Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4815/18.5T9LSB-A.L1-3
Relator: A. AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
JORNALISTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. O artº 135º do cód. procº penal que regula o segredo profissional reporta duas situações distintas, uma referente à questão da legitimidade da escusa (cfr. nº 2 do artº 135º) e a outra referente à questão da justificação da escusa (cfr. nº 3 do artº 135º), competindo ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado apreciar e decidir esta última questão.

2. A decisão sobre a justificação da escusa assenta no princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta nomeadamente a imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos, com vista a determinar se a salvaguarda do sigilo deve ou não ceder perante os interesses ou valores conflituantes.

3. No caso concreto, estão em causa, por um lado, o segredo profissional de jornalista, legalmente tutelado e consagrado no respectivo estatuto profissional, e, por outro lado, o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu jus puniendi e realizar a justiça penal, constitucionalmente consagrado no artº 202º da CRP.

4. Pretendendo apurar-se quem forneceu a uma jornalista elementos clínicos de um utente de um Centro Hospitalar, abrangidos pelo sigilo profissional e exibidos em reportagem televisiva, face à imprescindibilidade de tais informações para o legítimo exercício da acção penal, levada a cabo pelo Ministério Público em nome do Estado, para além de que, o sigilo profissional não reveste uma natureza absoluta, mas relativa, o mesmo deve ceder perante a necessidade de obtenção de tais informações.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª secção
 Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 4815/18.5T9LSB-A, a correr termos no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, em que é queixoso, o Centro Hospitalar … …, EPE, contra desconhecidos, entendeu o Ministério Público, em sede de inquérito, ser necessário e indispensável à investigação criminal em curso, que a S…, Sociedade …., SA, forneça a identificação da pessoa que em concreto forneceu a “ficha de diário clínico” exibida no Jornal da Noite do dia 3 de Julho de 2018. u
Tendo sido oficiado à S…, SA, no sentido da obtenção de tais elementos, a mesma respondeu nos termos de fls. 7 deste traslado, tendo fornecido cópia da reportagem e indicado a jornalista D… S… como sendo a autora da peça jornalística, a qual recusou, no entanto, fornecer os elementos pedidos, invocando para o efeito a sujeição ao sigilo profissional, nos termos do artº 6º al. c) e artº 11º nº 1 do Estatuto do Jornalista, (cfr. fls. 7).
O Ministério Público, veio requerer ao senhor juiz de instrução criminal, a quebra do sigilo profissional, tendo em conta o interesse da informação solicitada para a investigação em curso, (cfr. fls. 9/10).
Apresentados os autos ao Sr. Juiz de Instrução, com a respectiva promoção do Ministério Público, aquele, por despacho liminar, (cfr. fls. 11) considerou legítima a recusa e veio suscitar a intervenção deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no 135º, nº 1 e 3, do cód. procº penal.
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Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu Parecer, limitando-se à aposição do respectivo “visto” nos termos do artº 416º nº 1 do cód. proc. penal.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, importa decidir.
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FUNDAMENTOS
FACTOS PROVADOS
Com interesse para a decisão, importa considerar os seguintes factos descritos no traslado remetido a este Tribunal:
- No dia 3 de Julho de 2018, o canal televiso S…, SA noticiou um alegado acesso irregular a dados clínicos no Centro Hospitalar… ….
- O jornal diário Público online, fez a mesma divulgação no dia 03.07.2018, pelas 17H54.
- Na reportagem transmitida pela S…, para além da notícia em si, foi exibida uma ficha clínica de um utente desse Centro Hospitalar, contendo informação sobre a saúde e vida privada do mesmo, (cfr. doc. 1 – fls. 3).
- O acesso às fichas clínicas está restringido pela aplicação informática usada a profissionais que detenham o necessário perfil de acesso.
- A disponibilização da ficha em causa ao canal televisivo S… só pode ter sido feita por intermédio de um profissional da instituição. - Quem o fez agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de divulgar informação que sabia ser confidencial. 
- Tal informação foi obtida no exercício das funções e divulgadas pelos meios de comunicação social.
- Os factos em causa indiciam a prática do crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artº 383º do cód. penal.
- Sendo necessário o depoimento da Jornalista D… S…, esta recusou prestar esclarecimentos invocando para o efeito o sigilo profissional que o abrange, através da resposta fornecida pela entidade patronal, S…, Sa, (cfr. fls. 7).
- Consequentemente o Ministério Público, deduziu a promoção de fls. 9/10, onde suscitou a imprescindibilidade dos esclarecimentos daquela testemunha e promoveu que seja ordenada a quebra do sigilo profissional da Jornalista em causa.
- O Mmº Juiz de instrução considerou legítima a recusa e suscitou a intervenção deste Tribunal, instruindo o traslado com a documentação necessária, (cfr. fls. 11).
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DO DIREITO
Em causa nos presentes autos, está a quebra do sigilo profissional por parte de um Jornalista, relativamente a elementos considerados fundamentais para a investigação em curso levada a cabo pelo Ministério Público, em que se pode vir a indiciar eventual crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artº 383º do cód. penal.
Com efeito, sendo a testemunha, D… S… Jornalista da S…, Sa, a mesma tem o direito/dever de recusa a prestar depoimento sem para tal estar devidamente autorizada ou verificados que estejam os condicionalismos previstos no artº 11º da Lei 1/99, de 13.01, na redacção introduzida pela Lei 64/2007 de 06.11, conjugada com o artº 135º do cód. proc. penal.
No artº 11º daquele diploma consagrou-se o seguinte sobre o âmbito do sigilo profissional do jornalista:
«1. - Sem prejuízo do disposto na lei processual penal, os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação, não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção, directa ou indirecta.
2. As autoridades judiciárias perante as quais os jornalistas sejam chamados a depor devem informá-los previamente, sob pena de nulidade, sobre o conteúdo e a extensão do direito à não revelação das fontes de informação.
3. No caso de ser ordenada a revelação das fontes nos termos da lei processual penal, o tribunal deve especificar o âmbito dos factos sobre os quais o jornalista está obrigado a prestar depoimento.
4. Quando houver lugar à revelação das fontes de informação nos termos da lei processual penal, o juiz pode decidir, por despacho, oficiosamente ou a requerimento do jornalista, restringir a livre assistência do público ou que a prestação de depoimento decorra com exclusão de publicidade, ficando os intervenientes no acto obrigados ao dever de segredo sobre os factos relatados.
5. Os directores de informação dos órgãos de comunicação social e os administradores ou gerentes das respectivas entidades proprietárias, bem como qualquer pessoa que nelas exerça funções, não podem, salvo mediante autorização escrita dos jornalistas envolvidos, divulgar as respectivas fontes de informação, incluindo os arquivos jornalísticos de texto, som ou imagem das empresas ou quaisquer documentos susceptíveis de as revelar.
6. A busca em órgãos de comunicação social só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz, o qual preside pessoalmente à diligência, avisando previamente o presidente da organização sindical dos jornalistas com maior representatividade para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente, sob reserva de confidencialidade.
7. O material utilizado pelos jornalistas no exercício da sua profissão só pode ser apreendido no decurso das buscas em órgãos de comunicação social previstas no número anterior ou efectuadas nas mesmas condições noutros lugares mediante mandado de juiz, nos casos em que seja legalmente admissível a quebra do sigilo profissional.
8. O material obtido em qualquer das acções previstas nos números anteriores que permita a identificação de uma fonte de informação é selado e remetido ao tribunal competente para ordenar a quebra do sigilo, que apenas pode autorizar a sua utilização como prova quando a quebra tenha efectivamente sido ordenada».
Estamos portanto perante uma norma fortemente restritiva no que respeita a eventuais declarações de um Jornalista sobre actos que se reportem ou resultem do exercício da sua profissão, relativamente a qualquer cidadão com que tiver contactado ou servido de fonte de informação.
O segredo profissional é a proibição de revelar ou a obrigação de não revelar factos ou acontecimentos confiados através de relação profissional ou acedidos no exercício da profissão. Prossegue a tutela da confiança indispensável ao exercício de determinadas profissões e a protecção de dados pessoais ou privados, cfr. Pareceres da PGR, Vol. VI, Os Segredos e a sua Tutela, p. 241 e ss.
No entanto, o sigilo profissional, nesta, como noutras profissões igualmente a ele vinculadas por força de lei ou regulamento, admite excepções.
O sigilo profissional deve ser aferido casuisticamente em função directa da matéria sobre a qual incide o depoimento, uma vez que o relato de factos de conhecimento pessoal, alheios à qualidade do depoente e próprios de qualquer pessoa comum, não se podem conter dentro da previsão inibitiva de prestação de depoimento decorrente da verificação do sigilo profissional[1].
Este direito ao sigilo reconhecido pela lei adjectiva é complementado por um dever de sigilo tutelado pelo direito penal (art. 195º do CP).

“A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente, valores ou interesses de índole supra-individual ou institucional” - Cfr. Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 1992, p. 53.
O segredo profissional deve reportar-se apenas a factos que as testemunhas percepcionaram e conheceram no exercício das suas funções e exclusivamente por causa dele, ou seja, de factos que vieram ao conhecimento de quem está obrigado ao segredo, em virtude da profissão.
O Estatuto do Jornalista contempla e regula não só o segredo profissional resultante do exercício individual da sua actividade, como também o que é praticado ao serviço de um ou, mais órgãos de comunicação social, públicos ou privados.
Nos termos do artº 383º do cód. penal, que se reporta ao crime de violação de segredo por funcionário, consagrou o legislador o seguinte:
«1. O funcionário que, sem estar devidamente autorizado, revelar segredo de que tenha tomado conhecimento ou que lhe tenha sido confiado no exercício das suas funções, ou cujo conhecimento lhe tenha sido facilitado pelo cargo que exerce, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, benefício, ou com a consciência de causar prejuízo ao interesse público ou a terceiros, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. Se o funcionário praticar o facto previsto no número anterior criando perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
3. O procedimento criminal depende de participação da entidade que superintender no respectivo serviço ou de queixa do ofendido».
No caso presente, temos de reconhecer que o depoimento em causa se mostra relevante para o apurar de factos essenciais para a justa decisão da causa, em face do circunstancialismo denunciado, o qual poderá vir a consubstanciar matéria criminal.
No entanto, há que concluir também, em face das normas deontológicas referidas, que a recusa da testemunha D… S… foi legítima, por estarem em causa factos abrangidos pelo segredo profissional a que está vinculada.
O critério adoptado pelo nosso legislador é o de que o tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Só se justifica fazer tal ponderação se o levantamento do sigilo se mostrar indispensável para a investigação do crime.
Este, o critério fundamental para a quebra do sigilo profissional.
O incidente da quebra do segredo profissional, encontra-se regulado no artigo 135º do cód. procº penal que estabelece:
«1. Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5. O disposto nos nº 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso».
Importa realçar o mesmo se reporta a duas situações distintas, uma referente à questão da legitimidade da escusa (cfr. nº 2 do artº 135º) e a outra referente à questão da justificação da escusa (cfr. nº 3 do artº 135º), competindo ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado apreciar e decidir esta última questão[2].
Concluindo-se pela legitimidade da escusa, cabe a este Tribunal decidir pela quebra do respectivo sigilo.
Como atrás já salientámos, a decisão sobre a justificação da escusa assenta no princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta nomeadamente a imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos, como aliás decorre do nº 3 do artigo citado, seguindo uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, com vista a determinar se a salvaguarda do sigilo deve ou não ceder perante os interesses ou valores conflituantes[3].
No caso concreto, estão em causa, por um lado, o segredo profissional de jornalista, legalmente tutelado e consagrado no respectivo estatuto profissional, e, por outro lado, o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu jus puniendi e realizar a justiça penal, constitucionalmente consagrado no artº 202º da CRP.
Os elementos a fornecer reportam-se à situação ocorrida com a divulgação de elementos clínicos de um utente do Centro Hospitalar … … e, por consequência, abrangidos pelo sigilo profissional, importando apurar quem, sabendo que o não podia fazer, fez a divulgação à jornalista autora da reportagem.
Todavia, atenta a natureza dos factos indiciados e considerando a imprescindibilidade de tais informações para o legítimo exercício da acção penal, levada a cabo pelo Ministério Público em nome do Estado, para além de que, o sigilo profissional não reveste uma natureza absoluta, mas relativa, o mesmo deve ceder perante a necessidade de obtenção de tais informações, consideradas indispensáveis à prossecução das investigações criminais em curso. A quebra do segredo profissional mostra-se neste caso justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do artº 135º do cód. procº penal.
Assim, tendo em conta a natureza e gravidade da situação factual descrita, a necessidade dos elementos pretendidos para a descoberta da verdade material e a circunstância de não se vislumbrar outra forma de obter o que se pretende com as informações solicitadas, conclui-se que tais elementos são essenciais para a sua investigação, justificando-se que a protecção do interesse particular que se pretende com o sigilo profissional ceda perante o interesse público da prossecução do procedimento criminal (artºs 135º, nº 3 e 182º, nº 2, do C.P.P. e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa).
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, ordenam a quebra do sigilo profissional à jornalista D… S…, relativamente à reportagem emitida pela “S…, Sa”, no dia 3 de Julho de 2018, referente ao Centro Hospitalar … …, EPE, quanto à divulgação da ficha clínica de um utente.
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Sem custas.
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Lisboa 6 de Fevereiro de 2019

A. Augusto Lourenço
 
João Lee Ferreira

[1] - Neste sentido, cfr. Ac. do Trib. Rel. de Évora de 16.04.2015, disponível em www.dgsi.pt/tre
[2] - Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, in Comentário do Código Processo Penal, 2ª ed., pág. 361-362.
[3] - Cfr. Ac. Trib. Rel. Porto de 07.04.2016, disponível em www.dgsi.pt/trp.