Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7473/12.7TDLSB.L1-3
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Nos casos em que as expressões ou imputações difamatórias tenham sido vertidas em peça processual assinada por advogado deve ser excluída a responsabilidade exclusiva do mandante ou cliente, ocorrendo neste caso uma situação de comparticipação criminosa e como tal a queixa e a acusação particular deverão ser deduzidas contra ambos.

II-Só ocorrerá uma situação de responsabilidade exclusiva do mandante ou cliente se tiver sido alegado na queixa e na acusação particular que o advogado, acreditando no seu cliente, agiu na convicção de que os factos eram verdadeiros.

III-A falta de apresentação tempestiva de queixa e posteriormente de acusação particular contra todos os participantes, visto o princípio da indivisibilidade consagrado no artº 115º, nº 2 do Código Penal -em que “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restante” – implica nos termos conjugados dos arts. 116º, nº 1 e 117º, do mesmo diploma legal, à desistência de queixa contra o arguido, e consequentemente, por falta de condição de procedibilidade, ao arquivamento dos autos.

Decisão Texto Parcial:Acordam, do Tribunal da Relação de Lisboa

I RELATÓRIO

Na sequência do inquérito que correu termos nos serviços do MºPº do DIAP de Lisboa, os assistentes C... e L... deduziram acusação particular contra o arguido F...., devidamente identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de difamação p. e p. no artigo 180.° n.° 1 , conjugado com o artigo 183.°, n.° 1, alíneas a) e b) do Código Penal.

O MºPº não acompanhou a acusação assim deduzida, considerando que o arguido não cometeu crime algum por se considerar que a conduta do mesmo, ao negar através do seu mandatário em peça processual da veracidade de um contrato apresentado pelos assistentes, é enquadrável no exercício do direito de defesa, beneficiando assim a conduta de uma causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art. 31.°, n.° 1, e n.° 2, al. b), do Código Penal.

Distribuídos os autos ao 4° Juízo Criminal de Lisboa 4º Juízo – 2ª Secção, o Sr. Juiz proferiu despacho rejeitando a acusação, por a considerar manifestamente infundada, nos termos do art. 311° n°2 al. a) e n° 3 al. d) do Código de Processo Penal

Inconformado com esta decisão, dela interpuseram recurso os assistentes, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que receba a acusação e ordene o prosseguimento dos autos, formulando as seguintes conclusões:

(...)

                                                           *

O MºPº em resposta, sustentou pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, considerando que a expressão em causa fora usada numa peça processual subscrita pelo mandatário do ora arguido, no âmbito de uma acção interposta no Tribunal de Trabalho, respeitante a créditos laborais e movido por este contra a sociedade "C..., Lda." pelo que os visados não seriam os assistentes mas sim aquela sociedade.

*

O recurso foi admitido.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto limitou-se a apor visto.

*

Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre decidir.

II FUNDAMENTAÇÃO

É do seguinte teor a acusação deduzida pelos assistentes e que foi objecto de rejeição:

A - Dos Factos:

(...).

                                                                       *

E é do seguinte teor o despacho recorrido:

I - O Tribunal é competente.

II- A fls. 71 a 78 dos autos vieram os assistentes C... e L... deduzir acusação particular contra o arguido F... imputando-lhe a prática de factos, na sua tese, susceptíveis de integrarem a prática de um crime de difamação previsto e punido pelos arts. 180º e 183º nºl al. a) e b) ambos do Código Penal.

Na versão contida na acusação e em síntese:

No 5º Juízo – 2ª Secção do Tribunal do Trabalho de Lisboa corre termos o processo n°... movido pelo ex-trabalhador F... com o patrocínio de A..., Advogado com escritório na ...., Lisboa, contra a sociedade C..., Lda.

O processo encontra-se em apreciação no Tribunal da Relação de Lisboa por força do recurso interposto pela dita sociedade da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância.

Entre as questões suscitadas destaca-se a existência de um contrato de trabalho a termo certo celebrado entre a C..., Lda e o denunciado F... em 2 de Maio de 2001.

O referido contrato de trabalho a termo certo contem a assinatura do denunciante C... e do ora denunciado F.....

Acontece que o denunciado através do seu mandatário nega a existência de tal contrato negando que tenha alguma vez assinado o referido contrato afirmando que tal documento é falso.

O proferimento de tais declarações é confirmado pelo seu advogado A... como consta do ponto 7 das Contra-Alegações:" nesse mesmo requerimento o A. tomou logo posição relativamente ao documento junto aos autos pela Ré, ou seja, um contrato de trabalho a certo dizendo que tal documento era falso pois o A. não assinou nenhum contrato elaborado naqueles moldes, nem antes nem depois de ter sido admitido na empresa e aí ter iniciado funções".

A alegação de falsidade do referido documento por parte do denunciado tem por objectivo prejudicar a posição da empresa junto dos decisores judiciais de modo a conseguir obter por essa via acolhimento da sua pretensão de pagamento de montantes que sabe que não lhe são devidos.

Não se coibindo de recorrer à mentira, à calúnia e à difamação pondo gravemente em causa a honorabilidade e honradez dos denunciantes gerentes e da empresa C..., Ldª e de todos os seus colaboradores.

A fim de agilizar a prova do comportamento indigno do denunciado os denunciantes, ora assistentes requereram exame pericial sobre a escrita manual e respectiva assinatura constante do contrato de trabalho tendo os peritos J... e A... emitido a seguinte conclusão:"com base nos elementos presentes e segundo as nossas capacidades e conhecimentos concluímos que a assinatura contestada saiu muito provavelmente do punho de F....

O comportamento do denunciado provocou nos denunciantes forte humilhação e ofendeu gravemente a dignidade, honra e consideração.

O denunciado agiu livre e conscientemente bem sabendo que não corresponde à verdade e ofende os denunciantes ora assistente na sua honra e consideração.

Bem como sabia que tal conduta face à reprovabilidade lhe é vedada pela lei.

O M°P° não acompanhou a referida acusação por considerar que as frases imputadas ao arguido não integram a prática de um crime de difamação.

Dispõe o art. 180°, n°l do Código Penal que pratica o crime de difamação quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivos da sua honra ou consideração.

Prevê o artigo 183° n°l nas suas alíneas a) e b) uma agravação da moldura penal aplicável se a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação e tratando-se da imputação de factos se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação.

Importa desde já precisar e delimitar a concepção de honra ou consideração que o tipo de ilícito criminal visa proteger.

Como já afirmava Beccaria em 1763 ("Dos delitos e das Penas", ed. Martins Fontes, S. Paulo, 1996, pág.56), a palavra honra «é uma daquelas que serviu de base a extensos e brilhantes ensaios sem contudo lhe fixar um significado estável e permanente».

Essa dificuldade está certamente associada ao seu próprio relativismo e circunstancialismo, uma vez que a sua determinação concreta é influenciada por diversos factores: políticos, culturais, históricos, sociais etc.

Por via disso, a doutrina (José de Faria Costa, Comentário Conimbricence do Código Penal, tomo I, pág. 602) agrupou as prolíferas distinções e definições do bem jurídico honra em duas concepções fundamentais: fácticas e normativas.

A primeira concepção gira em torno da noção elaborada por Adriano de Cupis (Os Direitos de Personalidade, livraria Morais Editora, 1961, pág. 112): «Dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa».

Nesta linha de pensamento, tem os autores distinguido a chamada honra subjectiva ou interna, onde ganha relevo o juízo valorativo que cada pessoa faz de si, o apreço que cada um tem de si da chamada honra objectiva ou externa, onde ressalta a representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o bom nome, consideração reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

Essas noções fácticas extremadas da honra estão hoje ultrapassadas.

Refira-se que a principal crítica que se pode fazer a esta concepção reside na dificuldade em medir a existência ou não de ofensa.

Com efeito, enquanto que o recurso ao critério subjectivo deixaria de fora da protecção penal todas aquelas pessoas que, por qualquer razão, não possuem capacidade para sentir a ofensa (vg. por doença mental, ou embriaguez...) ou atribuiria excessiva protecção a quem possui exagerada auto - estima, o critério objectivo levaria a equiparar a honra ao juízo que os demais membros de comunidade fazem dela, negando a valia interna da pessoa e a sua insuprível dignidade.

Segundo as concepções normativas, a honra é uma parte da dignidade humana, e o respectivo conteúdo aparece vinculado ao efectivo cumprimento de deveres éticos, de forma que, afinal, só tem relevo a honra merecida.

Nesta linha de pensamento veja-se Manuel Jaen Vallejo (Uberdad de Expresióny Delitos Contra el Honor, Editorial Colex, Madrid, 1992, pag.151) que sustenta estar o conceito de dignidade vinculado ao efectivo cumprimento de deveres ético - sociais, pelo que há que ganhar a boa reputação para merecer a protecção juridico-penal.

A estas concepções normativas aponta-se a desvantagem de remeterem o conteúdo da honra para o cumprimento de um determinado código de honra moral e social.

Atentas as desvantagens apresentadas pelas concepções supra mencionadas, a posição dominante, actualmente, tempera a concepção normativa com uma dimensão fáctica.

A honra é, assim, vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior.

Esta mesma ideia decorre das palavras do Prof. Figueiredo Dias quando afirma que nunca teve entre nós aceitação a restrição da honra ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre a opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer estritamente normativo de honra "( RLJ., Ano 115, p. 105).

Subscrevendo também uma visão mista fáctica-normativa do conceito de honra veja-se Costa Andrade em Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1996.

Neste entendimento, não basta que o visado das imputações ou juízos ofensivos se considere ofendido, para que se possa dizer que existe uma ofensa à sua honra ou consideração e concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime.

Assim, perante cada caso concreto, ter-se-á de aferir da existência da necessária ofensa à honra ou consideração nos moldes ou com o recorte acima traçado.

O bem jurídico protegido na incriminação surge desde logo constitucionalmente tutelado quando, no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa, se consagra, entre outros direitos de personalidade, o direito ao bom nome e reputação que emana de outro valor constitucional que é a dignidade da pessoa humana (art.. 1º) reconhecendo-se aí o valor eminente do homem enquanto pessoa.

Este princípio constitucional do direito ao bom nome e reputação " surge, assim, " com explicitação directa do princípio da dignidade humana e integra este direito um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua protecção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa " (A Silva Dias,"Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias ", AAFDL., 1989, pág. 17).

O conteúdo do bem jurídico honra e a extensão com que é protegida têm assim a sua referência essencial no quadro constitucional, configurando um pressuposto indispensável para a realização e participação da pessoa no processo social (A Silva Dias, ob. cit, pág. 16).

Importa não esquecer que a República Portuguesa é um Estado de Direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais, conforme estabelece o art. 2º da CRP.

Assim, a todos é garantido o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de se informar, sem impedimentos nem discriminações, como acrescenta o n.°l do art. 37° da Lei fundamental.

A propósito da liberdade de expressão e o seu "convívio" com outros direitos fundamentais, observa o Tribunal Constitucional, que: » há-de sofrer desde logo os limites que decorrem das necessidades impostas por uma convivência social ordenada. A ideia de limite vai assim, implicada no próprio conceito de direito, decorrendo das necessidades que as várias esferas jurídicas têm de se limitar reciprocamente, fim de poderem coexistir no interior do respectivo Ordenamento jurídico«" - Cfr. Parecer 121/84, de 6/2/ publicado em "Pareceres da PGR", vol. I, pág.100.

Ou seja, os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. Além dos limites «internos», que resultam do conflito entre os valores que representam as diferentes facetas da dignidade humana, os direitos fundamentais sofrem limites «externos», uma vez que tem de conciliar as suas naturais exigências com as que são próprias da vida em sociedade; a ordem pública, a moral social, a segurança nacional etc.

A este propósito sustenta Vieira de Andrade ("Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", Coimbra 1983, pág. 200 ss): "A solução dos conflitos e colisões não pode ser resolvida com o recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais (...) não pode além disso, ignorar-se que, nos casos de conflito, a Constituição protege os diversos valores ou bem em jogo e que não é lícito sacrificar pura e simplesmente um deles ao outro.”

Também J J. Gomes Canotilho, (Direito Constitucional, 1° ed. Coimbra, 1977, vol.I, pag.224): "todos os direitos fundamentais têm, em princípio, igual valor, devendo os seus conflitos solucionar-se preferencialmente mediante o recurso ao principio da concordância prática....). Sempre que existam contradições normativas, concorrência ou colisão de direitos fundamentais, não deve o interprete proceder a uma abstracta ponderação e confronto dos direitos constitucionalmente garantidos (...) sacrificando uns aos outros mas sim estabelecer limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre esses direitos (...) os bens jurídicos constitucionalmente protegidos devem ordenar-se e cominar-se na solução dos problemas jurídico-constitucionais de forma a conseguir a sua máxima optimização ".

Este princípio da concordância prática, não prescreve como refere Vieira de Andrade, (ob. cit.) a necessidade de realização óptima de cada um dos valores em termos matemáticos. A medida em que se vai comprimir cada um dos direitos pode ser diferente, dependendo do modo como se apresentam e das alternativas possíveis da solução do conflito.

De tudo quanto expôs resulta que o princípio da concordância prática na distribuição de custos do conflito se executa através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito, como sustenta o mesmo autor, com a menor compressão possível de cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação, e exigindo-se, por outro lado, que o eventual sacrifício de valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda de um ou outro.

A tal respeito deve ter-se presente, em cada direito fundamental, "um núcleo essencial de protecção máxima, que inclui as situações ou modos primários típicos de exercício de direitos e que julgamos corresponder ao conteúdo essencial do direito, no plano axiológico-normativo e depois, afastando-se do centro espaços de protecção progressivamente menos intensa, à medida que os modos são mais atípicos ou as situações mais específicas, até ao limite máximo, que é definido pelos direitos imanentes. " (ob., cit. nota 15).

A propósito de eventual colisão da honra e liberdade de expressão ensina Manuel Costa Andrade, (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal - Uma Perspectiva Jurídico Criminal", Coimbra Editora, 1996): a eminente dignidade constitucional dos valores em confronto (honra e liberdade de expressão) cometem a equacionação e superação dos problemas a uma ponderação global de interesse na perspectiva do caso concreto. Enquanto isto deve reconhecer-se uma presunção de às ofensas típicas que resultem da discussão de questões de interesse comunitário. Como limite da moldura da ponderação está sempre a "crítica caluniosa": por força dela hão-de valorar-se como ilícitas as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido.

E mais à frente acrescenta, a Lei Fundamental reserva um significado prevalecente à garantia jurídica da liberdade de expressão da opinião, o que tem subjacente a representação de que o cidadão adulto e chamado a tomar posição no debate de ideias numa democracia livre é, ele próprio, capaz de reconhecer o que é de reter de uma crítica que renuncia à fundamentação e se limita a tocar a opinião contrária de chocarreira ou irónica maliciosa. Face a esta "ousadia da liberdade" compreende-se que o direito não assegure ao ofendido a protecção contra todas as opiniões desmesuradamente agrestes. Não será assim arriscado concluir que, postas entre parênteses as hipóteses de crítica caluniosa, dificilmente se excogitarão constelações típicas de formulações críticas cuja ilicitude possa escapar à eficácia dirimente do exercício de um direito".

Da aplicação dos princípios enunciados irá, pois, resultar a compressão ou restrição da amplitude dos interesses em jogo, a qual só poderá ter lugar nos moldes admitidos na lei fundamental.

Como já referimos, o art. 18° da Constituição só admite a restrição dos direitos liberdades e garantias limitados ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e previstos em leis com carácter geral e abstracto, sem que contudo, se opere diminuição da extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

No caso vertente estão em causa dois direitos fundamentais: a honra ou bom-nome a que já nos referimos e o direito de acesso aos tribunais consagrado no art. 20° da Lei fundamental.

Com efeito é no âmbito de uma acção judicial que foram proferidas as expressões que os assistentes consideram lesivas da sua honra e consideração.

Ora, compulsadas as expressões aludidas na acusação não se considera que as mesmas sejam idóneas a integrar do ponto de vista objectivo o ilícito imputado.

Tal não significa que as mesmas não sejam aptas a ofender a honra e consideração dos assistentes mas apenas que as mesmas são necessárias ao fim visado por tal peça processual e que a protecção penal dada à honra e consideração não se basta com a mera susceptibilidade pessoal, neste caso dos assistentes ou com a interpretação subjectiva dos mesmos sobre tais afirmações.

Com efeito, tal protecção só se justifica quando as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa o que não ocorre, pois, o que se verifica é o exercício de um direito à acção.

Acresce que as expressões imputadas ao arguido constam de peças processuais subscrita por mandatário e não pelo próprio, sendo que não é sequer alegado que correspondam a precisas instruções pela mesmo transmitidas àquele e este não é arguido nos autos.

Todavia, saliente-se que o exercício do mandato forense por um advogado também não é em si ilimitado, pois, nos termos do artigo 83° do Estatuto da Ordem dos Advogados estes devem no exercício do mandato estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que sejam incumbido, utilizando, para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade.

O advogado é um servidor da justiça e do direito e para cabal desempenho do seu papel é-lhe exigível o recurso aos meios indispensáveis à defesa da causa que lhe é entregue.

Todavia, tal actuação tem de se manter dentro dos limites impostos pela Constituição e para tanto deverá existir uma adequação entre o interesse desencadeado pela defesa, tendo em vista a solução favorável do caso e a procura da realização da justiça.

Ou seja, só quando houver uma manifesta, indiscutível e patente desproporção entre aqueles interesses, de modo a se poder afirmar que assim se fere também a consciência ético-jurídica comunitária, é que, então, se pode considerar ter-se ofendido a honra.

Se não houver um mínimo de adequação nas imputações ou expressões utilizadas, o bem jurídico honra é violado pelo exercício do direito de defesa, deixando a actuação do advogado de ser lícita.

Tudo se resume às sábias palavras de José Alberto dos Reis que nos elucida que " não pode admitir-se que o advogado (...) use de linguagem desbragada e despejada com prejuízo do respeito devido as instituições, às leis e ao tribunal; mas é absolutamente indispensável que esta censura não se exerça em detrimento do sagrado direito de defesa. Tem de reconhecer-se ao advogado a liberdade de dizer, por escrito ou oralmente, tudo o que for necessário à defesa da causa que lhe está confiada.

Sendo as expressões ou imputações ofensivas necessárias à defesa da causa assiste-se à compressão do bem jurídico honra, cujo perfil acima foi traçado e que encontra a sua tutela penal nas incriminações em causa nestes autos.

É no âmbito desta redução da tutela penal que o artigo 154° n°3 do Código de Processo Civil aplicável ao caso atento o disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal prescreve não ser ilícito o uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa.

Ora, tais considerações válidas para o mandatário são também com as adaptações necessárias válidas para o arguido, porquanto, o primeiro exerce a acção em sua representação.

No caso vertente não se pode o Tribunal abstrair do contexto em que as expressões foram proferidas. Ora, tratando-se de uma petição inicial o arguido através do seu mandatário tinha de enunciar os factos constitutivos da sua pretensão e alegar-se que um contrato é falso ou que a assinatura no mesmo contida não é de um dos alegados subscritores de tal contrato é, aliás facto correntemente invocado em processos judiciais, existindo procedimentos para resolver do ponto de vista probatório tais invocações e sancionar processualmente quando se revelam infundadas e de má fé.

Tal não significa que tal afirmação não possa ofender a honra dos assistentes como já se referiu mas também não significa que se possa considerar que integra a prática do crime imputado. O direito penal é um direito de ultima ratio e defender-se a sua intervenção nestas situações é equivalente a defender-se a impossibilidade de exercício do direito de acção ou de defesa, pois, este não se pode manter se for considerado crime qualquer imputação desagradável ou ofensiva na óptica do visado.

Em suma, as afirmações enunciadas na acusação não integram o tipo de ilícito em questão, pois, cabem, como já se disse, ainda dentro de um direito de acção necessário, à luz daquilo que se pode chamar de risco permitido e movem-se dentro dos limites que a nossa sociedade tolera como válido.

Assim, ao abrigo do disposto no art. 311° n°2 al. a) e n° 3 al. d) do Código de Processo Penal rejeita-se a acusação particular deduzida pelos assistentes.

Custas pelos assistentes fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

Notifique e deposite.”

                                                                       *

O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[i], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas pelo recorrente reconduzem-se à de determinar se a descrição fáctica vertida na acusação particular preenche, ou não, todos os elementos típicos do crime de difamação cuja prática ao arguido nela foi imputada, podendo assim aquele libelo acusatório ser rejeitado conforme foi decidido na decisão ora recorrida

Remetidos os autos para julgamento, sem que, como sucede no presente, não tenha ocorrido instrução, nos termos do art. 311º do C.P.P., “o juiz aprecia a conformidade da acusação com o quadro normativo que a regula, confinando-se a não admissão a julgamento às situações tipificadas no nº 2”[ii]. 

A al. a) desta norma diz respeita à rejeição da “acusação manifestamente infundada”, sendo que no âmbito deste conceito compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”[iii].

Por sua vez os casos em que, para efeitos do nº 2, integram o conceito de acusação manifestamente infundada, encontram-se taxativamente enumerados no nº 3 do preceito, revestindo para o caso em apreço de particular interesse o que vem previsto na al. d), que se verifica quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”.

A possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, este fundamento “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa”[iv], seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal.

Isto é só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.

No caso em apreço e embora o fundamento da rejeição, e objecto da discordância da recorrente, tenha sido invocada o exercício do direito de acção ou de defesa, não integrando as afirmações enunciadas na acusação no tipo de ilícito em questão, sucede que uma análise dos autos demonstra que outras razões existem para que a mesma merecesse, pelo menos em parte, esse destino, razões essa que foram afloradas parcialmente no despacho ora sindicado, mas que não se extraíram as subsequentes conclusões.

Conforme resulta da análise dos autos pelos assistentes C... e L... foi apresentada queixa e posteriormente deduzida acusação particular contra o arguido foi F..., imputando-lhe a prática de um crime de difamação pelo articulado que este apresentou no âmbito do processo nº..., do ... Juízo, ... do Tribunal do Trabalho de Lisboa e cujos termos foi por aqueles considerado como atentatórios e profundamente ofensivos do bom nome, honra e consideração.

Da análise que os assistentes fazem ao referido articulado consideram como frases consubstanciadoras do ilícito em causa o ponto 7. das Contra-Alegações que se transcrevem abaixo:

 "Nesse mesmo requerimento, o A. tomou logo posição relativamente ao documento junto aos autos pela Ré, ou seja, um "Contrato de Trabalho a Termo Certo", dizendo que tal documento era falso, pois o A. não assinou nenhum contrato elaborado naqueles moldes, nem antes, nem depois de ter sido admitido na empresa e aí ter iniciado funções".

Ora a nosso ver caso o articulado referido seja susceptível de consubstanciar o crime de difamação, conforme foi o entendimento dos assistentes, haveria que ser deduzida contra ambos isto é, contra o arguido F... e o respectivo mandatário, em virtude de, atento o teor da queixa apresentada e os termos em que o referido articulado se encontrara redigido nos encontramos perante um caso de comparticipação criminosa.

Conforme dispõe o Ac. da Rel. de Lisboa de 03/10/2006 no processo nº 29/2006-5 in www.dgsi.pt/jtrl  e no Ac. Rel. Coimbra de 01/03/89 in CJ, Ano XIV, Tomo II, pag. 76,  nos casos em que as afirmações difamatórias se encontram vertidas em peça processual existem três  situações possíveis:

- a primeira em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, depois de o advertir expressamente das consequências que daí poderão advir.

- a segunda será o caso em que o autor da peça processual é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente

- a terceira é aquela em que o cliente relata os factos que sabe não serem verdadeiros, com o propósito de que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.

Como é óbvio só nesta última versão é que haverá responsabilidade exclusiva da cliente, não existindo por parte do advogado qualquer intenção ou vontade de atentar contra a honra, o bom nome, ou a consideração do visado, ou seja actua sem dolo e como tal nem relativamente a este se configura a possibilidade de preencher tal tipo de ilícito.

Por outras palavras, perante uma peça processual assinada por advogado que contenha afirmações susceptíveis de se enquadrarem no crime de difamação, a responsabilidade exclusiva do mandante ou cliente deve ser liminarmente excluída.

Isto porque à partida o advogado está vinculado pelo dever de urbanidade e como tal evitar que no exercício da sua actividade produza factos susceptíveis de ofender a honra ou a consideração de terceiros. A não ser como acima se disse que se alegue que o advogado acreditando no seu cliente agiu na convicção de que os mesmos eram verdadeiros.

Ora tal não foi alegado na queixa nem na acusação particular, pelo que os factos deveriam ser imputados ao arguido F... e ao seu advogado, estando-se assim perante uma comparticipação criminosa e como tal a queixa e a acusação particular deveria ter sido deduzida contra ambos.

Com efeito ao efectuar a acusação os assistentes não ignoravam que o articulado em causa e que consubstancia a prática do eventual crime de difamação fora redigido e escrito por um advogado, cujo nome era aliás bem visível.

Por outro lado sendo o crime de difamação de natureza particular para que haja procedimento criminal, nos termos do artº 50º nº 1 do Cod. Proc. Penal, torna-se necessário a apresentação de queixa e posteriormente de acusação particular, contra todos os comparticipantes

Ora o nosso sistema processual penal consagrou o princípio da indivisibilidade estipulando no artº 115º nº 2 que:

“ O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”

Assim os assistentes ao não apresentarem atempadamente queixa e acusação particular implica nos termos conjugados dos artºs nºs 1 e 2 , 116º nº 1 e 117º do Cod. Penal, a desistência de queixa contra o arguido, pelo que por falta de condição de procedibilidade relativamente à mesma se deveria ter determinado o arquivamento dos autos. No sentido do decidido ver entre outros o Ac. da Rel. de Lisboa de 03/10/2006 no processo nº 29/2006-5, Ac Rel. Porto processo nº 0213271 de 05/03/2003 in www.dgsi.pt/jtrl  e no Ac. Rel. Coimbra de 01/03/89 in CJ, Ano XIV, Tomo II, pag. 76.

Assim sendo, e sem necessidade de mais alongadas considerações, embora por razões não inteiramente coincidentes com as invocadas na decisão recorrida, haverá que julgar improcedente o recurso interposto, não havendo reparos a fazer quanto à rejeição da acusação particular apresentada pelos recorrentes

*

III DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Relação julgam improcedente o recurso e mantêm a decisão recorrida embora com fundamentos não exactamente coincidentes com os que da mesma constam.

Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs

processado por computador e revisto pelo 1º signatário)

Lisboa, 17 de Abril de 2013

Vasco Freitas

Rui Gonçalves


[i] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335  e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[ii] cfr. Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 766.
[iii] cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605.
[iv] cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779.

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