Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VERA ANTUNES | ||
Descritores: | PENHORA DA HABITAÇÃO PRÓPRIA E PERMANENTE ABUSO DE DIREITO EXERCÍCIO DESPROPORCIONADO DO DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/15/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – A figura do abuso de direito tem subjacente a intenção de assegurar que na aplicação do Direito, das normas positivas, se encontre uma ideia de justiça, que deve observar-se sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, observadas as especificidades da vida, sem que porém se entre numa ideia de discricionariedade; a aplicação da figura do abuso de Direito deve orientar-se por um critério objectivo, pela aplicação dos princípios gerais de direito, em especial o princípio geral da boa-fé, para que o resultado ou solução a que se chega possa servir melhor esse ideal de justiça. II – O desequilíbrio no exercício do direito caracteriza-se pela desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sem que se ponha em causa o direito do titular. III - A questão é saber se o exercício desse direito se revela, no caso concreto, desproporcionado; desequilibrado, em termos que ofendam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente, ponderação que se tem de fazer através da análise das concretas circunstâncias de cada caso. IV – Observadas estas; tal como o valor inicial da execução, o valor já recuperado, o valor remanescente, o facto da quantia exequenda continuar a vencer juros; que está em curso a penhora do vencimento da fiadora a que acresce a quantia de 100€ mensais voluntariamente entregues por esta; que o imóvel penhorado é a sua habitação própria permanente; que o crédito reclamado tem vindo a ser pontualmente cumprido pela Executada; que a exequente é uma instituição de crédito, cuja solvabilidade não se encontra posta em causa nos autos. não se vendo assim que o prejuízo decorrente do decurso do tempo seja de qualquer modo equivalente ou comparável à perda por parte da Executada da sua habitação. especialmente nas circunstâncias actuais, em que é do conhecimento geral a crise na habitação existente em Portugal, bem como a actual tendência de subida de taxas de juros e crescente dificuldade no acesso ao crédito; que a penhora se mantém; não se vislumbra assim que o sacrifício pedido à Exequente, que se traduz na dilação do pagamento do remanescente do crédito, sendo continuam a vencer-se juros, seja de algum modo comparável ao que se exige à Executada fiadora neste momento sendo clamorosa a desproporção verificada. (Sumário da Responsabilidade da Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | I. Relatório: A C... S.A. instaurou um processo de execução contra em 13/1/2006 contra M... (na qualidade de devedora/mutuária) e G... (na qualidade de devedora/fiadora), com base em dois contratos de mútuo e alegando no requerimento executivo que: “1- No exercício da sua actividade creditícia, a exequente celebrou com a primeira executada dois contratos de mútuo, das quantias de 15.400.000$00 e 2.100.000$00, formalizados por Escritura Pública, com a fiança da segunda, que se constituiu principal pagadora por tudo quanto viesse a ser devido, renunciando ao benefício da excussão prévia. 2 - Clausulou-se nos citados contratos que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 5,313, alterável em função da variação da mesma, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa legal de 4%. 3 - Os referidos empréstimos destinaram-se a aquisição de habitação própria e obras, tendo ficado regulados, designadamente, pelo disposto nos números 2 a 5 do art.º 9º do D.L. 359/91 de 21 de Setembro, pelas disposições legais complementares e pelas demais cláusulas contratuais (ibidem).” A Exequente liquidou a obrigação exequenda nos seguintes termos: “Empréstimo 0181.000547.385.0019: capital € 70.337,21; juros de 15.07.2004 a 10.01.2006 €4.823,67; despesas €16,00; o que perfaz o total de €75.176,88” e “Empréstimo 0181.000547.385.0027: capital €9.258,96; juros de 15.09.2004 a 10.01.2006 €560,07; despesas €14,00; o que perfaz o total de €9.833,03. TOTAL: €85.009,91” – cf. r.e. * Em 24/6/2008 foi penhorada a Fracção autónoma designada pela letra "AD", da freguesia …, inscrita sob o artigo 613 e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 97 da referida freguesia, pertencente à executada mutuária e que respondia prioritariamente pela dívida exequenda por força da hipoteca constituída a favor da exequente como garantia do cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuos dados à execução. * Tendo-se designado dia para a venda da referida fracção através de propostas em carta fechada, a mesma veio a ser adjudicada à Exequente pelo montante de 68.850,00€. * A Agente de Execução (em funções à data) elaborou a nota discriminativa (liquidação do julgado) junta aos autos a 10/12/2010 da qual consta como “Valor ainda em falta a ser pago pelo executado 35.095,52€”. Em 14/12/2010 a AE veio juntar nova nota discriminativa (liquidação do julgado) da qual consta como “valor ainda em falta a ser pago pelo executado 59.614,86€”, a qual, notificada às partes, não foi objecto de reclamação. * Pelo menos em Outubro de 2013 foi penhorado o vencimento da Executada fiadora, iniciando-se os descontos, que em Outubro de 2014 eram de 462,30€ mensais, penhora que por despacho de 7/1/2015 foi reduzida para 1/5 do vencimento, sendo actualmente de 300,00€. A executada deposita ainda a quantia mensal de 100,00€ para abater a dívida. * Em 16/7/2013 foi penhorado o Direito de Superfície da fracção autónoma designada pelas letras "AN", inscrito na matriz sob o artigo 2664 da freguesia de … e descrito na CRP de … sob o nº 1338, propriedade da Executada fiadora. * O N… S.A. veio reclamar o crédito de €38.058,78, relativo a contrato de mútuo, para garantia do qual foram constituídas hipotecas (Ap. 21 de 1999/11/26, e Ap. 3062 de 2018/06/14 e Ap. 3104 de 2018/06/14) sendo que o mútuo em causa se encontra a ser pontualmente cumprido. * Por despacho de 13/4/2016 foi determinado o levantamento da penhora sobre o referido imóvel (fração “AN”) e ordenado o cancelamento do respetivo registo. Sem que o referido despacho tenha sido notificado ao exequente, a Agente de Execução anteriormente nomeada, procedeu ao levantamento da penhora sobre o mencionado imóvel e ao cancelamento do respetivo registo, como resulta da certidão de teor predial junta aos autos (penhora: AP. 3094 de 2013/07/05; cancelamento: AP. 3053 de 2016/08/19). * Em 14/6/2019 a nova AE procedeu à penhora da fração autónoma designada pela letra AN, constituído em direito de superfície, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1338/19900713-AN, freguesia de…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de…, sob o artigo 2664. Foi notificado o credor com garantia real sobre o mesmo, o qual veio, já, deduzir incidente de reclamação de créditos. * Por despacho de 5/11/2021 foi determinada a avaliação do imóvel e que a AE juntasse uma nota discriminativa provisória (liquidação do julgado). * O imóvel penhorado (fração “AN”) foi avaliado, à data de 12 de julho de 2022, em 168.100,00€. * A AE veio juntar duas liquidações provisórias e em 16/7/2022 a seguinte “Liquidação final”: * Consta ainda das liquidações o seguinte: * Em 4/1/2023 foi proferido um despacho nos autos onde a Juiz a quo suscita a eventual verificação de um abuso de Direito por parte da Exequente ao pretender a venda do imóvel penhorado à Executada/fiadora, face ao estado dos autos, tendo fixado nesse despacho o valor do remanescente da obrigação exequenda em €46.086,17, ao qual terá que ser abatido o valor das entregas voluntárias de €100,00/mês que têm vindo a ser feitas voluntariamente pela executada, na parte em que ainda o não tenham sido e se determinou a notificação das partes para, querendo e em 10 dias, se pronunciarem sobre a exceção do abuso de direito. * Em 13/1/2023 a executada G... veio pronunciar-se, alegando que a exequente, instituição bancária, concedeu dois créditos cujos valores eram de 70.337,21€ e 9.258,96€ respetivamente, o que totalizava em capital 79.596,17€, acrescendo juros de mora e despesas, pelo que a quantia exequenda era, em 13/1/2006, 85.009,91€; Em 2010 foi efetuada a venda do imóvel referente à executada /mutuária no valor de 68.850,00€ e desde essa data a exequente já recuperou 39.521,91€ em descontos de penhora de vencimento da executada/fiadora, acrescendo 2.784,83€ que estarão em paradeiro incerto, mas que foi descontado do vencimento da executada fiadora devendo ser considerados e de 100,00€ como pagamento voluntário que tem vindo a pagar mensal; ou seja a recuperação da exequente ascende a 108.371,91€, muito acima do valor dos contratos de mútuos que efectuou no valor de 79.596,17€. A exequente para além do valor do capital mutuado, recebe juros de mora e todas as despesas, nunca ficando prejudicada, uma vez que beneficia dos juros que vão vencendo e, conforme se poderá verificar pelo Requerimento Executivo, os juros iniciais calculados são juros remuneratórios, visando possibilitar o rendimento de determinado capital, correspondendo à sua capacidade criadora de riqueza, muito acima dos juros moratórios calculados à taxa legal (atualmente de 4%). A exequente enquanto instituição bancária beneficia duma vantagem financeira lucrativa, ao contrário da executada fiadora, que vem a pagar o seu crédito habitação da sua casa de morada de família ao Novo Banco, a descontar do seu vencimento a penhora e a entregar voluntariamente 100,00€ e além disso, encontra-se a executada com uma situação financeira frágil e a recuperar duma cirurgia ao joelho. Assim, bastará ao exequente acautelar o pagamento mantendo a penhora no vencimento da executada e a penhora no imóvel, não havendo necessidade de prosseguir para a venda do imóvel da fiadora ou podendo a penhora sobre o imóvel da executada vir a ser convertida em hipoteca a favor da exequente enquanto instituição bancária. Conclui pela verificação de abuso de Direito. * Em 16/1/2023 a Exequente vem dizer que, perante o valor ainda em dívida e face aos bens suscetíveis de penhora para ressarcimento da ora exequente, a penhora do bem imóvel da executada não constitui abuso de direito, mas tão só um direito legítimo a que a mesma recorreu, uma vez que de outra forma a recuperação do que lhe é devido se prolongaria no tempo em cerca de mais de uma década. * A Executada mutuária veio reiterar o que foi dito pela executada fiadora. * Em 23/1/2023 a Executada G..., veio ainda juntar recibo de vencimento no qual se poderá verificar que mesmo de baixa médica estão a ser efetuados descontos no vencimento da executada/fiadora. * Em 1/2/2023 foi proferido o seguinte Despacho: “Por despacho proferido em 04.01.2023 foi determinada a notificação das partes para, querendo e em 10 dias, se pronunciarem sobre a exceção do abuso de direito, com os seguintes fundamentos: “No que respeita à penhora do imóvel pertencente à executada fiadora, resulta dos autos que recaem, sobre o mesmo, hipotecas constituídas a favor do N…, S.A. (Ap.21 de 1999/11/26, e Ap.3062 de 2018/06/14 e Ap.3104 de 2018/06/14) que, por força da penhora, veio reclamar o crédito de €38.058,78, sendo que os mútuos em causa se encontram a ser pontualmente cumpridos. Ora, tendo sido atribuído ao imóvel penhorado, à data de 12 de julho de 2022, o valor de 168.100,00€, não se coloca em causa a questão da falta de adequação da penhora por referência ao/à fim/finalidade da execução, na medida em que, presumivelmente, o produto de eventual venda do imóvel será suficiente para pagar o credor hipotecário/reclamante e o credor exequente. A questão poderá, contudo, colocar-se ao nível do exercício abusivo do direito de ver penhorado e vendido o imóvel da executada/fiadora, colocando-a numa situação de fragilidade social, numa fase do processo em que o exequente já recuperou a quantia de €39.521,91 (não contabilizando, aqui, o valor “desconhecido” de €2.784,83) e de €68.850,00 (referente à venda do imóvel da executada/mutuária), num total de €108.371,91, ao que acresce o facto de a executada/fiadora continuar a pagar voluntariamente a quantia mensal de €100,00, a fim de evitar a venda do seu imóvel. Neste contexto – em que o exequente já viu ressarcida parte substancial da dívida – a manutenção da penhora sobre a casa de habitação da executada e subsequente venda judicial – com o que a executada ficará sem a casa de habitação que vem pagando desde 1999 – é suscetível de, em tese, consubstanciar uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo exequente (enquanto titular do direito de crédito e do direito de ver esse crédito coercivamente cobrado com o produto da venda da casa de habitação da executada) e o sacrifício imposto pelo exercício desses direitos à executada. O exequente, enquanto instituição bancária, tem uma estrutura económico-financeira que lhe permite suportar o pagamento do remanescente “em prestações” (correspondentes aos pagamentos voluntários que a executada tem vindo a fazer ou noutros valores a acordar entre as partes).” As executadas G... e M..., acompanhado o raciocínio expendido pelo Tribunal, defenderam a verificação de uma situação de abuso de direito, enquanto que a exequente C…, S.A. alegou que “perante o valor ainda em dívida e face aos bens suscetíveis de penhora para ressarcimento da ora exequente, a penhora do bem imóvel da executada não constitui abuso de direito, mas tão só um direito legítimo que a mesma recorreu, uma vez que de outra forma a recuperação do que lhe é devido se prolongaria no tempo em cerca de mais de uma década.” Apreciando. A figura do abuso do direito consagrada no nosso ordenamento jurídico no artigo 334.º do Código Civil declara que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Segundo Castanheira Neves, in Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1968/69, pág. 39, entende-se por exercício abusivo do direito «um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício». O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt/jstj –. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adotar um comportamento honesto, correto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem. A parte que abusa do direito atua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, pág. 260, «o direito subjectivo é substancialmente funcional, tem um sentido de utilidade que se perde se não tiver em atenção qual o fim do titular que deve realizar – ou contribuir para realizar – com êxito, e o bem que vai ser afectado à realização desse fim. Nesta perspectiva, a substância do direito subjectivo resulta do nexo funcional existente entre uma tríade de realidades: a pessoa, o seu fim e o meio utilizado para o realizar». “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência – Ac. STJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –. Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas a primazia da materialidade subjacente, “que consiste em avaliar as condutas não apenas pela conformidade com os comandos jurídicos, mas também de acordo com as suas consequências materiais para efeitos de adequada tutela dos valores em jogo. Este princípio realiza-se de acordo com os seguintes vectores: – a conformidade material das condutas; – a idoneidade valorativa; – o equilíbrio no exercício das posições” – cf. “Da Boa-Fé no Direito Civil”, 2 volumes, Almedina, Coimbra, 1984, p. 58. Existirá, neste contexto, abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado – cf. Ac. RL, de 24.04.2008, relatado por Ferreira Rodrigues (in www.dgsi.pt). No caso dos autos, entendeu o Tribunal que o prosseguimento da execução com a venda do imóvel penhorado à executada/fiadora poderá constituir uma situação de abuso de direito, na medida em que, como se deixou exposto no despacho de 04.01.2023, “a questão poderá (…) colocar-se ao nível do exercício abusivo do direito de ver penhorado e vendido o imóvel da executada/fiadora, colocando-a numa situação de fragilidade social, numa fase do processo em que o exequente já recuperou a quantia de €39.521,91 (não contabilizando, aqui, o valor “desconhecido” de €2.784,83) e de €68.850,00 (referente à venda do imóvel da executada/mutuária), num total de €108.371,91, ao que acresce o facto de a executada/fiadora continuar a pagar voluntariamente a quantia mensal de €100,00, a fim de evitar a venda do seu imóvel. Neste contexto – em que o exequente já viu ressarcida parte substancial da dívida – a manutenção da penhora sobre a casa de habitação da executada e subsequente venda judicial – com o que a executada ficará sem a casa de habitação que vem pagando desde 1999 – é suscetível de, em tese, consubstanciar uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo exequente (enquanto titular do direito de crédito e do direito de ver esse crédito coercivamente cobrado com o produto da venda da casa de habitação da executada) e o sacrifício imposto pelo exercício desses direitos à executada. O exequente, enquanto instituição bancária, tem uma estrutura económico-financeira que lhe permite suportar o pagamento do remanescente “em prestações” (correspondentes aos pagamentos voluntários que a executada tem vindo a fazer ou noutros valores a acordar entre as partes) e assim evitar a venda do imóvel, relativamente ao qual, em caso de acordo de pagamento em prestações, poderá ver a penhora convertida em hipoteca e manter o seu direito de crédito garantido.” Cumpre referir, neste contexto, que a atividade jurisdicional reclama da atuação do julgador, no momento da decisão, a conjugação e a interferência dos fatores de ponderação, de bom senso e equilíbrio na busca da justa medida que permita estabelecer a melhor composição dos interesses conflituantes. É a ponderação da “balance of interests” entre as partes do processo, a exigirem do Juiz, por excelência, que este se oriente por padrões de razoabilidade, em que a formulação de um juízo de valor por parte do tribunal assente no princípio da proporcionalidade entre a resposta jurisdicional e os interesses concretamente afetados e em conflito. É certo que os tribunais superiores não têm sido sensíveis a estes argumentos, sendo exemplo disso os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/10/2012, proc. nº 1417/08.8TCSNT.L1-2, de 12.12.2013, proc. nº 23703/09.0T2SNT-B.L1-6, de 10.11.2016, proc. nº 2064/09.2T2SNT.L1-6, e de 09.10.2018, proc. nº 42/04.7TCSNT-A.L2 (in www.dgsi.pt), que recaíram sobre decisões proferidas neste Juízo de Execução de Sintra, os quais se pronunciaram no sentido de assistir ao exequente o direito de prosseguir a execução para satisfação integral da quantia exequenda, após o imóvel ter sido adjudicado ao credor hipotecário por valor inferior à mesma, sem prejuízo de apreciação da concreta situação, não se verificando abuso de direito. Porém, o que aqui está em causa não é só a conduta do exequente – que, naturalmente, tem direito a ver-se ressarcido da quantia em dívida – mas, também, a conduta da executada fiadora e a forma de aquele poder ver paga a dívida exequenda. Como supra se referiu, a exequente já recuperou a quantia de €39.521,91 e de €68.850,00, num total de €108.371,91 sendo que a quantia de €39.521,91 proveio da penhora sobre o vencimento da executada/fiadora G..., a qual continua a ver o seu vencimento penhorado e, ainda assim, deposita no processo, todos os meses, a quantia de €100,00, a fim de amortizar o valor da dívida, a fim de evitar a venda do seu imóvel, cujo valor vem pagando desde 1999 ao seu credor hipotecário (credor reclamante N…, S.A.). Neste contexto, a conduta que aqui se censura ao exequente é a de intransigência no sentido de não permitir outra solução que não passe pela venda coerciva do imóvel pertencente à executada/fiadora G..., nomeadamente a fixação de uma quantia por acordo e o respetivo pagamento em prestações, podendo, sempre, garantir o cumprimento desse acordo mediante a conversão da penhora em hipoteca, como prescrevem os artigos 806.º e 807.º do CPC. O que se nos afigura abusivo é o facto de o Banco – ao não anuir noutra solução que igualmente acautele o interesse de ambas as partes – pretenda a manutenção da penhora sobre a casa de habitação da executada e subsequente venda judicial – com o que a executada ficará sem a casa de habitação que vem pagando desde 1999 – impondo um sacrifício desproporcional à executada em face dos interesses em confronto, sabendo-se, como também já se referiu, que o exequente, enquanto instituição bancária, tem uma estrutura económico-financeira que lhe permite suportar o pagamento do remanescente da dívida exequenda “em prestações” (correspondentes aos pagamentos voluntários que a executada tem vindo a fazer ou noutros valores a acordar entre as partes), e assim evitar a venda do imóvel, relativamente ao qual, em caso de acordo de pagamento em prestações, poderá ver a penhora convertida em hipoteca e manter o seu direito de crédito garantido. Em face de todo o exposto, decido não permitir o prosseguimento da execução para efeitos de venda coerciva do imóvel penhorado à executada fiadora G..., mantendo-se, contudo, as penhoras realizadas nos autos e bem assim os pagamentos voluntários e mensais no valor de €100,00, até pagamento integral do remanescente da quantia exequenda.” * Deste despacho recorre a Exequente, formulando as seguintes Conclusões: “A) A decisão em crise impede a exequente de prosseguir a execução com a venda do imóvel penhorado nos autos. B) A impugnação da decisão com o recurso da decisão final - que só poderá ser a da extinção pelo pagamento, se e quando vier a ocorrer - tornaria absolutamente inútil o recurso, pois a decisão aqui em crise tornar-se-ia irreversível. Será, pois, inútil a impugnação da decisão com o recurso da decisão final, estando verificada a previsão do art.º 644º, nº 2, al. h) do CPC. C) O abuso de direito, previsto no art.º 334.º do Código Civil consiste no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. D) Não basta, pois, que o titular do direito exceda os limites referidos, é necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores. E) O Tribunal a quo não questiona o direito do exequente à cobrança coerciva do seu crédito; limita-se apenas a sustentar que, ao não aceitar fazer um acordo, deverá ser o exequente penalizado e inviabilizado o prosseguimento dos autos com a venda do bem penhorado. F) Admitindo que os pagamentos mensais de 300 euros (penhora) + 100 euros (entregas voluntárias ao processo) se mantêm, demorará mais de 8 anos até se alcançar o pagamento total do valor em dívida por essa via. Isto, sem sequer se contabilizarem os juros vincendos. G) Não se verifica abuso de direito de cobrança quando existe um bem penhorado que permitirá o ressarcimento integral quase imediato. H) O direito de crédito e de cobrança não foi sequer questionado. O que está em causa é a prática de ato processual relativo à venda do imóvel. Não se trata verdadeiramente de um direito da exequente, mas sim da normal tramitação dos autos. Não é abusivo o prosseguimento dos autos quando a penhora não é colocada em causa. V – Normas Jurídicas Violadas 1) Art.º 344º C. Civil; 2) Art.º 735º, nº 1, C. P. Civil. Pelo exposto e sobretudo pelo que será suprido pelo Sábio Tribunal, deve julgar-se inteiramente procedente o presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos com a venda do bem penhorado assim se fazendo JUSTIÇA.” * Contra-alegou a Executada G..., Concluindo da seguinte forma: “1. Bem andou o douto Tribunal a quo quando considerou que o prejuízo da ora Recorrida ao ver vendida a casa onde habita para satisfação do que falta da dívida do Recorrente é desproporcional e configura um abuso de direito. 2. A conduta que o Recorrente quer levar a cabo é manifestamente desproporcional ao fim que se pretende obter com ela e gerará na Recorrida um prejuízo inultrapassável. 3. A Recorrida está a liquidar a dívida progressivamente quer através da penhora do seu vencimento no montante de €300,00, quer através de uma entrega voluntária no valor de €100,00 que pretende continuar a fazer. 4. O que faz desde que se esgotou o património da principal devedora. 5. A que acresce o facto do ora Recorrente, caso não avance com a venda imediata não ter qualquer diminuição de garantia pois que continua a ter sobre o imóvel em apreço um ónus registado e que poderá converter em venda em caso de incumprimento futuro. 6. O Recorrente já recuperou a totalidade do montante a título de capital e de um pedido de €85.000,00 já recuperou cerca de €108.000,00, estando ainda em aberto menos de €46.086,17 pois que mensalmente têm sido feitas entregas de €100,00 a acrescer ao montante do ordenado que a ora Recorrida tem penhorado. 7. Entendendo a Recorrida que tal conduta consubstancia um manifesto abuso de direito pois que a exequente já recuperou a quantia de €39.521,91 e de €68.850,00, num total de €108.371,91 sendo que a quantia de €39.521,91 proveio da penhora sobre o vencimento da Recorrente que continua a ver o seu vencimento penhorado e, ainda assim, deposita no processo, todos os meses, a quantia de €100,00, a fim de amortizar o valor da dívida e caso a venda prossiga a executada ficará sem a casa de habitação que vem pagando desde 1999 8. Pelo que a admissibilidade de tal venda, salvo melhor entendimento, é suscetível de, em tese, consubstanciar uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo exequente (enquanto titular do direito de crédito e do direito de ver esse crédito coercivamente cobrado com o produto da venda da casa de habitação da executada) e o sacrifício imposto pelo exercício desses direitos à executada. 9. Sendo que, como bem se compreende, o ora Recorrente, enquanto entidade bancária e com isto não se pretendendo beliscar o seu direito, é dotado de uma estrutura económico-financeira que lhe permite suportar o pagamento do remanescente faseadamente em prestações em condições a acordar. 10. Sendo que a figura do abuso de direito se verifica aqui porquanto o direito que o ora Recorrente pretende fazer valer (transformar uma penhora numa venda com o intuito de ser ressarcido de um montante que é devido exclusivamente a título de juros e num processo onde até já recebeu manifestamente mais que o valor do pedido e no qual a Executada paga por conta de uma penhora de vencimento e de entregas voluntária) excede manifestamente os limites da boa-fé, da proporcionalidade e aqueles que o contexto social impõe pois que levará a que a Recorrida deixe de ter um teto para habitar por conta da referida venda e não consiga ter capacidade económica para arranjar outro pois que por conta da referida venda será também liquidada a sua responsabilidade junto do «N…» e que esta cumpre desde 1999, pouco ou nada lhe sobrando. 11. E tudo por conta de um montante aberto num processo e que esta tem pago desde sempre, que o faz voluntariamente em acréscimo à penhora que tem e inclusive já se predispôs, dentro do que lhe é possível, a liquidá-lo com a maior brevidade possível. 12. Pelo que, salvo melhor opinião, bem andou o Tribunal a quo quando considerou que o prejuízo que a Recorrida sofreria caso fosse autorizada a venda da sua habitação para satisfação do direito de crédito do Recorrente, atenta toda a factualidade do caso concreto, é incomparável – por manifestamente superior – com o (quase inexistente) prejuízo que o Recorrente sofreria ao não lhe ser autorizada a venda do imóvel em apreço nos termos em que o pretende. 13. E, bem assim, que tal conduta por do Recorrente, face ao estado dos autos e por absolutamente excessiva face ao fim que pretende atingir versus o prejuízo da Recorrida, é manifestamente enquadrável no conceito do instituto jurídico do abuso de direito. Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser o presente recurso julgado improcedente, por não provado, mantendo-se, por isso, o despacho proferido pelo douto Tribunal a quo e ora posto em crise, só assim se fazendo a douta e costumeira, A DEVIDA JUSTIÇA.” *** O Recurso foi devidamente admitido, com efeito e modo de subida adequados. *** II. Questão a decidir: Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente. Deste modo. no caso concreto a questão a apreciar consiste em averiguar da existência de abuso de direito por parte da exequente. *** III. Fundamentação de Facto. Com interesse para a decisão do presente Recurso, há que atender ao que decorre do Relatório supra. *** IV. Do Direito. Nos presentes autos insurge-se a recorrente contra o despacho que considerou que o prosseguimento da execução com a venda do imóvel penhorado à executada/fiadora poderá constituir uma situação de abuso de direito, por desproporção ou desequilíbrio no exercício do Direito. Contrapõe a Exequente que não é abusivo o prosseguimento dos autos quando a penhora não é colocada em causa, limitando-se a exequente a requerer a normal tramitação dos autos. Não é assim abusivo o prosseguimento dos autos, nem se verifica abuso de direito, sendo necessário para a caracterização dessa figura que o excesso seja manifesto e gravemente atentatório dos valores previstos pelo art.º 334º do Código Civil. Vejamos. Dispõe o art.º 334.º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” Sobre a figura do abuso de Direito se tem pronunciado a doutrina e jurisprudência ao longo de vários anos, sendo um conceito em constante evolução. A este propósito escreve Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, in ROA Ano 2005: “O preceito começa pela estatuição: é ilegítimo o exercício (…). A ilegitimidade tem no Direito civil, um sentido técnico: exprime, no sujeito exercente, a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito. No presente caso, isso obrigaria a perguntar se o sujeito em causa, uma vez autorizado ou, a qualquer outro título, “legitimado”, já poderia exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa. A resposta é, obviamente, negativa: nem ele, nem ninguém. “Ilegítimo” não está, pois, usado em sentido técnico. O legislador pretendeu dizer “é ilícito” ou “não é permitido”. Todavia, para não tomar posição quanto ao dilema (hoje ultrapassado) de saber se, no abuso, ainda há direito, optou pela fórmula ambígua da ilegitimidade. II. De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites. A expressão liga-se aos superlativos usados por alguma doutrina, anterior ao Código Civil. Na época, lidava-se com uma construção sem base legal, de fundamentação doutrinária insegura e ainda desconhecida na jurisprudência. O uso de uma linguagem empolada visava captar o intérprete-aplicador, apresentando-se, além disso, como uma criptojustificação da proibição do abuso. Perante institutos modernos, a adjectivação enérgica não faz sentido. Além desse aspecto, temos outras dificuldades exegéticas. “Manifestamente” contrapõe-se a “ocultamente” ou “implicitamente”. Não parece defendível que se possa atentar contra a boa fé ou os bons costumes, desde que às ocultas. E também os fins económico e social do direito em jogo poderão não ser alcançados perante desvios não manifestos. Em suma: “manifestamente” deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objectivos. III. Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objectiva. (…) Teríamos, então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente. Trata-se de um dado a reter, mas que não poderemos deixar de confirmar. IV. Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social. Também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos. (…) V. Finalmente: o fim social ou económico do direito invoca uma determinada construção historicamente situada, a examinar de modo mais detido. Adiantamos que, no fundo, ela apenas apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão teleológica. Não exige a ideia de “abuso”. VI. Fica-nos, ainda, um ponto: o da presença de um direito subjectivo. Sublinhamos, todavia, que a locução “direito” surge, aqui, numa acepção muito ampla, de modo a abranger o exercício de quaisquer posições jurídicas, incluindo as passivas: abusa do “direito” o devedor que, invocando o artigo 777.º/1, in fine, se apresenta a cumprir, na residência do credor, às quatro da manhã. (…) I. A análise anterior permite concluir que o artigo 334.º não comporta uma exegese comum. Os seus diversos termos ora devem ser corrigidos pela interpretação, ora soçobram no vazio. Estamos, com efeito, perante uma disposição legal que (…) remete para o sistema e para a Ciência do Direito, confiando, ao intérprete-aplicador, a tarefa do seu adensamento. A presença de uma norma deste tipo não suscita quaisquer dúvidas ou perplexidades. Há-as, por todo o tecido do Código, num fenómeno que o Direito conhece, controla e aplica. Para o seu funcionamento, a Ciência do Direito é essencialmente convocada a intervir. O artigo 334.º faz, em suma, um apelo a uma Ciência Jurídica actualizada, constituinte e experiente. II. Perante o fenómeno da expansão doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial, do abuso do direito, são requeridas, por parte do intérprete-aplicador, determinadas posturas: de tipo mental e de tipo metodológico. Em primeiro lugar, deve ficar claro que lidamos com matéria jurídico-científica já experimentada, objectiva e muito séria. Não faz sentido abordá-la com aversões ou desconsiderações seja de que tipo for: ou já não haverá Ciência. Também se torna patente que o abuso do direito não é “abuso” nem tem a ver com “direitos” em si: como adiante melhor veremos, “abuso do direito” é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto multifacetado, internamente complexo e que prossegue, in concreto, os objectivos últimos do sistema. Batalhar com palavras ou contra elas representa pura perda de tempo. De todo o modo, o progresso registado em torno do abuso do direito poderá ser ponderado: forma cómoda e bem ilustrada para documentar os avanços da Ciência do Direito dos nossos dias. Apesar da indeterminação dos conceitos, o abuso do direito mantém uma unidade de conjunto e uma particular coesão. Não é conveniente, nem em termos dogmáticos nem, sobretudo, por prismas práticos, esfacelar o instituto, dispersando, na base de considerados conceptuais, as suas diversas manifestações.” Na prática, trata-se de assegurar que subjacente à aplicação do Direito, das normas positivas, deve encontrar-se uma ideia de justiça, que deve observar-se sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, observadas as especificidades da vida, sem que porém se entre numa ideia de discricionariedade; a aplicação da figura do abuso de Direito deve orientar-se por um critério objectivo, pela aplicação dos princípios gerais de direito, em especial o princípio geral da boa-fé, para que o resultado ou solução a que se chega possa servir melhor esse ideal de justiça. Como já referiam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 299, o abuso do direito é, assim, o excesso patente dos limites impostos pela boa fé, não se tornando necessário que tenha havido a consciência de se excederem esses limites. E tem sido entendido que para determinar quais os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo para apurar do fim social ou económico do direito considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei De referir que as consequências do abuso do direito não podem deixar de ser ajustadas às especificidades de cada caso concreto, operando, com frequência, como exceção peremptória. Assim, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs. 299-300, “tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade, nos termos do artigo 294.º; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade.” As consequências da verificação do abuso de Direito podem ser variadas: a supressão do direito: é a hipótese comum, designadamente na suppressio; a cessação do concreto exercício abusivo, mantendo-se, todavia, o direito; um dever de restituir, em espécie ou em equivalente pecuniário; um dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos de responsabilidade civil, com relevo para a culpa. Quanto ao tratamento dado pela Jurisprudência a este instituto, vejam-se as referências efectuadas por Menezes Cordeiro, ob. e loc. cit. Destaca-se aqui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/9/1993, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, pág. 21, onde pode ler-se: “(…) a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social (...) em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito, dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica envolve o seu reconhecimento”. Volvendo aos ensinamentos de Menezes Cordeiro, ob. e loc. cit, é possível observar diversos comportamentos típicos abusivos, por este Autor já exaustivamente delineados, importando ao presente caso analisar a vertente do Desequilíbrio no exercício do direito. Refere este Autor: “I. O desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé. Ele comporta diversos subtipos; podemos apontar três: — o exercício danoso inútil; — dolo agit qui petit quod statim redditurus est; — desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. II. Em todas estas hipóteses, podemos considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. I. No tratamento do abuso do direito, devemos manter claro e sempre presente que se trata de um instituto surgido em diversas manifestações periféricas, para resolver problemas concretos. O abuso não deriva de considerações racionais de tipo central.” Revertendo ao caso concreto, está em causa o último “sub-tipo” mencionado: a desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. Em primeiro lugar, importa referir, como salienta o Exequente, que o seu direito não está em causa. No âmbito de um contrato validamente celebrado a Executada aqui em causa constituiu-se fiadora da mutuária; verificado o incumprimento desta a Exequente lançou mão do processo executivo; verificada a insuficiência do bem dado de hipoteca para a liquidação do crédito, a exequente prossegue na execução com a penhora de outros bens, nomeadamente, o bem aqui em causa, de propriedade da executada fiadora, tudo observado o art.º 751º do Código de Processo Civil. A questão é saber se o exercício desse direito se revela, no caso concreto, desproporcionado; desequilibrado, em termos que ofendam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente. Para tal ponderação importa aqui considerar: O valor inicial da execução, que a Exequente liquidou em € 85.009,91; - Tendo nesta fase do processo já recuperado a quantia de €108.371,91; - O valor do remanescente, de 39.310,33€; - O facto de a Exequente continuar a receber juros; - A penhora do vencimento da executada fiadora, a decorrer desde Outubro de 2013, no valor mensal actual de 300,00€, a que acresce as entregas de 100,00€ mensais que a executada tem vindo a fazer nos autos; - O imóvel em causa é a sua habitação própria permanente; - O crédito reclamado tem vindo a ser pontualmente cumprido pela Executada. Perante esta factualidade, afigura-se ser de concordar com a Sentença proferida quando refere: “Neste contexto – em que o exequente já viu ressarcida parte substancial da dívida – a manutenção da penhora sobre a casa de habitação da executada e subsequente venda judicial – com o que a executada ficará sem a casa de habitação que vem pagando desde 1999 – é suscetível de, em tese, consubstanciar uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo exequente (enquanto titular do direito de crédito e do direito de ver esse crédito coercivamente cobrado com o produto da venda da casa de habitação da executada) e o sacrifício imposto pelo exercício desses direitos à executada.” De facto, objecta a Exequente que com as penhoras no vencimento apenas verá ressarcido o seu crédito em dez anos. Ora, a Exequente é uma instituição de crédito, cuja solvabilidade não se encontra alegada nem posta em causa nos autos. Sobre a quantia exequenda continuam a contabilizar-se juros, não se vendo assim que o prejuízo decorrente do decurso do tempo seja de qualquer modo equivalente ou comparável à perda por parte da Executada da sua habitação. especialmente nas circunstâncias actuais, em que é do conhecimento geral a crise na habitação existente em Portugal, bem como a actual tendência de subida de taxas de juros e crescente dificuldade no acesso ao crédito. E, veja-se, a penhora mantêm-se, o que significa que em caso de cessarem por algum motivo os pagamentos que tem vindo a ser feitos no decurso da penhora do vencimento da Executada e na ausência de outros bens penhoráveis, sempre poderá a Exequente impulsionar os autos com a venda do bem penhorado, caso nada obste a tanto. Não se vislumbra assim que o sacrifício pedido à Exequente, que se traduz na dilação do pagamento do remanescente do crédito, sendo continuam a vencer-se juros, seja de algum modo comparável ao que se exige á Executada fiadora neste momento, existindo a penhora de vencimentos em curso, sendo clamorosa a desproporção verificada. Desta forma, conclui-se como na Sentença proferida, pela existência de abuso de direito, improcedendo em consequência o Recurso interposto. * V. Das Custas do Recurso. Vencido no Recurso, é a Recorrente o responsável pelo pagamento das custas devidas, nos termos do art.º 527º do Código de Processo Civil. * DECISÃO: Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o Recurso interposto, mantendo-se a decisão proferida. Custas pela Recorrente. * Registe e notifique. Lisboa, 15/6/2023 Vera Antunes Jorge Almeida Esteves Teresa Soares |