Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA ALMEIDA E SOUSA | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/14/2025 | ||
Votação: | MAIORIA C VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | Sumário: (da responsabilidade da Relatora) A razão de ser da previsão e regulamentação das declarações para memória futura, quer nos termos previstos no art. 271º do CPP, quer no art. 33º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, quer no art. 24º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro é evitar os efeitos nefastos de audição múltipla e repetida por diferentes entidades acerca dos mesmos factos, desde logo, por razões de vitimização secundária, mas também pelos riscos de revitimização envolvidos e de perda da genuinidade dos depoimentos. Investigações empíricas no domínio da vitimologia têm evidenciado que o dever de testemunhar comporta um assinalável efeito de vitimização secundária em que a pessoa é forçada a relembrar e a reviver os sentimentos negativos (medo, ansiedade, tristeza, mau estar emocional) experimentados quando da infracção, efeito este especialmente intenso e pernicioso se estiver em causa um núcleo muito restrito de intimidade pessoal como sucede no âmbito dos crimes sexuais ou da violência doméstica. O crime objecto do processo é de violência doméstica, a propósito do qual existe todo um enquadramento jurídico de tutela reforçada das vítimas. A exigência de razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, que realmente devem ser objecto de uma análise casuística para outros crimes, mantendo as declarações para memória futura natureza excepcional, condicionada à verificação em concreto, daquelas razões especiais, tal como imposto no regime geral contido no art. 271º do CPP, não se aplicam no domínio da violência doméstica e do combate e repressão deste tipo de criminalidade, porque para ele vigoram outras regras que têm com aquele art. 217º do CPP uma relação de especialidade. Trata-se, em suma, de converter a tomada de declarações para memória futura no regime regra quanto ao modo de inquirição da vítima, para assegurar a sua audição em tempo útil compatível com a celeridade desejável do processo, em atenção ao seu carácter urgente, assim como para lhe assegurar protecção contra o perigo de revitimização e evitar que sofra pressões, represálias ou qualquer forma de intimidação por parte do agressor, acautelando a genuinidade do seu depoimento e prevenindo a vitimização secundária, evitando-se à partida a repetição da sua audição. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO Por despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal em ... de ... de 2025, no inquérito nº 370/25.8T9LRS do Juízo de Instrução Criminal de Loures - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi indeferido o pedido formulado pelo Mº. Pº. no sentido de serem tomadas declarações para memória futura à Vítima AA, por ser testemunha e vítima especialmente vulnerável, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, n.ºs 1, 3 e 4, 2.º, alínea a), 26.º, n.ºs 1 e 2, 27.º, n.ºs 1 e 2, e 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, nos artigos 1.º, alínea j), e 67.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 3, ambos do CPP, e artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, por entender que, no caso dos presentes autos, não se verificam as condições legalmente previstas para o efeito. O Mº. Pº. interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões: 1. No presente inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem a prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a), e nºs 4 a 6, do Código Penal, em que é vítima AA, e arguido BB. 2. Em cumprimento do disposto nos artigos 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, e 271º do Código de Processo Penal, foi requerida a tomada de declarações para memória futura da vítima AA. 3. O artigo 32º nº 5, da Constituição da República portuguesa determina a separação de poderes processuais de investigação e julgamento, decorrente da independência das magistraturas. 4. O Ministério Público como titular da ação penal e a quem cabe a direção do inquérito, efetuou a qualificação jurídica dos factos (crime de violência doméstica), como lhe compete por lei. 5. E requereu ao Mmo. Juiz de Instrução, a tomada de declarações para memória futura da vítima AA, por se tratar de vítima de violência doméstica, e por isso, especialmente fragilizada, sendo que nestes casos, os depoimentos das vítimas são essenciais para a descoberta dos factos, importando protegê-las de possíveis pressões que ponham em causa a espontaneidade, a sinceridade e a memória das declarações, bem como, do perigo de revitimização. 6. O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos bens jurídicos tutelados pelos diversos ilícitos típicos que o podem preencher. O legislador quis tutelar mais do que a saúde física ou psíquica da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa a esta (Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução ao indeferir a tomada de declarações para memória futura, nos termos e com os fundamentos em que o fez, com base em "(...) que a vítima, que também é arguida, já depôs abundantemente em sede de inquérito, e o facto de o fazer, novamente, agora, não impedirá de vir a ser chamada novamente caso os autos transitem para julgamento (ou mesmo instrução) e o arguido, em contestação/requerimento de abertura de instrução, venha apresentar defesa com a qual seja necessário confrontá-la (como é aliás, situação corrente neste tipo de criminalidade). Pelo exposto e por se não verificaram as condições legalmente previstas para a tomada de declarações para memória futura, vai tal diligência indeferida.") 8. O Ministério Público discorda desta decisão, por considerar que nos inquéritos de violência doméstica, ainda mais sendo o presente de risco elevado, tal diligência deverá ser realizada porquanto se revela fundamental não só enquanto meio de prova, mas como medida especial de proteção da vítima, de modo a evitar precisamente situações de vitimização secundária. 9. Como decorre do artigo 16º, nº 2 da Lei nº 112/2009, «as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal». 10. Da análise das sucessivas alterações legais no que ao regime das declarações para memória futura concerne, constata-se que se evoluiu de uma natureza puramente cautelar- em que se visava assegurar, tão-só, a antecipação da produção de prova - para uma natureza mista, cautelar e de proteção, com vista a proteger e evitar a exposição permanente das vítimas, sempre ao abrigo de uma crescente jurisdicionalização por forma a assegurar os direitos fundamentais do arguido e o respeito por um processo equitativo. 11. O recurso ao instituto das declarações para memória futura nos casos de crimes de violência doméstica procura, mormente, evitar os danos psicológicos causados pela evocação sucessiva, pelas vítimas, da sua experiência traumática e a sua exposição em julgamento público - a chamada vitimização secundária. 12. O critério crucial para se decidir pela realização ou não da diligência, face ao consagrado nos aludidos preceitos legais, terá de passar pela ponderação da necessidade de proteção da vítima, margem de ponderação essa que, no caso das vítimas especialmente vulneráveis, deixa de existir, já que esta condição de fragilidade, reconhecida desde logo pela Lei, está indiscutivelmente associada à necessidade da sua proteção. 13. Não se compreende por que motivo não deveria a vítima ser ouvida em declarações para memória futura por esta também assumir a qualidade de arguida. 14. As declarações para memória futura são presididas pelo Mmo. Juiz de Instrução, que procede à inquirição, limitando-se o Ministério Público e o arguido a formular perguntas adicionais, nos termos do artigo 271º, nº 5 do Código de Processo Penal. 15. É ao Ministério Público que cabe a direção da ação penal na sua plenitude, sendo este quem decide a tempestividade e adequação das diligências probatórias a encetar na fase de inquérito (artigos 53º nº 2, alínea b) e 263º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal). 16. A tomada de declarações para memória futura traduz-se numa exceção ao princípio constitucional da imediação. 17. A violência doméstica é um tipo de crime que se insere no conceito de criminalidade violenta, conforme definido no artigo 1º, alínea j) do Código de Processo Penal. 18. A vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67.°-A, nº l, alínea b) e por força do estabelecido no nº 3 do mesmo diploma. 19. O artigo 21º, nº 2, alínea d) da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, estabelece que as vítimas especialmente vulneráveis beneficiam de várias medidas especiais de proteção, entre elas a da prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.2 do mesmo diploma, a fim de que os seus depoimentos possam ser tidos em conta em sede de julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.2 do Código de Processo Penal. 20. O objetivo da Lei é - a par com o estabelecido nos artigos 26º e 28º da Lei nº 93/99, de 14 de julho - que as declarações da vítima especialmente vulnerável tenham lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e que, sempre que possível, seja evitada a repetição da sua audição, com vista a evitar a vitimização secundária dos ofendidos. 21. Para além de um direito das vítimas especialmente vulneráveis, como a do presente processo, e de uma medida de proteção, as declarações para memória futura constituem um meio de prova e por isso podem revelar-se essenciais para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz. 22. As declarações de vítima especialmente vulnerável deverá ser efetuada no mais curto espaço de tempo após a ocorrência dos factos ilícitos e sempre que possível deverá ser evitada a repetição da sua audição. Também neste sentido o artigo 28.5 da Lei n.5 93/99, de 14 de julho. 23. As boas práticas ensinam que as declarações para memória futura devem ocorrer o mais próximo possível do evento lesivo, de modo a que o depoimento seja mais fidedigno e com vista a evitar a já mencionada vitimação secundária. 24. Carece de base legal a devolução dos autos ao Ministério Público sem a competente realização das declarações para memória futura. 25. Ao decidir da forma como o fez, violou o Mmo. Juiz de Instrução o disposto nos artigos 48º, 263º, nº 1, 267º, 269º, nº 1, alínea f) e 271º do Código de Processo Penal, 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, 21º, nº 2, alínea d) e 24º da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, artigo 28º da Lei nº 93/99, de 14 de julho, 20º, nºs 1 e 2 e 32º, n.ºs 1, 3 e 5 da Constituição da República Portuguesa, 6º, nº 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 47º e 48º, nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, o despacho ora em crise, deve ser substituído por outro, onde se determine a tomada de declarações para memória futura da vítima AA. Admitido o recurso, o arguido apresentou resposta, tendo formulado as seguintes conclusões: 1. Não obstante o Ministério Público ser o titular do inquérito, a quem cabe promover a obtenção de meios de prova e definir a estratégia da investigação, a lei é clara no sentido de ser da competência do Juiz de Instrução a realização das declarações para memória futura. 2. O Juiz de Instrução Criminal pode indeferir a tomada de declarações para memória futura quando, após a análise dos factos denunciados, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada da prova, não estando vinculado, quer à realização das diligências promovidas pelo Ministério Público, quer às suas decisões, devendo assegurar a legalidade do processo e decidir de forma autónoma. 3. Ademais, tendo em consideração que os factos imputados ao BB resultam exclusivamente das declarações prestadas pela Vítima AA, o Arguido BB, aquando da apresentação de eventual requerimento de abertura de instrução e/ou contestação, necessitará de confrontar a Vítima AA, quanto aos referidos factos. 4. Por outro lado, considerando que a Vítima AA assume a posição de Arguida nos presentes autos, sem prejuízo de prestar declarações para memória futura, a mesma terá sempre de ser ouvida novamente, na qualidade de Arguida, seja na fase de instrução ou de julgamento. 5. E, uma vez que os factos imputados à Arguida AA e ao Arguido BB são, na sua maioria, comuns, aquela sempre terá de ser ouvida novamente, sobre os factos vier a prestar em sede de declarações para memória futura. 6. Situação que obsta ao cumprimento do objetivo que o instituto das declarações para memória futura visa assegurar - proteger a vítima de sucessivas reinquirições, que a obrigam a reviver o trauma, conduzindo a uma vitimização secundária, procurando garantir a espontaneidade e sinceridade das respostas. 7. Aliás, atenta a posição assumida pela Vítima AA no processo – que apresenta recorrentemente aditamentos aos factos, e presta declarações sobre os mesmos -, inexiste qualquer elemento que indicie que a mesma sofra qualquer consequência psicológica ao reviver os factos por si denunciados. 8. Tendo em conta a excecionalidade do instituto das declarações para memória futura e o facto de a Vítima AA assumir igualmente a qualidade de Arguida nos presentes autos, associados ainda à total ausência de elementos que permitam concluir pela absoluta necessidade de assegurar a genuinidade, espontaneidade, autenticidade da prova e da saúde mental da Vítima, não se mostram reunidas, no atual estádio processual, as circunstâncias de excecionalidade para que a Vítima AA preste declarações para memória futura. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. certamente suprirá, sempre deverá o recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, ser mantida a decisão proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que indeferiu a diligência de tomada de declarações para memória futura à Vítima AA. Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, emitiu parecer no sentido de que será de proceder o recurso em análise, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para tomada de declarações para memórias futura à vítima/testemunha especialmente vulnerável AA. Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta. Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR: De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061). Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma; Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. Seguindo esta ordem lógica, a única questão que cumpre apreciar é a de saber se estão verificados os pressupostos de admissibilidade/exigibilidade das declarações para memória futura. 2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Os factos que importa considerar para a decisão do presente recurso são os seguintes: O inquérito nº 370/25.8T9LRS foi instaurado para investigação de factos susceptíveis de integrar a prática pelo arguido BB, como autor material e na forma consumada, da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nºs 1, alínea b) e 2, alínea a), e n.ºs 4 a 6, do Código Penal, quanto à sua ex-companheira e aqui vítima, com quem tem dois filhos em comum, AA. O grau de risco é elevado. Em ... de ... de 2023, o Mº. Pº. requereu que AA fosse ouvida em declarações para memória futura (promoção com a referência Citius ...). Sobre esta promoção recaiu o despacho recorrido, o qual tem o seguinte teor (transcrição parcial do despacho com a referência Citius ...): O Ministério Público vem requerer a tomada de declarações para memória futura à vitima, AA. Refere, para justificar a sua pretensão: “Impõe-se ainda evitar a vitimização secundária de AA (cf. artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro), multiplicando-se a realização de inquirições, quer no âmbito do inquérito, quer através da prestação de depoimento em audiência de julgamento, concentrando o seu depoimento no momento processual das declarações para memória futura, evitando possíveis interferências da parte do arguido. Pretende-se, pois, mais uma vez, permitir às vítimas que reproduzam factualidade relevante para a presente investigação num ambiente de preservação da sua integridade psíquica, devidamente acompanhadas por técnico especializado e na ausência do denunciado ou sequer da ameaça da sua presença, de forma a não voltar a vitimizá-la através da reprodução de tais factos em ambiente mais severo.” Nos termos do disposto no artigo 33º da Lei número 112/2009, de 16 de Setembro, quando esteja em causa a prática de crimes de violência doméstica, podem ser também tomadas declarações para memória futura a vítimas, assistentes, partes civis, peritos e consultores técnicos, e realizadas acareações. A tomada de declarações para memória futura pretende evitar a revitimização de pessoas vítimas de crime, mas não é obrigatória nem deve ser regra (a este propósito, inteiramente se concorda com a argumentação expendida no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-4-2023, relatado por Manuel Advínculo Sequeira, proc. nº 813/22.2SXLSB-A.L1-5, disponível in www.dgsi.pt), e cabe ao juiz aquilatar, em face das circunstâncias do caso concreto se a mesma é de realizar, em face dos interesses em confronto, sem olvidar o princípio da imediação, basilar no nosso processo penal. Sucede no caso dos autos, que a vítima, que também é arguida, já depôs abundantemente em sede de inquérito, e o facto de o fazer, novamente, agora, não impedirá de vir a ser chamada novamente caso os autos transitem para julgamento (ou mesmo instrução) e o arguido, em contestação/requerimento de abertura de instrução, venha apresentar defesa com a qual seja necessário confrontá-la (como é aliás, situação corrente neste tipo de criminalidade). Pelo exposto e por se não verificaram as condições legalmente previstas para a tomada de declarações para memória futura, vai tal diligência indeferida. Notifique e devolva os autos ao Ministério Público. 2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO A primeira apreciação que cumpre fazer à decisão recorrida é de que a mesma está alicerçada numa hipótese – a de que a vítima será chamada a depor novamente «caso os autos transitem para julgamento (ou mesmo instrução) e o arguido, em contestação/requerimento de abertura de instrução, venha apresentar defesa com a qual seja necessário confrontá-la (como é aliás, situação corrente neste tipo de criminalidade)» – que de verificação incerta está errada, por ser contrária aos direitos processuais das vítimas de violência doméstica, aos objectivos visados com a previsão da diligência de declarações para memória futura como modalidade regra de inquirição das testemunhas vítimas, neste tipo de criminalidade e ao próprio texto da norma contida no art. 24º nº 6 da Lei 130/2015 de 4 de Setembro. Explicando: As declarações para memória futura representam efectivamente uma forma atípica de produção de prova testemunhal, em virtude de ser produzida com os requisitos de validade formal e substancial, quanto aos intervenientes processuais, aos actos que podem praticar e ao exercício dos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência de discussão e julgamento, mas fora dela e em momento processual anterior. O argumento inicialmente invocado para legitimar a introdução desta diligência no CPP, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - o de que estas testemunhas deveriam ser poupadas ao vexame de ter de repetir a sua história e de reviver a sua dor vezes sem conta, diante do OPC, do MP, do juiz de instrução e do tribunal de julgamento e neste tantas vezes quantas o julgamento tivesse de ser repetido – (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 685) é exactamente o mesmo que lhes subjaz actualmente, que determinou o alargamento do seu âmbito de aplicação a um conjunto de crimes, para os quais não estavam inicialmente previstas e para evitar precisamente a necessidade de a vítima ser novamente chamada a depôr, para ser confrontada com a argumentação que o arguido apresentar, no requerimento de abertura da instrução ou na contestação à acusação, ou seja, as declarações para memória futura estão previstas e reguladas na ordem jurídica portuguesa para impedir precisamente a verificação da possibilidade que foi invocada pelo Sr. Juiz de Instrução Criminal como fundamento para o seu indeferimento, no despacho recorrido. A razão de ser da previsão e regulamentação das declarações para memória futura, quer nos termos previstos no art. 271º do CPP, quer no art. 33º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, quer no art. 24º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro, continua efectivamente, a ser a de evitar os efeitos nefastos de audição múltipla e repetida por diferentes entidades acerca dos mesmos factos, desde logo, por razões de vitimização secundária, mas também pelos riscos de revitimização envolvidos e de perda da genuinidade dos depoimentos. Investigações empíricas no domínio da vitimologia têm evidenciado que o dever de testemunhar comporta um assinalável efeito de vitimização secundária em que a pessoa é forçada a relembrar e a reviver os sentimentos negativos (medo, ansiedade, tristeza, mau estar emocional) experimentados quando da infracção, efeito este especialmente intenso e pernicioso se estiver em causa um núcleo muito restrito de intimidade pessoal como sucede no âmbito dos crimes sexuais ou da violência doméstica (cfr. Sandra Oliveira e Silva, A Protecção de Testemunhas no Processo Penal, Coimbra Editora, 2007, pp. 111-112. No mesmo sentido, Mouraz Lopes, em Garantia Judiciária no Processo Penal, Coimbra Editora, 2000, pág. 45 e em O interrogatório da vítima nos crimes sexuais: as declarações para memória futura, págs.17-18). Por outro lado, a fiabilidade do testemunho é profundamente condicionada pela passagem do tempo, de tal modo que quanto mais tardiamente for efectuada a produção da prova menor será, em regra, a credibilidade do relato sobre os factos. E o mesmo se diga da repetição, que além do efeito de vitimização secundária, tem associada uma fortíssima probabilidade de adulteração dos depoimentos e até da própria memória da testemunha. São, por conseguinte, dois os objectivos prosseguidos, neste domínio, pela utilização das declarações para memória futura: impedir a ocorrência de danos psicológicos sobre cuja associação à evocação sucessiva dos factos integradores do crime pela testemunha vítima existe evidência científica, do mesmo modo que evitar os prejuízos emergentes da sua exposição em audiência de discussão e julgamento e fixar os elementos probatórios relevantes e de qualidade para a investigação criminal, a partir do primeiro relato presumível e tendencialmente mais genuíno, mais espontâneo, mais fidedigno à realidade, por ser o mais próximo da data da ocorrência dos factos e, por isso, evitando o perigo de adulteração da prova. Esta posição do legislador nacional é fruto de normas imperativas do direito da união vinculativas em Portugal e de outras insertas em tratados internacionais de que Portugal é Estado Parte, como é o caso, das recomendações constantes das “Regras de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade” aprovadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-Americana que teve lugar no Brasil em 4 a 6 de Março de 2008: “(37) Antecipação jurisdicional da prova Recomenda-se a adaptação dos procedimentos para permitir a prática antecipada da prova na qual participe a pessoa em condição de vulnerabilidade, para evitar a reiteração de declarações...”, de recomendações do Comité de Ministros do Conselho da Europa: R (85) 4, sobre violência familiar; R (85) 11 relativa à posição da vítima no processo penal; R (87) 21, sobre a assistência às vítimas e a prevenção da vitimização; a Convenção do Conselho da Europa sobre a protecção das crianças contra a exploração e os abusos sexuais, celebrada em Lanzarote em 25-10-2007, ainda não ratificada por Portugal. No âmbito da União Europeia merecem destaque a Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAQI, do Conselho da União Europeia relativa ao estatuto da vítima em processo penal e a Directiva 2011/36/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Abril de 2011 relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à protecção das vítimas, e que substitui a Decisão-Quadro 2002/629/JAI do Conselho, a Directiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho e a Directiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, comumente denominada de «Directiva das Vítimas». O crime objecto do processo é de violência doméstica, a propósito do qual existe todo um enquadramento jurídico de tutela reforçada das vítimas. Em tema de dignificação das vítimas de violência doméstica, do que se trata, no imediato, após a noticia do crime, é de fazer cessar os tratamentos cruéis e degradantes a que estão expostas, através da implementação de medidas de afastamento e proibição de contactos com o infractor e, a médio e longo prazo, de lhes assegurar uma protecção multinível que garanta, a um tempo, uma tutela judicial efectiva dos seus direitos processuais, minimizando o perigo de vitimização secundária, potenciando a obtenção e conservação da prova e a eficácia na prevenção, combate e repressão deste tipo de criminalidade e um conjunto diversificado de respostas integradas em múltiplas áreas – saúde, inserção no mercado de trabalho, habitação, acesso à segurança social, apoio psicológico, segurança pessoal, protecção dos filhos - que atenuem os efeitos do crime, antes e depois do processo penal e que contribuam para o empoderamento das vítimas, evitem a sua revitimização e promovam a sua liberdade, em condições de dignidade e de reais oportunidades de viverem livres de violência e com a sua saúde física e mental preservada. Esta é a filosofia que subjaz à Directiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, comumente conhecida como «Directiva das Vítimas». Esta Directiva foi transposta para a Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro. E estes é que são os diplomas a ter em atenção quando se trata de decidir acerca da realização de declarações para memória futura, para obter prova de factos integradores do crime de violência doméstica. Daí que a exigência de razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, que realmente devem ser objecto de uma análise casuística para outros crimes, mantendo as declarações para memória futura natureza excepcional, condicionada à verificação em concreto, daquelas razões especiais, tal como imposto no regime geral contido no art. 271º do CPP, não se aplicam no domínio da violência doméstica e do combate e repressão deste tipo de criminalidade, porque para ele vigoram outras regras que têm com aquele art. 217º do CPP em relação de especialidade. A aquisição do estatuto de vítima, logo que adquirida a notícia do crime, nos termos do art. 14º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro e do art. 20º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro, envolve, entre outros, uma série de direitos de índole estritamente processual vocacionados para uma tutela acrescida das vítimas de violência doméstica. No que se refere à tutela jurisdicional, no âmbito do direito penal e do processo penal, esse conjunto de direitos processuais inspirados nos princípios da igualdade, do reconhecimento e do respeito, da autonomia da vontade, da informação e da confidencialidade consagrados nos arts. 5º a 13º da Lei 112/2009 reflecte-se, na adoção de procedimentos e práticas de informação, de aconselhamento jurídico e representação judiciária, de acesso à justiça e participação no processo penal, de protecção da privacidade e dos riscos de revitimização, coerção ou represálias por parte do agressor, de medidas de afastamento físico e proibição de contactos entre o infractor e a vítima. Uma vez que o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta, tal como definido no artigo 1º al. j) do Código de Processo Penal, a vítima é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma. Assim sendo, por efeito, das disposições conjugadas dos artigos 24° do Estatuto de Vitima aprovado pela Lei nº 130/2015 de 4.9 e do art. 33° da Lei de Protecção às Vitimas de Violência Doméstica (Lei nº 112/2009), resulta, pois, que a tomada de declarações para memória futura tem actualmente uma inquestionável natureza de medida de protecção da vítima particularmente vulnerável e que o âmbito de aplicação do instituto é agora muito mais alargado, já não se circunscrevendo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas, consagrados no artigo 271° do Código de Processo Penal. O art. 22º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro e o art. 17º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro estabelecem que as vítimas têm direito a ser ouvidas em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária, que podem incluir o seu acompanhamento, durante a sua audição, por técnico de apoio à vítima, ou por profissional que lhe esteja a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, já que essa possibilidade está prevista tanto, no art. 32º nº2 da Lei 112/2009 e no art. art. 23º nº 2 da Lei 130/2015, para todas as diligências de tomada de declarações ou de prestação de depoimento em que a vítima tenha de intervir, como especificamente no art. 33º nº 3 da Lei de Protecção às Vitimas de Violência Doméstica, para a tomada de declarações para memória futura. Diversamente, da possibilidade prevista, como regra, no art. 271º nº 8 do CPP de ter de voltar a ser inquirida na audiência de discussão e julgamento, também prevista no art. 33º nº 7 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, o art. 24º nº 6 da Lei 130/2015 prevê que só se for indispensável à descoberta da verdade e desde que não ponha em causa a saúde física e psíquica da pessoa, é que a reinquirição em audiência de julgamento poderá ter lugar, portanto, como excepção. Trata-se, em suma, de converter a tomada de declarações para memória futura no regime regra quanto ao modo de inquirição da vítima, para assegurar a sua audição em tempo útil compatível com a celeridade desejável do processo, em atenção ao seu carácter urgente, assim como para lhe assegurar protecção contra o perigo de revitimização e evitar que sofra pressões, represálias ou qualquer forma de intimidação por parte do agressor, acautelando a genuinidade do seu depoimento e prevenindo a vitimização secundária, evitando-se à partida a repetição da sua audição. Assim, se segundo o regime do CPP, a vítima pode depor em audiência “sempre que for possível” e, de acordo com o Estatuto da Vítima, só o fará se isso se revelar “indispensável”, esta notória diferença entre os dois regimes não é indiferente e tem o alcance de permitir a conclusão de que, apesar de o regime do Código de Processo P?enal acautelar as necessidades das vítimas, salvaguardando a impossibilidade de depoimento em audiência de discussão e julgamento, quando isso as prejudicar, a proteção conferida às vítimas, pelo Estatuto da Vítima, no artigo 24º nº 6, é muito mais alargada: o seu depoimento no julgamento, segundo a lei, deve ser algo excepcional, apenas quando indispensável, relevando, mais uma vez, uma preocupação com a não repetição das inquirições, a sobrepor-se aos princípios da imediação e da oralidade, que exigem uma relação de proximidade, física e temporal entre os intervenientes processuais e o tribunal. « (…) Para além de uma norma ser mais recente que a outra, entre o art.º 24.º do Estatuto da Vítima e o art.º 356.º do CPP existe ainda uma relação de especialidade, pelo que não se pode considerar revogado o disposto no art.º 356.º do CPP, norma geral, atento o disposto no art.º 7.º, n.º 3 do CC. «Igual relação de especialidade se verifica entre os artigos 271.º, n.º 8 do CPP e o 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, sendo esta a norma especial, porque apenas se aplica a testemunhas que tenham a qualidade de vítima. «Ora, a norma do 24 n.º 6 do Estatuto da Vítima impõe como regra as declarações para memória futura e como exceção as declarações em audiência. «Na verdade, determina o dito artigo: «6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. «Enquanto que o n.º 8 do art.º 271.º dispõe: «8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. «Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não o puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde. «Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. (…) «Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos). «2 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.» (Ac. da Relação de Lisboa de 20 de Abril de 2022, processo n.º 37/21.6SXSLB.L1 – 3.ª, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 31.10.2023, proc. 246/22.0PGSXL-A.L1-5ª; de 18.04.2024, proc. 589/23.6GCMTJ-A.L1 -9ª, na mesma base de dados). Quanto à valoração das declarações para memória futura e ao modo como elas podem alicerçar a convicção do Tribunal, o Acórdão do STJ de 11.10.2017, proferido no processo nº 895/14.0PGLRS.L1-A.S1 (AUJ nº 8/2017) fixou jurisprudência no sentido de que: «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271.º, do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código». (DR, I SÉRIE, Nº 224, 21 de Novembro de 2017, p. 6090 – 6113). E como se afirma, neste acórdão, todo o regime actual das declarações para memória futura assenta na preocupação do legislador em garantir o interesse público da descoberta da verdade material, a conservação da prova e a protecção especial da vítima em razão da sua particular vulnerabilidade, resultante quer da idade, quer da natureza dos crimes, compatibilizando-o com os direitos fundamentais do arguido a um processo justo e equitativo, garantindo o exercício do contraditório, com a obrigatoriedade de comparência do defensor do arguido e do Ministério Público e com a possibilidade de formulação direta de perguntas ao declarante. Ao recusar realizar as declarações para memória futura à vítima, o despacho recorrido violou os citados arts. 24º nº 6 do estatuto da vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica, nos termos do art. 2º do mesmo estatuto e do art. 33º nº 7 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, que sendo normas especiais prevalecem sobre a norma geral do art. 271º do CPP, sendo certo que a argumentação feita no mesmo despacho para tentar justificar o indeferimento da sua realização carece de fundamento legal, já que basta a natureza do crime e a aquisição do estatuto de vítima, para que haja lugar, como regra, à tomada de declarações à vítima, para memória futura. Nem se vislumbra, ao contrário do que diz o despacho recorrido, que exista alguma quebra ou diminuição dos princípios da imediação e da oralidade da audiência, pois que, em bom rigor, também têm de ser assegurados quando se tomam declarações para memória futura, sendo estas, como são um excerto do julgamento realizado antecipadamente e como defluí claramente das regras contidas nos nºs 1 a 5 do citado art. 24º que asseguram o pleno e cabal cumprimento de todas as regras também aplicáveis ao julgamento. Face a todo o exposto, o recurso do MP merece provimento e a decisão recorrida tem de ser revogada e substituída por outra que determine a realização das declarações para memória futura nos precisos termos em que a mesma foi requerida pelo Mº. Pº. III – DISPOSITIVO Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa: Em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a realização das declarações para memória futura, nos exactos termos em que foram requeridas pelo Mº. Pº. Sem Custas – art. 522º do CPP. Notifique. * Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos. Tribunal da Relação de Lisboa, 14 de Julho de 2025 Cristina Almeida e Sousa Alfredo Costa João Bártolo - Segundo Adjunto, com voto de vencido, nos seguintes termos: Voto de vencido Votei vencido porque a pessoa a inquirir – AA – é arguida neste processo e só pode ser ouvida nesta qualidade (art. 133.º, n.º1, a), do Código de Processo Penal), não se encontrando legalmente prevista a possibilidade da tomada de declarações para memória futura nessa qualidade. Aliás, tendo a qualidade de arguida, a mesma terá de ser ouvida necessariamente em julgamento, terá de aí estar presente e terá de lhe ser perguntado se quer prestar declarações. Nessa altura, ou repete tudo o que já tiver dito ou exerce o seu direito ao silêncio; sendo que, neste caso, será muito duvidoso que pode ser valorado o que disse anteriormente. Devido a tal qualidade de arguida que a vítima também possui nestes autos entendo que o Acórdão é nulo, nos termos do disposto no art. 425.º, n.º4, do Código de Processo Penal, por ter sido lavrado sem o necessário vencimento. Embora não seja relevante directamente para esta decisão, também não concordo com o que se refere sobre o disposto na regra especial do art. 33.º, n.º7 da Lei n.º 112/2009, a qual, do meu ponto de vista de forma clara, prevê a regra (terá de ser fundamentado para assim não ser) de que a tomada de declarações não evita que a vítima tenha de ser ouvida novamente em julgamento. Apesar de não ser esta a solução correcta de acordo com os interessem em ponderação, é a que está consagrada na lei específica para os casos de violência doméstica. |