Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
180/23.7YHLSB-C.L1-PICRS
Relator: ELEONORA VIEGAS
Descritores: PATENTES
LEI Nº 62/2011
VALOR DA ACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O valor de uma acção intentada pelo titular de uma patente, ao abrigo do disposto no art.º 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, invocando o seu direito de propriedade industrial, deve ser fixado, nos termos do disposto no art.º 303.º, n.º 1 do CPC, em €30.000,01;
II. A defesa do réu e o seu pedido reconvencional de declaração de nulidade da patente invocada pelo autor não altera a natureza inibitória preventiva da acção intentada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
Towa Pharmaceutical S.A., PharmaKern Portugal - Produtos Farmacêuticos, Sociedade Unipessoal, Lda. e Bluescience Unipessoal Lda, rés nas acções (apensadas) contra elas intentadas pela Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company, Swords Laboratories e pela Bristol-Myers Squibb Farmacêutica Portuguesa, SA vieram recorrer dos despachos de 11 de Junho e 2 de Julho de 2024 (Refªs. 577901 e 580941, respectivamente) proferidos sobre o incidente de valor da acção oficiosamente suscitado, pelos quais foi alterado o valor processual da causa indicado pelas partes (€30.000,01) fixando-o no valor de €2.550.000,00.

Formularam, após motivação, as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por objeto os despachos judiciais proferidos nos dias 11 de junho de 2024 e 2 de julho de 2024, sob as referências eletrónicas números 577901 e 580941, nos termos dos quais o Tribunal a quo fixou o valor processual da causa pendente entre as Autoras e a Ré Towa[1] no valor de €2.550.000,00 (dois milhões, quinhentos e cinquenta mil euros).
B. Segundo o Tribunal a quo, o único caso em que não haverá um aumento potencialmente significativo do valor da ação processual é no caso de uma ação que não seja objeto de contestação, o que configura uma verdadeira denegação da justiça. Isto porquanto é imposto ao réu que não invoque a nulidade do direito de propriedade industrial, pois caso contrário as Partes serão confrontadas com um aumento substancial do valor da causa – ao arrepio das normas processuais aplicáveis – e, consequentemente, custas processuais, em manifesta oposição ao princípio decorrente do artigo 20.º, n.º 1, da C.R.P..
C. Tal entendimento gera necessariamente uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., na medida em que os Autores podem intentar ações de exercício dos direitos de propriedade industrial sendo o valor da mesma fixado no montante correspondente à alçada da Relação acrescido de €0,01, mas aos Réus não é permitida uma defesa fundamentada na medida em que, nesse caso, o valor da causa aumentará.
D. O Tribunal a quo procurou aplicar um critério distinto daquela que é a norma especial com aplicação ao caso e que vem sido pacificamente considerada como tal desde 1939 – o artigo 303.º do Código de Processo Civil.
E. Também não será aplicável in casu o disposto no artigo 83.º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, que não respeita ao e/ou trata do valor da ação ou tampouco ao seu método de cálculo.
F. Salvo o devido respeito, a afirmação do Tribunal a quo parece remeter para uma motivação segundo a qual, as partes, quando confrontadas pelo Tribunal com a fixação de valores processuais às ações muito significativos, serão forçadas a recorrer ao Tribunal Unificado de Patentes em detrimento do recurso à jurisdição nacional dos tribunais portugueses. Ora, a redução de pendências no(s) tribunal(is) nacional(is) jamais poderá constituir motivação atendível para a fixação e/ ou o aumento do valor processual de determinada causa, nomeadamente para um valor desproporcional.
G. Na presente data, uma decisão que seja proferida no contexto de uma ação de revogação de patente (“revocation action”) pelo Tribunal Unificado de Patentes - poderá gerar, apenas para a jurisdição portuguesa, custas processuais referentes a taxa de justiça no valor máximo total de € 58.956,00 (isto é € 29.478,00 por cada uma das Partes) - poderá produzir efeitos em, pelo menos, 17 de estados da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 34.º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes.
H. Mesmo que se aplicassem as próprias considerações do Tribunal a quo resulta a desproporcionalidade da sua decisão sobre o valor processual da ação.
I. O Tribunal a quo não resolve as contradições nas suas motivações, insistindo apenas que é essencial fixar valores mais altos para as causas de modo e evitar a entropia do sistema, o que constitui uma violação do princípio do acesso à justiça decorrente do disposto no artigo 20.º da C.R.P., na medida em que o valor da causa é apresentado como um meio de impelir as Partes a optar por outra jurisdição.
J. Não é sequer possível aceder ao website Tech transfer central indicado nos despachos recorridos. Pelo que, as Recorrentes nem sequer conseguem apreciar as considerações do Tribunal a quo quanto a tal website.
K. O Tribunal a quo refere que para as ações preventivas deverá considerar-se o valor da ação como sendo o valor fixado no correspondente à alçada da Relação, acrescida de €0,01. Mas o Tribunal a quo desconsiderou o facto de a causa de pedir e os pedidos deduzidos pelas Autoras terem sido, precisamente, preventivos.
L. Os referidos litígios ao abrigo do artigo 3.º da Lei n.º 62/2011 assumem a natureza de ações apenas dirigidas ao exercício de direitos de propriedade industrial, estas assumem a natureza de “ações sobre interesses imateriais”, conduzindo, assim, à conclusão de que tais ações estão, necessariamente, abrangidas pelo disposto no artigo 303.º, n.º 1 do CPC.
M. Nos termos do artigo 303.º, n.º 1 do CPC: “As ações sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais (euro) 0,01.”.
N. A doutrina concorda igualmente que sempre que se exerça um direito de propriedade industrial não é possível haver uma utilidade económica imediata para o Autor. Isto porquanto a utilidade económica imediata depende da forma como o pedido é formulado. E quando apenas se exercem os direitos decorrentes do direito de propriedade industrial, essa utilidade económica imediata não existe.
O. E aplicação de outro critério que não o especial do artigo 303.º, n.º 1 do CPC está dependente da aferição da utilidade económica imediata, tal como exigido pela regra geral do artigo 296.º, n.º 1 do CPC.
P. É também o que decorre do entendimento perfilhado pela jurisprudência nacional indicando-se a título de exemplo os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.04.2024 e 14.03.2013.
Q. Nos presentes autos em que os pedidos deduzidos pelas Autoras consubstanciam a prática de uma atividade infungível de caracter negativo, tendo uma natureza imaterial. Consequentemente, deste pedido não resulta uma utilidade económica imediata para o autor.
R. Aliás, mesmo que se considerasse – por mero dever de patrocínio – que das ações intentadas ao abrigo da Lei n.º 62/2011 pudesse eventual resultar algum interesse material, o artigo 296.º, n.º 1, do CPC exige que essa utilidade económica seja imediata, o que não ocorre nos presentes autos.
S. Mais, ao onerar o Réu com um aumento substancial do valor da causa face à dedução de um pedido de declaração de nulidade do direito de propriedade industrial, o Tribunal está a violar o princípio do direito a uma defesa, na vertente do direito ao contraditório.
T. Face ao acima exposto, a interpretação do Tribunal a quo de que a dedução de um pedido reconvencional para declaração de nulidade dos direitos de propriedade industrial constitui fundamento autónomo para o aumento do valor da causa sem que seja demonstrada qualquer utilidade económica imediata do pedido, conforme exigido pelo artigo 296.º do CPC, é inconstitucional por violação do princípio da proibição de indefesa previsto no artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
U. Mesmo que se entendesse que um pedido deduzido no âmbito de uma ação judicial instaurada nos termos e ao abrigo da Lei n.º 62/2011 teria utilidade económica imediata, o que, sem conceder, se admite de forma meramente hipotética, não seria possível avaliar a priori qual fosse o valor dessa utilidade, dada a indeterminação dos fatores a considerar e a incerteza da forma como os mesmos se manifestarão no futuro. Recorrer a esse valor prospetivo de vendas, nesta matéria seria uma pura atividade de adivinhação.
V. A procedência de qualquer dos pedidos em apreço não constitui impedimento à entrada no mercado de outros concorrentes, expondo, assim e sem necessidade de mais considerações, que o cálculo do valor da ação com base num pressuposto de monopólio de mercado é, e, aliás, sempre seria, incorreto.
W. À presente data, conforme resulta de informação publicamente disponível no INFOMED, uma base de dados do INFARMED, existem pelo menos três empresas de medicamentos genéricos a comercializar os seus medicamentos contendo apixabano, pelo que não existe atualmente, apesar da vigência dos direitos e da pendência dos respetivos processos judiciais, um monopólio de exploração que possa subjazer o cálculo da utilidade económica do pedido.
X. A aplicação do disposto no artigo 301.º do CPC não é correta no caso a apreciar nos presentes autos. Ao invés, o Tribunal a quo deveria ter aplicado o regime decorrente do artigo 303.º do CPC, que é uma norma especial que vem sendo pacificamente aplicada a casos em tudo semelhantes ao presente desde meados do século passado, independentemente da existência de uma dimensão económica – forte ou fraca – de um direito de propriedade industrial[2].
Y. Nos termos do artigo 12.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), o valor tributário da causa será € 2.000,00, sempre que (i) “for impossível determinar o valor da causa” ou (ii) “o valor é fixado pelo juiz da causa com recurso a critérios indeterminados e não esteja indicado um valor fixo”.
Z. Mesmo que não se aplique a regra do artigo 303.º do CPC, que, no entender das Recorrentes, encerra a previsão normativa aplicável ao caso dos autos – o que se considera por mero dever de patrocínio – sempre será aplicável a regra do artigo 12.º, n.º 1 do RCP quando não seja possível determinar o valor da causa com base na utilidade económica imediata.
AA. Como acima se referenciou, a alteração do valor da causa e fixação de um valor distinto daquele que resulta do artigo 303.º, n.º 1, do CPC depende da avaliação da utilidade económica imediata dos pedidos deduzidos nos autos.
BB. Nestes termos e face ao acima exposto, dever-se-á concluir que os despachos judiciais proferidos nos dias 11 de junho e 2 de julho de 2024, na parte em procederam à alteração do valor da causa, incorreram numa interpretação incorreta do 301.º do CPC que não poderá ser aplicável a ações deduzidas ao abrigo da Lei n.º 62/2011, mesmo que enxertadas com pedido(s) reconvencional(is) tendente(s) à declaração de nulidade ou anulação de títulos de propriedade industrial, nas quais apenas se pretendem exercer direitos de propriedade industrial.
CC. Os despachos judiciais recorridos, proferidos nos dias 11 de junho e 2 de julho de 2024, respetivamente, deverão ser revogados na parte em que procederam à alteração e/ ou à fixação do valor da causa em valor (muitíssimo) superior ao indicado pelas partes, e ser ordenada, nos termos do disposto no artigo 303.º do CPC, a fixação do valor da causa, incluindo todos os pedidos formulados em ambas as ações primitiva e reconvencional, na aludida quantia de € 30.000,01, respetivamente, num total de €60.000,02.

As autoras, Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company, Swords Laboratories e Bristol-Myers Squibb Farmacêutica Portuguesa, SA apresentaram contra-alegações aderindo ao recurso apresentado pelas rés e subscrevendo os seus fundamentos.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Questões a decidir
Nos termos dos artigos 635.º, nº4 e 639.º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (artigo 5.º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Assim, sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, a única questão a decidir é a do erro de julgamento no que respeita ao valor da acção.
*
III. Fundamentos
III.1. Os factos
Relevam para a decisão do recurso os seguintes factos respeitantes à tramitação dos autos:
. As Autoras, aqui Recorridas, intentaram uma acção ao abrigo do disposto no art.º 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, pedindo a condenação das Rés, aqui Recorrentes, a:
a) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo das AIMs identificadas no artigo 71.º) o produto protegido pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer, os Genéricos Apixabano identificados no artigo 71.º da Petição Inicial, enquanto o CCP 456 estiver em vigor;
b) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo de quaisquer AIMs para quaisquer medicamentos compreendendo apixabano como substância ativa) o produto protegido pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer quaisquer produtos que compreendam apixabano como substância ativa, enquanto o CCP 456 estiver em vigor.
. Indicaram como valor da acção €30.000,01.
. As Rés contestaram, suscitando a excepção dilatória de falta de interesse em agir das Autoras e a excepção peremptória de nulidade do CCP’456 e da respectiva patente de base, deduzindo em reconvenção o pedido de declaração de nulidade do CCP 456 e da Patente Europeia n.º 1427415
. Indicaram como valor da reconvenção €30.000,01.
. No despacho saneador foi admitido o pedido reconvencional e suscitado incidente de valor da acção – com fundamento no disposto no art.º 301.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – e absolvidas as RR. do pedido contra elas formulado pelas AA. sob a al. b).
. Por despacho de 11.6.224 foi determinada a apensação a estes autos do proc. n.º 85/23.1YHLSB, no qual havia sido prévia e oficiosamente suscitado incidente de valor de acção e, em 2.07.2024, foi proferido o despacho fixando o valor processual da acção em €2.550.000,00 (dois milhões, quinhentos e cinquenta mil euros), determinando que as partes liquidem a diferença entre o valor da taxa de justiça pago até à data (8 UC) e o valor devido (16 UC).
*
III.2. Do mérito do recurso
Nos termos do disposto no 296.º do CPC a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
O art.º 297.º contém o critério geral para a fixação do valor da causa (se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela acção se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício) e o  art.º 298.º os critérios especiais nas acções de despejo, processos referentes a contratos de locação financeira, acções de alimentos definitivos e de contribuição para despesas domésticas e acções de prestação de contas.
Nos arts. 300.º a 304.º, o CPC dispõe sobre o valor da acção no caso de prestações vincendas e periódicas; o valor da acção determinado pelo valor do acto jurídico (quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes); o valor da acção determinado pelo valor da coisa (se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa); o valor das acções sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais ou difusos (as acções sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais (euro) 0,01); e, por fim, o valor dos incidentes e dos procedimentos cautelares.
De acordo com o citado art.º 296.º, a determinação do valor da causa obedece ao critério fundamental da utilidade económica imediata do pedido. Ou seja, a utilidade económica que derive, directamente, para o autor, da procedência do(s) pedido(s) formulado(s) na petição inicial da acção que intentou.
No caso está em causa uma acção intentada pelas Recorridas nos termos do art.º 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, diploma que criou um regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, e que dispõe que, no prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (INFARMED, I. P.), de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual ou, em caso de acordo entre as partes junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efectuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.
Esta acção tem como únicos pressupostos a titularidade pelo autor de um direito de propriedade industrial derivado de uma patente ou CCP  - nos termos do art.º 102.º do CPI, a patente confere ao seu titular o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português e, ainda, o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, v.g. o fabrico, a oferta, a armazenagem, a colocação no mercado ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados - e que o réu tenha formulado um pedido de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico junto do INFARMED.
Na decisão recorrida entendeu-se que o direito de propriedade industrial em causa “contém inequivocamente associado um conteúdo patrimonial, um valor económico ou de mercado”, pelo que “na fixação do valor processual da acção, reputemos aplicáveis (…) os princípios gerais previstos nos arts. 301.º e 302.º do Código de Processo Civil, que determinam a fixação do valor das acções com base no valor do acto jurídico e do valor da coisa”.
Vejamos.
Como vimos, o art.º 296º do CPC estabelece como critério fundamental na determinação do valor da causa a utilidade económica imediata do pedido.
Recorde-se, em resumo, os pedidos formulados pelas Recorridas nesta acção: a condenação das Rés, aqui Recorrentes, a: a) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo das AIMs identificadas no artigo 71.º) o produto protegido pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer, os genéricos Apixabano identificados no artigo 71.º da petição inicial, enquanto o CCP 456 estiver em vigor; b) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo de quaisquer AIMs para quaisquer medicamentos compreendendo apixabano como substância activa) o produto protegido pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer quaisquer produtos que compreendam Apixabano como substância activa, enquanto o CCP 456 estiver em vigor.
Entendeu-se no despacho recorrido que “tendo a patente um valor económico determinável (sendo, nomeadamente, objecto de contratos de transmissão e de licenciamento), a utilidade económica do pedido deve aferir-se à luz daquele”.
O facto de a patente de que deriva o direito de propriedade industrial invocado pelas Recorridas, nos termos em que o foi ter um valor económico “determinável”, não significa que consubstancie a utilidade económica imediata do pedido formulado.
Como se escreveu no acórdão desta Secção de 10.04.2024, proc. 166/22.9YHLSB-A.L1: “2. Essas pretensões visam obstar à exploração da referida EP através da oferta dos «Genéricos Apixabano» e dos «produtos que compreendam apixabano como substância ativa»;
3. Não surgem tais pedidos concretizados por referência a um qualquer valor económico, designadamente de natureza indemnizatória;
4. A lógica da pretensão assenta no binómio: a. sou titular de uma patente; b. logo protejam-me da usurpação dos meus direitos por terceiros (in casu, através da pretendida actuação da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro (…)”
Trata-se de uma acção inibitória preventiva, um processo especial de acertamento de direitos conforme tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça (v., por todos, o acórdão de 7.03.2023, processo n.º 130/21.5YHLSB.L2.S1).
A decisão recorrida, recorrendo à faculdade prevista no nº 3 do art.º 10.º do Código Civil, entendeu que se justificava fixar o valor dessas acções em € 30.000,01, caso não tivesse sido posta em causa pelos réus a validade da patente e CCP titulados pelas autoras e de que deriva o direito de propriedade industrial por elas invocado.
Em suma, entendeu-se que no caso das acções intentadas ao abrigo da Lei n.º 62/2011 a lei não fornece qualquer critério para a fixação do valor da acção, assim como o princípio geral previsto no art.º 296.º do CPC não fornece um critério com suficiente densidade para determinar aquele valor. Pelo que, considerando existir uma lacuna, não integrável por aplicação extensiva de qualquer critério legal para a fixação do valor desta causa, inexistindo caso análogo, recorreu-se à “norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” (art.º 10.º, n.º 3 do CC).
No caso em que é formulado um pedido reconvencional de declaração de nulidade da patente e do CCP invocados, entendeu a decisão recorrida que o valor da acção deve ter por referência o valor do acto jurídico determinado pelo valor da coisa, ou seja, pelo “valor económico da patente”, nos termos – afinal - da norma constante do art.º 301º do Código de Processo Civil.
Ora, a seguir a tese da decisão recorrida afigura-se que, então, tal seria o valor da reconvenção, uma vez que a natureza da acção intentada pelas autoras não deixou de ser inibitória preventiva por causa da (legítima) defesa das rés.
O valor económico que o direito de propriedade industrial invocado tem associado não é uma utilidade económica imediata que as autoras retirem da procedência da acção que intentaram. Da procedência dos pedidos formulados não resulta, para as autoras, qualquer utilidade económica directa, imediata. São titulares dos direitos de propriedade industrial invocados e decorrentes da patente e do CCP em questão, que beneficiam de uma presunção de validade, tendo-se limitado a exercer o seu direito de acção emergente do exclusivo consagrado no art.º 102.º do CPI e, no caso, do previsto na Lei n.º 62/2011, para verem as rés judicialmente compelidas a respeitar esse direito, imaterial. Uma acção inibitória preventiva fundada numa patente, como é a intentada, não tem por fim a integração da patente (da “coisa”) no património das autoras, não pretendendo estas fazer valer o seu direito de propriedade sobre essa “coisa”.
O valor da acção intentada é, pois, de €30.000,01, de acordo com o expressamente previsto no art.º 303.º, n.º 1 do CPC, aqui aplicável sem que se vislumbre qualquer lacuna e necessidade de recorrer ao disposto no art.º 10.º, n.º 3 do Código Civil.
As Recorrentes contestaram a acção pondo em causa a validade dos direitos de propriedade industrial invocados pelas Recorridas e pedindo que seja declarada a sua nulidade.
Independentemente do valor económico associado à patente e ao CCP em questão, o que está em causa na defesa das rés é apenas o direito de propriedade industrial invocado pelas autoras na acção, o seu direito de exclusivo, o mesmo interesse imaterial.
Se pode discutir-se se a Lei n.º 62/2011 tem subjacente um qualquer interesse público, nomeadamente o apontado na decisão recorrida, de “assegurar o acesso à saúde, eliminando factores de distorção susceptíveis de ocasionar o retardamento da entrada de medicamentos genéricos no mercado”, a presente acção tem subjacente apenas o direito de propriedade industrial invocado pelas autoras, o seu exclusivo sobre a invenção objecto da patente e do CCP, um interesse imaterial. Por isso o valor da reconvenção é, também, o de €30.000,01 previsto no art.º 303.º, n.º 1 do CPC.
A seguir-se a tese da decisão recorrida, afigura-se, de todo o modo, que o “valor económico da patente” que deveria ter sido apurado seria o que resultaria para as rés da procedência do seu pedido de declaração de nulidade da patente e do CCP.
Porém, seja das autoras ou das rés, qualquer vantagem ou utilidade económica que possam retirar da decisão desta causa é sempre indirecta e dependente de factores externos, não sendo consubstanciada no “valor económico da patente” que a decisão recorrida teve, afinal, de ficcionar  - fixando o valor tendo em conta “os valores comummente praticados a título de royalties no ramo farmacêutico (…) que, de acordo com informação corrente do mercado (cf. ponto 1.4), se cifra em 5% ou 6% do valor bruto das vendas”; fazendo recair sobre as AA. o ónus de provar “que o royalty por entre si acordado ao abrigo do contrato de licenciamento é inferior aos valores que empresas especializadas do setor têm por referência para efeitos de negociação de contratos de licenciamento de substâncias ativas ou medicamentos”, e aplicando um factor de correcção “decorrente do facto de as AA não perderem totalmente a sua quota de mercado, continuando a comercializar o medicamento (embora já não sob um direito de exclusivo)” - apesar de ter partido do princípio que era quantificável.
Ora, à luz dos contornos da acção, esta é uma acção sobre interesses imateriais, não autonomizados em termos quantitativos, de abrangência difusa numa perspectiva económica estrita, conforme se decidiu no já citado acórdão de 10.04.2024 desta Secção.
Pelo que, em conclusão, é aplicável o disposto no n.º 1 do art.º 303.º do Código de Processo Civil, que atribui a acções da natureza da presente o valor «equivalente à alçada da Relação e mais (euro) 0,01», isto é, 30.000,01 – cf. o estabelecido no n.º 1 do  art.º 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
*
IV. Decisão
Pelo exposto, julgando procedente o recurso e revogando a decisão recorrida, fixa-se o valor da acção em €30.000,01.
Custas pelas Recorrentes (art.º 527.º, n.º 1, última parte, do CPC)
***
Lisboa, 15.01.2025
Eleonora Viegas
Bernardino Tavares
Carlos M. G. de Melo Marinho
_______________________________________________________
[1] [15 no original] Aquando da prolação do segundo despacho recorrido, datado de 2 de julho de 2024, figuravam (já), por força da apensação do processo n.º 85/23.1YHLSB, nos presentes autos, do lado passivo, como rés, as sociedades comerciais: (i.) BlueScience, Unipessoal, L.da, (ii.) PharmaKERN PORTUGAL – Produtos Farmacêuticos, Sociedade Unipessoal, Lda e (iii.) Towa Pharmaceutical, S.A.
[2] [16 no original] Não se exige que os interesses sejam exclusivamente imateriais