram o contrato de alienação, poderá haver a reversão da propriedade plena para o alienante. Em suma, face ao estabelecido, expressamente na lei, quanto à tipicidade das restrições ao direito de propriedade, não é licito caracterizar a reserva de propriedade como um direito real de garantia, sendo que foi nesta perspetiva que a A. aqui o invocou. Em conclusão, improcedem todas as conclusões e o recurso. 4. Decisão: Por tudo o que se deixou exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação mantendo a decisão recorrida. Custas pela Apelante. Notifique. Lisboa, 14-09-2023 Octávio dos Santos Moutinho Diogo; Maria do Céu Silva. Teresa Sandiães. |