Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
338/21.3T9FNC.L1-3
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: ARQUIVAMENTO
RAI
MEIOS COMUNS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.– No caso dos autos, após a apresentação de queixa, o Mº Pº proferiu de imediato despacho de arquivamento, não tendo procedido a qualquer diligência probatória.

II.– Em sede de RAI, pode ser suscitada a nulidade insanável resultante da falta de inquérito, consignada no artº 119.º, alínea d), do C.P. Penal (que até é de conhecimento oficioso).

III.– Não se verifica tal nulidade quando estejamos perante uma situação em que se mostre manifesto, em face da participação, não serem os factos denunciados susceptíveis de integrar qualquer crime, como entendeu o Mº Pº.

IV.– A queixa, nos autos, imputava à participada a prática de um crime de burla, por questões relativas a promessas que teriam conduzido à celebração de uma transacção, em sede de inventário.

V.– No caso, e face à queixa, constata-se que o que aqui está em questão não é uma acção criminosa, integrável no âmbito do crime de burla, mas um litígio de carácter meramente civilístico, em que haverá eventual incumprimento por parte da participada.

VI.– Colocam-se aqui questões que se mostram irresolúveis em sede criminal, uma vez que o seu apuramento cabe ao campo civilístico, sendo que estas não permitem sequer apurar um elemento constitutivo do tipo de crime imputado – determinação do valor dos alegados benefício ilegítimo e prejuízo.

VII. Não se vislumbra igualmente matéria que possa indiciar a existência de um erro ou engano astuciosamente imputável à participada, que tenha levado a um enriquecimento ilegítimo da sua parte e a um prejuízo patrimonial para a queixosa.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

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I–RELATÓRIO


1.–Findo o inquérito, o MºPº proferiu despacho determinando o arquivamento dos autos.
2.–Veio então a assistente MBE_____ requerer abertura de instrução.
3.–Por decisão de  30 de Maio de 2021, proferida pelo Mº juiz “a quo”, foi rejeitado tal requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.° do C.P.Penal.
4.–Inconformada, a assistente interpôs recurso, pedindo que seja anulado o despacho de arquivamento e todos os actos subsequentes, apenas se mantendo o requerimento de constituição como assistente e a respectiva admissão, passando então a realizar-se o inquérito que indevidamente foi omitido.  
5.–O recurso foi admitido.
6.–O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
7.–Neste tribunal, o Sr. Procurador-geral apôs visto.
 
II– QUESTÕES A DECIDIR.

A.- Da nulidade insanável.
B.- Da rejeição da instrução.
 
III–FUNDAMENTAÇÃO.

A.- Da nulidade insanável.
1. O despacho de arquivamento do Mº Pº tem o seguinte teor:
Iniciaram-se estes autos com denúncia apresentada por MBE_____ contra ID______, sua madrasta, alegando que o seu pai e marido da denunciada faleceu. Que o pai era proprietário de um imóvel, que foi integralmente pago por ele, local onde a participante tem a sua habitação.
Que correu inventário por óbito do pai e que nele ficou acordada a partilha dos bens do falecido, tendo ficado acordada a venda da fração à participante pelo valor de € 100.000,00, tendo ficado estipulada a realização de um contrato-promessa de modo a acautelar a posição da aqui participante que tinha necessidade de recorrer ao crédito bancário, para a dita compra.
Mais adianta a participante e é esta a razão da sua queixa, que a sua madrasta nunca celebrou ou mostrou disponibilidade de assinar o contrato-promessa, estando a situação da sua habitação nesse impasse.
Ora, os factos narrados na queixa não têm natureza criminal, pois que as pessoas que, na vida civil e comercial, faltam ao prometido ou apalavrado não cometem qualquer crime. Ora os inquéritos só servem para averiguar a existência de crimes e de apurar os seus agentes.
Compete à queixosa e ao seu advogado resolver a questão jurídica que têm em mãos, nos juízos competentes que são os cíveis.
Em face do exposto e vista a inexistência de crime, ordena-se o arquivamento destes autos, nos termos do disposto no artº 277º, nº 1, do CPP.
Cumpra relativamente à denunciante o disposto no artº 277º, nº 1, do CPP.

2.–O despacho ora em recurso, pronunciou-se nos seguintes termos, sobre o requerimento de abertura de instrução:
A assistente MBE_____ veio requerer a abertura da fase de instrução em face da prolação do despacho de arquivamento constante de fls. 79 e com os fundamentos constantes de fls. 82-96, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
Cumpre apreciar.
Dispõe o art. 286.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do art. 287.º do mesmo diploma legal que o requerimento de abertura da instrução “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através duns e doutros, se espera provar”.
Por fim, estando em causa o requerimento apresentado pelo assistente, deve obedecer aos requisitos estabelecidos nas als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º do Código de Processo Penal, ou seja, com “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Em face deste enquadramento legal, torna-se patente que o requerimento de abertura de instrução apresentado por assistente deve conter uma verdadeira acusação alternativa, ou seja, tem de alegar de facto e de direito, em termos de apresentar a acusação que, na sua perspectiva, deveria ter sido proferida.
Assim, é necessária uma delimitação do campo factual sobre o qual a instrução há-de versar, ou seja, o assistente terá de indicar os actos de instrução que pretende realizar, os meios de prova que não tenham sido considerados em sede de inquérito e os factos que, através de uns e outros, espera provar e pelos quais gostaria de ver proferido um despacho de pronúncia.
Tem de enumerar e descrever os factos concretos que pretende imputar aos arguidos e que sejam integradores do crime ou crimes por que pretende vê-los pronunciados.
Se não são descritos factos ou o são deficientemente, sendo que apenas com o seu apuramento em sede de instrução é possível proferir um despacho de pronúncia, este redunda numa alteração substancial do requerimento nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 1.º do Código de Processo Penal, e, como tal, nulo por força do n.º 1 do art. 309.º do mesmo diploma legal.
Por outro lado, tem de ser indicado o respectivo enquadramento legal, podendo ainda haver uma discussão normativa, assente, embora, numa factualidade concreta.
Só ante um requerimento elaborado nestes termos é que, caso o arguido seja pronunciado, não haverá lugar a nova acusação, uma vez que o requerimento do assistente actuou como tal.
Está uma forma de vinculação temática do Juiz de Instrução, no que tange à actividade de investigação e à própria decisão instrutória, como, de resto, decorre do disposto no n.º 1 do art. 303.º e no n.º 1 do art. 309.º, ambos do Código de Processo Penal.
No fundo, deparamo-nos com uma consequência da estrutura acusatória do processo penal e do princípio do contraditório, relacionando-se com as garantias de defesa do arguido, que assim se vê protegido contra o alargamento do objecto do processo, sendo capaz de organizar a respectiva defesa perante os factos de que é acusado.
Assim o estatuem o n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa e o n.º 3 do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Ora, analisando o caso dos autos, verifica-se que, em detrimento do estabelecido na al. b) do nº 3 do art. 283º, aplicável por força do n.º 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal, a assistente embora alegue os factos que entende integradores do tipo objectivo do ilícito alega muito deficientemente os factos susceptíveis de integrar o tipo subjectivo do mesmo, em moldes que impedem o prosseguimento dos autos.
Com efeito, ao nível do elemento subjectivo não foi alegada a matéria relativa à intenção de obter benefício ilegítimo apenas se mencionando esse eventual intenção por referência a uma citação e nada consta acerca da determinação livre da denunciada, o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, mais concretamente as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias e a inclusão dos mesmos, sendo que, para que determinada conduta seja passível de constituir crime é necessário que se encontrem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo que o integram, uma vez que segundo o disposto no art.º 13.º do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
Impõe-se pois concluir a assistente, no requerimento de abertura da instrução não formulou, como lhe competia, nas palavras do Professor Doutor Germano Marques da Silva, uma “acusação alternativa”.
Diferente seria já o caso de esta argumentação almejar o recurso ao estatuído nos arts. 278.º ou 279.º do Código de Processo Penal, pois no requerimento de intervenção hierárquica prevista no art. 278.º do Código de Processo Penal, é pedida uma apreciação do despacho proferido, cabendo ao superior hierárquico determinar a continuação das investigações ou dar indicação para acusar; e, na reabertura do inquérito, é indicada a existência de novos meios de prova que invalidam os fundamentos invocados pelo Ministério Público.
São situações, contudo, distintas da abertura da fase de instrução.
Ora, em conformidade com o n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução apenas pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução.
Um requerimento sem descrição dos factos que permitam preencher todos os elementos do crime, conduz a que a instrução seja inexequível – e assim, a defesa do próprio arguido –, sendo inadmissível nos termos e para os efeitos do já referido n.º 3 do art. 283º, aplicável ex vi nº 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal.
Esta nulidade não se reduz, como resulta da análise que precede, a uma ausência de uma acusação em sentido formal, mas decorre da própria natureza do processo penal e do escopo da fase de instrução, é de conhecimento oficioso e é impassível de ser sanado por aperfeiçoamento – cfr., neste sentido, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005 publicado no Diário da República I-A de 4 de Novembro de 2005.
De resto, permitir o prosseguimento do processo sem o respectivo thema decidendum, ou seja, sem a pressuposta acusação conduziria necessariamente à nulidade da decisão instrutória nos termos do n.º 1 do art. 309.º do Código de Processo Penal.
Haveria, assim, a prática de actos inúteis e inconsequentes, e, como tal, ilegais à luz do princípio da limitação dos actos plasmado no art. 137.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do Código de Processo Penal.

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Por tudo o que ficou exposto e por inadmissibilidade legal da instrução, decido rejeitar o requerimento para o efeito apresentado pela assistente, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal.
                                                   
3.–Em sede conclusiva, apresenta a recorrente as seguintes razões de discórdia:
1°- Ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, foi alegada a factualidade integradora do tipo subjectivo do crime em causa, nos pontos 50 a 54 do Requerimento de Abertura da Instrução.
2°- Desde logo quanto ao elemento específico do dolo do crime de burla, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, não é correcta a afirmação de que "ao nível do elemento subjectivo não foi alegada a matéria relativa à intenção de obter benefício ilegítimo": como resulta dos pontos 54 e 50 está aí precisamente descrita a factualidade que a integra.
3°- Também não está correcta, salvo melhor entendimento, a afirmação de que "nada consta acerca da determinação livre da denunciada, o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, mais concretamente as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias e a inclusão dos mesmos".
4°- Em termos do dolo do tipo, verifica-se que a factualidade que integra o conhecimento e vontade de realização do facto típico está alegada nos ditos pontos 50 a 52 — sendo de notar que o "ardil" aí reiteradamente referido tem justamente como sentido o ser um "estratagema que tem o propósito de enganar ou de iludir".
5°-  Por outro lado, também se mostra alegada a factualidade que integra o tipo da culpa, onde se refere, no ponto 53 que "a Participada bem sabia que estava a enganar, e efectivamente quis enganar, nos termos descritos, quer a Participada, quer os mandatários presentes." — sendo que o "enganar" aí referido não é uma expressão axiologicamente neutra, bem pelo contrário, é-lhe intrínseca a sua ilicitude e censurabilidade.
6°- Independentemente das expressões concretas não terem sido, porventura, as correspondentes às fórmulas mais usualmente usadas, ainda assim, salvo melhor entendimento, foi alegada a matéria minimamente suficiente para integrar, além do tipo objectivo, também o tipo subjectivo do crime em causa.
7°- Existindo, como efectivamente existe, a narração, ainda que sintética, da factualidade susceptível de integrar a prática de um crime de burla, qualquer imprecisão da mesma sempre seria susceptível de eventual aperfeiçoamento, sem qualquer afronta ao entendimento sufragado no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.2 7/2005) e sem colocar em causa o direito de defesa da Denunciada.
8°- Até porque, finalmente, e como resulta do Requerimento de Abertura de Instrução, fundamenta-o a arguição da nulidade por falta de inquérito (cfr. art 122), nulidade essa que é insanável e de conhecimento oficioso.
9º- Significa que, a ser a mesma conhecida e declarada, como se requereu e espera venha a ser decidido, haverá que anular o despacho de arquivamento e todos os actos subsequentes, apenas se mantendo o requerimento de constituição como assistente e a respectiva admissão, passando então a realizar-se o inquérito que indevidamente foi omitido — veja-se precisamente nesse sentido o douto Acórdão do TRC de 05/02/2020, proferido no proc. 830/19.0T9LRA.C1.
10°- Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, de modo a se fazer justiça.

4.– Apreciando.
Neste recurso, suscita a recorrente a questão de saber se ocorre a nulidade insanável, que é de conhecimento oficioso, resultante da falta de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do CPP).
Funda essa sua alegação no facto de, após a queixa, o Mº Pº se ter limitado a proferir despacho de arquivamento, não tendo procedido a qualquer diligência probatória.

5.–Como refere o acórdão do T.R.Coimbra, processo nº 3664/09.6TACBR.C1, de 16-03-2011:
I- O inquérito tem como finalidade investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação.
II- Se os factos que são participados por si só não constituem crime, ou seja, não há qualquer dúvida de que não configuram um crime (p. ex crime amnistiado, direito de queixa já caducou) pôr a máquina judicial a funcionar, a trabalhar, para de seguida determinar o arquivamento é uma inutilidade a todos os níveis (humanos e económicos).
III- Se, porém, estamos perante factos que nos oferecem dúvidas pela sua complexidade, pelos valores em causa, pelos contornos da situação que não são tão simples como se desenham na denúncia e pela abundante prova que há a investigar, significa que estão reunidos todos os pressupostos do dever de investigar a começar pelo interrogatório do arguido.
IV- Em tal caso, se o MP profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência, comete-se a nulidade insanável de falta de inquérito previsto no artº 119, al d) do CPP.119, al d) do CPP.

6.–Vejamos então se, no caso presente, estamos perante uma situação em que se mostra manifesto, em face da denúncia, não serem os factos denunciados susceptíveis de integrar qualquer crime, como entendeu o Mº Pº.

7.–No caso presente, a queixosa alega que chegou a acordo, em sede de inventário por óbito de seu pai, quanto à partilha de bens, porque a participada se comprometeu a assinar um contrato-promessa de venda de uma fracção, pelo montante de 100.000,00, à queixosa, sendo que aquela, até ao momento, não procedeu à assinatura de tal contrato. A fracção em questão, onde a queixosa habita desde 2018, por o seu pai a ter autorizado, é o prédio que seria objecto do contrato-promessa referido.
Mais afirma que foi igualmente por tal razão que se disponibilizou a abandonar a casa onde reside, no prazo de 4 meses. Afirma ainda que a queixosa a enganou, prometendo-lhe tal assinatura quando, na verdade, não a tencionava apor.

8.–Face ao teor da queixa, mostra-se patente estarmos perante uma questão exclusivamente do foro cível e não do criminal.

Senão vejamos.

9.–Desde logo, a queixosa assaca apenas à participada uma acção enganosa, que a terá induzido a transaccionar em sede de partilha.
Sucede, todavia, que o bem putativamente alvo de tal acordo, pertence ao acervo a partilhar (havia 3 verbas). E os herdeiros – legitimários – habilitados à sucessão, não se quedam pela queixosa e participada, nesse rol se incluindo duas outras pessoas – os irmãos da participante.

10.– Por seu turno, embora a queixosa pareça entender que o prédio em questão pertenceria apenas ao autor da herança, embora registralmente conste ser compropriedade do falecido e da participada, sua viúva, a verdade é que, quer se considere que existia compropriedade, quer o seu dono fosse apenas o falecido, tal bem pertenceria sempre ao património hereditário e, por via disso, sempre teria de ser objecto de partilha.
Isso significa que, a respeito do seu destino, em caso de acordo, sempre todos os herdeiros teriam de determinar a quem seria atribuído e em que termos.

11.–Ora, no caso, a participante nada refere ou diz quanto à posição assumida pelos restantes herdeiros, nem explica de que modo é que apenas uma das herdeiras – a participada – a terá deliberadamente enganado, no sentido da realização da mencionada transacção. É que esta envolveu quatro pessoas….

12.–Assim, não se mostra sequer entendível não só como apenas uma das pessoas envolvidas nessa transacção a conseguiu unilateralmente ludibriar, sendo certo que em momento algum a participante sequer explica, caso tal promessa de assinatura de contrato-promessa não tivesse ocorrido, o que é que a queixosa faria em relação à partilha.

13.–Para além do mais, como a participante seguramente saberá, a circunstância de não haver lugar a transacção em sede de inventário, não obsta nem impede o prosseguimento do processo e a efectiva liquidação do património.
Daqui resulta que, independentemente da vontade de qualquer um dos interessados (incluindo a participante), essa liquidação iria ocorrer, quer a recorrente quisesse quer não e, quer se entendesse que o prédio era bem próprio pertencente integralmente ao património do seu falecido pai ou apenas em compropriedade, na proporção de metade. O prédio iria ser partilhado.

14.–Não se sabe, pois, qual era a intenção da participante no que se refere à partilha, designadamente se pretendia deixá-la correr os seus termos ou se pretendia fazer transacção em termos diversos, caso tal putativa promessa não tivesse surgido. Mais: a recorrente nem sequer alega que a participada tinha conhecimento de qual era a sua outra posição, nem de que tenha sequer partido desta última (a sua madrasta) a iniciativa os termos do acordo.

15.–Assim, pergunta-se, como é que a participada pode ter engendrado um plano, proposto um acordo (o que, pelos vistos, nem sequer fez, pois em momento algum a participante alega tal ter sucedido por impulso da herdeira viúva) e feito a queixosa mudar de ideias, se nenhuma matéria a esse respeito é alegada?
Mais: como é que esse plano (forçosamente formulado previamente e com o desígnio de não ser cumprido) pode ser assacado apenas à participada, quando na transacção surgem os quatro interessados na partilha? Os restantes não estavam interessados em receberem ou o bem ou as tornas devidas pela sua atribuição a um dos herdeiros? Ou estavam mancomunados com a participada?

16.–Decorre do que se deixa dito que é manifesto que o que aqui está em questão não é uma acção criminosa, integrável no âmbito do crime de burla, mas um litígio de carácter meramente civilístico em que haverá eventual incumprimento por parte da participada.
Realisticamente, face à queixa, não se vislumbra matéria que possa sequer indiciar a existência de um erro ou engano astuciosamente (logo, previamente) imputável à participada, que tenha levado a um enriquecimento ilegítimo da sua parte e a um prejuízo patrimonial para a queixosa.

17.–Efectivamente, embora a participante pareça pretender imputar à participada um ganho ilegítimo correspondente ao valor da casa (pelos vistos, integral), a verdade é que seis questões se colocam, nenhuma delas resolúvel em sede criminal, a saber:
- a questão da compropriedade registral, que a participante parece querer aqui impugnar, o que obviamente não é possível nesta sede criminal;
- as manifestas discrepâncias existentes entre o valor do imóvel que, na tese da participada, valeria € 175.350,00 e o valor que todos os herdeiros aceitaram, em sede de transacção, que fosse de € 31,500,00, correspondente a ½ da fracção a partilhar. 
- a circunstância de a participada não ter recebido, em sede de partilha, qualquer outro bem, já que quer o automóvel, quer o depósito bancário, no valor de € 202.633,10 cêntimos, foram adjudicados, uma terça parte para cada um, à queixosa e aos seus irmãos.
- a circunstância de não ter sido inscrito, em sede de transacção – como legalmente poderia ter sido - a adjudicação da ½ da fracção à participante e a promessa de venda, por parte da participada, da restante metade àquela.
- o valor acordado para a promessa de compra e venda, não se mostra compreensível na tese do logro e prejuízo legítimo que a participante invoca. De facto, na sua tese, a sua madrasta (a participada) comprometer-se-ia a receber pela promessa de venda da habitação, o valor total de 127.500,00 (€ 100.000,00 por entrega da participante e € 27.500,00 a título de tornas). Se o prédio valia de facto € 175.000,00, seria a sua madrasta a ter prejuízo, não a participante.
- em último lugar, no seguimento do que se acaba de deixar dito, não seria apenas a viúva a receber menos do que o que lhe era devido, em sede de partilhas, mas igualmente os dois restantes interessados (os irmãos da participante) que deixariam de receber a sua terça parte, no valor diferencial dos € 50.000,00 (metade do valor que a participante pagaria à sua madrasta, relativamente à ½ da fracção que aquela recebeu em partilhas e que lhe iria vender) e ainda teriam de entregar a sua quota-parte de tornas, relativamente aos € 27.500,00 resultantes do acordo de partilhas.

18.–Todos estes elementos, que não têm o seu campo de apuramento em sede criminal, mostram-se desde logo essenciais para algo que, isso sim, é elemento constitutivo do tipo de crime imputado – determinação do valor dos alegados benefício ilegítimo e prejuízo. E o que resulta da queixa é que não se mostra compreensível nem quantificável, qual o prejuízo afinal sofrido pela participante e qual o benefício alcançado pela participada. E muito menos que estejamos perante ganhos e prejuízos ilegítimos, isto é, que a participada tenha obtido vantagens patrimoniais, através do desapossamento, sem qualquer fundamento legal, do património da participante.

19.–Na verdade, o que se constata é que em sede de transacção todos declararam estar de acordo quanto aos termos da partilha, celebrada em Cartório Notarial. Assim, que a fracção foi adjudicada à participante, é algo que a participada não desconhecia e com o qual concordou (assim como os demais interessados). O facto de ter putativamente celebrado com aquela um contrato verbal de promessa de celebração de contrato de promessa para posterior venda dessa casa, que até ao momento não se concretizou, é questão que manifestamente não se enquadra no âmbito criminal, assim como se não enquadraria a falta de cumprimento de tal contrato, caso o mesmo tivesse sido celebrado.
 
20.– A título final dir-se-á que de igual modo se terá de entender no que respeita ao seu acordo quanto à desocupação do imóvel.
Como a própria recorrente afirma, o uso dessa habitação (a célebre verba nº1 do inventário, adjudicada à participada) foi-lhe cedida pelo seu pai, em vida deste, em 2018.
Tal cedência constitui um contrato de comodato, que cessa com a morte do comodante ou quando este exige, na inexistência de fixação de prazo, a restituição do bem (artºs 2025, 1129, 1135 al. h), 1137 nº2, todos do C. Civil). Assim, não se compreende sequer em que medida o facto de ter acedido desocupar a habitação no prazo de 4 meses, seria um prejuízo resultante da dita promessa de assinatura de um contrato-promessa. Teria de sair a qualquer momento, se tal lhe fosse exigido. 

21.–Temos, pois, que face à queixa, se mostra manifesto não serem os factos denunciados susceptíveis de integrar qualquer crime, antes se situando o litígio que opõe a queixosa à participada no âmbito cível, razão pela qual se conclui não se verificar a nulidade que a recorrente invoca.

B.– Da rejeição da instrução.
1.-O requerimento de abertura de instrução, na parte relativa à narração factual e imputação criminal, tem o seguinte teor:
II — Da instrução
A Participante apresentou contra ID______, contribuinte fiscal n... 1........, residente na Rua ..., ns.... ... / ..., S... ... - F..., a respectiva denúncia, junto do Ministério Público, nos termos que se seguem e aqui se reproduzem para todos os efeitos — sendo que os documentos referidos são os que acompanham a referida participação:
1.-A Participante é filha de JE______ e de Benvinda, ambos naturais de M..., em primeiras núpcias de ambos — cfr. doc. 1.
2.- Os pais da Participante estiveram casados de 1960 até 1998, ano do óbito da Mãe da Participante — cfr. doc. 2.
3.- Não houve partilha integral dos bens por morte desta, e, designadamente, em relação às respectivas poupanças e contas bancárias do casal, as quais, por entendimento de todos, se mantiveram na posse, gestão e fruição do referido Pai da Participante.
4.-  Em 6 de Setembro de 2000, o Pai do Participante casou com a Participada, no regime imperativo da separação de bens — cfr. doc. 3.
5.- O Pai da Participada veio a falecer em 10 de Setembro de 2019 — cfr. doc. 4.
6.- Ainda antes de casar em segundas núpcias, com as respectivas poupanças, acima aludidas no ponto 3, o Pai da Participada prometeu comprar em 9 de Abril de 1999 a fracção BX, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do F..., sob o n2. .../......, da freguesia se Santa ..., concelho do F..., e inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o art. 3.2662, pelo valor de Esc. 26.000.000$00 (vinte e seis milhões de escudos), conforme contrato promessa de compra e venda de 9 de Abril de 1999 — cfr. doc. 5.
7.- Esse valor foi pago, em exclusivo, pelo Pai da Participada, ainda antes de casar em segundas núpcias, concretamente por via de três cheques, todos sacados sobre a respectiva conta, a qual integrava as poupanças acima aludidas no ponto 3 — cfr. docs. 6 a 8.
8.- A conta a que respeita tais cheques era da exclusiva titularidade do Pai da Participante — cfr. docs. 9 e 10.
9.-  O primeiro dos cheques em causa destinou-se ao pagamento do sinal acordado de Esc. 5.000.0000$00 (cinco milhões de escudos), datado de 11/04/1999, à ordem do procurador do promitente vendedor;
10.- O segundo destinou-se ao pagamento do distrate do imóvel, no valor de Esc. 17.750.000$00 (dezassete milhões setecentos e cinquenta mil escudos), datado de 11/05/1999, à ordem da Caixa Geral de Depósitos, respectivo credor hipotecário, que o entregou no acto da venda — cfr. doc. 11;
11.- O último, da mesma data, destinou-se ao pagamento do remanescente do preço, Esc. 3.250.000$00 (três milhões duzentos e cinquenta mil euros), à ordem do procurador do vendedor.
12.- Não obstante isso, a escritura em causa veio a ser lavrada apenas pelo valor de Esc. 19.000.000,00 (dezanove milhões de escudos), valor simulado, sendo o valor verdadeiro de Esc. 26.000.000$00 (vinte e seis milhões de escudos), como se viu — cfr. doc. 12.
13.- Também como se viu, nada do valor em causa foi pago pela Participada.
14.- No entanto, a aquisição da referida fracção veio a ser outorgada na proporção de metade a favor da Participada, a despeito de a mesma nada haver pago, e assim registada e inscrita também em seu nome — cfr. docs. 13 e 14.
15.- Essa matéria — a par da discussão das poupanças amealhadas pelos Pais da Participante e a sua atribuição a esta e aos irmãos — integrou reclamação da Participante no inventário por óbito do seu Pai, que correu os seus termos junto do Cartório Notarial Privado de LM..., sob o n...- ..../... — cfr. docs. 15 e 16.
16.-A Participante solicitou, no curso desse inventário, uma avaliação da fracção em causa, a técnico devidamente habilitado para o efeito, tendo sido apurado o respectivo valor de mercado de € 175.350,00 (cento e setenta e cinco mil trezentos e cinquenta euros) — cfr. doc. 17.
17.- Em vida do Pai da Participante, este havia manifestado a sua vontade de que a fracção em causa ficasse para a Participante e para a sua filha.
18.- Com a devida autorização daquele, a Participante e a respectiva filha ali habitam, desde 2018.
19.- A Participante e a respectiva filha não dispõem de alternativa habitacional e, mais concretamente, aquela apenas mais dispõe de 1/3 de um outro imóvel habitacional, que é o inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo nº ..... da freguesia e concelho da R... B... — cfr. doc. 18.
20.- Esse imóvel, pertença nos restantes 2/3 aos dois irmãos da Participante, JJ_____  e VL_____, e na falta de outro acordo entre os mesmos, está para venda.
21.- Os dois irmãos da Participante dispõem de casa própria.
22.- Nesse contexto, o interesse essencial da Participante no inventário por óbito do respectivo Pai residia primeira e fundamentalmente na aquisição aos restantes herdeiros da fracção acima identificada no ponto 6.
23.- No dia dez de Novembro de 2020, no âmbito do referido inventário por óbito do Pai da Participante, na presença dos mandatários forenses de ambas as partes, foi obtida e realizada transacção na partilha — cfr. doc. 19.
24.- Além da repartição dos valores monetários, foi acordada ainda a atribuição de metade da dita fracção — concretamente na parte em que a mesma se mostrava registada a favor do Pai da Participante — à Participada.
25.- O valor atribuído a esta não resultou nem correspondeu a qualquer avaliação — sendo bem inferior ao respectivo valor de mercado, como supra exposto — apenas de modo a garantir à Participada o pagamento do valor de tornas acordado de € 27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros).
26.- A par disso, foi acordada a venda, pela Participada à Participante, da dita fracção, na sua totalidade, pelo valor de € 100.000,00 (cem mil euros), ficando de ser celebrado o respectivo contrato promessa logo de seguida — não estando o mesmo então pronto, tendo ficado combinado nessa altura entre o mandatário da Participada e o da Participante que seria este último a elaborar a respectiva minuta, para a subsequente verificação por aquele primeiro.
27.- Efectivamente, enquanto que para os respectivos irmãos estava em causa um interesse exclusivamente financeiro, para a Participante estava em causa, como já referido, sobretudo a tentativa de salvaguardar a respectiva habitação e da sua filha, por via da referida fracção.
28.-  Assim, no que respeita à Participante, o respectivo acordo à transacção em causa teve como pressuposto absolutamente necessário a dita promessa da venda a seu favor da fracção em causa pelo dito valor então acordado com a Participada de € 100.000,00 (cem mil euros).
29.-  Uma vez que a Participante tinha a necessidade de recorrer, para esse efeito, em parte, a financiamento bancário, mais foi em conformidade acordado o prazo de quatro meses para a conclusão da venda.
30.- Para acautelar qualquer eventual incumprimento da parte da Participante, foi exigido, pelo mandatário da Participada, que ficasse, na transacção estipulada, a par da adjudicação de metade da dita fracção, ainda a sua obrigação da sua entrega a esta última no dito prazo de quatro meses.
31.- Em contrapartida, certo é que se não fosse a prometida promessa de venda da parte da Participada a favor da Participante, esta não teria subscrito a transacção em causa, o que aquela bem sabia.
32.- A Participada, devidamente acompanhada pelo respectivo mandatário, efectivamente se comprometeu-se à celebração da dita promessa de venda a favor da Participante, bem sabendo que, sem a mesma, esta não teria aceite nem celebrado a dita transacção.
33.-  Sucede que, como se veio a verificar, nunca foi intenção da Participada celebrar o dito contrato promessa, tudo não passando de um verdadeiro ardil e logro, com vista a levar a Participante a aceitar a dita transacção.
34.- Na verdade, no próprio dia da conferência em que foi celebrada a transacção, 10/11/2020, o mandatário da Participante nesses Autos de Inventário, Exmº. Sr. Dr. RS_____, elaborou e remeteu ao mandatário da Participada, Exmº. Sr. Dr. TR_____, a minuta do contrato promessa, tal como havia sido entre ambos combinado — cfr. doc. 20.
35.- Essa minuta não mereceu qualquer reparo da parte do mandatário da Participada.
36.-  Apesar disso, e muito embora o mandatário da Participada fosse informando o mandatário da Participante que estava a diligenciar junto desta pela respectiva assinatura, o facto é que, dia após dia, nada sucedia nesse sentido.
37.-Também não era apresentada qualquer explicação, minimamente plausível, que assim o justificasse — designadamente chegava a ser dito que a Participada estava com algum problema de saúde, mas a verdade e o facto é que se mantinha com o respectivo estabelecimento aberto.
38.- A Participante começou a desesperar.
39.- Foi questionando sucessivamente, dia após dia, o respectivo mandatário nos Autos de Inventário, e este do mesmo modo afirmava estar a diligenciar junto do mandatário da Participada... e nada.
40.- Assim, por email de 5 de Janeiro de 2021, o mandatário da Participante no âmbito do inventário, mais uma vez insistiu junto do mandatário da Participada pela necessidade imperiosa de celebração do contrato promessa, que havia determinado a aceitação por aquela da transacção em causa, nos seguintes termos — cfr. doc. 21:
"Em 10 de novembro de 2020 foi celebrado acordo de partilha no processo de inventário acima identificado n.94711/19, por óbito de JE_____. Na base da negociação e do acordo alcançado pelos herdeiros, na presença da senhora notária, esteve a promessa da sua constituinte, ID______, em vender o imóvel (verba um) à herdeira MBE_____ , então minha constituinte, pelo preço de 100 mil euros. Vossa excelência sabe perfeitamente, assim como o sabe a sua constituinte, que o contrato promessa de compra e venda fez, e faz, parte integrante do acordo global alcançado na partilha e que sem esse contrato não teria havido acordo nos termos plasmados em acta, entretanto homologado por douta sentença.
No próprio dia da conferência, ou seja, em 10/11/2020 elaborei e remetei a vossa excelência a minuta do contrato promessa, que não mereceu nenhum reparo da vossa parte. Os compromissos assumidos pelos meus clientes foram cumpridos na íntegra. Mas o mesmo não se pode dizer da sua cliente e de vossa excelência, pois que, desde então, e sem qualquer razão ou fundamento, se mostram esquivos no que respeita à assinatura do contrato promessa e, como tal, incumpridores das obrigações e dos deveres que assumiram.
Vossa excelência aproveitou-se dos especiais deveres estatutários que regem e devem existir nas relações entre advogados, nomeadamente, de solidariedade, confiança e lealdade, para me enganar e enganar a minha constituinte, daí retirando vantagens ilegítimas/indevidas para a sua cliente.
A minha cliente, que entretanto já tinha manifestado desagrado com a situação, procurou outro advogado que hoje, já depois de ter falado consigo, me ligou a questionar as circunstâncias do acordo e a pôr em causa o meu trabalho e o meu brio profissional, e isso só aconteceu por causa de vossa excelência, que não cumpre os acordos que faz com os colegas. Eu, em 20 anos de profissão, NUNCA falhei um acordo com um colega e, não só por isso mas também, não lhe admito, nem a nenhum outro advogado, que ponha em causa o meu bom nome, pessoal e profissional, nem que, sob a capa do segredo profissional, prejudique os legítimos interesses dos meus constituintes.
Fica, pois, vossa excelência devidamente advertido de que se o contrato promessa de compra e venda em referência não for assinado pela sua cliente e feito chegar ao meu escritório até à próxima sexta-feira, dia 8 do corrente, apresentarei participação disciplinar contra vossa excelência, e se entender que existe matéria para participação criminal, também apresentarei a respectiva queixa criminal, independentemente das acções ou procedimentos que a cliente entender tomar."
41.- Por sua vez, respondendo o mandatário da Participada, por email de 7 de Janeiro de 2021, o mesmo referia o seguinte — cfr, doc. 22:
"Caro Colega,
Acuso a recepção da sua comunicação cuja resposta, pelo respeito que o colega certamente merece, tive o cuidado de deixar para o dia de hoje — não fosse comportar-me de maneira despropositada e ofender o colega, tal como fez e que muito me surpreendeu.
Em bom rigor, e sem prejuízo das diligências posteriores que o Ilustre Colega decida adotar (informando desde já que não me deixo amedrontar com "promessas" de queixas e/ou de apresentação de participações), repudio e não posso admitir o teor da comunicação que me dirigiu, por relatar uma série de inverdades e acusações que além de gravíssimas e atentatórias à minha honra e brio profissional, não têm qualquer fundamento ou razão de ser.
Permitir-me-ia trazer à colação, entre outros, o disposto no artigo 180.° do Código Penal (CP), sob a epígrafe "Difamação" ou, ainda, o disposto no artigo 365.° do CP sob a epígrafe "Denúncia Caluniosa", cujo teor será do melhor conhecimento do Ilustre Colega.
Assim, caso não seja intenção do colega retratar-se em relação às acusações por si feitas na comunicação a que ora respondo, ponderarei seriamente a hipótese de avançar com participação disciplinar e criminal, solicitando que me esclareça se a mesma tem ou não carácter confidencial uma vez que, não obstante declarar em "Nota" que o e-mail "não é confidencial e poderá ser usado", fez constar da mesma comunicação um aviso de confidencialidade, que impede o uso, cópia ou por qualquer meio divulgação da mensagem transmitida.
Com o devido respeito, que é muito, não há razão de ser para o comportamento do Colega.
Relembro que os termos do acordo celebrado no âmbito do processo de inventário 4711/19 foram discutidos na presença de ambos os clientes, devidamente representados pelos seus mandatários, e posteriormente vertidos em acta e homologado por sentença.
No que se refere ao contrato promessa de compra e venda, tanto quanto é do meu conhecimento, em momento algum foi afastada pela M. Constituinte a hipótese de realização do mesmo.
O ilustre colega sabe que a minha cliente tem uma idade bastante avançada e esteve doente. Disso mesmo lhe dei conhecimento nas várias comunicações estabelecidas, via telefone e via e-mail. Aliás, relembro-lhe que sempre respondi às comunicações que me dirigiu, e no próprio dia.
Se o contrato ainda não foi celebrado, creia-me, não foi por falta de diligência e insistência da minha parte.
Pergunto-me o que sugeria o colega que eu fizesse, já que me acusa de incumprimento. Que assine o contrato pela M. Constituinte? Que a obrigue pela força?! ! !...
Por minha parte continuarei a insistir com a M. cliente na celebração do contrato promessa. E uma vez que a senhora por si representada procurou outro advogado, que inclusivamente já o contactou, agradeço que me informe quem é o colega que agora a representa, para futuros contactos referentes a desenvolvimentos no que se refere à celebração de CPCV.
De resto (e para que dúvidas, caso hajam, não persistam),
Não violei qualquer dever de conduta muito menos enganei o Ilustre colega ou a sua cliente.
É pacífico que no exercício do patrocínio forense o advogado (apesar de não se obrigar a obter ganho de causa) se obriga a utilizar com diligência e cuidado os seus conhecimentos técnico-jurídicos através dos meios que considere ajustados ao caso e aos interesses do respectivo cliente.
No âmbito deste processo de inventário e na abordagem de todas as questões que têm vindo a ser tratadas, cumpri o dever de defender diligentemente os interesses e objectivos visados pela minha mandante.
E certamente que o colega terá agido da mesma forma em relação à sua.
Se assim ou não foi e se por essa ou por outra qualquer razão a sua cliente terá procurado outro advogado, relembro-lhe aquilo que o ilustre colega tanto ou melhor que eu saberá: a responsabilidade - tal como a culpa - é pessoal e intransmissível. (E essas, colega, neste caso, não as tenho eu)."
42.- Assim, e para além do evidente desentendimento e frustração de ambos os mandatários, o que resulta inequívoco é que esse desentendimento e frustração resulta da falta de concretização do contrato promessa a que a Participada se havia obrigado, como ambos referem.
43.-  Daí que o próprio mandatário da Participada afirme:
No que se refere ao contrato promessa de compra e venda, tanto quanto é do meu conhecimento, em momento algum foi afastada pela M. Constituinte a hipótese de realização do mesmo.
O ilustre colega sabe que a minha cliente tem uma idade bastante avançada e esteve doente. Disso mesmo lhe dei conhecimento nas várias comunicações estabelecidas, via telefone e via e-mail. Aliás, relembro-lhe que sempre respondi às comunicações que me dirigiu, e no próprio dia.
Se o contrato ainda não foi celebrado, creia-me, não foi por falta de diligência e insistência da minha parte.
Pergunto-me o que sugeria o colega que eu fizesse, já que me acusa de incumprimento. Que assine o contrato pela M. Constituinte? Que a obrigue pela força?!!!...
44.- A alusão a problemas de saúde e à idade da Participada não justificam nem explicam a ausência de explicação, agendamento ou resposta por parte da mesma, no sentido efectivamente acordado da celebração do dito contrato promessa.
45.- Inclusivamente, a Participada vem-se mantendo a laborar no respectivo estabelecimento comercial.
46.- E, por outro lado, o que é inequívoco é que o prazo exarado na transacção para a desocupação da fracção — no pressuposto acima assinalado —está a correr, e já não é sequer possível à Participante concluir em tão pouco tempo qualquer processo de financiamento.
47.- Numa derradeira tentativa, em 06/01/2021, a Participante comunicou o seguinte à Participada, por carta registada com A.R., recebida por esta em 08/01/2011— cfr. docs. 23 e 24.
48.- A Participada não deu qualquer resposta.
49.- O contrato promessa permanece por assinar.
50.- E, como os factos, objectivos, assim o demonstram, nunca foi intenção da Participada assiná-lo, mas apenas, como já referido, um verdadeiro ardil e logro, com vista a levar a Participante a aceitar a transacção acima descrita —estando pressionada e condicionada pela sua necessidade habitacional e da sua filha —, por via da qual aquela vem a obter a totalidade da fracção, por um valor ínfimo em relação ao respectivo valor de mercado, ultrapassando a questão da metade da mesma que, na realidade, nunca adquiriu, mas sim e exclusivamente o Pai da Participante, e ainda recebendo tornas de € 27.500,00 — nunca tendo tido a intenção de cumprir a outorga da promessa da venda pelo valor de € 100.000,00 a favor da Participante!
51.- O ardil é tanto mais astucioso quanto a Participada se aproveitou da circunstância da presença de ambos os mandatários de parte a parte — ou seja, da circunstância de especial confiança por esse meio induzida na Participante de que o acordado por meio daqueles iria efectivamente ser cumprido.
52.- Sucede que, como resulta do acima exposto, a Participada envolveu no respectivo ardil ambos os mandatários presentes, de parte a parte, ou seja, também os ludibriou quanto à perspectiva — que nunca teve — de efectiva celebração por si do contrato promessa em causa.
53.- A Participada bem sabia que estava a enganar, e efectivamente quis enganar, nos termos descritos, quer a Participada, quer os mandatários presentes.
54.- A Participada, ao agir do modo descrito, pretendida obter, como efectivamente acabou por obter, todos os assinalados benefícios económicos a seu favor, cfr. ponto 50. supra, sem jamais ter tido a intenção de cumprir com a condição a que se obrigou para com a Participante, e que sabia ser absolutamente determinante para esta subscrever a transacção em causa.
55.-  Ao agir do modo descrito, a Participada incorreu na prática de um crime de burla qualificada — cfr. arts. 2172 e 218° do CPP.
56.- Assim, ainda que a participante mova, como efectivamente sucede, os meios civis ao seu dispor, não deixa de se verificar e ser sindicável a responsabilidade penal da participada.
57.- Efectivamente, citando o douto Acórdáo do TRP, de 11-01-2017, proferido no processo 1830/12.6JAPRT.P1, in www.dgsi.pt:
"I - O bem jurídico protegido pelo crime de burla é o património do ofendido globalmente considerado numa perspectiva jurídico criminal, mas ao lado do património protege também os valores da lealdade, transparecia e boa fé das transacções e a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correcta nas suas disposições de caracter patrimonial.
II - Ocorre o crime de burla e não mera fraude civil quando ocorre um incumprimento contratual preconcebido, criado de forma astuciosa levando o ofendido ao engano que causou o prejuízo patrimonial."
58.- Tal como esse também se alicerçando no douto Acórdão do STJ de 04.10.2007, o douto Acórdão do TRP de 11/01/2017, proferido no processo 2020/13.6TAPVZ.P1, refere que:
"Como se refere no citado acórdão do STJ de 04 de Outubro de 2007, há uma grande diferença entre aquilo que é o ilícito civil e aquilo que é o ilícito penal. Se a litigância de má fé é um bom mecanismo no meio civilístico, ela não apaga nem esgota a intervenção do Estado ante as condutas dolosas das partes.
Nele se refere que, embora se actue no campo civilístico, usado contratos civis que não se querem cumprir ou usando de reserva mental, "a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que o dolo «in conrahendo» cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela doutrina e pela jurisprudência, tendo-se presente que o dolo «in contrahendo» é facilmente criminalizavel desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla".
5.-  Assim, há fraude penal (a somar ao ilícito civil), quando: há um propósito ab initio de não prestar o equivalente económico; se verifica dano social e não puramente individual, com a violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; se verifica uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; há uma fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há um intuito de lucro ilícito e não do lucro do negócio."
6.- No termo da respectiva participação, a Participante requereu a prossecução do respectivo procedimento criminal contra a Participada.
7.- Além da prova documental apresentada, a Participante indicou ainda as seguintes testemunhas:
- JJ_____, residente na Estrada ...- ..., nº..., Sítio ..., freguesia e concelho da ... ...;
- Exmg. Sr. Dr. Dr. RS _____, com domicílio profissional à Rua ..., n°. ..., ... andar, sala ... - ....-0... -- F....
Sucede que:
8.- Nenhuma das testemunhas foi ouvida pelo M.P.
9.- A Participante também não o foi.
10.- A Participada não foi constituída como arguida, e também não foi ouvida.
Efectivamente:
11.- Pelo douto Despacho de arquivamento acima identificado, foi entendido pelo M.P. que os factos narrados na queixa não têm natureza criminal.
12.- Salvo o devido respeito e salvo melhor opinião, não assiste razão ao M.P. nessa sua decisão.
13.- A circunstância de um determinado facto constituir ilícito civil não exclui a possibilidade de o mesmo constituir, também, ilícito criminal — como aqui sucede.
14.- A possibilidade e a necessidade até de recurso aos meios civis não exclui a possibilidade de recurso aos meios penais — como aqui sucede.
15°.- O cotejo da realidade civilística com a realidade penal é perfeitamente configurável no caso de um crime de burla — como aqui sucede.
16°.- Remetendo para toda a factualidade que integrou a participação, e integra agora o presente requerimento de instrução, reitera-se aqui o entendimento sufragado na jurisprudência ali invocada.
17.- Assim, e designadamente, "ocorre o crime de burla e não mera fraude civil quando ocorre um incumprimento contratual preconcebido, criado de forma astuciosa levando o ofendido ao engano que causou o prejuízo patrimonial"— que é o que precisamente in casu sucede.
18.- Também se diga que "há fraude penal (a somar ao ilícito civil), quando: há um propósito ab initio de não prestar o equivalente económico; se verifica dano social e não puramente individual, com a violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; se verifica uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; há uma fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há um intuito de lucro ilícito e não do lucro do negócio." — que é o que também in casu sucede.
19.- Verifica-se, nesta sequência, a nulidade por manifesta insuficiência do inquérito, a que se reporta a al. d), do n2. 2, do art. 1202 do CPP, senão mesmo, numa visão mais substantiva, por falta de inquérito — cfr. Ac. do TRC, de 05/02/2020, proc. 830/19.0T9LRA.C1.
20.- Deve, como tal, ser em conformidade declarada a nulidade do referido Despacho de arquivamento, para que o M.P. prossiga com os actos de inquérito devidos, sendo certo que, conforme supra exposto, os factos participados integram, objectivamente, a prática de um crime de burla.
21.- Tais factos, pelos quais se entende que deve prosseguir o devido processo penal contra a Participada, estão, além do mais, já indiciados pela prova documental produzida, sem prejuízo da produção da prova testemunhal requerida.

2.– Apreciando.

i.- Não restam dúvidas, face à lei, à jurisprudência e até à doutrina, que o juiz de instrução está subordinado a uma vinculação temática de facto e de direito, decorrente do constante no requerimento de abertura de instrução (RAI) que lhe é apresentado. Significa isto que, tal requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, terá de cumprir os requisitos que a lei lhe impõe.

ii.- Concretamente, nos casos, como o dos autos, em que se trata de um requerimento apresentado pela assistente, em reacção a um despacho de arquivamento, não restam dúvidas que o pedido de abertura de instrução terá forçosamente de conter duas áreas de alegação, designadamente:
a.-O requerente terá de mencionar as razões de discordância (de facto e de direito) no que se refere à decisão de não acusação, bem como indicação dos actos de instrução que pretende que sejam realizados e uma indicação e avaliação relativas aos meios de prova;
b.-O requerente terá ainda de formular uma acusação, sujeita aos mesmos precisos requisitos e condicionalismos previstos para o MºPº.
É isso o que decorre do vertido no artº 283 nº3 do C.P.Penal, aplicável por remissão do vertido no artº 287 nº2 do mesmo diploma legal.

3.–De facto, o juiz de instrução tem apenas poderes investigatórios oficiosos; ou seja, pode determinar que se produzam os elementos de prova que entender necessários à descoberta da verdade material, mas apenas relativamente aos factos concretamente alegados pelo requerente, não podendo substituir-se a este. Aliás, em situação paralela, também não tem o juiz do julgamento, face a uma deficiente acusação, poderes para a completar ou mandá-la corrigir.
E assim sendo, como é, cabe-nos então verificar se o requerimento apresentado pela assistente cumpre ou não tais requisitos, concretamente no que se refere à parte acusatória do mesmo (o acima referido em b.), já que o despacho alvo de crítica entende que tal não sucede.

4.–Entendeu o despacho recorrido que a assistente, no seu RAI, embora alegasse os factos que entende integradores do tipo objectivo do ilícito alega muito deficientemente os factos susceptíveis de integrar o tipo subjectivo do mesmo, em moldes que impedem o prosseguimento dos autos. Concretamente, a assistente não alega a matéria relativa à intenção de obter benefício ilegítimo apenas se mencionando esse eventual intenção por referência a uma citação e nada consta acerca da determinação livre da denunciada, o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, mais concretamente as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias e a inclusão dos mesmos.

5.–Por seu turno, entende a assistente que tais matérias se mostram vertidas nos pontos 50 a 54 do dito RAI, onde se lê:
50.- E, como os factos, objectivos, assim o demonstram, nunca foi intenção da Participada assiná-lo, mas apenas, como já referido, um verdadeiro ardil e logro, com vista a levar a Participante a aceitar a transacção acima descrita —estando pressionada e condicionada pela sua necessidade habitacional e da sua filha —, por via da qual aquela vem a obter a totalidade da fracção, por um valor ínfimo em relação ao respectivo valor de mercado, ultrapassando a questão da metade da mesma que, na realidade, nunca adquiriu, mas sim e exclusivamente o Pai da Participante, e ainda recebendo tornas de € 27.500,00 — nunca tendo tido a intenção de cumprir a outorga da promessa da venda pelo valor de € 100.000,00 a favor da Participante!
51.- O ardil é tanto mais astucioso quanto a Participada se aproveitou da circunstância da presença de ambos os mandatários de parte a parte — ou seja, da circunstância de especial confiança por esse meio induzida na Participante de que o acordado por meio daqueles iria efectivamente ser cumprido.
52.- Sucede que, como resulta do acima exposto, a Participada envolveu no respectivo ardil ambos os mandatários presentes, de parte a parte, ou seja, também os ludibriou quanto à perspectiva — que nunca teve — de efectiva celebração por si do contrato promessa em causa.
53.-A Participada bem sabia que estava a enganar, e efectivamente quis enganar, nos termos descritos, quer a Participada, quer os mandatários presentes.
54.-A Participada, ao agir do modo descrito, pretendida obter, como efectivamente acabou por obter, todos os assinalados benefícios económicos a seu favor, cfr. ponto 50. supra, sem jamais ter tido a intenção de cumprir com a condição a que se obrigou para com a Participante, e que sabia ser absolutamente determinante para esta subscrever a transacção em causa.

6.–A assistente imputa à arguida a prática crime de burla qualificada, nos termos do disposto nos artºs 217º e 218° do CPP.

7.–Diz a lei:
Artigo 217.º (Burla)
1-Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Artº 218º
1-Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2-A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a)-O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b)-O agente fizer da burla modo de vida;
c)- O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou
d)-A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.

8.–Lidos e relidos os pontos acima transcritos, há que concluir que assiste razão ao tribunal “a quo”.
De facto, a adjectivação predomina (ardil, enganar, logro e astúcia, por exemplo), sendo certo que a mesma não é matéria factual susceptível de prova.
A conclusão pela ocorrência de erro ou engano que, de modo astucioso, determinou alguém à prática de actos para si (ou para terceiro) patrimonialmente danosos e geradores de indevido e ilegítimo enriquecimento por parte do autor do ardil, é matéria que terá de resultar da leitura de factos que, a provarem-se, permitam concluir estarem preenchidos os requisitos do tipo.
No caso, no RAI em questão, efectivamente não se mostram enunciados os factos susceptíveis de, a provarem-se, serem passíveis de integrar o tipo subjectivo do crime. E de igual modo, pelas razões já anteriormente expostas, no primeiro segmento deste acórdão, também ausentes se mostram os factos relativos ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo.
Note-se, aliás, que nem sequer se mostra averiguável saber a qual das circunstâncias qualificativas agravantes do tipo a recorrente alude, sendo certo que a mesma também a não especifica, quer no RAI, quer no presente recurso.

9.–Como acima se referiu, não basta, para que um RAI possa ser admitido, que o requerente discuta e debata os meios probatórios já existentes nos autos ou critique a forma como foram entendidos ou negligenciados (ou mesmo omitidos). É ainda essencial que exista, corporizada no texto, uma verdadeira acusação – isto é, que aí conste a descrição narrativa e sequencial dos factos, dos acontecimentos, designadamente quem fez o quê, como, quando, porque forma, com que objectivo e a que título.
 
10.–Esta narração não se mostra realizada no RAI apresentado, uma vez que se mostram factualmente por elencar os elementos integradores do tipo de crime que a requerente invoca ter sido praticado.
  
11.–Como supra igualmente deixámos já dito, o JIC está sujeito ao princípio da vinculação temática, que tem como objectivo a defesa do arguido contra alterações arbitrárias do objecto do processo e possibilitar-lhe, efectiva e eficazmente, a elaboração de uma defesa, mostrando-se tal princípio bem evidenciado no n.° 1 do artigo 309° do Código de Processo Penal, onde se sanciona como nula a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução. Esta é uma das razões porque compete a quem quer ver o arguido acusado, enunciar os factos que constituem a acusação, e não ao Mº JIC..

12.–No caso dos autos, constata-se a omissão de factos essenciais para, a provarem-se, poder haver lugar à formulação de um juízo de censura criminal, relativamente à actuação de um concreto agente, pois a assistente não cumpriu o seu dever legal de descrição da matéria factual que permite fundamentar a aplicação de uma pena a pessoas concretamente imputadas, impossibilitando assim a realização da instrução, a actuação do princípio do contraditório e a elaboração de uma decisão instrutória (cfr. parte final do n.° 2 do artigo 287° do Código de Processo Penal onde se remete para o disposto na alínea b) do n.° 3 do artigo 283° do mesmo diploma).

13.–Face ao que se deixa dito, resta apenas concluir que, inexistindo descrição de factos concretos que consubstanciem conduta penalmente punível, a instrução não tem objecto, isto é, não pode haver instrução. Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios serão inúteis.

14.– Em conclusão:
A instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Tem-se em vista a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art° 308° nº1 do C.P.Penal). Concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia; caso contrário, o despacho será de não pronúncia.

15.–O que sucede neste caso é a imputada não poderia ser pronunciada pela prática do crime que a assistente invoca, precisamente porque esta, no momento próprio, não aduziu elementos que permitissem tal desiderato, não cabendo nas funções do JIC substituir-se-lhe.

16.–Cabe-nos, pois, concluir que o requerimento de abertura de instrução não cumpre as exigências de conteúdo impostas pelo artº 287 nº2 do C.P.Penal, o que implica a inadmissibilidade legal de instrução (artº 287 nº3 do mesmo diploma legal), o que importa a sua rejeição.

IV– DECISÃO.
Face ao exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pela assistente MBE_____, mantendo-se o despacho alvo de recurso.
Condena-se a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 3 UC.
                                                   
Lisboa, 6 de Outubro de 2021

Margarida Ramos de Almeida (relatora)
Ana Paramés