Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10730/21.8T8SNT.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: AUGI
LEGITIMIDADE PROCESSUAL PASSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Não resulta da lei, designadamente da Lei n.º 91/95, de 02-09 (Lei das AUGI), nem do art. 30.º do CPC, que a ação em que é peticionada, pela sociedade proprietária de um prédio integrado numa AUGI, a condenação (da Administração Conjunta da AUGI que foi demandada) no pagamento de indemnização pela cedência forçada de uma parcela do seu prédio para integração no domínio público, de acordo com o plano aprovado para reconversão urbanística da zona, deva ser intentada contra todos os (outros) proprietários dos lotes de terreno.
II - Está consagrada na lei a personalidade judiciária da Administração Conjunta da AUGI e a sua legitimidade ativa e passiva nas questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte - cf. art. 8.º, n.º 7, da referida Lei n.º 91/95.
III - Ante a (alegada) relação jurídica dita de expropriação por utilidade particular, em que é parte a Administração Conjunta à qual ficaram sujeitos “o prédio ou prédios integrados na mesma AUGI”, sendo essa “administração conjunta, assegurada pelos respetivos proprietários ou comproprietários”, através dos respetivos órgãos, nos termos previstos na lei, designadamente nos artigos 8.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 91/95, não pode aquela Administração Conjunta deixar de ser considerada a titular do interesse direto em contradizer, não se verificando a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva que foi oficiosamente suscitada pelo Tribunal recorrido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES PULRODRIGUES, S.A., Autora na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra a ADMINISTRAÇÃO CONJUNTA DO BAIRRO DE NOSSA SRA. DOS ENFERMOS, interpôs o presente recurso de apelação do Despacho saneador, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Em face do exposto, julgo verificada a excepção dilatória de ilegitimidade processual da Ré Administração Conjunta do Bairro de Nossa Sra. Dos Enfermos e, consequentemente absolvo a mesma da presente instância.
Custas pela Autora.
Notifique e registe.”
Na Petição Inicial, apresentada em 13-10-2021, a Autora havia peticionado que a Ré fosse condenada a pagar-lhe, a título de compensação por cedência de parcela para o domínio público, a quantia de 346.446,72 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal vigente, desde a citação até efetivo e integral pagamento. Tendo, para tanto e em síntese, alegado que:
- A AUGI em apreço nasceu de uma área rural com 175.160 m2, correspondente à Quinta da Nossa Senhora dos Enfermos, sita em Camarões, concelho de Sintra, e que, ao longo do tempo, foi sendo parcelada, até ficar dividida em parcelas com cerca de 5.000 m2, 1.500 m2 e de 250 m2 a 300 m2, ocupadas com construções clandestinas para habitação, sem o devido licenciamento;
- Face à Lei n.º 91/95 (“Lei das AUGI”), a Câmara Municipal de Sintra qualificou a Quinta dos Enfermos como AUGI e delimitou a sua área através de Edital n.º …/…, vindo a ser constituída a Administração Conjunta, aqui Ré, para prosseguir os fins previstos na lei, designadamente, o loteamento, a divisão de coisa comum e a legalização das construções;
- O alvará de loteamento foi emitido em 18-12-2012, tendo-lhe sido atribuído o n.º 12/2012, passando, ao abrigo da operação de loteamento, a integrar o domínio público, uma parcela de 27.010 m2 destinada a arruamentos, percursos pedonais e parqueamentos e uma parcela de 14.596 m2 destinada a equipamentos;
- A Autora adquiriu, por escritura pública, outorgada no dia 08-09-2004, um lote de terreno para construção, designado pelo número …-A, sito na AUGI, lote esse que, à data da aquisição, tinha a área de 5.260 m2;
- Por efeito da referida imposição de cedência de área ao domínio público, o terreno da Autora, com uma área total de 5.260 m2 (que correspondia a uma área de construção de 1.893,60 m2) ficou com a sua área total reduzida a 3.304 m2 (correspondendo a uma área total de construção de 1.189,44 m2), dada a cedência de 1.956 m2 (a que correspondia uma área de construção de 704,16 m2);
- Na Assembleia Geral da Ré de 23-11-2014 (à qual a Autora não compareceu por não ter recebido convocatória para o efeito), deliberou-se aprovar o projeto final de divisão de coisa comum e cedência de parcelas;
- Nunca a Ré definiu os critérios de cálculo do valor das compensações devidas ou sequer apresentou uma proposta de pagamento e, confrontada a esse respeito, nada decidiu, não cuidando de ressarcir a Autora pela cedência de uma parcela de terreno, o que constitui uma verdadeira expropriação por utilidade particular, dada a afetação do mesmo à realização do interesse coletivo na reconversão urbanística da zona;
- A Autora não se insurge contra a cedência de terreno para o domínio público, nem se pretende furtar à sua obrigação de comparticipação financeira para as obras de reconversão, mas tem direito a ser ressarcida do prejuízo que sofreu com a redução da área da sua propriedade, incorrendo a Ré, ao deliberar e aprovar o projeto de acordo de divisão de coisa comum, na obrigação de pagar a respetiva compensação à Autora.
A Ré apresentou Contestação em que se defendeu por impugnação motivada, de facto e de direito, e deduziu reconvenção, peticionando a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de 52.127,38 €, acrescida de juros vencidos e vincendos, alegando, para tanto e em síntese, que, dadas as caraterísticas do terreno da Autora, esta teria apenas a receber 563,32 €, sendo o valor das comparticipações que a Autora deve à Ré no montante de 54.323,90 €. A Ré também requereu a condenação da Autora como litigante de má fé.
A Autora apresentou Réplica, em que se pronunciou sobre o que considerou ser defesa por exceção (enriquecimento sem causa), bem como sobre a reconvenção, invocando as exceções dilatórias de litispendência e caso julgado, mais defendendo ser inadmissível a reconvenção e, se assim, não se entender, que a mesma deverá improceder, bem como o pedido de condenação por litigância de má fé.
Foi determinada a notificação da Ré-reconvinte para exercer o contraditório relativamente “à matéria de exceção alegada na réplica”, o que esta fez, pugnando pela sua improcedência (cf. resposta apresentada a 04-02-2022).
Foram proferidos despachos, determinando, o primeiro, a notificação das partes para se pronunciarem sobre a dispensa de realização de audiência prévia e, o segundo, a sua notificação tendo em vista a possibilidade de vir a ser julgada procedente a exceção de ilegitimidade processual passiva.
A Ré pronunciou-se conforme consta do requerimento de 03-02-2023, concordando que se verificaria a referida exceção (referindo a preterição de litisconsórcio necessário).
A Autora veio, mediante requerimento apresentado a 07-02-2023, defender que não se verifica uma tal exceção, invocando jurisprudência, bem como a circunstância de já terem corrido termos no Tribunal de Sintra outras ações, intentadas contra a Ré, por outros comproprietários que sofreram ablações do seu direito de propriedade sem a devida compensação, tendo inclusivamente numa dessas ações sido celebrada transação, sem nunca ter sido posta em causa a legitimidade da Administração Conjunta da AUGI.
Após, foi proferido, com dispensa da audiência prévia, o despacho saneador acima referido (em que, além do mais, se decidiu fixar o valor da causa em 346.446,72 €).
Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (que se transcrevem, omitindo o sublinhado e negrito):
I. Do supra exposto resulta que o presente recurso tem por finalidade sindicar a decisão do Tribunal a quo no sentido de se declarar a Recorrida como parte processualmente legítima.
II. Efectivamente, a Recorrente instaurou a presente acção declarativa de condenação contra a Administração Conjunta do Bairro de Nossa Senhora dos Enfermos, sendo que este Bairro constitui uma área urbana de génese ilegal (AUGI), e, portanto, abrangido pela Lei 91/95 de 02.09 (doravante Lei das AUGI).
III. O Tribunal a quo, apesar de afirmar que “As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias”, entende que a Recorrida não tem legitimidade processual passiva, pugnando que deverá ser cada um dos proprietários e co-proprietários dos lotes de terreno que integram a AUGI a ser individualmente demandados.
IV. Funda o seu entendimento no pressuposto de que a reconversão da AUGI é um benefício dos proprietários e dos co-proprietários e que, portanto, o pedido de compensação feito pela Recorrente deverá ser deduzido contra quem beneficiou da reconversão, a qual resulta também na cedência de parcelas de terreno da parte de cada proprietário e co-proprietário – “Perguntar-se-á então quem beneficia com as cedências de áreas para domínios públicos? E a nosso ver a resposta só pode ser uma: todos os proprietários (...) E a Administração Conjunta da AUGI? Beneficia ela destas cedências? (...) De tudo o exposto se retira que os beneficiários da cedência a favor do domínio público não é a Administração da AUGI, Ré neste processo, mas sim a Autora e todos os restantes proprietários...”.
V. O Tribunal a quo foi falho na análise da legislação substantiva aplicável e na sua aplicação, como também olvidou o regime adjectivo quanto aos pressupostos processuais, nomeadamente, a aferição da legitimidade, merecendo censura superior.
VI. É notório que ao longo da Sentença de que se recorre, o Tribunal a quo ora se refere à pessoa colectiva representativa do conjunto de proprietários (Administração Conjunta), ora se refere aos seus órgãos, mormente o órgão executivo (Comissão de Administração), sem distinção, tratando ambas as situações como se uma única situação fosse.
VII. Tal confusão jurídica faz o Tribunal a quo incorrer num erro de aplicação do Direito que carece de correcção superior.
VIII. As AUGI foram criadas apenas com vista à reconversão urbanística, sendo que a criação da pessoa colectiva “Administração Conjunta” surge da necessidade jurídica de se legalizar (reconverter) os lotes de terreno de uma AUGI e de ser necessário uma organização colectiva de todos os proprietários desses lotes de terreno, que fale a “uma só voz” e os represente de forma una em tudo o que respeite o processo de legalização daqueles lotes de terreno.
IX. Nessa medida, nos termos do artigo 8º, n.º 1 da Lei das AUGI, os prédios integrados na AUGI estão sujeitos a um regime de administração conjunta, a qual é assegurada pelos proprietários e co-proprietários, que é um ente jurídico distinto de cada um dos proprietários e co-proprietários, individualmente considerados, dotada de personalidade e capacidade judiciárias: “1. A Administração Conjunta, entidade equiparada a pessoa coletiva, representa a totalidade dos  proprietários da AUGI, para efeitos do processo de reconversão –art.ºs 8.º, n.ºs 6 e 7 e art.º 15.º da Lei n.º 91/95. 2.”. (Ac. do Tribunal Central Administrativo do Sul, DE 17.10.2019, processo 1119/13.3BEALM).
X. Daqui decorre o primeiro erro do Tribunal a quo ao não considerar que a Administração Conjunta, sendo um ente jurídico, é o conjunto dos proprietários, como aliás a Lei expressamente o diz: “1 - O prédio ou prédios integrados na mesma RUGI ficam sujeitos a administração conjunta, assegurada pelos respetivos proprietários ou comproprietários”.
XI. Mas o Tribunal a quo também confunde o ente jurídico com os seus órgãos, dando-lhes um tratamento indistinto, o que não se coaduna com o Direito nem a Lei.
XII. Uma vez que as pessoas colectivas carecem de um organismo físico-psíquico, i.e., de um ser dotado de consciência e vontade própria, não sendo capazes de agir por si mesmas, elas actuam através dos seus órgãos, que serão deliberativos, executivos ou de fiscalização. Os órgãos deliberativos serão, por assim dizer, o cérebro, enquanto os órgãos executivos serão a voz e o braço, e os órgãos de fiscalização a consciência.
XIII. A pessoa colectiva age através dos órgãos, ou melhor, através dos seus titulares, pessoas singulares.
XIV. A pessoa colectiva e seus órgãos não se confundem, no entanto são indissociáveis, porquanto a pessoa colectiva age através dos seus órgãos e estes não existem sem que aquela exista.
XV. O segundo erro do Tribunal a quo decorre da tentativa de destrinçar personalidade judiciária e capacidade judiciária, para apurar da legitimidade processual da Recorrida.
XVI. Primus, a personalidade e capacidade jurídica, e nesta medida a personalidade e capacidade judiciária da Recorrida, é-lhe conferida nos termos previstos na Lei das AUGI.
XVII. Desde logo, não será despiciendo chamar a atenção para a evolução legislativa e consequente alteração da Lei das AUGI ocorrida em relação ao artigo 8º da Lei das AUGI.
XVIII. Efectivamente, até 2008, a lei previa no número 6 daquele artigo que “A administração conjunta não goza de personalidade jurídica, mas fica obrigatoriamente sujeita a inscrição no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, para efeitos de identificação”, contudo com a alteração preconizada pelo Lei n.º 10/2008 de 20.02, a redacção daquele número (que entretanto passou a 7) deixou de expressamente excluir a personalidade jurídica da administração conjunta – “7 - A administração conjunta detém capacidade judiciária, dispondo de legitimidade activa e passiva nas questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte.”.
XIX. Assim, decorre da evolução legislativa que o legislador passou a admitir que a Administração Conjunta tem personalidade jurídica, e, assim, sendo, é susceptível de ser sujeito de direitos ou obrigações jurídicas. Tendo personalidade jurídica, por inerência terá personalidade judiciária e capacidade judiciária.
XX. Mas, e ainda que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se cogita, mesmo que a Administração Conjunta não seja uma pessoa colectiva de plenos direitos e deveres, e portanto não tendo personalidade jurídica in totum, ainda assim, a Lei das AUGI, no artigo 8º, expressamente confere capacidade judiciária à administração conjunta de prédio ou prédios integrados na mesma AUGI, quando expressamente o prevê, quer através da sujeição a inscrição no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, quer quando expressamente prevê que esta tem capacidade judiciária.
XXI. Mas, para além do reconhecimento expresso da capacidade judiciária, a lei expressamente prevê que, nessa medida, a Administração Conjunta tem legitimidade activa e passiva para agir em juízo nas «questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte» (citado artigo 8.º, n.º 7).
XXII. E, ainda que, em tese, a Lei das AUGI nada dissesse haveria que ter presente que a Administração Conjunta da AUGI define-se como um substrato organizacional, que, não tendo por fim o lucro económico dos seus associados, prossegue um relevante interesse social (o urbanismo) e, nessa medida, a Administração Conjunta da AUGI deve, pela analogia das situações, ser encarada como se de uma associação se tratasse, aplicando-se o regime dos artigos 157º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações e, por conseguinte sempre teria personalidade e capacidade judiciária nos termos e para os efeitos do artigo 12º, al. b) do CPC, podendo agir ou se defender com legitimidade.
XXIII. E, mais, para além dessa analogia, haveria também que fazer o paralelismo com o regime jurídico da propriedade horizontal, pois que a lei igualmente confere aos seus administradores legitimidade para agir em juízo na execução das funções que lhe pertencem (artigo 1437.º, n.º 1, do CC).
XXIV. Destarte, a Recorrente entende que mal andou o Tribunal a quo.
XXV. Secundus e quanto à legitimidade processual, como é consabido, a para da personalidade judiciária e da capacidade judiciária, a legitimidade processual consubstancia um pressuposto processual geral: “elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 104).
XXVI. Nos termos do artigo 259º, nº 1 do CPC, a instância inicia-se pela proposição da acção, sendo da análise da causa de pedir e do pedido que se aferirá a legitimidade processual das partes, seja activamente, traduzindo-se no interesse em demandar, seja passivamente, traduzindo-se no interesse em se defender (cf. artigo 30º do CPC).
XXVII. A legitimidade será, portanto, definida como “a posição da parte relativamente a uma determinada e concreta acção. Traduz-se (a legitimatio ad causam) em ser o demandante (legitimação activa) o titular do direito e o demandado (legitimação passiva) sujeito da obrigação, suposto que o direito e a obrigação na realidade existam. Não constitui, assim, uma qualidade pessoal para ser parte em juízo (como a capacidade), mas antes uma posição perante a matéria controvertida no litígio, ou seja, perante o objecto do processo.” (Conselheiro Ferreira de Almeida, in “Direito Processual Civil, I”, 3ª edição, Almedina, pág. 487).
XXVIII. A lei exige um interesse, não apenas juridicamente protegido, mas pessoal e directo, que deve ser aferido pela relação jurídica tal como foi configurada pelo Autor, independentemente da prova dos factos que integram a causa de pedir.
XXIX. Pelo supra exposto, facilmente se concluirá que:
a. Os proprietários dos lotes de terreno integrados numa AUGI integram a entidade jurídica designada de “administração conjunta”.
b. A administração conjunta tem, nessa qualidade, personalidade judiciária e capacidade judiciária para estar em juízo em nome de todos os proprietários.
c. A legitimidade da Recorrida no presente caso resulta do facto de a Requerente exigir de todos os proprietários, enquanto, administração conjunta, o ressarcimento do prejuízo sofrido com a ablação de parte dos seus lotes de terreno o que está directamente relacionado com o processo de reconversão, fim último da administração conjunta, pelo que tem interesse, em nome de todos os proprietários, em se defender.
XXX. O que, para além da previsão expressa legal, tem respaldo no que a nossa jurisprudência superior, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.2006, proferido no processo 5239/2006-7: “O prédio ou prédios integrados na mesma AUGI estão sujeitos a um regime de administração conjunta, assegurada pelos respectivos proprietários ou comproprietários, que não goza de personalidade jurídica. Esta administração conjunta tem personalidade judiciária, que lhe permite agir em juízo no âmbito dos interesses definidos na lei – a reconversão urbanística –, ficando fora deste campo de actuação o exercício de poderes gerais de administração, designadamente os de gestão, conservação e manutenção da coisa comum, cabendo tal aos diversos proprietários ou comproprietários.” E concretizando, “... a Lei nº 91/95 - na sua redacção actual - admite a sua intervenção nos tribunais, como se vê do nº 8 do seu art. 12º (...) e da al. g) do nº 1 do seu art. 15º – compete à comissão de administração pleitear em juízo, dispondo para tal de legitimidade activa e passiva nas acções emergentes das relações jurídicas em que seja parte.”
XXXI. Aduz-se ainda que, a administração conjunta é representada em juízo pelo seu órgão executivo, a Comissão Administrativa (artigo 15º, n.º 1 al. g) da Lei das AUGI).
XXXII. Atente-se que a Recorrente não demandou o órgão, mas antes a entidade jurídica representativa da universalidade de proprietários e co-proprietários que é a parte legítima face à relação jurídica invocada e que faz parte.
XXXIII. É o Tribunal a quo que confunde entidade jurídica, com pessoas singulares, individualmente consideradas, e órgão de representação, não é a Recorrente!
XXXIV. Destarte, a decisão do Tribunal a quo, com o devido respeito peca por não atentar ao que a Lei das AUGI expressamente prevê, e ao que decorre do artigo 30º do CPC.
XXXV. A decisão do Tribunal a quo vai contra o espírito do legislador e contra as circunstâncias em que a Lei das AUGI foi elaborada (vd. artigo 9º do Código Civil) e é violador da Lei porque o espírito do legislador e as circunstâncias em que a Lei foi elabora estão respaldados na própria Lei das AUGI.
XXXVI. Em conclusão, a decisão do Tribunal a quo merece a censura do Tribunal Superior, pela fragilidade da sua fundamentação jurídica e por violar expressamente o consignado no artigo 8º, n.ºs 1, 6 e 7 da Lei das AUGI e artigos 30 e 260º do CPC.
Terminou a Autora-Apelante pugnando pela revogação do despacho saneador recorrido, de modo a ser substituído por decisão que considere a Ré como parte legítima e ordene o prosseguimento do processo.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Ré veio defender que se mantenha a decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos:
1ª – A recorrente insurge-se contra a douta sentença, pedindo a sua revogação, alegando que a recorrida por si, sozinha, pode representar todos os comproprietários em juízo.
2ª – Nada de mais falso, pois a douta sentença ao ter decidido como decidiu, tornou-se num modelo de exegese jurídica e factual que não pode ser posta em causa.
3ª – Isto é, a lei 91/95 de 2/9, é uma lei especial que determina as condições para um conjunto de proprietários urbanizarem um determinado trato de terreno, como é o caso, onde a recorrente é proprietária de vários lotes de terreno.
4ª – Determina o artigo 6.º da lei 91/95 de 2/9, que os comproprietários têm que comparticipar com cedência de parte dos lotes para os arruamentos e espaços verdes.
5ª – Acontece, porém que a recorrente quando adquiriu os seus lotes, já as áreas estavam delimitadas, tendo o gerente da recorrente, Sr. AR, em início de 2004 reunido com os representantes da recorrida, Sr. MG e Sr. AS, em que estes o esclareceram que o loteamento já estava efetuado e as responsabilidades que tinham para com a AUGI.
6ª – Apesar desta informação prestada pela Administração da AUGI ao Sr. AR, o qual ficou esclarecido, ficou conformado com as responsabilidades e mesmo assim adquiriu os lotes de que é proprietário, cerca de um ano depois, em 08/09/2004, ao Sr. JF, sabendo das responsabilidades que os referidos lotes tinham para com as obras da legalização do bairro.
7ª – Em face do referido no ponto anterior, é incompreensível, por haver obrigação de cedência para arruamentos e zonas verdes, o pedido que a recorrente fez de 346.446,72€, uma vez que quando adquiriu os lotes, já estava delimitado o loteamento na Câmara Municipal de Sintra, tendo posteriormente sido emitido o respetivo alvará e os terrenos, antes do alvará, apenas tinham valor, para criar ovelhas e cabras, sendo o seu valor residual.
8ª – Independentemente disso, a Administração Conjunta tem as suas competências referidas no artigo 15.º da lei 91/95 de 2/9, como bem referido na douta sentença, não estando aí referido que a recorrida pode assumir dívida que esteja fora da do processo de execução de reconversão e referido no artigo 17.º da lei 91/95 de 2/9.
9ª – De facto, afinal quem é beneficiário das cedências são a recorrente e todos os proprietários que têm lotes na área do loteamento e não a AUGI.
10ª – Estando, pois, o pedido fora das competências da Administração Conjunta, a recorrida é parte ilegítima, nos termos do artigo 33.º do CPC, uma vez que esta ação teria de correr contra todos os proprietários da AUGI, e não contra esta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se não se verifica a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva.
A decisão recorrida tem o seguinte teor (sublinhado nosso):
«Não subsistem dúvidas ao Tribunal que a Administração da AUGI tem personalidade judiciária. Não obstante, personalidade e legitimidade são pressupostos diversos e que não se confundem.
Enquanto que a personalidade judiciária é um atributo de um sujeito, a legitimidade é uma qualidade desse sujeito que exprime a relação entre o mesmo e o objecto do processo.
Assim, quem tem personalidade judiciária pode ter ou não legitimidade processual para uma determinada acção, ao passo que quem tem legitimidade terá sempre de ter personalidade judiciária.
Dito de outra forma: a personalidade judiciária - i.e., a susceptibilidade de ser parte - é o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes: assim, é a legitimidade processual que tem como pressuposto a personalidade judiciária, e não o inverso.
Ainda em jeito de consideração ao contraditório exercido pela Autora, cabe a este Tribunal referir que o mesmo não está de forma alguma vinculado por decisões de outros Tribunais, nomeadamente de 1.ª instância, proferidos noutros processos, cujo objecto, pedido e causa de pedir se desconhecem.
O Tribunal apenas está vinculado, nos limites impostos pela lei, aos acórdãos de uniformização de jurisprudência e à lei.
Dito isto:
A Autora intentou a presente acção contra a Administração Conjunta da AUGI do Bairro Nossa Senhora dos Enfermos pedindo que se condene a mesma no pagamento, a título de compensação por cedência de parcela para o domínio público, da quantia de € 346 446,72, acrescida de juros.
Alega para o efeito que a falta de pagamento de compensação, por ofensa da propriedade privada, por parte da Ré à Autora é violadora do art. 62.º da CRP e do art. 1310.º do CC, assim como do art. 6.º, n.º 4, da Lei 91/95.
Conforme alegado pela Autora na sua petição inicial a mesma adquiriu em 2004 um lote de terreno para construção, designado pelo n.º 27-A, sito num terreno qualificado como AUGI pela Câmara Municipal de Sintra, cujo alvará de loteamento foi emitido a 18-12-2012, correspondente à Quinta de Nossa Sra. Dos Enfermos. Camarões, Sintra.
Uma AUGI (Área urbana de génese ilegal) é uma designação legal atribuída a prédios ou conjunto de prédios contíguos predominantemente ocupados por construções não licenciadas ou que tenham sido submetidos a uma operação de parcelamento destinado à construção apesar de não ter sido emitida uma licença de loteamento.
Nesta conformidade, aplica-se à AUGI o regime resultante da Lei 91/95, a qual, no seu art. 6.º estabelece que:
“Cedências e parâmetros urbanísticos
1 - As áreas de terreno destinadas a espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas viárias e equipamentos podem ser inferiores às que resultam da aplicação dos parâmetros definidos pelo regime jurídico aplicável aos loteamentos quando o cumprimento estrito daqueles parâmetros possa inviabilizar a operação de reconversão.
2 - Os índices urbanísticos e as tipologias de ocupação da proposta de reconversão podem também ser diversos dos definidos pelos planos territoriais em vigor se a sua aplicação estrita inviabilizar a operação de reconversão.
3 - As alterações previstas no número anterior estão sujeitas ao procedimento de alteração por adaptação, previsto no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial.
4 - Quando as parcelas que devam integrar gratuitamente o domínio público de acordo com a operação de reconversão forem inferiores às que resultam do regime jurídico aplicável há lugar à compensação prevista no n.º 4 do artigo 44.º do regime jurídico da urbanização e edificação.”
Conforme se refere neste mesmo art. 6.º n.º 4, a regra é a da gratuitidade das parcelas que passam a integrar o domínio público. A excepção é a parte final: haverá lugar à compensação nos casos previstos no n.º 4 do art. 44 do regime jurídico da edificação e urbanização actualmente regulamentado pelo DL 555/99.
A afectação de parte da parcela de terreno da Autora para o domínio publico tem, à primeira vista, como beneficiário o Município.
Só que esta afirmação não é de todo assertiva.
Com efeito, como se decidiu no Ac. do STJ de “A operação de reconversão urbanística dos lotes de génese clandestina e ilegal, incluídos administrativamente na área da AUGI, está condicionada à cedência gratuita ao município de determinadas áreas para implantação de zonas verdes, arruamentos e outros equipamentos colectivos ou infra-estruturas públicas necessárias, as quais se integrarão no domínio público, nos termos do art. 6º da Lei das AUGI e do art. 33º do Regulamento aplicável à reconversão urbanística dos autos.
Tais cedências são, aliás, corolário normal de qualquer loteamento, recaindo sobre o proprietário/loteador o encargo de ceder gratuitamente – como condição da aprovação e viabilidade do loteamento - as parcelas de terreno indispensáveis à implantação de tais infra-estruturas públicas, as quais se integram no domínio público (cfr. art. 16º do DL 448/91, para que remete o art. 6º da Lei das AUGI)”.
Perguntar-se-à então, quem beneficia com as cedências de áreas para domínios públicos?
E a nosso ver a resposta só pode ser uma: todos proprietários. A cedência para o Município é, por natureza – como já se referiu supra – gratuita. Os proprietários sem essas cedências a favor do domínio público não têm o processo de loteamento aprovado o qual, como resulta evidente, é do seu interesse.
Por isso dir-se-á que tanto a Autora como os restantes proprietários de lotes de terreno em AUGI foram os beneficiários das cedências a favor do domínio público, porque sem estas cedências não haveria loteamento e os terrenos e construções permaneceriam ilegais.
Como se refere no Ac. da R.L de 6-10-2009, Relator Abrantes Geraldes, “Afinal, com a conclusão da reconversão urbanística, todos os interessados lucrarão, na medida em que em lugar de prédios clandestinos ou de lotes ilegais, acabam por assumir a titularidade de lotes urbanos legalizados ou de construções licenciadas.”
Assim se explica que, de acordo com o art. 26º, nº 3, do referido diploma, em princípio, cada lote comparticipe na totalidade dos custos de execução das obras de reconversão na proporção da área de construção que lhe é atribuída no estudo de loteamento em relação à área total de construção de uso privado aprovada.
E a Administração Conjunta da AUGI? Beneficia ela destas cedências?
Para a resposta a esta questão é necessário convocar o art. 8.º que dispõe:
1 - O prédio ou prédios integrados na mesma AUGI ficam sujeitos a administração conjunta, assegurada pelos respetivos proprietários ou comproprietários.
2 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do presente artigo, os órgãos da administração conjunta são os seguintes:
a) A assembleia de proprietários ou comproprietários;
b) A comissão de administração;
c) A comissão de fiscalização.
3 - A administração conjunta é instituída por iniciativa de qualquer proprietário ou comproprietário ou da câmara municipal, mediante convocatória da assembleia constitutiva.
4 - A anexação ou o fracionamento das AUGI já delimitadas, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 1.º da presente lei, determina a realização de nova assembleia constitutiva para a eleição das comissões de administração e de fiscalização, convocada nos termos do disposto nos n.ºs 2 a 5 do artigo 11.º
5 - Nas AUGI em que, nos termos do artigo seguinte, tenha assento na assembleia um número de interessados igual ou inferior a 15, as competências da comissão de administração podem ser atribuídas a um administrador único, por deliberação da assembleia constitutiva.
6 - A administração conjunta fica sujeita à inscrição no Registo Nacional de Pessoas Coletivas, para efeitos de identificação.
7 - A administração conjunta detém capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ativa e passiva nas questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte.
Esta administração existe para executar todo o processo de reconversão. E por isso, nos termos do art. 17.º da supra citada Lei 91/95,
1 - A administração conjunta dos prédios integrados na AUGI só se extingue após a receção definitiva das obras de urbanização pela câmara municipal e a aprovação das contas finais da administração.
2 - A ata da assembleia que aprove as contas finais da administração conjunta consigna qual a entidade responsável pela guarda da documentação da AUGI por um período de cinco anos.
De tudo o exposto se retira que os beneficiários da cedência a favor do domínio público não é a Administração da AUGI, Ré neste processo, mas sim a Autoras e todos os restantes proprietários que, em resultado dessa cedência que permitiu o projecto de loteamento, o viram aprovado através do alvará 12/2012. E por serem eles os beneficiários não estamos perante algo comparável a uma expropriação de interesse público, mas sim comparável a uma expropriação de interesse privado.
E assim sendo afigura-se-nos que a legitimidade processual nos presentes autos recairá não sobre a Administração conjunta da AUGI, mas sim sobre todos os proprietários dos lotes objecto da operação de loteamento.
Cabendo essa legitimidade a todos os proprietários dos lotes objecto do loteamento, cumpre aferir se cai nas competências da administração conjunta essa representação para efeitos indemnizatórios.
Para a resolução desta questão torna-se necessário convocar o art.º 15.º da Lei 91/95 que estipula:
1 - Compete à comissão de administração:
a) Praticar os atos necessários à tramitação do processo de reconversão em representação dos titulares dos prédios e donos das construções integrados na AUGI; - não aplicável ao caso dos autos.
b) Celebrar os contratos necessários para a execução dos projetos e das obras de urbanização e fiscalizar o respetivo cumprimento; - não aplicável ao caso dos autos.
c) Elaborar e submeter à assembleia de proprietários ou comproprietários os mapas e os respetivos métodos e fórmulas de cálculo e as datas para a entrega das comparticipações e cobrar as comparticipações, designadamente para as despesas do seu funcionamento, para execução dos projetos, acompanhamento técnico do processo e execução das obras de urbanização; - não aplicável ao caso dos autos.
d) Elaborar e submeter à assembleia de proprietários ou comproprietários os orçamentos para execução das obras de urbanização, o relatório da administração conjunta e as contas anuais, intercalares, relativas a cada ano civil, e as contas finais; - não aplicável ao caso dos autos.
e) Submeter os documentos a que se referem as alíneas do n.º 1 do artigo 16.º-B a parecer da comissão de fiscalização; - não aplicável ao caso dos autos.
f) Constituir e movimentar contas bancárias; - não aplicável ao caso dos autos.
g) Representar a administração conjunta em juízo;
h) Emitir declarações atestando o pagamento das comparticipações devidas pelos proprietários ou comproprietários para efeito da emissão da licença de construção, ou outros atos para as quais as mesmas se mostrem necessárias, nomeadamente para efeito do disposto no artigo 30.º-A; -não aplicável ao caso dos autos.
i) Representar os titulares dos prédios integrados na AUGI perante os serviços de finanças e conservatórias do registo predial, para promover, designadamente, as necessárias retificações e alterações ao teor da matriz e da descrição e o registo do alvará de loteamento, podendo fazer declarações complementares; - não aplicável ao caso dos autos.
j) Representar os titulares dos prédios integrados na AUGI no ato notarial para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 38.º; - não aplicável ao caso dos autos.
l) Dar cumprimento às deliberações da assembleia;- não aplicável ao caso dos autos.
m) Prestar a colaboração solicitada pela câmara municipal, designadamente entregando documentos e facultando informações.- não aplicável ao caso dos autos.
Restar-nos-ia assim a alínea g), representar a administração conjunta em juízo. Afigura-se-nos que a representação da administração conjunta, a que respeita este artigo, se refere à administração conjunta se refere à mesma dentro das suas competências em matéria administrativa relacionada com a reconversão, e já não a matérias do foro privado entre proprietários.
Por último diga-se ainda que desconhece este Tribunal se já se verificaram os pressupostos que levam à cessação da administração conjunta nos termos do art. 17.º da supra referida lei.
Em face do exposto mantém este Tribunal o entendimento da ilegitimidade passiva da Ré Administração Conjunta do Bairro de Nossa Sra. Dos Enfermos em face do pedido formulado pelos Autores.
Sendo a ilegitimidade uma excepção dilatória cuja consequência é a absolvição da Ré da instância, mais não há do que declará-la.”
Vejamos.
A Lei n.º 91/95, de 02-09 (com sucessivas alterações) veio estabelecer um regime jurídico de conversão urbanística para áreas urbanas de génese ilegal (AUGI), com a sujeição dos prédios integrados em cada AUGI  a uma Administração Conjunta, não gozando esta de personalidade jurídica (muito embora estando sujeita à inscrição no Registo Nacional de Pessoas Coletivas, para efeitos de identificação – cf. art. 8.º, n.º 6) e cujos órgãos são: (i) a assembleia de proprietários ou comproprietários; (ii) a comissão de administração e; (iii) a comissão de fiscalização (cf. art. 8.º, n.º 2). Dispondo a administração conjunta da AUGI, à semelhança do condomínio, de capacidade e personalidade judiciárias - cf. art. 8.º, n.º 7, da referida lei -, o seu ativo (patrimonial) é integrado, entre o mais, pelos valores das comparticipações entregues pelos (com)proprietários desses mesmos prédios, o que poderá, na falta de regras especiais (constantes da referida lei) convocar a aplicação das regras da compropriedade ex vi do art. 1404.º do CC, com as necessárias adaptações (neste sentido, a propósito da questão de saber se uma Administração Conjunta podia beneficiar do apoio judiciário, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 89/93, de 14-02-2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, aí se tendo considerado tratar-se de entidade que, não prosseguindo fins lucrativos e não detendo personalidade jurídica, foi dotada de personalidade judiciária, de modo a poder exercitar ou a ver contra si exercitados os meios de tutela jurisdicional existentes; ainda nesta linha de pensamento, veja-se o acórdão do STJ de 27-09-2018 no proc. n.º 3844/13.0TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Como é sabido, a ilegitimidade processual é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, conducente ao indeferimento liminar ou, findos os articulados, à absolvição da instância, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. e), e 590.º, n.º 1, todos do CPC.
Sobre o conceito de legitimidade processual, dispõe o art. do 30.º do CPC que:
“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Constituindo a legitimidade das partes um pressuposto processual, de determinação prévia ao conhecimento do fundo da causa, o legislador do Código de Processo Civil consagrou o entendimento jurisprudencial maioritário (na esteira da doutrina sustentada por Barbosa de Magalhães - cf. “Gazeta da Relação de Lisboa”, vol. 32, pág. 274), de que tal pressuposto deve ser aferido pela forma como o autor conforma a relação material controvertida. Neste ensejo, lembramos os ensinamentos de Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, II volume, 1987, edição AAFDL, págs. 202-208, em que o ilustre Professor, depois de referir, nos seus traços essenciais a hipótese concreta que gerou controvérsia e sintetizar os argumentos a favor e contra cada uma destas teses, concluía nos seguintes termos: “IV. Parece-nos assim mais curial a teoria do Prof. Barbosa de Magalhães. A legitimidade é de averiguar-se em face da relação jurídica controvertida, tal como a desenha o autor.” Ainda nas palavras deste autor:
“I. Se partimos do princípio de que o objecto do processo é uma relação jurídica – relação jurídica subjacente, material ou controvertida – então a legitimidade é vista como posição da parte em face dessa relação jurídica, posição essa que justifica ocupar-se essa mesma parte de tal relação.
De novo em regra a posição é basicamente a de titularidade (excepcionalmente, a de titularidade, de uma relação conexa – é o caso da acção sub-rogatória). Só tem agora que se acrescentar que se exige uma titularidade coincidente – autor e réu têm de ser titulares da relação controvertida, e além disso o autor titular do direito e o réu do dever ou sujeição (em todas as acções que não sejam de simples apreciação negativa) ou vice-versa (nas acções de simples apreciação negativa).
Em regra, portanto, afere-se da legitimidade comparando os sujeitos da relação jurídica subjacente com os sujeitos da relação jurídica processual (partes).
II. Nesta orientação se suscitou na doutrina portuguesa uma controvérsia entre os Profs. José Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, controvérsia a que nos vamos referir porque em alto grau lançou luz sobre o conceito de legitimidade.”
Transpondo estes ensinamentos para o caso, e atentando, como não pode deixar de ser, no pedido e na causa de pedir que emergem da Petição Inicial, não nos parece, contrariamente ao que se entendeu na decisão recorrida, que os “proprietários dos lotes objecto da operação” tenham, na presente ação, um interesse direto em contradizer. Ao invés, afigura-se-nos não ter sido este critério devidamente considerado na fundamentação do despacho recorrido.
Na verdade, aí, mais do que ilegitimidade processual, parece ter sido apreciada a (i)legitimidade substantiva da Ré, tecendo-se considerações sobre quem beneficiou com a cedência a favor do domínio público, afirmando-se terem sido a Autora e todos os restantes proprietários que, em resultado dessa cedência, viram aprovado o loteamento através do alvará 12/2012. Entendeu ainda o Tribunal recorrido que, sendo aqueles proprietários os beneficiários da cedência, se verificou algo comparável a uma expropriação de interesse privado, o que terá levado tais proprietários a ficarem constituídos na obrigação de indemnizar, não cabendo, todavia, à Ré representá-los em juízo por não ser aplicável ao caso o art. 15.º da Lei n.º 91/95.
Ora, não se pode acompanhar este raciocínio, que parece desconsiderar a razão de ser da AUGI e da sua Administração Conjunta, sendo certo que, como a Autora-Apelante bem lembra, o art. 15.º, apenas estabelece as competências da comissão de administração, daqui não se podendo retirar nenhum argumento no sentido da falta de capacidade judiciária ou da ilegitimidade processual da Administração Conjunta. Apenas resulta da alínea g) do n.º 1 desse artigo que compete à comissão de administração “Representar a administração conjunta em juízo”, como, aliás, sucedeu no presente processo (cf. procuração junta com a Contestação), não se questionando a regularidade da representação da Ré.
A tese do Tribunal recorrido, pugnando pela necessidade de instauração de ação contra todos os (outros) proprietários dos lotes de terreno, afigura-se impraticável e passível mesmo de redundar, em certos casos, numa efetiva denegação do direito, não tendo suporte legal, face à reconhecida personalidade judiciária da Administração Conjunta e ainda face ao expressamente previsto no art. 8.º, n.º 7, da referida Lei n.º 91/95, em que se reconhece dispor aquela de “legitimidade ativa e passiva nas questões emergentes das relações jurídicas em que seja parte”.
Com efeito, estamos face a uma (alegada) relação jurídica dita de expropriação por utilidade particular, em que é parte a Administração Conjunta à qual ficaram sujeitos “o prédio ou prédios integrados na mesma AUGI”, sendo essa “administração conjunta, assegurada pelos respetivos proprietários ou comproprietários”, através dos respetivos órgãos, nos termos previstos na lei.
Nesta linha de pensamento, veja-se o acórdão do STJ citado na decisão recorrida (sem indicação  da data e do n.º do processo), mais precisamente o acórdão de 13-02-2014, proferido no proc. n.º 1508/07.2TCSNT.L1.S1 – no caso apreciado pelo STJ, havia sido instaurada, por certos proprietários de um prédio incluído numa AUGI, uma ação declarativa contra a respetiva Administração Conjunta, em que era peticionado, além do mais, a condenação da ré a pagar-lhes uma quantia indemnizatória justa pela cedência do seu prédio, tendo o STJ entendido, conforme consta do respetivo sumário, que:
“1. Não pode considerar-se legal e regular – mesmo perante os parâmetros normativos que, em 1970, regiam o ordenamento do território e a urbanização – o destacamento e venda, mediante escritura pública, de parcela de prédio rústico com vista a constituir um lote, alegadamente destinado à construção urbana, à revelia de qualquer autorização ou comunicação à competente entidade pública, operando-se por esta forma o fraccionamento de prédio rústico – e sem que o interessado tivesse impugnado a ulterior decisão que, considerando tal prédio de génese ilegal, o incluiu em área de reconversão urbana, aceitando tacitamente tal inclusão ao participar, durante anos, nos órgãos da administração conjunta da A... instituída, suportando a sua parcela nos custos da reconversão.
2. A imposição unilateral pela administração conjunta da A... de cedência de certo lote para instalação de equipamentos colectivos, imprescindível à aprovação do loteamento, envolve uma verdadeira expropriação por utilidade particular, em função da qual se impõe a certo proprietário a ablação da sua parcela ou lote, afectando-o à estrita realização do interesse colectivo na reconversão urbanística da zona - pelo que  essa cedência – gratuita relativamente à autarquia que aprova o plano de reconversão – tem de envolver o pagamento pela administração conjunta da A... de justa indemnização ao proprietário que vê o seu direito de propriedade sobre o lote resultar drasticamente cerceado ou afectado.
3. Por força do princípio fundamental da contemporaneidade da justa indemnização relativamente ao acto ablativo da propriedade do expropriado, deve aquela ser estabelecida no âmbito da mesma acção em que se reconhece a afectação do direito de propriedade – pelo que, inexistindo nos autos elementos bastantes para quantificar a indemnização devida, impõe-se relegar tal matéria para a fase de liquidação.”
Não se veja com a citação desta passagem qualquer tomada de posição sobre o mérito da pretensão da Autora, tanto mais que queda por provar parte da matéria de facto que foi alegada, não sendo este o momento para decidir se a Ré está ou não obrigada a pagar a quantia peticionada, e a que título (designadamente se deve ser equiparado a despesas feitas com obras de reconversão).
Importa sim reconhecer que a Ré é a titular do interesse direto em contradizer, procedendo em parte as conclusões da alegação de recurso, ao qual deve ser concedido provimento, com a revogação do despacho recorrido, devendo o processo prosseguir a sua normal tramitação.
Vencida a Ré-Apelada, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
Face ao valor e objeto do presente recurso, tendo as partes expostos de forma clara as suas posições em peças de dimensão equilibrada e conclusões concisas, não suscitando questões de complexidade assinalável, mostra-se adequado determinar, ao abrigo do art. 6.º, n.º 7, do RCP, a dispensa do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça.
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho saneador recorrido, que oficiosamente julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva, e, em substituição dessa decisão, julga-se a Ré parte legítima e determina-se que os autos prossigam a sua normal tramitação.
Mais se decide condenar a Ré-Apelada no pagamento das custas do recurso, com dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente.
D.N.

Lisboa, 26-10-2023
Laurinda Gemas
José Manuel Monteiro Correia
Susana Maria Mesquita Gonçalves