Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA GALANTE | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA REQUISITOS DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/12/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
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Sumário: | I - A dissolução de uma sociedade é a modificação (e não a extinção) da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade. A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mas mantém a personalidade jurídica durante esta - art. 146º, nº1 e 2 do CSC. II - As finalidades visadas com a liquidação são: quanto ao sócios, evitar que as relações sociais quer activas, quer passivas, passem a constituir relações pessoais dos sócios, ou em contitularidade ou individualmente; no que respeita aos credores, obter a satisfação dos seus créditos enquanto permanece o ente juridicamente devedor. III - A acção pauliana procura eliminar o prejuízo causado com o acto impugnado, facilitando a impugnação de actos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respectivos devedores, consistindo num simples meio conservatório da garantia patrimonial. IV - Os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, conservando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é o seu proprietário: o bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto. V - Em regra, só os titulares de créditos anteriores ao acto impugnado se podem considerar lesados com a sua prática, porque só eles podiam legitimamente contar com os bens saídos do património do devedor como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito. VI - Quando o crédito for posterior, se o acto tiver sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, então, nesse caso, é ainda possível impugnar o acto. (F.G.) | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I – RELATÓRIO A propôs acção de condenação, com forma de processo ordinário (posteriormente corrigida, em razão do valor, determinando-se que a acção passasse a seguir termos sob a forma do processo sumário), pedindo que se decrete a ineficácia, em relação a si, do acto de transmissão do veículo de matrícula JQ pela 1a Ré, F. Lda, a favor do 2° R., R, mais se ordenando ao 2° R. a restituição de tal veículo. Alega para tanto, e em síntese, que foi trabalhadora da 1a R., tendo sido despedida em 31/3/2004 em conjunto com outros trabalhadores, tendo recebido a quantia mensal correspondente ao salário até ao fim de Junho mas sem prescindir dos restantes direitos que lhe assistem. Tendo tomado conhecimento que a 1a R. estava a ceder muitos dos seus bens, pediu em Tribunal de Trabalho o arresto do veículo automóvel Audi A6 de matrícula JQ, da 1a R., que foi ordenado mas não concretizado porque desde 3/6/2004 a propriedade do veículo está registada a favor do 2° R., do que tomou conhecimento quando pretendia registar o arresto, e sendo que tal veículo seria o único bem que restava à 1a R. com o qual a mesma podia satisfazer o crédito da A.. Alega que o 2° R. é colaborador da 1a R., continuando o veículo a ser usado pelo gerente da 1a R., como sempre aconteceu antes, tendo a transmissão a favor do 2° R. sido efectuada apenas para esvaziar a 1a R. de património com o qual podia garantir o crédito da A. Regularmente citados os RR. apresentaram contestações separadas, tendo a 1a R. alegado que o único vínculo que a ligou ao 2° R. foi o negócio da venda do veículo em 27/2/2004, arguindo a ilegitimidade do 2º R., mais alegando que o despedimento foi comunicado à A. em Dezembro de 2003, tal como aos restantes trabalhadores da 1a R., o que a A. aceitou, acordando receber a quantia correspondente a três salários a título de indemnização pelo despedimento, nada mais tendo a receber a esse título. Alega ser falso que a 1a R. tenha alienado património, já que não tinha qualquer móvel ou imóvel de sua propriedade, alegando ainda que a partir de 27/2/2004 deixou de utilizar o veículo em questão por o ter entregue ao 2° R., em consequência do contrato de compra e venda com o mesmo celebrado. Conclui pela improcedência da acção e pela condenação da A. em multa e indemnização como litigante de má fé. Quanto à contestação do 2° R., impugna este a essencialidade da factualidade alegada pela A., sustentando que nunca teve qualquer vínculo com a 1 a R. e que lhe comprou o veículo por € 12.000,00, no âmbito de um contrato de compra e venda perfeitamente normal, tendo inclusive já vendido o mesmo. Conclui assim pela improcedência da acção. Em resposta a A. refuta a existência da excepção dilatória da ilegitimidade do 2° R., invocando o interesse do mesmo em contradizer face ao alegado na P.I., mais alegando que o mesmo tratava de todos os assuntos da 1 a R. com uma empresa italiana da qual tinha a representação em Portugal, apesar de não ser funcionário da la R., sendo ainda sócio do gerente desta numa sociedade comercial e sendo conhecidos de longa data e com proximidade pessoal e profissional. Responde ainda ao pedido de condenação como litigante de má fé, alegando ser falso que tenha celebrado com a 1a R. qualquer acordo para não receber de indemnização mais que a quantia correspondente a três salários. Conclui como na P.I., pedindo ainda a impugnação do acto de transmissão do veículo por parte do 2° R., assim pretendendo alterar o pedido. Vem a 1a R. apresentar articulado onde invoca a inadmissibilidade parcial do articulado da A. de reposta à contestação, mais concluindo como na contestação, e que se desentranhe um documento junto pela mesma, por inadmissibilidade legal. O 2° R. veio apresentar articulado onde impugna a alteração do pedido, concluindo como na contestação e pedindo também o desentranhamento do documento em questão. E a A. vem então apresentar articulado de resposta a tais articulados, o que motivou da la R. requerimento a pedir o desentranhamento do mesmo. Foi então proferido o despacho saneador no qual ficou afirmada a validade e regularidade da instância e indeferida a pretendida alteração do pedido e parte da resposta da A. às contestações, ficando prejudicados os requerimentos e articulados subsequentes. Mais foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade do 2° R. Foi dispensada a selecção dos factos assentes e controvertidos. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento. Fixou-se a matéria de facto provada e não provada, com reclamações pelos RR., desatendidas, pela forma que consta do despacho de fls. 224 a 229. Veio, então, a 1a R., pelo seu requerimento de fls. 237, invocar que, por escritura pública de 21/9/2004 (da qual juntou a correspondente cópia devidamente certificada) se mostra dissolvida, estando registada a dissolução e encerramento da liquidação em 26/10/2004 (juntou igualmente cópia devidamente certificada do registo comercial), pelo que há fundamento para a sua absolvição da instância por falta de personalidade judiciária. Em resposta a A. pugna pela inadmissibilidade do requerimento, por extemporâneo, mais pedindo que caso seja admitido não produza quaisquer efeitos sobre a pretensão da A., porquanto a presente acção tem por base a decisão do Tribunal de Trabalho de Lisboa anterior à dissolução da 1a R., e pede ainda que se condene a 1a R. em multa e em indemnização como litigante de má fé, já que vem invocar factos que conhecia e que podia ter apresentado muito antes, pretendendo protelar a consumação e efectivação da justiça. Apresentou, então, a 1 a R. requerimento para responder ao pedido de condenação como litigante de má fé, impugnando os factos e considerações alegados pela A. Foi proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e, em consequência, declarou a ineficácia, relativamente à A., do contrato de compra e venda celebrado entre a 1 a R. e o 2° R., respeitante à alienação pela primeira ao segundo do veículo automóvel de marca Audi, modelo A6, com a matrícula JQ, mais se reconhecendo o direito da A. a executar tal bem no património do 2° R. e a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, na medida da satisfação do seu interesse no pagamento dos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado que vinculou A. e 1 a R., e condenando o 2° R. a sujeitar-se à execução no seu património do mencionado veículo automóvel para pagamento dos créditos acima referidos, bem como à prática dos actos de conservação da garantia patrimonial dos mesmos créditos autorizados por lei. Mais julgou improcedente por não provado o incidente de litigância de má fé da A. e, em consequência, absolveu a A. do correspondente pedido formulado pela la R. Julgou-se, por fim, procedente por provado o incidente de litigância de má fé da la R. suscitada pela A. e, em consequência, condenou-se a la R. como litigante de má fé no pagamento da multa processual de 8 (oito) U.C. e bem ainda no pagamento da indemnização a arbitrar a favor da A. após serem ouvidas as partes para os efeitos do disposto no art. 457°, n.° 2, do Código de Processo Civil, sendo a responsabilidade dos pagamentos do representante da la R., Camilo dos Santos Rodrigues. Inconformados, vieram os RR recorrer da sentença. A) No essencial, a 1ª Ré formulou as seguintes conclusões: 1. A douta sentença encontra-se ferida de vícios que, importam a sua nulidade ou anulabilidade daquela, designadamente, deficiente fundamentação de facto e de direito para a prolação da douta sentença; Erro notório na apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente documental e testemunhal; Relevância positiva da prova indirecta testemunhal apresentada pela Autora e relevância negativa da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultante do depoimento das testemunhas indicadas pela Recorrente; Contradição entre a fundamentação e a decisão e Falta de pronúncia sobre questões que devesse apreciar; 2. A Recorrente não se conforma com o facto de terem sido considerados como provados os quesitos n°: 6°, 9°, 12°, 13°, 19°, 20° e 21 da base instrutória atentas as razões de facto e de direito invocadas e a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento; 3. Da análise do douto despacho de resposta aos quesitos constantes da matéria de facto dada como assente e da douta sentença recorrida, resulta indubitavelmente que foram usados "dois pesos e duas medidas", ou seja, o depoimento indirecto das testemunhas da Autora "por ouvir dizer", porque nada presenciaram, mereceu acolhimento do Mmo. Juiz aquo e o depoimento directo das testemunhas de ambos os Réus, de prestaram depoimento certo, credível e com precisão não mereceram qualquer acolhimento do Mmo. Juiz a quo, 4. Não se aceita que se tivessem verificado os requisitos da Impugnação Pauliana conforme é doutamente referido da sentença objecto de recurso; 5. Não se vislumbra o fundamento jurídico que presidiu à convicção e consequentemente à prova do facto "Com a venda do veículo a R. visou unicamente evitar ser proprietária de qualquer bem com o qual tivesse de satisfazer créditos que existissem contra ela”; 6. A Recorrente ao proceder ao encerramento das suas instalações e encerramento do seu objecto social, fê-lo porque não tinha condições para continuar a laborar, não fazendo qualquer sentido a dissolução da mesma e a manutenção do parque automóvel, até porque aquela necessitava de liquidez para pagamento dos seus compromissos, designadamente os assumidos para com a Recorrida; 7. A Recorrente não concebeu nem aderiu a qualquer plano para prejudicar a aqui Recorrida, nunca teve essa intenção nem agiu dolosamente como é requisito do art. 612° do Código Civil, nem se quer de forma negligente; 8. Relativamente à questão falta de personalidade judiciária da Recorrente e à condenação como litigante de má fé, cumpre dizer que a falta de personalidade judiciária é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida a todo o tempo, importando a absolvição da instância da mesma; 9. A acção em apreço foi instaurada no dia 11/10/04 e contestada em 12/11/2004; 10. Por escritura de dissolução que junta ao autos, resulta que a Recorrente foi dissolvida e considerada liquidada por escritura pública de 21/09/2004; 11. A invocação daquela excepção em sede de contestação e reconvenção não foi possível atento o facto de somente em 23/02/2005 ter sido emitida certidão comercial da qual consta a extinção da Recorrente; 12. Pelo exposto, verifica-se a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária da Ré, devendo esta ser absolvida da presente instância, nos termos dos art. 5°, 288°, n° 1, al. c), 493, 494°, al. c) e 495° todos do Código de Processo Civil; 13. Face ao exposto, foram violados entre outros, os artigos da lei processual civil que se indicam: 659°, n° 2 e 3, art. 668°, n° 1, ai. c), e d) e art. 655°, art. 5°, 288°, n° 1, al. c), 493, 494°, al. c) e 495° todos do Código de Processo Civil, n° 2 do art. 160° do Código das Sociedades Comerciais. B) No essencial, o 2º Réu formulou as seguintes conclusões 1. O Recorrente não se conforma com o facto de terem sido considerados provados os factos 12 e 21. 2. Por outro lado terem sido considerados não provados os seguintes factos: - que a compra do JQ pelo R. À Ré tiviesse ocorrido em 27.2.2004. - que o preço da compra do JQ foi de € 12.000,00. - que a partir de 27.2.2004 tivesse sido o Réu quem usou o JQ de forma pública e notória, sem oposição de quem quer que fosse. - que em 27.9.2004 o Réu vendeu o JQ. 3. Deverá ser dado como não provado que a Ré deixou claro que nunca prescindiria do seu direito às compensações legalmente previstas em virtude de ter perdido o seu posto de trabalho na Ré, atentos os depoimentos prestados e o recibo de quitação de onde resulta uma verdadeira remição abdicativa. 4. Não se vislumbra o fundamento jurídico que residiu à convicção e à prova do facto “com a venda do JQ visou unicamente evitar ser proprietária de qualquer bem com o qual tivesse de satisfazer créditos que existissem contra ela”. 5. Pois a empresa despediu os seus trabalhadores porque não tinha condições para continuar a trabalhar, não fazendo sentido uma vez que ia fechar portas e ser dissolvida, manter as suas viaturas, porque a 1ª Ré necessitava de liquidez para pagamento das suas dívidas e não da manutenção das viaturas. 6. A essa venda correspondeu uma contrapartida económica, tratando-se de um acto oneroso e não de um acto de dissipação de património, com o intuito de prejudicar quem quer que fosse. 7. O Recorrente não podia saber na data da compra do veículo, anterior ao despedimento da A. que tal acto pudesse por em causa o crédito da Recorrida ou de qualquer outro credor. 8. Em face dos acordos de pagamento realizados e do próprio documento recibo de quitação jamais poderia resultar como possível para o Recorrente que tal acto viesse a prejudicar qualquer crédito que desconhecia. 9. O Recorrente não aderiu a qualquer plano para prejudicar a Recorrida, não tendo agido dolosamente como é requisito do art. 612º do CPC. 10. Não se verificam os requisitos de que depende a procedência da impugnação pauliana. Contra-alegou a A. que, no essencial, pugnou pela manutenção da sentença recorrida e pela improcedência dos recursos. Corridos os Vistos legais, Cumpre apreciar e decidir. São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, as questões fundamentais a decidir, para além da arguida nulidade da sentença, respeitam a saber se existe fundamento para a alteração da matéria de facto e, nesse caso, se devem ou não considerar-se verificados os requisitos definidos legalmente para a acção pauliana ser considerada procedente. II – FACTOS PROVADOS 1. Desde a sua constituição que a R. se dedicava em exclusivo ao comércio e venda dos produtos da marca italiana F. 2. O gerente da R., C, outorgou com a empresa italiana detentora de tal marca a representação e distribuição em exclusivo para o território português dos produtos respectivos. 3. Em 28/11/1997 a A. foi admitida pela R. para trabalhar sob a sua autoridade e direcção, laborando directamente sob as ordens e direcção do referido gerente da R., sendo ultimamente o seu salário ilíquido mensal de € 575,00 acrescido de subsídio de refeição e desempenhando ultimamente as funções de gestora de frota. 4. Em Março de 2004 a representação e distribuição exclusiva referida em 2. chegou ao seu termo, tendo a R. deixado de poder comercializar os produtos da marca Framesi. 5. Por esse motivo a R. comunicou à A., em Março de 2004, que iria prescindir dos seus serviços em razão da impossibilidade de continuação de laboração da R. 6. Tal situação atingiu cerca de 20 funcionários da R., a quem foi igualmente comunicado pela R. que iria prescindir dos respectivos serviços. 7. O termo do vínculo laboral entre a A. e a R. ocorreu em 31/3/2004, tendo nessa data a R. entregue à A. o valor de € 575,00 equivalente ao seu salário ilíquido mensal. 8. A R. entregou ainda à A. a declaração necessária para esta poder beneficiar do subsídio de desemprego. 9. Nessa mesma data a R. comprometeu-se para com a A. a entregar-lhe igual montante mensal até ao fim de Junho de 2004, o que fez em 30/4/2004, 31/5/2004 e 30/6/2004, no montante global de € 1.725,00. 10. Até ao fim de Março de 2004 a R. manteve regularizados os salários dos seus funcionários. 11. Alguns dos trabalhadores da R. despedidos foram por esta recomendados à empresa que havia ficado com a representação da marca Framesi. 12. (A A. deixou claro perante a R. que nunca prescindiria do seu direito às compensações legalmente previstas em virtude de ter perdido o seu posto de trabalho na R.) 13. Entretanto a A. tomou conhecimento que a R. vinha vendendo os veículos automóveis que constituíam o essencial do seu património. 14. A A. requereu procedimento cautelar de arresto contra a R., que correu termos sob o n° pela la secção do 4° Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, ali tendo sido pedida a apreensão do veículo automóvel de marca Audi, modelo A6, com a matrícula JQ, da propriedade da R. 15. Por decisão de 28/7/2004 foi dado provimento à pretensão da A., tendo sido ordenado o arresto do veículo automóvel em causa. 16. Tendo a A. tentado obter o registo do arresto em questão, foi informada pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa que com data de 3/6/2004 se mostrava efectuado registo da aquisição do veículo a favor do R. 17. O R. foi colaborador eventual da R., tratando dos assuntos da R. com a empresa italiana detentora da marca Framesi. 18. O R. mantinha ainda uma relação pessoal com o gerente da R., sendo ambos conhecidos de longa data e estando ligados em negócios comuns. 19. O JQ era um dos poucos bens da R. que ainda lhe restavam. 20. O JQ sempre esteve destinado ao uso exclusivo do gerente da R. Camilo dos Santos Rodrigues. 21. (Com a venda do JQ a R. visou unicamente evitar ser proprietária de qualquer bem com o qual tivesse de satisfazer créditos que existissem contra ela). III – O DIREITO 1.1. Nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão Esta nulidade, a que alude o art. 668º. nº 1 c) do CPC tem a ver com a estrutura lógica da decisão e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos art. 158º e art. 659º, nºs 2 e 3 do Cód. Proc. Civil, de o juiz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da conjugação da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Isto significa, como ensinava Alberto dos Reis (1), que "a sentença enferma de vício lógico que a compromete", isto é, "a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a resultado oposto"(2). Esta nulidade nada tem a ver, no entanto, com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro da construção do silogismo judiciário. Não existe a oposição, geradora desta nulidade, se o julgador erra na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, ele errou na indagação da norma aplicável ou na sua interpretação. Se o juiz tiver entendido, erradamente, que os factos apurados acarretam determinadas consequências jurídicas e conseguiu exprimir tal entendimento nos fundamentos invocados e destes retira a conclusão lógica, haverá um erro de julgamento, mas não há a nulidade da oposição entre os fundamentos e a decisão. Ora, no caso sub judice, não resulta das conclusões, nem da sentença em si, a existência de contradição lógica entre os fundamentos indicados no acórdão e a decisão tomada. Assim a sentença recorrida não padece da arguida nulidade por violação da al. c) do art. 668º nº 1 do CPC já que inexiste oposição ou contradição da decisão com os fundamentos constantes da referida sentença. 1.2. Nulidade por omissão Alega ainda o Apelante que a sentença é nula por omissão. Nos termos da primeira parte da al. d) do n. 1 do art. 668º do Cód. Proc. Civil, há nulidade da sentença se o juiz deixou de apreciar qualquer questão que devesse conhecer. Esta nulidade, geralmente designada por omissão de pronúncia, está relacionada com o disposto no art. 660º do CPC, constituindo a sanção para a sua inobservância. Segundo o art. 660º nº 2 do CPC, o tribunal deve apreciar, além das questões que possam levar à absolvição da instância e das que a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Têm-se suscitado dificuldades em fixar o exacto conteúdo das “questões a resolver" que devem ser apreciadas pelo juiz na sentença, sendo certo que há acentuado consenso no entendimento de que não se devem confundir as "questões a resolver" propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocados por cada uma das partes, para sustentar a solução que defende a propósito de cada questão a resolver, sendo certo que a nulidade não se verifica quando o juiz deixe de apreciar algum ou todos os argumentos invocados pelas partes, conhecendo contudo da questão (3). Mas, também aqui, não assiste razão ao Réu/Apelante. A sentença pronunciou-se expressamente sobre todas questões a resolver, arrimada à tese da verificação dos requisitos da impugnação pauliana. 2. Da falta de personalidade judiciária Insiste a Ré/Recorrente na falta de personalidade judiciária, em virtude da dissolução da sociedade Ré, não assiste razão à Recorrente. Efectivamente, por escritura de dissolução que junta ao autos, resulta que a Recorrente foi dissolvida e liquidada por escritura pública de 21/09/2004, declarando-se não existirem bens a partilhar , não possuindo activo, nem passivo. Porém isso não significa que estejamos perante um caso de falta de personalidade judiciária que importe a absolvição da instância. Os factos de dissolução e liquidação da sociedade foram invocados pela Apelante em momento processual posterior ao do julgamento da matéria de facto. Por outro lado, a escritura pública da dissolução, junta aos autos, enquanto documento autêntico, só faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nelas são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371°, n° 1 do Código Civil). Ora, as declarações - de liquidação do activo e passivo da sociedade e a de que não existem quaisquer bens a partilhar nem saldo de liquidação - foram produzidas pelos representantes da Apelante, sob sua responsabilidade. A dissolução de uma sociedade é a modificação (e não a extinção) da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade(4). Com efeito, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mas mantém a personalidade jurídica durante esta - art. 146º, nº1 e 2 do CSC. As finalidades visadas com a liquidação são: quanto ao sócios, evitar que as relações sociais quer activas, quer passivas, passem a constituir relações pessoais dos sócios, ou em contitularidade ou individualmente; no que respeita aos credores, obter a satisfação dos seus créditos enquanto permanece o ente juridicamente devedor(5). No caso, tal como se afirma na sentença recorrida, “se é certo que a Ré se mostra extinta, por ter sido dissolvida, estando já os factos respectivos levados ao registo comercial, importa não perder de vista o disposto no art.° 162°, n 2, do Código das Sociedades Comerciais, quando refere que estando pendente acção contra a sociedade, a extinção da mesma não determina a suspensão da instância nem é necessária qualquer habilitação, prosseguindo a mesma com a substituição da sociedade pela generalidade dos seus sócios, representados pelos liquidatários”. Face do disposto no art. 151° do CSCom o liquidatário da sociedade dissolvida é o seu gerente, quando não haja deliberação em contrário, pelo que, tal como se decidiu, o gerente da dissolvida la R., Camilo Rodrigues, passa a ser seu liquidatário e representante da generalidade dos sócios da mesma, que passam a ser réus na acção em substituição da dissolvida la R., sem que outras consequências ao nível dos pressupostos processuais se retirem, designadamente as previstas pela la R. Seja como for, o conhecimento da dissolução da sociedade poderia, quando muito e ao abrigo do art. 162º do CSC, conduzir à substituição da sociedade Ré pela generalidade dos seus sócios. Ademais, a existência de responsabilidade e o montante da responsabilidade são aspectos distintos(6). Assim, não ficando afectada a validade e a regularidade da instância, improcede, assim a arguida excepção. 3. Da impugnação da matéria de facto Os RR./Apelantes pretendem por em crise a matéria provada, na medida em que foram erradamente valorados os elementos probatórios carreados para os autos, designadamente, os documentos juntos pelos Apelantes e os depoimentos prestados pelas testemunhas. Embora seja genericamente facultado às partes peticionarem a modificação da decisão da matéria de facto, mostra-se necessário que seja observado o ónus da discriminação fáctica e probatória – art. 690º-A do CPC e o ónus conclusivo – arts. 684º, 3 e 690º, 4 do CPC. Cabe assim ao recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida. Ora, o uso dos poderes conferidos à Relação, não importando a postergação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação das provas, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão quanto à matéria de facto, nomeadamente nos concretos pontos impugnados, conforme vem sendo entendimento reiterado da jurisprudência (7). Não se pode perder de vista que em matéria de reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação, nos termos do art. 712º do CPC, o legislador optou por permitir apenas a revisibilidade dos concretos pontos de facto controvertidos relativamente aos quais sejam manifestas divergências por banda do Recorrente. Importa, ainda, ter presente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas, constante do art. 655º do CPC. De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 655º do CPC, a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos. Ainda de acordo com este princípio que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são livremente valoradas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, respondendo o julgador de acordo com a sua convicção, excepto se a lei exigir para a prova do facto, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Só neste caso está o julgador obrigado a observar a hierarquização legal(8) . Como também ficou bem vincado no Preâmbulo do DL nº 39/95 de 15/2, um dos objectivos fundamentais da gravação das audiências e da prova foi o de possibilitar às partes a “reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante…”. Neste contexto, o regime não se destina a permitir a modificação de toda e qualquer decisão, mas, fundamentalmente, a detectar e corrigir os erros mais evidentes. No caso concreto, tendo em consideração as conclusões dos recursos interpostos pelos Réus, em causa estão os factos constantes dos pontos 6°, 9°, 12°, 13°, 19°, 20° e 21º. 3.1. No que tange à matéria do ponto 6. dos factos provados, que se reporta ao número de trabalhadores a quem a Ré comunicou que prescindia dos serviços, pese embora (ouvidas as testemunhas) não exista prova segura quanto ao número exacto de trabalhadores – talvez superior a uma dezena - trata-se de matéria que pouca (ou nenhuma) relevância terá, para a solução da presente acção, pelo que se mantém tal como consta do ponto 6º dos factos provados. 3.2. No que se reporta à matéria do ponto 9. dos factos provados - A R. comprometeu-se para com a A. a entregar-lhe igual montante mensal até ao fim de Junho de 2004, o que fez em 30/4/2004, 31/5/2004 e 30/6/2004, no montante global de € 1.725,00 – ouvidas os depoimentos prestados pelas testemunhas e analisados os documentos juntos aos autos, nomeadamente os recibos que documentam as entregas, sendo certo que a A. impugnou a parte final do recibo, junto a fls 74 “...declarando que não tenho mais nada a receber”, não existem elementos que permitam ter por assente a celebração de um acordo de pagamento de créditos salariais, entre A. e Ré, mas apenas, e tal como se deu por provado, que a Ré se comprometeu a efectuar os aludidos pagamentos faseados. Não evidenciando os autos a existência de erro do julgador, na livre apreciação da prova, mantém-se a matéria constante do ponto 9 dos factos provados. 3.3. No que tange ao ponto 12. dos factos provados – A A. deixou claro perante a R. que nunca prescindiria do seu direito às compensações legalmente previstas em virtude de ter perdido o seu posto de trabalho na R. – já se afigura ter havido erro na apreciação da prova. Na verdade, nenhuma das testemunhas que sobre a matéria se pronunciaram, afirmou que a A. declarou junto da Ré não prescindir do direito a ”compensações legalmente previstas” em virtude de ter perdido o posto de trabalho. Na verdade as, então, colegas da A. (...), alegando desconhecerem se existiu algum acordo entre A. e Ré, afirmaram de modo vago e lacónico, que ouviram a A. dizer que não lhe tinha sido pago tudo, o que é muito pouco para se ter como assente que a A. deixou claro perante a Ré a sua intenção de não prescindir do seu direito a determinadas compensações salariais. Donde a conclusão no sentido de se ter como não provada a aludida matéria do ponto 12 que se elimina dos factos provados. 3.4. Diz a Ré que não ficou provada a matéria constante do ponto 13 dos factos provado – entretanto a A. tomou conhecimento que a R. vinha vendendo os veículos automóveis que constituíam o essencial do seu património. Quanto ao momento em que tomou conhecimento, estamos perante matéria vaga e genérica, até por isso, sem qualquer relavência para a solução dos autos, quanto à alienação dos veículos, sabe-se que, de facto, a Ré se foi desfazendo dos mesmos. Donde se entende ser de manter inalterada. 3.5. Quanto à matéria dos pontos 19. e 20. dos factos provados, deu-se por assente que o veículo que foi vendido ao Réu, o JQ era um dos poucos bens da R. que ainda lhe restavam e que o mesmo sempre esteve destinado ao uso exclusivo do gerente da R. C (art. 19º e 20º). Ora, de acordo com os vários depoimentos prestados, a Ré, sabendo que o contrato de representação da marca italiana iria terminar, não só comunicou aos seus trabalhadores o termo dos contratos, como ainda, se foi desfazendo da frota de que dispunha, talvez de 6 ou 7 veículos, segundo afirmou o testemunha João Silva e que isso sucedeu porque não fazia sentido ter encargos com veículos parados, até porque alguns estariam em regime de leasing e por outro era uma forma de realizar dinheiro para solver compromissos. Tendo presentes estas afirmações não repugna que se tenha por provado que o veículo vendido ao Réu era um dos poucos que bens que restavam à Ré, nos primeiros meses de 2004. Também quanto ao uso do referido veículo, as testemunhas, em geral, afirmaram que o mesmo estava destinado ao uso do gerente da Ré C. Claro que, segundo algumas das testemunhas, esse uso terminou com a venda que terá ocorrido no início de 2004/Fevereiro de 2004, sendo certo que as restantes testemunhas afirmaram desconhecer quando deixou o referido gerente da Ré de usar o veículo (se antes de Março ou não). Foi, aliás, o que afirmaram A ou Maria que disseram desconhecer quando deixaram de ver a viatura. Feitas estas considerações, que não vão contra a matéria constante dos pontos 19º e 20º dos factos provados, não se afigura ter havido erro na apreciação desta matéria que, assim, se mantém inalterada. 3.6. Do art. 21º dos factos provados, consta como assente que com a venda do 64-12-JQ a R. visou unicamente evitar ser proprietária de qualquer bem com o qual tivesse de satisfazer créditos que existissem contra ela. Dizem os Réus que tal matéria não ficou provada. E, na verdade, com razão. Nenhuma testemunha afirmou que a Ré vendeu o veículo em causa apenas com a intenção de não satisfazer os créditos que existissem contra ela. Mesmo em relação à venda dos restantes veículos o que as testemunhas que sobre a matéria depuseram, afirmaram foi que se destinou a obter receitas para solver compromissos e a evitar despesas inúteis. Aliás, as testemunhas, em geral, referiram que não havia salários em atraso. Como afirmou a testemunha da A., A, mesmo que existissem alguns problemas na empresa desde 2002, não havia atrasos no pagamento dos salários. Por outro lado, a Ré pagou à A. as quantias a que se obrigou em Março de 2004, pagamentos que foi efectuando, mesmo depois do registo da transmissão do veículo em causa. Ora, este comportamento é até contraditório com a matéria assente de que com a venda do JQ a R. visou unicamente evitar ser proprietária de qualquer bem com o qual tivesse de satisfazer créditos que existissem contra ela. De facto, o grau de convicção exigido pelo tribunal não depende só dos meios de prova. Cabe aqui realçar a prova stricto sensu que se fundamenta na convicção da realidade do facto, “exigindo um grau de convicção que afasta por completo a dúvida sobre a realidade e a veracidade do facto dado como provado. (...) Aqui um facto dado como provado é, sem dúvida, um facto verdadeiro, que não se compadece com dúvidas (9). Sem menosprezar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, afigura-se que os depoimentos prestados e que ficaram gravados não permitem alicerçar uma convicção segura quanto à prova da consciência do prejuízo que a venda do veículo causava, prova essa que cabia à A. fazer. Assim sendo, tem-se por não provada a matéria constante do ponto 21 que, assim, se elimina dos factos provados. 3.7. Pretendia, ainda o Réu/Apelante que se desse por assente, designadamente, que a compra do JQ pelo R. à Ré ocorreu em 27.2.2004, que o preço da compra do JQ foi de € 12.000,00 e que a partir de 27.2.2004 foi o Réu quem usou o JQ de forma pública e notória, sem oposição de quem quer que fosse. Porém, apesar de constar dos autos declaração para registo de propriedade a favor do Réu correspondente a contrato verbal de compra e venda assim como uma declaração da vendedora F a dar quitação do valor recebido (12.000€) pela venda do referido automóvel, datada de 27.2.2004, não podem ter-se como elementos suficientes para se dar por assente que a venda ocorreu em 27.2.2004, sobretudo atendendo a que estamos em sede de reapreciação da prova, apenas se permitindo a revisibilidade dos concretos pontos de facto quando existe desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão quanto à matéria de facto. 4. Da impugnação pauliana A acção de impugnação pauliana rege-se, em termos de legislação aplicável pelo preceituado pelos arts. 610º a 618º, do Código Civil. Visa-se apurar com este tipo de acção da existência (temporal) de um crédito e da correspondente dívida, que recaía sobre aquele ou aqueles que dispuseram, por acto gratuito ou oneroso, de determinados bens, através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito, e cuja cobrança foi afectada ou posta em crise por aquele acto. A acção pauliana procura, assim, eliminar o prejuízo causado com o acto impugnado, facilitando a impugnação de actos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respectivos devedores, consistindo num "simples meio conservatório da garantia patrimonial”(10). Como refere Menezes Cordeiro, o "escopo da acção pauliana reside na manutenção da garantia patrimonial dos credores . Esta efectiva-se, por regra, sobre bens do devedor ; apenas ocorrências particulares levam à possibilidade de agredir bens de terceiro"(11). Os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, conservando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é - à face de todos (mesmo do credor impugnante) - o seu proprietário: "o bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto"(12). O que se permite é que o credor impugnante (reunidos os requisitos deste instituto jurídico), afecte a esfera jurídica (o património) do terceiro, de forma a satisfazer o seu crédito sobre o devedor alienante, ou praticar os actos conservatórios autorizados por lei aos credores. No dizer de Maria Patrocínio Paz Ferreira(13), “embora o acto de alienação impugnável através da pauliana produza o seu efeito típico que é a transmissão da propriedade da coisa com eficácia “erga omnes”, não desenvolve, em relação aos credores com direito a impugnarem o acto, o efeito indirecto que lhe está normalmente associado de subtrair o bem à garantia dos credores do alienante". Não está em causa a anulação de qualquer acto, pois o de disposição é - por si só – válido, sendo certo que existe a preocupação de evitar que o acto de transmissão seja sacrificado para além do limite necessário para a satisfação do credor impugnante, tendo presente um critério de economia jurídica e de máximo aproveitamento do negócio jurídico. Com a acção de impugnação pauliana tem-se em vista indemnizar o credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ou valores ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor, tratando-se, portanto, de uma acção pessoal com escopo indemnizatório (e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação, ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor). Vale isto por dizer que - para proteger o interesse dos credores perante o acto de um devedor que provoca a impossibilidade de satisfação do seu direito por via coactiva, ou o agravamento dessa impossibilidade - não se torna necessário destruir o acto prejudicial (a transmissão), bastando "suprimir o efeito indirecto da alienação que se projecta na esfera jurídica daqueles e que consiste na subtracção do bem à garantia patrimonial dos credores"(14). 4.1. Os pressupostos Identifiquemos agora os pressupostos da acção pauliana, tal qual resultam dos artigos 610º a 612º, do Código Civil . São eles: - acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal; - acto esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa responsabilidade; - existência de má fé ou, simplesmente, um acto gratuito; - e existência de um crédito anterior ao acto; - ou, existência de um crédito posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor(15). Estabelece, portanto, o art. 610º do CC, a possibilidade de o credor impugnar actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (por redução do activo – por exemplo, por venda, doação, ou por renúncia a direitos; ou por aumento do passivo - por exemplo, por assunção de dívida), que não sejam de natureza pessoal (casamento, divórcio, ou adopção), desde que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, tenha sido realizado com o fim de dolosamente impedir a satisfação do direito do futuro credor; e resulte do acto (nexo de causalidade) a impossibilidade para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (com a substituição de um bem, por outro de natureza mais volátil ou deteriorável). Tratando-se de um acto oneroso (e para além da prova do montante das dívidas - art. 611º, 1ª parte, CC), cabe ao Autor (credor), demonstrar a má fé do devedor e a do terceiro adquirente (art. 612º, nº 1, CC), entendida esta como "a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor" (art. 612º, nº 2, CC). Ou seja, sendo "o acto oneroso, a boa fé de qualquer dos intervenientes no acto obsta à sua impugnação" (16). No dizer de Menezes Cordeiro,(17) trata-se do requisito tradicional do consilium fraudis: o devedor e o terceiro devem, de algum modo, ter-se concertado para atentar contra a garantia do credor" que era constituída pelo património do dito devedor. Quer dizer, para além da regra segundo a qual os bens do devedor respondem pelas suas dívidas (art. 601º, CC) e da livre disponibilidade dos bens (com consagração expressa no art. 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), uma vez que estão em jogo interesses de terceiros (com relevo para a propriedade e a autonomia privada), entendeu o legislador num desvio a elas, sujeitar o terceiro à impugnação pauliana, mas só o fazendo com um fundamento sério, que tem a ver com a violação de princípios fundamentais da ordem jurídica, in casu, a boa fé. Na acção de impugnação pauliana, a boa fé traduz não uma vantagem, mas a aplicação do regime normal. Em compensação, a má fé é penalizada. A má fé de devedor e terceiro é apresentada, pelo menos formalmente, por igual, visto que não se trata, apenas, de uma fraude do devedor com conhecimento do terceiro, mas antes de ambos terem atentado contra a boa fé, portanto contra determinados vectores fundamentais da ordem jurídica, sendo determinante, para se poder considerar preenchido o requisito da má fé, que o devedor e o terceiro tenham a consciência do prejuízo que a operação causa ao credor, sendo, para tanto, bastante a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta do agente. Por outro lado, refira-se que, quanto ao devedor e ao terceiro, nos termos da segunda parte do art. 611º, CC, cabe-lhes o ónus de provar que o obrigado tem bens penhoráveis de igual ou maior valor. 5. O caso concreto No caso dos autos, estamos perante um acto que não pode considerar-se de natureza pessoal. De facto, embora a lei não tenha definido claramente "acto de natureza patrimonial", a verdade é que afastou os actos que, sendo patrimoniais, estejam, no entanto estreitamente ligados à pessoa do devedor: seria o caso de, por exemplo, no caso de uma transmissão de bens prejudicar os credores, mas ter sido feita para assegurar necessidades legítimas do transmitente/devedor, como a obtenção de fundos para submeter um familiar a tratamento médico (18). Por outro lado estamos perante acto oneroso, sendo certo que a A. não alegou sequer que a transmissão tivesse sido efectuada por acto gratuito. Na verdade, está provado que com data de 3/6/2004 se encontra registada a aquisição do veículo a favor do Réu , por o ter adquirido à 1ª Ré, pelo valor de 12.000,00, em 27.2.2004. Quanto ao momento da constituição do crédito cabe referir que, em regra, só os titulares de créditos anteriores ao acto impugnado se podem considerar lesados com a sua prática, porque só eles podiam legitimamente contar com os bens saídos do património do devedor como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito. Haveria enorme perturbação no comércio jurídico, se os negócios pudessem ser impugnados em consequência de dívidas posteriormente contraídas (19). Já Paulo Cunha escrevia que se “o crédito estava já constituído quando o acto se praticou, então - tendo em atenção que o crédito foi constituído em consideração dos bens que estavam no património responsável -, a lei prefere atender ao interesse do credor, e permite a rescisão do acto”(20). Ainda assim, mesmo quando o crédito for posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, então nesse caso, é ainda possível impugnar o acto. No caso, sabendo-se que o crédito nasceu com o despedimento, em 30/3/2004, desconhece-se, em concreto em que momento se deu a alienação do veículo, cuja aquisição foi registada em 3/6/2004. De todo o modo, independentemente de o crédito ser posterior ou não à alienação do veículo, sempre caberia à A., como dissemos, demonstrar a má fé do devedor e a do terceiro adquirente (art. 612º, nº 1, CC), entendida esta como "a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor" (art. 612º, nº 2, CC). Ora, atentos os factos provados, não foi feita minimamente a prova deste requisito, sendo certo que cabia à A. a prova dessa má fé. Aliás, se os factos dados por provados em 1ª instância permitiam por em causa a boa fé da Ré transmitente, já no que se reporta à má fé do Réu adquirente, essa prova nunca foi feita. Ou seja, mesmo sem a alteração da matéria nos termos supra referidos, a decisão proferida não poderia, salvo o devido respeito manter-se. É que a prova da consciência do prejuízo tem que ser feita em relação quer ao vendedor quer ao adquirente. Ora, não basta provar que o 2º Réu era colaborador eventual da Ré, tratando dos assuntos da Ré, mantendo relação pessoal com o gerente da Ré, sendo ambos conhecidos de longa data, para se ter por adquirido a consciência do prejuízo que a alienação do veículo causava à A. Ainda que se tivesse provado, e, repete-se, não se provou, que a alienante actuou de má fé, com o intuito de impedir a satisfação do direito de crédito da A., em relação ao Réu adquirente não estavam provados factos que levassem a concluir que este estava de má fé. Em suma, mesmo tendo presente que não se exige a intenção, o propósito, a vontade de prejudicar os credores (dolo directo), bastando apenas a consciência, a representação do prejuízo que o negócio causa ao credor (dolo necessário), os autos não revelam factos claramente indiciadores da "consciência do prejuízo” ("animus nocendi") por parte dos RR. e da concertação dos RR. entre si. O que se concluiu dos depoimentos das testemunhas, como se referiu, é que a Ré que tinha uma frota de 6 ou sete veículos, foi alienando esses veículos, pois não fazia sentido continuar com os veículos parados, quando a Ré necessitava de liquidez para solver os seus débitos. E o certo é que, apesar dos despedimentos da A. e seus colegas de trabalhos terem ocorrido em 31 de Março de 2004, pelo menos durante os 3 meses seguintes a Ré, honrando os seus compromissos efectuou pagamentos à A. e a colegas seus. Foi assim que a A. recebeu em 30/4/2004, 31/5/2004 e 30/6/2004, a quantia global de 1.725,00, correspondente a três salários ilíquidos mensais. Mesmo entrando em linha de conta com as presunções judiciais (arts. 349º e 351º do CC), os factos acima referidos não permitem conclusões ou ilações lógicas, no sentido da existência da conc ertação entre a 1ª e 2º RR. no que se refere à consciência por parte deste último de que com a aquisição do veículo prejudicava a A. A chamada prova por presunções judiciais permitida pelo art. 349° e segs. do C.Civil terá que confinar-se e reportar-se aos factos incluídos no questionário e não podem eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes (21). Por tudo o exposto, verifica-se que falha pelo menos um dos pressupostos essenciais da impugnação pauliana: a existência de dolo, a consciência do prejuízo, por banda dos RR. adquirentes do bem em causa. Nestas circunstâncias, estando a Autora obrigada a levar a juízo e provar os pressupostos legais da pauliana, não o conseguindo, a acção não pode proceder. 6. Da má fé A sentença recorrida, no seguimento de requerimento feito pela A. em que pede a condenação da Ré como litigante de má fé, condenou a 1ª Ré como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização a liquidar, a favor da A. Estando, também, pedida pela la R. a condenação da A. como litigante de má fé, compulsados os autos a sentença recorrida concluiu que não se verificava nenhuma actuação que preenchesse os pressupostos enunciados pela A., designadamente que haja alterado a verdade dos factos ou que haja omitido facto essencial para a decisão da causa. 6.1. Quanto à condenação da 1ª Ré como litigante de má fé, a sentença recorrida considerou que esta assentou a sua defesa na invocação de um acordo com a A. segundo o qual esta já haveria recebido tudo aquilo a que tinha direito, não tendo ficado provado a existência desse acordo. Ao invés ficou provado que a A. deixou claro perante a Ré que nunca prescindiria das compensações a que tinha direito. Porém, atendendo à impugnação da matéria no âmbito deste recurso e à decisão de se ter como não provada esta matéria, isto é, que a A. tivesse comunicado à Ré não prescindir das referidas compensações, este fundamento para a condenação da Ré, cai por terra. A ter em conta como relevante para a condenação da Ré, é o facto de, já após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, apresentar uma cópia certificada da escritura pública de 21/9/2004 demonstrativa da sua dissolução, assim concluindo pela sua absolvição da instância por falta de personalidade judiciária. Ora, a Ré não estava impedida de invocar este facto na contestação (ainda que não tivesse na sua posse a certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial), sendo certo que revela um comportamento pouco cooperante o facto de só em Dezembro de 2005 proceder à referida junção aos autos. Distinguindo-se, na formulação legal, a má fé instrumental, que tem a ver com questões de natureza processual e a má fé material, que diz respeito ao fundo da causa, à relação material, a verdade é que está presente ou uma intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva. O princípio da cooperação constitui, a partir da reforma do CPC, um princípio fundamental e angular do processo civil, com expressão no art. 266º do Código, no sentido de fomentar a colaboração entre os magistrados, os mandatários e as próprias partes, com vista a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Como reflexo e corolário deste princípio, obteve também expressa consagração, com a reforma, o princípio da boa fé processual (art. 266º-A). Por força dos citados princípios, devem, portanto, as partes, na sua actuação processual, agir de boa fé e observar os deveres de cooperação. A má fé consiste, pois, na "utilização maliciosa e abusiva do processo"(22). Ora, a actuação da Ré ao apresentar a certidão em causa a destempo, quando poderia ter feito essa apresentação em momento anterior, pode configurar um comportamento pouco consentâneo com a exigência de cooperação supra referida. Porém, no caso, afigura-se que a situação deveria ter sido sancionada condenando-a em incidente pela junção extemporânea, atento o disposto no art. 523º do CPCivil, que não já no âmbito da litigância de má fé. Ademais, não pode deixar de ter-se presente que, afinal, nem sequer se verificam os pressupostos da impugnação pauliana. Atendendo ao acima referido e em conclusão, não ressalta dos autos que a Ré tenha usado o processo para um fim, ou de uma forma reprovável, ainda que a junção do documento em causa, atendendo ao momento em que foi apresentado, revele alguma leviandade. Em suma, não estamos diante de uma situação enquadrável na figura da litigância de má fé, considerando-se que não foram ultrapassados os limites daquilo a que Luso Soares chama de “litigiosidade séria", isto é, aquela que "dimana da incerteza" (23). IV – DECISÃO Termos em que se acorda em julgar procedente a apelação e, consequentemente revoga-se a sentença recorrida, absolvendo os RR. do pedido. Custas pela A. Lisboa, 12 de Julho de 2007. (Fátima Galante) ___________________________________(Ferreira Lopes) (Manuel Gonçalves) 1 Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. V, pág. 141. 2 Cfr. Antunes Varela e M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pág. 689/690. 3 Alberto Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. V, pág. 143 e, entre muitos, os Acs do STJ de 6.1.77, in BMJ 263º-187; de 11.11.87, in BMJ 371º- 374 e de 27.1.93, in BMJ 423º-444. 4 Neste sentido Ac. RL de 18.4.1991 (Almeida Valadas), www.dgsi.pt/jtrl. 5 Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987,pág. 216. 6 Raúl Ventura, em "Dissolução e Liquidação de Sociedades", Almedina, Coimbra, 1993, pág. 476 7 Entre muitos, o Ac. RP de 19.9.2000, CJ, ano XXV, 4º-186. Ac. RC de 3/10/2002, tomo 4, pág. 27; Ac. RL de 21.4.2005 (Granja da Fonseca) ou de 21.04.2005 (Manuela Gomes), www.dgsi.pt 8 Vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pags. 544 e segs. 9 Rui Rangel, O Ónus da Prova no Processo Civil”, Almedina, 3ª ed., 2006, pags. 38 e 59. 10 Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer in CJ, 1992, T III, pag. 60. 11 Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1985, pag. 496 12 Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza Jurídica da Impugnação Pauliana, Revista da Banca, nº 21, Janeiro/Março 1992, pag. 90; Ac. STJ 14/01/1997, Torres Paulo, CJSTJ, 1, 52 13 Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit., pag. 91. 14 Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit., pag. 90. 15 Sobre os pressupostos da acção pauliana vide Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer supra citado, in CJ, 1992, T III-58. 16 Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit. pag. 88. 17 Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer já citado, 58. 18 Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, supra citado, 497. 19 Antunes Varela, C.C.Anot., vol. I, 2ª ed., pág. 550). 20 Paulo Cunha,Da Garantia nas Obrigações, tomo I, págs. 349-450. 21 Ac do STJ de 16-1-03, in Proc 4274/02 - 2ª secção. 22 Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pag. 356. 23 Fernando Luso Soares, A Responsabilidade Processual Civil, Coimbra, 1987, pag. 26. |