Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1119/23.5T8LRS-A.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: DOENÇA DO FORO PSIQUIÁTRICO
INTERNAMENTO COMPULSIVO
REVISÃO DA MEDIDA
AUDIÇÃO DO REQUERIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O requerido tem o direito a ser ouvido, numa sessão conjunta, para a revisão da medida de tratamento involuntário.
II - Não o tendo sido, estamos perante a invocada nulidade insanável consagrada no art.º 119.º, al c), do CPP (ex vi art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
O Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Lisboa proferiu decisão a determinar a manutenção do tratamento involuntário em regime ambulatório, relativamente à paciente AA, uma vez que estão preenchidos os seus pressupostos, nos termos conjugados do art. 15º, n.º 1, als. a) a c) e subalíneas i) e ii) e n.º 3, da N.L.S.M.
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O Ministério Público interpôs recurso de tal decisão, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. No âmbito dos presentes autos, na sequência de comunicação remetida pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital ..., foi informado que AA, que padece de doença de neurolúpus, havia sido internada compulsivamente, em virtude do mesmo evidenciar, em ........2023, discurso prolixo, alterações formais do pensamento, ideação delirante, agitação física e irritabilidade, heteroagressividade dirigida a terceiros, realidade que consubstanciava um risco significativo para a sua integridade física e vida, vide ref.ª 13335979.
2. Na sequência da comunicação recepcionada, mais concretamente por se encontrarem preenchidos os respectivos pressupostos de facto e de Direito, foi, por despacho datado de ........2023, decidido manter e confirmar o internamento involuntário de AA.
3. De salientar que, em cumprimento do disposto no art.º 17.º, da Lei 36/98 de 24. foi junto relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, e, consequentemente, foi promovida a realização de diligência de sessão conjunta, vide ref.ª 155810610, no entanto, em virtude da recepção de indicação de que o tratamento involuntário em internamento teria sido substituído por tratamento em ambulatório, por a requerida ter evidenciado, no decorrer do internamento, uma melhoria clinica na sequência da reposição da terapêutica clinica, foi, por despacho datado de 06.03.2023, proferido o seguinte despacho:
“…Fls. 35 e ss. – Desde já se consigna que o ora signatário considera que, atento o processado, não haverá necessidade de ocorrer a diligência de sessão conjunta, uma vez que a mesma tem como conditio sine qua non a existência de um(a) internando(a) (cfr. arts. 18º e 19º da L.S.M.), o que já não sucederá desde 28/2/2023 (cfr. fls. 36 e 37), além de que não permitiria que fosse tomada uma decisão nos moldes previstos no art. 20º da L.S.M.
Acresce que nada obsta a que, em momento posterior e caso a paciente não cumpra o tratamento em regime ambulatório, venha a ser agendada, então, a sessão conjunta sub judice.
Assim, atento o relatório de avaliação clínico-psiquiátrica (de fls. 36, frente e verso) que propugna a necessidade de tratamento compulsivo em regime ambulatório, da paciente AA, de modo a que a mesma possa tomar eficazmente a medicação, o que a mesma aceitou (cfr. fls. 37); determina-se a substituição do internamento compulsivo por tratamento compulsivo em regime ambulatório, que deverá continuar a ser revisto nos termos do art. 35º (sob a epígrafe “[r]evisão da situação do internado”) ex vi art. 33º (sob a epígrafe “[s]ubstituição do internamento”), ambos da L.S.M., prosseguindo, desse modo, os autos.
Notifique, em conformidade, os diversos intervenientes processuais…”.
4. Desde essa data, apesar do largo hiato temporal já decorrido e não obstante a entrada em vigor da Lei 35/2023 de 21.07, compulsados os presentes autos, verifica-se que recepcionados os relatórios clinico-psiquiátricos elaborados nos termos do art.º 25.º, n.º 4 da Lei de Saúde Mental, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo não procede à realização de audição presencial do “…Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, ao invés, notifica, com cópia do supramencionado relatório clinico-psiquiátrico o beneficiário do tratamento involuntário, o seu defensor e a pessoa de confiança daquele, para, querendo, no prazo de 2 dias, se pronunciarem sobre a manutenção do tratamento involuntário em regime ambulatório, no exercício do seu direito de audição, vide despachos datados de 16.10.2023 – ref.ª 158420998, 03.01.2024 – ref.ª 159315664, 18.03.2024 – ref.ª 160271511, 24.06.2024 – ref.ª 161423743, 09.09.2024 – ref.ª 162041276 e 12.06.2025 – ref.ª 165487802
5. Após, em virtude de nada ser requerido ou junto, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo, à semelhança do verificado anteriormente, em 11.07.2025, proferiu o seguinte despacho, (ref.ª 165853266):
(despacho recorrido)
6. Ora, o Ministério Público não concorda com o teor do supramencionado despacho judicial, uma vez que o mesmo, em nosso entendimento, não só é desprovido de suporte legal, mas também contrairia o que legalmente se encontra previsto nos art.ºs 25.º ex vi 21.º, n.º 1, 22.º, 27.º ex vi art.º 33.º, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
7. Analisados os referidos preceitos legais, em nosso entendimento, não resulta qualquer causa que fundamente a desnecessidade da realização quer da sessão conjunta, quer da diligência de audição prevista no art.º 25.º, n.º 4 da Lei 35/2023 de 21.07, ao invés, verificamos que o tratamento involuntário em regime ambulatório tem subjacente a possibilidade de sujeição do doente a tratamento em regime de internamento, sempre que o requerido deixe de cumprir as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório, mediante comunicação ao tribunal competente.
8. De acrescentar que, em nosso entendimento, o legislador nacional, com a nova Lei de Saúde Mental, além do mais, pretendeu, na realidade, sublinhar e reforçar o regime instituído pela Lei 36/98 de 24.07, no decorrer da qual, o art.º 19.º, n.º 1 dispunha, ao invés da Lei 35/2023 de 21.07, que “…Na sessão conjunta é obrigatória a presença do defensor do internando e do Ministério Público…”, sendo que, ao substituir a expressão “internando” ( art.º 19.º, n.º1 Lei 36/98 de 24.07) por “requerido” (art.º 21.º da Lei 35/2023 de 21.07) o legislador pretendeu ultrapassar quaisquer dúvidas ou extinguir práticas judiciárias inadequadas existentes, e por conseguinte, impor, sem qualquer margem para dúvidas, que, em todos os processos de tratamento involuntário, quer o requerido se encontre a beneficiar de tratamento involuntário em regime de internamento ou em regime de ambulatório, teria de ser agendada e realizada a diligência de sessão conjunta.
9. De igual forma, que o art.º 25.º, n.º 4 e n.º 5 da Lei 35/2023 de 21.07, estabelecem, de forma peremptória, que a revisão da decisão “…em lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, sendo que, “…É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º…”.
10. Ora, efectuada uma análise a todas as supramencionadas disposições legais, resulta, em nosso entendimento, sem qualquer margem para dúvidas, que a sessão conjunta bem como a diligência de audição com vista à revisão da decisão, consubstanciam diligências obrigatórias do processo de tratamento involuntário, as quais deve preceder a decisão final, sendo que, tal obrigatoriedade existe, quer se trate do processo resultante de internamento de urgência, atenta a remissão do art.º 33.º, n.º 3 da Lei 35/2023 de 21.07, aplicando-se a todas as situações de tratamento involuntário, ou seja, quer o requerido se encontre em internamento ou em ambulatório, vide art.ºs 22.º, n.º 3 e 4, 23.º, n.º 2, al. d) e 33.º, n.º 4, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
11. Pelo exposto, consideramos que a não realização da diligência de sessão conjunta, bem como diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário consubstanciam uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.°, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental, uma vez que a mesma é obrigatória.
12. De acrescentar que, por força do disposto do art.º 5.º da Lei n.º 35/2023, um dos objetivos da política de saúde mental é promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental, pelo que, apenas e tão-só através da realização da sessão conjunta tais direitos podem ser, devidamente, acautelados.
13. Assim, consideramos que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a realização de diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário, diligência de realização obrigatória, uma vez que apenas mediante a sua realização poderá assegurar-se o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos requeridos em processos de tratamento involuntário, com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público (cfr. artigos 25.º ex vi 21°, 22°, todos da Nova Lei da Saúde Mental), por forma a acautelar a legalidade do processo e o princípio do contraditório, tendo o Tribunal a quo violado as disposições conjugadas dos artigos 8.º, 14.º, 15.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 33.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (Nova Lei de Saúde Mental), artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.”
Não foi oferecida resposta.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exm.ª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
É o seguinte o fundamento do recurso: O despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a realização de diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário, diligência de realização obrigatória, uma vez que apenas mediante a sua realização poderá assegurar-se o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos requeridos em processos de tratamento involuntário, com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público (cfr. artigos 25.º ex vi 21°, 22°, todos da Nova Lei da Saúde Mental), por forma a acautelar a legalidade do processo e o princípio do contraditório, tendo o Tribunal a quo violado as disposições conjugadas dos artigos 8.º, 14.º, 15.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 33.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (Nova Lei de Saúde Mental), artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.”
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III – Fundamentação
É o seguinte o despacho recorrido:
“ Processado desde 4/6/2025 – Nos presentes autos foi enviado, no passado dia 4/6/2025, relatório de avaliação clínico-psiquiátrica (doravante, também, A.C.-P.), relativo à paciente AA, em cumprimento do disposto no art. 25º, n.os 2 e 4, da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho (doravante, também designada, “Nova Lei de Saúde Mental” ou N.L.S.M.), nos termos do qual é necessário rever a decisão de internamento, sendo a mesma precedida de um relatório elaborado por dois médicos psiquiatras.
O n.º 5 do art. 25º, da N.L.S.M., determina que deve ser ouvido o Ministério Público, a pessoa em tratamento involuntário, a pessoa de confiança, o defensor ou mandatário constituído, um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou o psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento.
O Ministério Público promoveu a manutenção da sujeição de AA a tratamento involuntário em ambulatório.
Foram, a pessoa em tratamento involuntário e o seu Ilustre defensor, notificados do teor da promoção do Ministério Público, da A.C.-P. e foi-lhes conferida a possibilidade para, querendo, se pronunciarem sobre a (des)necessidade de realização de uma audição (nos termos do disposto no art. 22º, n.º 2, ex vi art. 25º, n.º 6, ambos da N.L.S.M.) ou da eventual oposição à imediata decisão por escrito.
Assim, consideramos não haver uma obrigatoriedade legal para a realização de uma sessão conjunta, de 2 em 2 meses, com a presença de todos os intervenientes processuais, seguindo-se o entendimento dos doutos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, processos n.ºs 1120/18.0T8BCL-A.G1 e 157/19.7T8BCL-A.G1, respectivamente datados de 17/12/2018 e 30/9/2019, e que apesar de ter sido proferidos antes da vigência da Lei n.º 35/2023, de 21/7, mantêm a sua actualidade.
Assim, no segundo dos referidos arestos menciona-se que:
“2. A audição de portador de anomalia psíquica - anteriormente internado compulsivamente e depois sujeito a tratamento compulsivo em regime ambulatório– no âmbito da revisão bimestral da sua situação, não tem de ocorrer presencialmente perante o juiz do processo. A notificação por carta dirigida ao portador de anomalia psíquica e ao seu defensor para esse efeito, satisfaz as exigências decorrentes do princípio do contraditório.”
Realçando-se a seguinte passagem:
“O referido acórdão responde também já à invocada falta de fundamentação da decisão da manutenção do recorrente em tratamento compulsivo em regime ambulatório.
Concordamos inteiramente com o seu teor. É que, por um lado, do artigo 35º, nº 5 da LSM aplicável aos autos por força do artigo 33º da mesma lei não decorre que a audição tenha de ser presencial. O contraditório fica plenamente assegurado com a notificação do internando e seu defensor (entender o contrário implicaria a necessidade de se proceder a uma sessão conjunta a cada dois meses o que, seguramente, a lei não exige e a prática não aconselha); por outro lado, a fundamentação do despacho é bastante para se perceber que o tribunal não se afastou do juízo pericial constante do parecer médico que o precedeu. Não se afastou, nem o poderia fazer, porque estava impedido pelo artigo 17º, nº 5 da LSM que estipula que o juízo técnico científico inerente à avaliação clínica psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz.
Ora se assim é, e não tendo o recorrente trazido aos autos quaisquer novos factos que afastassem os pressupostos em que se baseou a decisão da manutenção do tratamento em regime ambulatório, – não basta invocar (como o fez o recorrente) a circunstância de se encontrar compensado e de estar a cumprir de forma irrepreensível o tratamento em regime ambulatório, quando do parecer médico resulta que o recorrente não reconhece estar doente, nem reconhece a necessidade do tratamento - não tinha, nem devia o tribunal que ir além do parecer médico na fundamentação da decisão que tomou.
Não enferma, pois, o despacho recorrido de falta de fundamentação, nem viola os artigos 374º, nº 2 do CPP, 9º da LSM e 205º da CRP, até porque o dever de fundamentação que decorre da constituição e da lei destina-se a não deixar os destinatários das decisões com dúvidas sobre a razão de ser das mesmas e, no caso, o recorrente seguramente percebe – porque nela está dito - por que razão a decisão da manutenção de tratamento ambulatório foi proferida, o que basta para que se possa concluir que não foi violado o dever de fundamentação das decisões judiciais que decorre do artigo 205º da CRP.
Aqui chegados é já possível afirmar que não incorreu o tribunal a quo numa interpretação, contrária à Constituição, do nº 5 do artigo 35º da LSM, porque da Lei Fundamental não decorre qualquer exigência na interpretação da referida norma que não tenha sido observada.”
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Seguimos, ainda, Fernando Vieira e Ana Sofia Cabral (“A propósito de uma eventual revisão da Lei de Saúde Mental”, in Revista Julgar, n.º 36, 2018, Almedina) quando propugnam:
“Acresce que a revisão obrigatória de 2 em 2 meses para doentes em ambulatório também do ponto de vista estritamente médico pode ser excessiva, obrigando a deslocações desnecessárias por parte de um doente já por si em sofrimento, para já não falar da sobrecarga que acarreta para o sistema de saúde, com prejuízo de atendimento de outros doentes.”
Assim apesar de, na Lei n.º 35/2023, de 21/7, o legislador não ter aumentado a revisão do tratamento involuntário em ambulatório para o intervalo temporal de 4 meses (como propugnado pelos referidos autores), consideramos ser perfeitamente razoável a interpretação de que uma audição presencial de 2 em 2 meses para doentes em ambulatório também do ponto de vista estritamente médico pode ser excessiva, obrigando a deslocações desnecessárias por parte de um doente já por si em sofrimento, para já não falar da sobrecarga que acarreta para o sistema de saúde (com prejuízo de atendimento de outros doentes) e para o sistema judicial, uma vez que a realização de consecutivas sessões conjuntas nas dezenas de processos similares que correm neste Juízo Criminal iria originar, sem dúvida, uma sobrecarga desnecessária para o dia-a-dia do Tribunal (com prejuízo para a celeridade dos restantes processos).
Isto, evidentemente, sem prejuízo do paciente, querendo, poder ser ouvido presencialmente.
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Na sequência do ora propugnado e das notificações ocorridas, a pessoa em tratamento involuntário e o seu Ilustre defensor, nada tiveram a opor.
Cumpre decidir.
Consta do teor do relatório, junto em 4/6/2025, que a pessoa em tratamento involuntário foi diagnosticada com doença bipolar, sendo acompanhada, em consultas de psiquiatria, no ....
Apesar de cumprir a medicação antipsicótica injectável de longa duração, tem apenas alguma crítica para os episódios de descompensação aguda e tem antecedentes de abandono da terapêutica e consultas. Actualmente apenas tem esboço de crítica parcial relativamente ao mesmo, mantendo-se risco significativo de suspensão de tratamento e descompensação clínica. Assim, tem indicação para manter seguimento em consulta e realização de terapêutica antipsicótica e estabilizadora do humor.
Acresce que a sua doença mental e a sua recusa do tratamento originam a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais da própria e de terceiros. Pelo que o tratamento involuntário é a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito e de afastar as situações de perigo supramencionadas.
Tudo isto levou a que os médicos concluam que o tratamento involuntário em regime ambulatório corresponda à terapêutica adequada.
Assim, não constando dos autos qualquer elemento que coloque em causa o propugnado na A.C.-P., determina o Tribunal a manutenção do tratamento involuntário em regime ambulatório, relativamente à paciente AA, uma vez que estão preenchidos os seus pressupostos, nos termos conjugados do art. 15º, n.º 1, als. a) a c) e subalíneas i) e ii) e n.º 3, da N.L.S.M.
Determina-se, ainda, que, oportunamente, seja elaborado novo relatório de avaliação do(a) requerido(a) ao estabelecimento que acompanha o tratamento do(a) pessoa em tratamento involuntário, que o deverá fazer chegar a estes autos 10 (dez) dias antes da data calculada para a revisão (11/9/2025), nos termos do disposto no art. 25º, n.º 4, da N.L.S.M.
Oportunamente cumpra o disposto no art. 25º, n.º 5, da N.L.S.M.
Notifique, em conformidade, os diversos intervenientes processuais.”
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Apreciemos.
Determina o art.º 25.º, n.º 2, da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho) que a revisão da decisão de tratamento involuntário é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.
Para o efeito previsto no citado n.º 2, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço – n.º 4, do art.º 25.º.
Mais determina o n.º 5 do mesmo artigo que a revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento.
Quanto ao procedimento dessa audição, determina o n.º 6, do mesmo art.º 25.º, que é correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º.
E o n.º 2, do art.º 22.º, consagra que as pessoas notificadas e convocadas para a sessão conjunta podem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidos a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido.
O art.º n.º 5, al. a), da Lei de Saúde Mental determina como objetivo da política de saúde mental promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental. Concretizando o art.º 8.º, n.º 3, al. b), que, em processo de tratamento involuntário, o requerido tem, em especial, o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre.
O juiz não é legislador. O poder legislativo pode sempre escolher a política de saúde mental, bem como os seus princípios orientadores. A separação de poderes não permite que o poder judicial interfira na definição dessas políticas e princípios. Ao juiz incumbe aplicar a lei, que, neste caso, é bem clara: é presencial ou por meios tecnológicos a audição para a revisão da decisão de tratamento involuntário.
Aqui chegados e vista a lei, tem razão o recorrente Ministério Público.
O requerido tem o direito a ser ouvido, numa sessão conjunta, para a revisão da medida de tratamento involuntário. No mesmo sentido, cfr. Decisão Sumária do TRP de 10.03.2025, processo n.º 13622/21.7T8PRT-A.P1, e Acórdãos do TRP proferidos nos processos nº 11168/22.5T8PRT-A.P1 e 1164/11.3TBPRT-A.P1, ambos de 13.11.2024, todos publicados em dgsi.pt.
Não o tendo sido, estamos perante a invocada nulidade insanável consagrada no art.º 119.º, al c), do CPP (ex vi art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental).
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declarar a nulidade do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe data para a realização da sessão conjunta, mediante audição pessoal do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento para o julgamento, a qual poderá ser realizada via Webex ou outro sistema de comunicação digital de imagem e voz, caso se revele necessário (artigos 22º, número 2 e 25º, números 5 e 6 da LSM).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 07 de Outubro de 2025
Paulo Barreto
Alexandra Veiga
Ana Lúcia Gordinho