Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2133/21.0T8ACB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO
VEÍCULO
PRIVAÇÃO DE USO
CAUSA DE EXCLUSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: IMPROCEDENTES
Sumário: (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Na ação em que a Autora peticiona a condenação da Ré no pagamento do custo da reparação do seu veículo pesado de mercadorias e de uma indemnização pela privação do respetivo uso, invocando o incumprimento do contrato de garantia automóvel que a Ré celebrou com a sociedade que lho vendeu, tendo sido suscitada pela Ré, como causa de exclusão da garantia de que a Autora é beneficiária, a circunstância de a avaria ter sido “claramente” resultante de “uso indevido ou negligente”, mas não logrando a Ré provar os factos que alegou a este respeito, é de concluir pela improcedência dessa exceção.
II – A Ré não pode prevalecer-se, como causa de exclusão da garantia, do facto de a Autora não ter observado à risca o procedimento descrito nas denominadas “condições gerais em caso de avaria” constantes de documento que lhe enviou quando já tinha decorrido mais de um mês após a referida compra do veículo com garantia e que não constavam do documento que foi entregue à Autora na altura dessa compra, nos termos do qual a Ré (apenas) se escusou a assumir qualquer responsabilidade, sempre que as avarias, ao abrigo da garantia fossem reparadas antes da autorização ou tomada de conhecimento daquela. Com efeito, não se pode considerar que a Autora se tenha vinculado a condições impostas posteriormente, por iniciativa unilateral da Ré, inexistindo qualquer manifestação de vontade por parte daquela a esse respeito, não podendo o seu silêncio valer aqui como meio declarativo (cf. art.º 218.º do CC).
III – Tanto assim que, a própria Ré, num primeiro momento, aceitou a reclamação apresentada, dando seguimento à mesma, não obstante a Autora não tivesse seguido à risca as denominadas condições gerais, mas apenas o que se afigura ser o procedimento normal quando uma viatura avaria na estrada – ou seja, diligenciar da forma mais célere possível pelo reboque da mesma para a oficina onde se perspetiva que venha a ser reparada –, tendo, logo no dia seguinte, disso informado a Ré, não tendo esta logrado provar nenhum outro facto substantivamente relevante para a procedência da exceção perentória invocada, que assim também improcede.
V – Como a Ré apenas assumiu uma obrigação de garantia, denominada “Garantia Truck Plus”, que abrange determinadas avarias, designadamente no “Diferencial/Transmissão”, o que inclui, além das peças propriamente ditas, “Mão-de-obra Necessária à reposição da viatura no estado, antes da avaria”, não se pode considerar que esteja abrangida pela obrigação de garantia a indemnização de danos causados pela avaria.
VI – Todavia, porque de incumprimento do contrato se trata, é de admitir que daí pudessem advir danos ressarcíveis nos termos gerais (cf. art.º 798.º do CC), contanto a atuação da devedora (a Ré obrigada a custear a reparação) tivesse acabado por dar causa a tais danos, não bastando para isso que apenas estejam provados factos atinentes à comunicação efetuada pela devedora, no próprio dia em que lhe foi enviado o orçamento da reparação, informando que declinava a responsabilidade pela mesma e indicando as razões para isso.
VII – Uma obrigação é líquida quando a prestação se encontra determinada em relação à sua quantidade ou montante, sabendo-se, pois, exatamente quanto se deve, ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de uma simples operação de cálculo aritmético.
VIII – A circunstância de ser discutida pelas partes a existência da obrigação – por divergirem relativamente à verificação de determinadas alegações de facto e/ou ao respetivo enquadramento jurídico – não é bastante para qualificar a obrigação como sendo ilíquida. Assim, a obrigação da Ré não pode ser considerada ilíquida, pois, tendo-lhe sido remetido pela oficina o orçamento da reparação, sempre teve conhecimento do custo da mesma (IVA incluído), apenas se tendo recusado a assumir a responsabilidade pelo seu pagamento, por entender que se verificavam causas de exclusão da garantia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

G …, LDA., Ré na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por G … & F … T …, LDA., interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação parcialmente procedente.
Os autos tiveram início em 22-10-2021, com a apresentação de Petição Inicial em que a Autora peticionou que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia total de 16.900,91€, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, tendo alegado, para tanto e em síntese, que:
- No dia 3 de abril de 2017, adquiriu o veículo pesado de matrícula …-…-…, com o n.º de chassis …, marca MAN, modelo … - …, que incluía a garantia TRUCK PLUS GTS, prestada pela Ré, válida pelo prazo de 72 meses, ou seja, até 3 de abril de 2023;
- A referida viatura teve uma avaria no dia 12 de julho de 2021, pelo que a Autora diligenciou pelo acionamento da garantia;
- A Ré, sem fundamento para isso, declinou a sua responsabilidade, motivo pelo qual a Autora lhe remeteu uma carta registada, comunicando-lhe que dispunha do prazo de 3 dias para ordenar a reparação da viatura, sob pena de, não o fazendo, isso ser feito pela Autora, debitando-lhe então o respetivo custo, bem como o valor diário de 198,91€ pela paralisação da viatura;
- Não tendo obtido qualquer resposta por parte da Ré e porque necessitava da viatura para trabalhar, a Autora deu ordem para a respetiva reparação, pagando pela mesma a quantia de 6.380,56€;
- Nesta sequência, remeteu nova carta à Ré a interpelá-la para pagar o valor da reparação e do valor referente ao período de paralisação da viatura, de acordo com a tabela da ANTRAM, sem sucesso.
A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu por exceção e por impugnação motivada, excecionando a incompetência territorial do tribunal onde a ação foi instaurada, bem como, alegando, em síntese, que:
- A avaria em causa está excluída do âmbito do contrato de garantia, por ter sido causada pela atuação negligente da Ré, decorrente da falta de manutenção e do transporte de carga excessiva;
- Ademais, a Autora não cumpriu os procedimentos contratualmente estabelecidos para o acionamento da garantia, o que igualmente consubstancia uma causa de exclusão da garantia;
- Acresce que a indemnização pela privação do uso não se encontra abrangida pela garantia do contrato e, ainda que o estivesse, o valor peticionado pela Autora com tal fundamento é desproporcional.
Terminou a Ré pugnando pela procedência da exceção de incompetência do Tribunal e pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
Convidada a exercer por escrito o contraditório relativamente à matéria de exceção individualizada na Contestação, a Autora veio pugnar pela sua improcedência.
Foi declarada a incompetência do Tribunal territorial onde a ação foi instaurada.
Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador (tabelar), bem como de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com a prestação de depoimentos de parte (tanto pelo legal representante da Ré, como pelo legal representante da Autora) e a produção de prova testemunhal.
Após, foi proferida a sentença (recorrida) cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Em face do exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
1. CONDENAR a Ré, G …, Lda., a pagar à Autora, G … & F … T …, Lda., a quantia de €6.380,56 (seis mil trezentos e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de juros aplicável às operações civis, actualmente fixada em 4%, computados desde a citação (27 de Outubro de 2021) até efectivo e integral pagamento;
2. Absolver a Ré do demais peticionado pela Autora.
Custas pela Autora e pela Ré, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 62,25% para a primeira e em 37,75 para a segunda.
Registe e notifique.”
Inconformada com esta decisão, veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (que, apesar de prolixas, reproduzimos, retificando alguns lapsos de escrita e omitindo as passagens manifestamente desnecessárias para a compreensão do objeto do recurso, designadamente as notas de rodapé, as passagens que são meras citações da decisão recorrida e de doutrina, bem como a transcrição de depoimentos e documentos):
I – O presente Recurso tem por objecto a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou a “acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência: (…)”;
II – O Tribunal a quo, deu como provados os factos elencados e com interesse para a boa decisão da causa os que enumerou de a 1 a 27 e que, por parte da Recorrente, não merecem reparo algum, pois que considera que os mesmos se consideram provados nos termos em que aquele Tribunal fundamentou, dispensando-se, assim, a sua transcrição;
A) Deu como factos não provados: (…)
III – Com o presente Recurso, a Recorrente pretende visar e questionar a apreciação de dois dos factos não provados, especificamente, os factos não provados C) e G), bem como a não valoração pelo Tribunal a quo do não cumprimento escrupuloso, por parte da Autora, a agora aqui Recorrida, dos procedimentos a ter aquando de uma avaria numa viatura segurada pela Recorrente e das suas consequências e também o facto do Tribunal a quo, ter decidido no sentido de que os juros de mora são devidos desde da citação;
DA INCORRECTA APRECIAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS C) E G)
IV – O Tribunal a quo considera que o veio do pinhão de ataque do veículo de matrícula …-…-… andava fendido antes do descrito em 9) do elenco de factos provados e que o diferencial/transmissão do veículo de matrícula …-…-… se tenha partido por torção, que são factos não provados, fundamentando tal decisão no sentido de que, e de uma maneira genérica e abrangente, pois que engloba na mesma fundamentação todos os factos não provados de C) a G), de que sobre a Ré, a agora aqui Recorrente, impendia o ónus da prova que a mesma apresentou para suportar tais factos – essencialmente as declarações de parte do legal representante da Ré e o depoimento da testemunha E …, em conjugação com o denominado “parecer técnico automóvel” e com um conjunto de fotografias da viatura/peça danificada – mereceu bastantes reservas ao Tribunal.;
V – Considerando que as declarações de parte do legal representante da Ré não permitiram alicerçar uma convicção segura, por não acompanhadas de outros meios de prova, considerando-as pouco ou nada objectivas, mas, noutra apreciação dos depoimentos das testemunhas A … e B …, por terem conhecimentos técnicos e que as mesmas não têm qualquer relação directa com a Autora, o que desde já se refuta, pois, as referidas testemunhas são colaboradoras da A.C. M … Lda., com a qual a Autora tem relações comerciais há longos anos, o que pode levar a um condicionamento por motivos comerciais e de mercado, no sentido de condicionar os seus depoimentos e outros constrangimentos por ser a Autora cliente de longa data da entidade patronal daquelas Testemunhas, e, ao contrário de que o Tribunal a quo afirma, questionando-se desde já a sua isenção e liberdade nos respectivos depoimentos;
VI – Desvalorizando as declarações de parte do legal representante da Requerente, o qual trabalha no ramo automóvel há mais de quarenta anos, conforme este declarou ao Tribunal a quo;
VII – O que se pode retirar do Ficheiro áudio “(…)”
VIII – Deixando transparecer falta de coerência na sua avaliação dos conhecimentos técnicos, considerando que uns tem mais experiência e conhecimentos de que outros, usando assim dois pesos e duas medidas, desprezando o conhecimento e experiência adquiridos ao longo de mais de 40 anos, quer do legal representante, quer da Testemunha C …, Perito Averiguador no ramo Automóvel com experiência comprovada ao longo, também, de mais de 40 anos, em detrimento de um conhecimento e experiência de cerca de 20 a 25 anos, ou eventual conhecimento académico da testemunha B …, engenheiro mecânico de formação;
IX – O que de todo e na perspectiva da Recorrente/Ré, tal discriminação, não é aceitável, fazendo pender, logo à partida, a decisão num modo parcial e tendencial para uma das partes, com prejuízo claro da outra, pois que se deveria dar mais peso às declarações e depoimentos onde se realça a voz da experiência, como é o caso do representante legal da Recorrente e da testemunha C …;
X – Por tal, os factos não provados C) e G) devem ser considerados provados no sentido de que o veio de pinhão de ataque já estava fendido antes da avaria e que o mesmo acabou por partir por excesso de carga e em consequência absolver a Recorrente/Ré da Instância;
XI – Preste-se atenção ao trecho do depoimento de parte do Representantes Legal da Requerida: (…), sendo que aqui se fazia referência ao facto do pinhão de ataque se ter partido por torção;
XII – Por outro lado, e, pese embora a imperceptibilidade da gravação quanto aos depoimentos da testemunha C … , perito averiguador com mais de 40 anos de experiência comprovada, o relatório por si elaborado e consonante com as suas declarações (na parte que se conseguiu ser perceptível), o veio do pinhão de ataque já estava fendido e que tal levou a que o diferencial/transmissão da viatura se tenha partido por torção, devido ao uso de carga de excessivo, a peça em questão começou a fender e posteriormente ter partido por torção;
XIII – Ressalta que a avaria decorre por um uso negligente contrário às especificações do fabricante que indicava que a viatura tinha uma carga máxima de 40 toneladas e não uma carga máxima de 44 toneladas, carga máxima essa que a Autora, aqui Recorrida, admitiu que ultrapassava frequentemente, porque com base em legislação, a qual permitia usar pneus de uma determinada medida, poderia transportar uma carga superior à estipulada pelo fabricante, bem como já tinha tido uma incidência logo no 1º mês em que a viatura apresentou a embraiagem partida, sinónimo de um uso incorrecto da viatura;
XIV – O próprio perito, no seu relatório efectuado, indica sem hesitação que o veio do pinhão de ataque “já andava Fendido há algum tempo” – derivado do excesso de carga a que exponha a Autora o respectivo componente, tendo-se, assim, verificado uma quebra em formato espirulado, melhor explicado no referido relatório (pág. 12/34) já junto aos autos pela Requerente: “(…)”;
XV – Configurando uma causa de exclusão do contrato de garantia celebrado entre as partes pela utilização negligente do veículo, por ter circulado a Requerida/Autora com carga acima do peso bruto recomendado pelo fabricante;
XVI – Tais factos não foram valorados pelo Tribunal a quo, os quais deveriam ter sido valorados e dados como provados, bem como se considera que a valoração da prova foi negada à Requerente;
XVI I – Considera-se que a valoração da prova deve ser efectuada na prespectiva de um critério de probabilidade lógica, através da confirmação coerente da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada;
XVIII – As declarações de parte podem (e devem) sustentar a convicção do Julgador de forma autossuficiente e não existindo uma qualquer determinante entre este meio de prova e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada;
XIX – Se numa situação de conflito deve o tribunal deitar mão a critérios que, sopesados, faz uma avaliação de cada meio probatório, determinando qual o que deverá prevalecer e quais as razões que levarão a uma hipotética hierarquização;
XX – No presente caso, as declarações de parte do representante legal da Recorrente, bem como ao depoimento da testemunha C …, guiaram-se por uma contextualização assertiva, bem detalhadas, seguras e sem contradições demonstrando por si só a genuinidade das declarações e do depoimento, devendo este ter sido valorizado adequadamente pelo Tribunal a quo;
XXI – Deveria, assim, o Tribunal a quo ter dado a relevância devida as declarações de parte do e valorado o depoimento da testemunha (e teria dado como provado o facto C) e G), o que desde já se estranha que quer aquelas declarações, quer o depoimento, tenham sido votadas a nenhuma ou pouca valoração;
XXII – Sabido é que nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
XXIII – Seguindo Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, afirma claramente que: «(...)».
XXIV – Ou seja o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer numa incorrecta desvalorização, sendo as declarações de parte uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo esclarecerá com solidez outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento;
XXV – No presente caso existe uma forte convicção de que as declarações de parte (e também o depoimento de testemunha aqui mencionada, o Sr. C …) são um genuíno exemplo de declarações que merecem toda a credibilidade, sendo as mesmas genuínas, assertivas, detalhadas, sérias e isentas, revelando profundo conhecimento da matéria em discussão;
XXVI – Veja-se nesse sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/04/2014, Processo n.º 2022/07.1TBCSC-B.L1-28, que afirma que este inovador meio de prova, dirige-se primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorridas na presença das partes;
XXVII – Devendo o Tribunal valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório, não podendo degradar prematuramente o valor probatório das declarações de parte em nome de um qualquer interesse no litigio, devendo as mesmas ter como principais parâmetros a contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais, a existência de corroborações periféricas, a produção não estruturada, a descrição de cadeias de interacções e a reprodução de conversas;
DO NÃO CUMPRIMENTO ESCRUPULOSO POR PARTE DA AUTORA, DOS PROCEDIMENTOS A TER AQUANDO DE UMA AVARIA NUMA VIATURA SEGURADA PELA RECORRENTE E DAS SUAS CONSEQUÊNCIAS
XXVIII – O não cumprimento escrupuloso das condições estipuladas em caso de avaria, são, como é bom de ver, uma causa de exclusão de garantia em toda a sua extensão e foi o que aconteceu in casu, pois que a Recorrida/Autora não cumpriu com as condições gerais estipuladas no Contrato de Garantia que foram apresentadas a esta na altura da aquisição da viatura ...–... – ...;
XXIX – E tal facto foi ignorado pelo Tribunal a quo, embora tenha dado como provado que as condições gerais chegaram ao conhecimento da Recorrida/Autora, como se retira do facto provado n.º 8) que no seguimento do referido em 3)9, no dia 5 de Maio de 2017, a Ré remeteu à Autora o documento cuja cópia se encontra junta de fls. 102 a 109, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, do qual consta nomeadamente o seguinte:
“(…)”
XXX – Acontece que a Recorrida/Autora não procedeu com o estipulado no Contrato de Garantia que eram do seu total conhecimento e, por sua iniciativa, rebocou a viatura para uma oficina, MAN, A.C. M … e C … de A …, S.A., sem necessidade, pois que podia tê-la rebocada para as suas instalações onde teria local para parquear a viatura e, de seguida, proceder conforme o estipulado na garantia e, à revelia da garantia e da Recorrente/Ré, nesse mesmo dia procedeu à desmontagem das peças avariada/estragadas;
XXXI – Ao arrepio de que estava contratado e indicado, a Recorrida/Autora entregou a viatura num concessionário da marca sem autorização da Recorrente/Ré, deu ordem de desmontagem sem prévio conhecimento desta e só lhe comunicou a factualidade após a viatura ter sido desmontado não permitindo uma verificação isenta e actual, pois que, depois de desmontada a peça a Recorrente/Ré não pode garantir o estado da avaria e a sua origem;
XXXII – E que a Recorrente/Ré ao verificar o estado da avaria constatou que a quebra do diferencial ocorreu por esforço exagerado, o que provocou a torsão e quebra do mesmo, sendo que essa origem da avaria não se encontra coberta pela garantia contratada entre a Recorrente/Ré e a Recorrida/Autora, factos que sempre alegou;
XXXIII – A avaria deu-se no dia 12/07/2021, mas, só no dia 13/07/2021, é que foi reportada à Recorrente/Ré, ou seja, no dia seguinte ao da avaria e com a agravante de que nesta data a viatura já se encontrava desmontado na oficina e ter realizado uma primeira perícia ou inspecção à mesma, tudo isto à revelia daquela e num total desrespeito pelas condições gerais em caso de avaria;
XXXIV – Não pode em circunstância alguma, por isto, vir alegar a Recorrida/Autora, ter seguido todos procedimentos previstos nestes casos, para efeitos de accionamento da garantia contratada o que, salvo o devido respeito, não corresponde à verdade, mesmo porque mais alega na sua Petição Inicial que solicitou reboque ao local, por forma a transportar o veículo para a oficina da marca, tendo-o feito sem autorização ou sequer prévia comunicação à Ré, conforme decorre do contrato de garantia ser o procedimento em caso de avaria;
XXXV – E, por tal, tal falta de observância dos procedimentos é, sem dúvida alguma uma de exclusão do contrato de garantia, por inobservância das condições gerais e, em consequência não podem ser imputados à Recorrente/Ré os custos da reparação da avaria;
XXXVI – E por tal, se outro motivo não houvesse a decisão final só poderá apontar no sentido da total absolvição da Recorrente/Ré da presente acção e não na condenação proferida pela sentença do Tribunal a quo;
XXXVII – Pelos motivos supra expostos, a decisão só poderá - mais uma vez! - apontar no sentido da Recorrente/Ré ser absolvida da presente acção, por verificada que está uma forte e evidente causa de exclusão do contrato de garantia;
DESDE QUANDO OS JUROS DE MORA SÃO DEVIDOS
XXXVIII – Foi decidido na Sentença proferida pelo Tribunal a quo que os juros de mora são devidos desde da citação. No entanto e salvo melhor opinião e sempre com o devido respeito institucional que é devido pelo Tribunal a quo, a Recorrente/Ré não concorda com a referida decisão;
XXXIX – Sem prescindir e que só por mero exercício e coerência de raciocínio, se admite hipoteticamente, porque como já alegado supra, a Recorrente/Ré deve ser absolvida da Instância, o pagamento dos juros devido, a serem devidos, não o são nos termos decididos, porque se entende que os juros só são devidos a partir do momento em que a obrigação se torne líquida;
XL – Considerando que na Petição Inicial da Recorrida/Autora o valor da acção final é de €16.900,91, sendo que o mesmo foi fixado em Despacho Saneador para o efeito nos termos do disposto nos artigos 296.º, 297.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e que a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a Recorrente/Ré foi condenada “a pagar à Autora, G … & F … T … Lda., a quantia de €6.380,56 (seis mil trezentos e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de juros aplicável às operações civis, actualmente fixada em 4%, computados desde a citação (27 de Outubro de 2021) até efectivo e integral pagamento”;
XLI – Verifica-se que o valor à data da citação não era líquido e, em consequência não era devido;
XLII – Por outro lado, considerando que os juros só são devidos desde a data da citação, por ser nessa data que os réus se constituíram em mora, ao serem interpelados para cumprir - art.º 805, nº1, do Código Civil (em futuras referencias, CC) e que se está no domínio da responsabilidade contratual e que se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor - art.º 805, nº3, 1ª parte, do C.C.;
XLIII – E para que haja mora, considera-se que é necessário que a prestação seja ou se tenha tornado certa, líquida e exigível que se diz ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado;
XLIV – Subscrevendo a Doutrina de que "a obrigação é ilíquida (por não estar ainda apurado o montante da prestação), também a mora não se verifica, por não haver culpa do devedor no atraso do cumprimento";
XLV – In casu, a Recorrente/Ré foi condenada (repete-se: o que só por mero exercício de raciocínio se admite, mas, não se concede) em montante inferior ao valor do pedido formulado e por tal, tais juros de mora só são devidos após a decisão que defina o valor da prestação a satisfazer, pois que até então é desconhecido a importância exacta do valor em dívida, que no limite, poderá ser zero;
XLVI – Não basta que o pedido de pagamento do credor de um determinado montante signifique que a dívida se torne líquida naquele momento;
XLVII – Para haver mora, não basta que o devedor seja interpelado e haver culpa do devedor, sendo que os juros moratórios só serão devidos apenas desde a data da sentença da 1ª instância que fixou o valor da obrigação;
XLVIII – O que significa que in casu, os juros moratórios a serem devidos, só o são a partir da prolação da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo;
O VALOR A QUE A RECORRENTE/RÉ FOI CONDENADA A PAGAR DEVE SER UM VALOR SEM O IMPOSTO DE VALOR ACRESCENTADO
XLIX – Foi a Requerente/Ré condenada a pagar à Recorrida/Autora, o valor de €6.380,56 (seis mil e trezentos e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos), o que, e mais uma vez, aqui se traz à colação, mas sempre sem prescindir e que se faz por exercício de raciocínio e que tal valor engloba o IVA à taxa de 23%;
L – Esse valor desdobra-se num valor a pagar sem o Imposto de Valor Acrescentado (em futuras referências, somente IVA) que é €5.187,45 (cinco mil e cento e oitenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos) e num segundo valor de €1.193,11 (mil cento e noventa e três euros e onze cêntimos) calculado pela aplicação de da taxa de IVA a 23% sobre aquele primeiro valor;
LI – Podendo tal facto se retirar da factura junto aos Autos como documento n.º 11, folhas 1 e 2, pela Recorrida/Autor aquando da propositura da acção, através da sua Petição Inicial;
LII – Esteve mal o Tribunal a quo, em condenar em quantia diversa desta outra no valor de €5.187,45 (cinco mil e cento e oitenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos), a qual é líquida de IVA
LIII – Ao não se considerar tal e atendendo a que a Recorrida/Autora já deduziu o IVA na sua contabilidade e, assim, sendo, comportaria um enriquecimento sem causa por parte da Recorrida/Autora, gerando um sentimento de dupla penalização na Recorrente/Ré;
LIV – Assim, sendo e reiterando o que supra foi alegado, a haver condenação num valor, o que só por mero exercício de raciocínio se admite, o mesmo deverá ser sem contemplar o IVA à taxa de 23%, ou seja, de €5.187,45 (cinco mil e cento e oitenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos) e ao qual se deverão aplicar o calculo dos juros pugnados nos precisos termos alegados, ou seja, que tais juros só serão devidos desde da data da prolação de sentença até efectivo pagamento e que desde já se requer;
ASSIM, NESTE TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE A PRESENTE DECISÃO EM CRISE SER REVOGADA EM PARTE E SENDO SUSBTITUIDA NOS SEGUINTES TERMOS E SER A RECORRENTE ABSOLVIDA DA PRESENTE ACÇÃO NOS TERMOS QUE SE REQUEREM:
A) O facto C) deve manter a redacção constante da douta Sentença, mas, constar dos factos provados “O veio do pinhão de ataque do veículo de matrícula …-…-… andava fendido antes do descrito em 9) do elenco de factos provados.”
E o facto G) Deve passar a ter a seguinte redacção e ser considerado como facto provado:
“O diferencial/transmissão do veículo de matrícula …-…-… partiu-se por torção.”
B) Verificada que está uma forte e evidente causa de exclusão do contrato de garantia, pelo facto de não terem sido respeitadas as indicações estipuladas de forma grosseira e negligente deverá ser a Recorrente/Ré absolvida da presente acção, o que desde já se requer.
C) Caso assim não se entenda, o que só se admite por mero exercício de raciocínio e admitindo por hipótese o pagamento de juros sobre a quantia decidida no valor de €6.380,56 (seis mil trezentos e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de juros aplicável às operações civis, actualmente fixada em 4%, REQUERE-SE que a decisão do Tribunal a quo seja substituída por esta outra em que tais juros só serão devidos desde da data da prolação de sentença até efectivo pagamento.
ou
D) E sempre sem prescindir, se se entender que há um valor devido o mesmo será sem IVA à taxa de 23%, a que corresponde a quantia de €5.187,45 (cinco mil e cento e oitenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos), ao qual se deverão aplicar o calculo dos juros pugnados nos precisos termos alegados, ou seja, em que tais juros só serão devidos desde da data da prolação de sentença até efectivo pagamento, o que desde já se REQUER, devendo a decisão final do valor a pagar ser substituída por uma outra que contemple somente o valor aqui alegado.
Terminou a Ré-Apelante requerendo que seja concedido provimento ao recurso e alterada a decisão em conformidade.
Foi apresentada alegação de resposta e interposto recurso subordinado pela Autora, em que concluiu nos seguintes termos:
1. A Recorrente não se conforma com a sentença proferida na parte em que decidiu absolver a Ré do pagamento de uma indemnização à Autora, a título de paralisação diária da viatura desta, decorrente da avaria sofrida e a qual se encontrava abrangida pela garantia automóvel contratada à Ré;
2. Com efeito, andou bem o tribunal a quo ao condenar a Ré a pagar à Autora o valor de 6.380,56€ (seis mil trezentos e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos) relativo ao valor da fatura de reparação da viatura custeada pela Autora;
3. Contudo, tendo em conta o valor peticionado de 16.900,91€ (dezasseis mil e novecentos euros e noventa e um cêntimos) houve decaimento na decisão proferida, que se fixou para Autora em 62,25%, nomeadamente na quantia de 10.520,35€.
4. Entende a Recorrente que na audiência de discussão e julgamento se comprovou a privação do uso da viatura pela Autora, sendo que tal ocorreu apenas e tão só pela teimosia e intransigência da Ré pois bem sabia esta que a avaria em causa estava coberta pela garantia que lhe fora contratada.
5. Resulta assim evidente a má-fé na postura da Ré, com o claro intuito de “sacudir a água do capote” o que causou à Autora um prejuízo patrimonial decorrente do facto da imobilização da viatura, o que era evitável caso a Ré tivesse desde logo assumido a responsabilidade que sobre si impendia.
6. S.m.o, entende a Recorrente que o depoimento da testemunha D …, que arrolou (sessão de 23-052023, das 11:40 às 12:08) confirmou a impossibilidade do uso da viatura em causa para efectuar as cargas que eram necessárias e que habitualmente fazia, tendo acrescentado ainda que tal ocorreu numa “fase de imenso trabalho”.
7. Pelo que, considera assim a Recorrente que o facto “A) A Autora não conseguia efectuar as cargas de que necessitava devido à avaria da viatura identificada em 1) dos factos provados” indicado nos factos não provados, ficou devidamente provado pelo que deveria ter sido incluído em factos provados.
8. Acresce que, no entendimento da Autora, o facto não provado “B) No período de 13 de julho de 2021 a 26 de agosto de 2021 a ANTRAM tivesse fixado o valor de € 198,91 como valor diário para a paralisação de viaturas pesadas de 26ton até 40ton” da decisão proferida, deveria ter sido dado como provado.
9. É que, o valor diário de 198,91€ peticionado pela Autora como sendo o valor fixado pela ANTRAM não foi impugnado pela Ré, nem na pendência da ação, nem em momento prévio, quer quando foi interpelada por carta da Autora em 27/07/2021 (cfr. documento n.º 9 junto à petição inicial), quer pela sua Mandatária (cfr. documento n.º 13 junto à petição inicial).
10. É certo que o contrato de garantia celebrado não refere qualquer cláusula que constitua a obrigação da Ré assumir perante a Autora a responsabilidade pela privação do uso do veículo, pelo período de tempo em que o mesmo é sujeito a diagnóstico e se proceda à respectiva reparação, no entanto, certo é que a privação do uso pela Autora ocorreu por causa claramente imputável à Ré, pelo que deverá aquela ser ressarcida por esta.
11. A este respeito, invoca-se o teor de douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2125/18.7T8VNF.G2, que dispõe que:
“I. A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem, e esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.
II. Não há impedimento à cumulação das indemnizações pelo dano patrimonial que se traduz em efetiva lesão do correspondente direito real de propriedade, e pelo dano de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, e que se traduz na sua afetação moral, desde que não sejam os mesmos factos a suportar ambas as indemnizações.
III. Para o computo da indemnização por não uso, deve recorrer se à equidade, na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo – artigo 566.º, n.º 3, do C.C.
IV. No juízo equitativo recorre-se, além do mais, à boa fé e a juízos de razoabilidade, pelo que não se coloca nem a questão de enriquecimento ilegítimo do lesado, nem do abuso de direito.”
12. Pelo que é manifesto que recai sobre a Ré a responsabilidade de indemnizar a Autora tendo em conta o tempo de privação do uso da viatura, os actos que deixaram de ser praticados, designadamente as cargas que não foi possível efectuar, o que se refletiu na evidente perda de ganho pela Autora.
13. E, caso não o fosse nos exatos e precisos termos em que foi peticionado pela Autora – o que por mera hipótese de raciocínio se equaciona - sempre se dirá que o deveria ter sido da forma que o tribunal julgasse mais equitativa, nos termos previstos no disposto no artigo 566.º n.º 3 do Código Civil.
Terminou a Autora requerendo que o recurso interposto pela Ré seja julgado totalmente improcedente e que o recurso interposto pela Autora seja julgado totalmente procedente, sendo, em conformidade, a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de 16.900,91€.
A Ré apresentou alegação de resposta ao recurso subordinado, em que pugnou pela improcedência deste, concluindo nos seguintes termos (reproduzimos a parte útil):
I – O recurso subordinado apresentado pela Recorrente, outrora Autora, da Douta Sentença recai na decisão do Tribunal a quo em não condenar a Ré, a aqui agora Recorrida, no montante de €10.520,35 (dez mil quinhentos e vinte euros e trinta e cinco cêntimos) a título de paralisação diária da viatura;
II – Alegando em síntese que “(…)”
III – A Recorrente pretende que os factos não provados, A) e B), sejam dados como provados e, em consequência seja a Recorrida condenado a pagar o valor indemnizatório peticionado pela aquela;
III – A Recorrida, adianta antes demais, que considera que o Tribunal a quo, decidiu bem como decidiu, decisão essa com a qual concorda quanto aquela matéria, elencada nos factos não provados e melhor descritos nas alíneas A) e B);
IV – Por quanto, note-se, que o Contrato de Garantia celebrado entre a Recorrente e a Recorrida não cobre, em todo o seu clausulado, qualquer responsabilidade pela privação de uso da viatura segurada naquele contrato, incluindo o tempo em que se procede ao diagnóstico e eventual reparação;
V – E que tal é do total conhecimento da Recorrente, que tem obrigação de saber por força das clausulas de exclusão patentes no contrato de garantia, cuja cópia se encontra junto aos Autos como documento n.º 1 da Contestação;
VI – E, em consequência não existe, nem nunca existiu obrigação de indemnizar a Recorrente, por parte da Recorrida, por tal imobilização;
VII – Além de que a Recorrente não conseguiu provar por falta de suporte factual e em lugar nenhum da sua petição inicial de que a avaria que ocorreu na viatura em causa veio a ter reflexo na sua actividade, ou seja, quais os trabalhos que não foram efectuados ou outros que provocassem uma diminuição de facturação ou acréscimo de despesas;
VIII – Não teve ensejo de provar que houve uma verdadeira e efectiva perturbação na sua laboração e facturação no período em causa, demonstrando, e.g., que recorreu a outras viaturas do seu parque ou a um aluguer de uma viatura idêntica, fazendo prova do mesmo, o que, também, não o fez;
IX – O pedido de indemnização é descabido por falta de fundamento contratual, factual e legal, sendo exagerado e desprovido de equidade e de proporcionalidade, e completamente afastado do princípio da proporcionalidade e razoabilidade;
X – Considerando-se – mas sempre sem prescindir – assim, para que fosse dado como provado o facto A) dos “Factos não provados”, seria imperioso que a Recorrente tivesse junto, em tempo, prova de que, por força da avaria e consequente paralisação, tal factualidade se refletisse na sua actividade económica, quer numa redução de actividade e facturação, quer num aumento de despesa;
XI -No que ao facto não provado B), diz respeito, foi o mesmo bem decidido pelo Tribunal a quo, dando-se aqui por reproduzido o que este Tribunal doutamente fundamentou, ou seja, a Recorrente suportou o seu cálculo numa simples folha de papel, sem qualquer validade, reportando-se a um período completamente desfasado do período em que ocorreram os factos, cujo teor foi retirado, ao que se julga, de uma página da internet da associação ANTRAM, de acesso restrito, não permitindo a sua consulta pública;
XII – Nas suas Alegações, em sede de recurso subordinado, a Recorrente alega que e porque se o Tribunal a quo, não decidiu (e bem que não decidiu!) nos termos peticionados, deveria o mesmo ter optado por uma indemnização nos termos do disposto do n.º 3 do artigo 566º do Código Civil;
XIII – Insurge-se a Recorrida perante tal alegação por este pedido ser extemporâneo, pelo mesmo não ter sido feito na Petição Inicial, fosse como pedido alternativo ou subsidiário, nos termos dos artigos 553º e 554ºdo Código de Processo Civil, sendo certo que não o fez;
XIV – Bastando para tal, perscrutar a Petição Inicial e retira-se que a Autora, a aqui Recorrente, em parte nenhuma alegou, nem de facto nem de direito de modo a fundamentar a sua pretensão, com fundamento no n.º 3 do artigo 566º do Código Civil, nem tão pouco concluiu o seu pedido com aquele fundamento;
XV – Nesse sentido, a Requerida considera que uma eventual resposta pelo Tribunal ad quem, sobre pedidos que não integraram a causa de pedir, será sempre excessivo e que por tal, não podem ser considerados na sua apreciação e consequente decisão;
XVI – A Recorrente subscreve a tese de que: “As questões novas suscitadas pela parte apenas em sede de recurso, que não foram alegadas oportunamente, nem consideradas pelo tribunal, nos termos do art.º 608 nº 2 do Código de Processo Civil, não podem por isso ser levadas em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal de recurso.”
XVII – Em conclusão, está em conformidade com o Direito a decisão do Tribunal a quo, no sentido em que absolve a Requerida no montante reclamado pela Recorrente a título de indemnização por privação do uso do veículo, na medida em que não prevê o contrato de garantia a responsabilização da Requerida de tal privação, por um lado;
XVIII – E por outro lado, a fundamentação na norma do n.º 3 do artigo 566º do Código Civil que em alternativa foi somente apresentada em sede do presente recurso subordinado, é extemporâneo e excessivo por não ter sido feito (nem alegado) a quando da propositura da acção pela Recorrente;
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
Do recurso independente (interposto pela Ré)
1.ª) Se devia ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos vertidos nas alíneas C) e G);
2.ª) Se a Ré não está obrigada a pagar a quantia atinente ao custo da reparação da viatura, por não ser devido o IVA e se verificarem duas causas de exclusão da garantia, designadamente a avaria resultar de negligência da Autora e esta não ter observado o procedimento contratualmente previsto após a ocorrência da avaria;
3.ª) Se não são devidos os juros de mora sobre o valor total (IVA incluído) do custo da reparação calculados desde a data da citação, mas apenas desde a data da sentença.
Do recurso subordinado (interposto pela Autora)
4.ª) Se a decisão da matéria de facto deve ser modificada, dando-se como provados os factos vertidos nas alíneas A) e B);
5.ª) Se a Ré está obrigada a pagar à Autora uma indemnização pela paralisação diária da viatura, no valor peticionado ou outro que seja considerado equitativamente adequado.

Dos Factos

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [acrescentámos, em 14), 15) e 21) o que consta entre parenteses retos, para melhor compreensão, estando plenamente provado]:
1) A Autora é proprietária do veículo pesado de matrícula …-…-…, com o n.º de chassis …, marca MAN, modelo …/ …, que adquiriu a V…, Lda. em 3 de abril de 2017.
2) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à “manutenção e reparação de veículos automóveis, máquinas e equipamentos industriais, peças e acessórios. Prestação de serviços de garantia automóvel (garantia das peças objecto de manutenção e reparação). Compra e venda de veículos automóveis ligeiros)”.
3) Aquando da aquisição do veículo, a Autora aderiu ao acordo denominado “Garantia Truck Plus”, celebrado entre a V …, Lda. e a Ré, nos termos do qual a Ré assumiu a responsabilidade por avarias do veículo identificado em 1), até 3 de abril de 2023.
4) Nas circunstâncias descritas em 3), a Autora recebeu o documento junto a fls. 17, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, com as condições e exclusões da denominada “garantia” dada à viatura pela Ré.
5) Nos termos do aludido documento, a denominada “Garantia Truck Plus” abrange, além do mais, as seguintes avarias:
Diferencial/Transmissão
Todas as peças lubrificadas no interior da ponte (excepto Semi-Eixos e Engrenagens Redutoras)
Rolamentos, Roda de coroa, pinhão de ataque, planetários, satélites, veios anilhas freios.
Veio de Transmissão, Cardan, Junta homocinética.
Prato de embraiagem, (exceto se danificado por disco) bombas principal e secundária de embraiagem”.
6) Mais consta do referido documento, que a denominada “Garantia Truck Plus” abrange igualmente:
“Mão-de-obra
Necessária à reposição da viatura no estado, antes da avaria.”.
7) Consta ainda de tal documento o seguinte:
Limites e Exclusões
1. Até ao limite de 9900€+iva por intervenção
2. Estão excluídas todas as avarias resultantes da falta de fluidos, de refrigeração, lubrificação, regeneração de gases e outros.
3. A garantia cessa automaticamente sempre que seja atingido o valor venal da viatura.
4. A garantia cessa desde que ultrapassados os limites de intervenção sugeridos pelo construtor e/ou manutenção executada fora da rede de oficinas G … Lda.; ou do construtor.
5. A G … Lda.; declina qualquer responsabilidade, sempre que as avarias, ao abrigo desta garantia sejam claramente resultantes de uso indevido ou negligente, bem com utilização diferente daquela prevista pelo fabricante
6. A G … Lda.; declina qualquer responsabilidade, sempre que as avarias, ao abrigo desta garantia sejam reparadas antes da autorização ou tomada de conhecimento da G … Lda.;.”.
8) No seguimento do referido em 3), no dia 5 de maio de 2017, a Ré remeteu à Autora o documento cuja cópia se encontra junta de fls. 102 a 109, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, do qual consta nomeadamente o seguinte:
“CONDIÇÕES GERAIS
EM CASO DE AVARIA
1 - Imobilizar o imediatamente o veículo.
2 - Contactar pelo meio mais rápido a G … Lda.; com uma descrição sumária da avaria e/ou sintomas
3 - Enviar o veículo utilizando a sua assistência em viagem para a oficina da rede G … Lda, mais próxima.
4 - Formalizar com a maior brevidade possível a apresentação da reclamação via e-mail.
AS MANUTENÇÕES
1 - As manutenções terão de ser efetuadas obrigatoriamente na rede de oficinas G … Lda; ou num concessionário da marca em território Nacional.
Fora de fronteiras as manutenções serão efetuadas em qualquer oficina OBRIGATORIAMENTE de acordo com o plano previsto pelo construtor.
2 - A cada 400.000kms o utilizador obriga-se a efetuar manutenção/verificação do estado do(s) Turbo-Compressor(es) e sistema de injeção, devendo comprová-lo com a apresentação de fatura.
A RESPONSABILIDADE DA G … Lda;
1 - A G … Lda; aceita ou declina uma reparação no prazo inferior a 3 horas, após a receção de diagnóstico.
2 - As reparações no âmbito da garantia são efetuadas por num prazo inferior a 48horas, salvo rutura de stock de peças ou outros componentes nos fabricantes e/ou fornecedores.
3 - Os limites por cada intervenção são aqueles contratados para cada produto sendo o eventual remanescente liquidado pelo cliente no ato de entrega da viatura reparada.
4 - A Garantia cessa logo que seja ultrapassado o valor venal da viatura.
5 - A G … Lda; não se responsabiliza por eventuais prejuízos diretos ou indiretos causados pela avaria.
6 - A garantia G … Lda; não cobre itens de desgaste rápido (...).
7 - A garantia cessa sempre que sejam ultrapassados os limites de manutenção definidos pelo construtor, utilização do veículo para fins diferentes do previsto pelo fabricante, alterações mecânicas e ou estruturais não certificadas e/ou com autorização da G … Lda.; sobrecarga ou esforço mecânicos diferente do previsto pelo fabricante”.
9) No dia 12 de julho de 2021, o diferencial/transmissão do veículo de matrícula …-…-… partiu-se, impedindo a sua circulação.
10) Nesta sequência, a Autora chamou o reboque ao local, tendo solicitado a condução do veículo à Oficina Concessionária da marca de viaturas pesadas MAN, A.C. M …  e C … de V …, S.A. sita em …, Alcobaça, onde deu entrada nesse mesmo dia.
11) No dia 13 de julho de 2021, através de e-mail, de que se encontra junta cópia a fls. 18, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, a Autora solicitou à Ré que acionasse a garantia da viatura.
12) Em resposta à comunicação da Autora, a Ré remeteu-lhe, em 14 de julho de 2021, o e-mail de que se encontra junta cópia a fls. 19, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, designadamente com o seguinte teor:
“(...) Determinam as nossas condições gerais que em caso de avaria, ou suspeita da mesma os utilizadores/proprietários dos veículos comuniquem à G … Lda., essas mesmas anomalias pelos meios ao dispor, telefone ou email, antes de deslocar a viatura a qualquer oficina, seja ela da rede ou não, sendo posteriormente os nossos serviços a indicarem a oficina para verificação.
Contudo, e para iniciarmos o processo de reclamação de eventual avaria deverá informar-nos o seguinte:
· Kms atuais e precisos da viatura
· Breve resumo dos sintomas que a viatura apresentou
· Desde quando foram sentidos os sintomas referidos
· Cópia do certificado de garantia
· Cópia das faturas de revisão referente a 2018 e 2019
· Cópia de todas as IPO efetuadas
(...)”.
13) Nessa mesma data, a Ré remeteu novo e-mail à Autora a solicitar o documento de reboque de transporte da viatura para a oficina.
14) Em resposta aos e-mails indicados em 12) e em 13), a Autora, nessa mesma data, remeteu à Ré o e-mail de que se encontra junta cópia a fls. 21 dos presentes autos, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido [indicando-lhe, além do mais, que os documentos da viatura estavam no interior da mesma, mas que os anexava, bem como fotografia dos Km atuais: “355769 kms”].
15) Nesse seguimento, a Ré procedeu à peritagem desta viatura na Oficina MAN, A.C. M … e C … de V …, S.A., tendo-lhe sido facultado o orçamento previsional da reparação da mesma, com o n.º …, de 21 de julho de 2021, no valor de 7.304,39 € [IVA incluído].
16) No dia 21 de julho de 2021 a Ré remeteu à Autora o e-mail de que se encontra junta cópia a fls. 112, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, designadamente com o seguinte teor:
“Após a peritagem efetuada ao veículo, deteta-se que o veio do diferencial se encontra partido por torsão, ou seja, por excesso de esforço.
Este excesso de esforço é compatível com o excesso de carga que se encontra documentado nos diferentes documentos enviados pelos vossos serviços.
Assim informamos que:
· Declinamos a responsabilidade na reparação por utilização indevida/negligente. Outros motivos:
· Deslocação á oficina e autorização de desmontagem de componentes antes da participação de avaria.
Mais se informa que por ser a 2.ª incidência verificada na cadeia cinemática do veículo pelos mesmos motivos, excesso de esforço, revogamos a Garantia deste veículo não produzindo a mesma qualquer efeito a partir deste momento.”.
17) Não conformada com tal decisão, a Autora enviou, no dia 27 de julho de 2021, à Ré, por correio registado, a carta de que se encontra junta cópia a fls. 24, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, da qual consta designadamente o seguinte:
“(...) os srs declinaram a responsabilidade de assumir em garantia a referida reparação, decisão que não aceitamos pois não existe qualquer fundamento para a mesma.
Assim, serve a presente carta para vos informar que dispõem de 3 dias após a receção da presente carta, para assumirem a garantia da viatura e ordenarem a sua reparação junta da oficina onde a mesma se encontra ou outra que nos indiquem dentro do mesmo prazo, findos os quais iremos proceder à reparação da mesma e debitar aos Sra os respetivos custos.
Mais informamos que ao abrigo da tabela de paralisação da Antram, será devida à nossa empresa o valor diário de 198,91€, a partir do dia 13/07/2021, (data em que foram informados da avaria da mesma) até à viatura estar reparada, o que à presente data consubstancia o valor de 2.585,83 acrescida do respetivo iva, valor que desde já reclamamos.
(...)”.
18) Não tendo obtido qualquer resposta à aludida carta por parte da Ré, a Autora deu de imediato ordem de reparação da viatura oficina à A.C. M … e C … de V …, S.A..
19) À data a A.C. M … e C … de V …, S.A. era uma das oficinas parceiras da Ré e por esta recomendada, informação que constava do respetivo site.
20) A reparação da viatura ficou concluída em data não posterior a 26 de agosto de 2021.
21) O custo da reparação da viatura em apreço foi de 5.187,45 €, acrescido de IVA [no valor de 1.193,11 €], o que perfaz o valor total de 6.380,56 €.
22) A Autora procedeu ao pagamento da aludida reparação à A.C. M … e C … de V …, S.A..
23) Consta do certificado de matrícula do trator do veículo identificado em 1) o seguinte:
“(F.2) Peso bruto em circulação nacional: 040000”
“(X.1) Pneumáticos à frente 315/80R22.5”
“(X.2) Pneumáticos à retaguarda 315/80R22.5”
“(Z.3) Anotações especiais:
P.B. CONJ. 44TONS; PNEUS 315/70R22.5, FRT 385/65R22.5, 385/55R22.5”.
24) A Autora, num número não determinado de ocasiões, transportou cargas com o peso bruto de 44 toneladas.
25) A data da primeira matrícula do veículo identificado em 1) é de 28-01-2016.
26) O óleo do diferencial do aludido veículo deve ser substituído de 3 em 3 anos ou 300.000 km, se a valvulina não for sintética, ou 500.000 km se for sintética.
27) Em 25 de março de 2019, quando o veículo registava 161.305 Km, a Autora procedeu à substituição do óleo do diferencial e demais trabalhos discriminados na fatura que se encontra junta a fls. 135, para cujo teor se remete e aqui se dá reproduzido.

Na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos (assinalámos com asterisco os pontos impugnados nos recursos):
*A) A Autora não conseguia efetuar as cargas de que necessitava devido à avaria da viatura identificada em 1) dos factos provados.
*B) No período de 13 de julho de 2021 a 26 de agosto de 2021 a ANTRAM tivesse fixado o valor de 198,91 € como valor diário para a paralisação de viaturas pesadas de 26ton até 40ton.
*C) O veio do pinhão de ataque do veículo de matrícula …-…-… andava fendido antes do descrito em 9) do elenco de factos provados.
D) Os pneus do veículo de matrícula …-…-… foram substituídos após o descrito em 9) da matéria de facto provada.
E) O veículo identificado em 1) do elenco de factos provados não circulava com pneus com as medidas especificadas para o transporte de carga com o peso bruto de 44 toneladas.
F) Antes do descrito em 9) do elenco de factos provados o veículo emitia um ruído que foi ignorado pelo motorista.
*G) O diferencial/transmissão do veículo de matrícula …-…-… se tenha partido por torção.

Da modificação da decisão da matéria de facto

Alínea A)
Na sentença recorrida motivou-se o decidido a este respeito, referindo designadamente que:
«Na formação da sua convicção, o Tribunal tomou em consideração todas as provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento, em conjugação com o teor dos documentos juntos aos autos, prova vista e apreciada à luz das regras de experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, excepto quanto aos factos para cuja prova a lei exige formalidade especial ou que só admitem prova documental e, bem assim, quanto aos já plenamente provados, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil e sem perder de vista as regras de repartição do ónus da prova (cfr. artigo 414.º do Código de Processo Civil e nos artigos 342.º a 344.º do Código Civil).
(…) A factualidade não provada resultou da ausência ou insuficiência de prova susceptível de a revelar, o que foi valorado de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova, ou da circunstância da prova produzida apontar para uma realidade distinta.
Desde logo, no que se reporta à factualidade vertida em A), a Autora não juntou qualquer prova de que a “avaria” da viatura se tenha repercutido na capacidade de prosseguir a sua actividade (actividade que nem mesmo se encontra devidamente caracterizada), desde logo com recurso a outras viaturas que eventualmente tivesse ao seu serviço, conduzindo a uma efectiva diminuição do volume de negócios, sendo manifestamente insuficiente para alicerçar uma convicção segura a este nível a mera alusão do legal representante da Autora e da testemunha D … à circunstância de terem urgência na reparação e de se tratar de uma “fase de imenso trabalho”, como referiu esta testemunha.»
Defende a Autora que o facto vertido em A) deve ser dado como provado, por ter ficado demonstrado que esteve privada de poder utilizar a viatura em razão da avaria durante o tempo em que a mesma esteve paralisada (a aguardar que a Ré assumisse a garantia), considerando o depoimento da testemunha D …, que confirmou a impossibilidade de utilização da viatura para a realização das cargas necessárias, como habitualmente fazia, sendo que na altura se tratava de uma “fase de imenso trabalho”.
Vejamos.
É evidente a falta de razão da Autora.
Efetivamente, não se discute que, devido à avaria, a Autora deixou de poder utilizar a viatura em apreço, enquanto a mesma não foi reparada. O que se discute é se por causa disso, (isto é, por causa da avaria) a Autora não conseguiu efetuar as cargas de que necessitava.
Ora, nem do depoimento prestado pela aludida testemunha, nem nas declarações do legal representante da Autora (marido desta testemunha) resulta que isso tenha sucedido, tendo ficado por demonstrar que serviços concretos - solicitados à Autora - tenham sido rejeitados, ab initio ou depois de terem sido adjudicados, por não poder ser utilizada a viatura avariada, não existindo nenhuma outra disponível para os assegurar.
Acresce que, não obstante o referido por aqueles (legal representante e testemunha), parece-nos que se tais factos tivessem efetivamente sucedido (com serviços concretos a ficarem por realizar), o mais normal seria - considerando o que nos parece ser o modo habitual de funcionamento de uma empresa de transportes - que existissem emails (ou faxes) trocados com clientes dos quais isso resultasse, mormente mensagens da Autora em que dava conta da impossibilidade de realizar o serviço de transporte solicitado por falta de viatura disponível.
Assim, concorda-se com a apreciação que foi feita pelo Tribunal recorrido, inexistindo prova do facto em apreço, pelo que improcede, neste particular, a impugnação da decisão da matéria de facto.

Alínea B)
Na sentença recorrida motivou-se o decidido a este respeito, além das considerações iniciais acima citadas, nos seguintes termos:
“Por sua vez, a matéria de facto descrita em B) redundou não provada por ser manifestamente inidónea à demonstração de tal facto a junção de uma folha simples, sem qualquer assinatura e que nem mesmo se sabe de onde foi extraída, referente aos anos de 2009 a 2015 (período que não está aqui em causa) e que, em todo o caso se reporta a um acordo específico entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores. Neste circunspecto, cumpre ainda referir que, como dá nota o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/05/2023 (proc. n.º 7772/20.4T8LSB.L1-2, acessível no endereço https://outrosacordaostrp.com/2023/05/30/ac-do-trl-de-25-05-2023-proc-7772-20-t8lsb-tractor-reboqueparalisacao-penalidades-dos-artigos-38-2-e-48-4-do-dl-291-2007-juros/) esse acordo não é livremente acessível na internet, já que tal está dependente de um registo no sítio da ANTRAM.”
Defende a Autora que o facto vertido em B) deveria ter sido dado como provado, uma vez que, segundo alega, o valor diário de 198,91€ peticionado pela Autora como sendo o valor fixado pela ANTRAM não foi impugnado sequer pela Ré, nem mesmo quando esta, já antes tinha sido interpelada quer pela Autora, por carta enviada no dia 27 de julho de 2021 (cf.  documento n.º 9 junto à Petição Inicial), quer pela sua mandatária, através de carta de interpelação (cf. documento n.º 13 junto à Petição Inicial).
Apreciando.
É evidente que a mera circunstância de a Autora, através das cartas cujas cópias juntou com a Petição Inicial (docs. 9 e 13), ter interpelado a Ré nos termos aí referidos, mencionando, além do mais, que considerava ser devido o valor diário de 198,91€, ao abrigo da “tabela de paralisação da ANTRAM”, não serve para comprovar o facto em apreço, que foi alegado no art.º 15.º da Petição Inicial, tendo sido expressamente impugnado pela Ré na sua Contestação (cf. art.º 23.º).
A demais prova documental apresentada a este respeito (a folha junta como doc. 14 com a PI, que não está assinada, desconhecendo-se a sua proveniência) também não é suficiente para que possamos formar uma convicção segura a respeito do facto em causa.
Assim, improcede nesta parte a impugnação da decisão da matéria de facto.

Alíneas C) e G)
Lembramos que foram considerados não provados os seguintes factos:
C) O veio do pinhão de ataque do veículo de matrícula …-…-… andava fendido antes do descrito em 9) do elenco de factos provados.
G) O diferencial/transmissão do veículo de matrícula …-…-… se tenha partido por torção.
Na sentença recorrida motivou-se o decidido a este respeito, além das considerações iniciais acima citadas, nos seguintes termos:
«Sob outra perspectiva, sendo sobre a Ré que impendia o ónus da prova da factualidade descrita de C) a G), a prova que a mesma apresentou para suportar tais factos – essencialmente as declarações de parte do legal representante da Ré e o depoimento da testemunha E …, em conjugação com o denominado “parecer técnico automóvel” e com um conjunto de fotografias da viatura/peça danificada – mereceu bastantes reservas ao Tribunal.
Desde logo, quanto às declarações de parte do legal representante da Ré importa notar que, se bem que as declarações de parte sejam um meio de prova atendível, pela sua própria natureza, as mesmas são pouco ou nada objectivas, pelo que, em regra, não são susceptíveis de, desacompanhadas de meios de prova auxiliares, permitir alicerçar uma convicção segura relativamente aos factos.
Como se plasmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/09/2014 (proc. n.º processo n.º 216/11.4TUBRG.P1, acessível em www.dgsi.pt), em cuja posição nos revemos, “(…) as declarações de parte – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado (..). As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos. Por estas razões, (..) e inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, o mesmo não deve ser valorado, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório e que as acções se decidam apenas com as declarações das próprias partes”.
Ora, importa notar que F … se posicionou quase como um perito na matéria, tendo sido o próprio, como referiu, quem inspeccionou a viatura, sem que, contudo, ademais da sua experiência no ramo automóvel, exista notícia de que tenha particulares conhecimentos ao nível da mecânica.
Acresce que, em contraponto ao que afirmou o legal representante da Ré, as testemunhas A … e B …, respectivamente chefe e director da oficina para onde a viatura foi conduzida e onde era realizada a sua manutenção, estes sim com conhecimentos técnicos na matéria, o primeiro por virtude das funções e o segundo também devido à sua formação académica (engenheiro mecânico), sustentaram de forma uníssona que não era possível afirmar qual a causa da avaria, designadamente que fosse uma das aventadas pela Ré, não sendo o mero exame da peça suficiente para alicerçar uma convicção segura a esse nível, infirmando, assim, a testemunha B … o declarado pelo legal representante da Autora quanto à conclusão “conjunta” a que alegadamente teriam chegado aquando da sua deslocação à oficina. Cumpre referir que estas testemunhas não têm qualquer relação directa nem com a Autora nem com a Ré, inexistindo ademais motivos para considerar que a relação profissional que a sua entidade patronal mantinha com uma das partes era mais relevante do que a mantida com a outra, em termos que permitissem colocar em causa a isenção dos respectivos depoimentos.
Mais há que atentar que estas testemunhas referiram igualmente que não houve qualquer troca de pneus após a entrada da viatura na oficina, ao contrário do afirmado pelo legal representante da Ré, que, para sustentar tal facto, juntou um conjunto de fotografias, mas que nem mesmo é possível fazer corresponder ao veículo em apreço. Ora, neste circunspecto desde logo não se vislumbra porque razão a Autora, sem mais, iria, imediatamente após a avaria, trocar os pneus da viatura, antecipando um diagnóstico que os próprios técnicos da oficina reparadora sustentam que não é possível fazer. Mais, se a Autora fizesse menção nas guias de transporte a que transportava uma carga para a qual não dispunha de pneus adequados, estava desde logo a colocar-se sob a mira das autoridades rodoviárias fiscalizadoras, o que é pouco consistente, sendo do conhecimento comum o número de fiscalizações a que estas viaturas pesadas são sujeitas.
Sob outra perspectiva, o depoimento da testemunha C -…, perito averiguador que presta serviços para a Ré, tendo, nesse âmbito, subscrito o denominado “parecer técnico automóvel” de fls. 45 a 58, revelou-se pouco consistente, sendo, desde logo, de assinalar que o referido parecer foi elaborado sem que a testemunha tenha, em algum momento, inspeccionado a viatura, como seria expectável que fizesse, circunstância que o próprio admitiu que poderia conduzir a um maior rigor na elaboração daquele parecer.
Acresce que, analisado tal “parecer”, não pode deixar de se assinalar que, à semelhança do depoimento do seu subscritor, o mesmo é bastante especulativo, aventando várias hipóteses alternativas e concorrentes, que em comum apenas têm a circunstância de conduzirem à desresponsabilização da Ré.
De outra banda, não pode deixar de se assinalar a pouca consistência da referência uníssona do legal representante da Ré e da testemunha C … à circunstância de ter sido este parecer a fundar a posição da Ré quanto ao declinar da responsabilidade perante a Autora, sustentando que, não obstante o parecer apenas tenha sido redigido posteriormente, a peritagem já estava concluída e o respectivo resultado transmitido naquela data, quando é certo que, desde logo, os e-mails que instruem aquele parecer têm data posterior a tal tomada de posição da Ré (cfr. fls. 61 a 64), o que evidencia que a averiguação ainda não se encontrava concluída quando foi declinada a responsabilidade.
Isto posto, e uma vez que fotografias juntas pela Ré, sem mais, não permitem ao Tribunal sustentar a convicção de que a avaria tenha ocorrido pelas razões que a mesma indicou, em consonância com o declarado pelas testemunhas A … e B …, não restou a não ser considerar a factualidade sob apreço como não provada.»
A Ré defende que os factos vertidos em C) e G) devem ser considerados provados, discordando da valoração que o Tribunal a quo fez da prova produzida, por ter atribuído maior credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas A … e B … (respetivamente chefe e diretor da oficina onde a viatura foi reparada) do que às declarações do legal representante da Ré e ao depoimento da testemunha E …; no entender da Ré, estes últimos, deram conta da sua experiência adquirida no ramo automóvel ao longo de mais de 40 anos, superior à daquelas testemunhas, pelo que lhes deveria ter sido dado “mais peso”, atendendo-se ao que foi dito pelo legal representante da Ré (designadamente ao referir: “quando eu fui à oficina e em conversa com o Engenheiro B …, imediatamente chegamos os dois a um entendimento do que é que estava ali tinha sido partido por torsão”); acrescenta a Ré que, pese embora a impercetibilidade da gravação do depoimento da testemunha C …, resulta do relatório por si elaborado e consonante com o seu depoimento, que o veio do pinhão de ataque já estava fendido, o que levou a que o diferencial/transmissão da viatura se tenha partido por torção, devido ao uso de carga de excessivo, ficando claro que a avaria decorreu de um uso negligente contrária às especificações do fabricante, que indicava que a viatura tinha uma carga máxima de 40 toneladas e não uma carga máxima de 44 toneladas, carga máxima essa que a Autora admitiu que ultrapassava frequentemente, porque com base na legislação poderia fazê-lo, usando pneus de uma determinada medida.
Apreciando.
Em primeiro lugar, não é verdade que a Autora (nos seus articulados) ou o seu legal representante, aquando do depoimento que prestou, tenha dito que ultrapassava frequentemente a carga máxima. O que foi dito por este último é que a carga máxima do conjunto era 44 toneladas - correspondendo ao somatório da carga propriamente dita, do “trator” do camião e da galera/ reboque do “camião” - e que esse limite não era ultrapassado, considerando a carga máxima que em regra transportava de 28.000 toneladas. Aliás, está provado (cf. ponto 23), sem que a Ré o tenha impugnado, que nas anotações especiais da viatura consta o seguinte: “P.B. CONJ. 44TONS; PNEUS 315/70R22.5, FRT 385/65R22.5, 385/55R22.5”, resultado assim demonstrado que efetivamente o limite máximo do peso bruto do conjunto era 44 toneladas.
Desde já adiantamos também que acompanhamos inteiramente as considerações feitas pelo Tribunal recorrido na valoração que faz da prova produzida.
Efetivamente, não obstante a experiência que o legal representante da Ré disse ter no ramo automóvel, o certo é que depôs de forma que se nos afigurou parcial e interessada. Veja-se, por exemplo, que invocou, para corroborar a sua perspetiva sobre as causas de o diferencial da transmissão se ter partido, uma conversa com o Engenheiro B … (passagem citada pela Ré), mas este último negou que a conversa tenha sido como aquele a descreveu.
O depoimento da testemunha E … também não nos mereceu a credibilidade que a Ré lhe pretende atribuir. Esse depoimento, cuja gravação não é impercetível, apenas obrigando a sua audição a um esforço considerável para ser entendida, não acrescentou nada de relevante ao documento 6 junto com aos autos com a Contestação, ficando claro que a testemunha nem sequer se deslocou à oficina para ver a viatura, tendo-se limitado a elaborar, a pedido da Ré, um relatório com base nos documentos que lhe foram enviados, mormente fotografias (que, como disse a testemunha A …, foram tiradas pelo legal representante da Ré quando este último se deslocou à oficina).
De salientar que este relatório (doc. 6 junto com o requerimento de 26-11-2021) não constitui um relatório pericial, contrariamente ao que a Ré parece entender, sendo certo que, se a Ré considerava que uma perícia poderia ter sido realizada unicamente com base em tais documentos, nem se percebe por que motivo não a requereu nos presentes autos.
De qualquer forma, o que resulta desse relatório, bem como das afirmações feitas pela testemunha E … quanto às “hipotéticas causas que deram origem à avaria”, não passam de hipóteses não demonstradas, como o “provável excesso de carga” ou a falta de manutenção adequada. Veja-se, por exemplo, o que aí é afirmado:
“(…) não foi efetuada qualquer manutenção ao Grupo Cónico (Diferencial) no tempo de vida do mesmo, 5 anos e quase seis meses e meio (e foi refutado pelas testemunhas A … e  B …, assegurando que isso havia sido feito aos 3 anos), quando a Fábrica Preconiza, que a mudança de Valvulina e Filtro e caso, esta seja de Qualidade Normal, deverá ser mudada ao Fim de três Anos de vida, ou 300.000 Km, situação que ocorrer primeiro.
- No caso de a Valvulina ser Sintética, a Fábrica Preconiza, que a mesma deverá ser mudada, ao Fim de três Anos de vida, ou 500.000 Km, situação que também ocorrer primeiro.
- Ainda e relativamente à Valvulina do Grupo Cónico (Diferencial), desconhecemos que tipo de Valvulina se encontrava no Grupo Cónico em questão, se era Normal, ou era Sintética?
Desconhecemos porque, como nunca existiu substituição desta em qualquer das manutenções efetuadas ao Trator, a Referência e Tipo da Valvulina, não aparece em nenhuma fatura de manutenção, para que pudéssemos saber, que Tipo de Valvulina usava o Grupo Cónico no seu tempo de vida.
(…) Os danos verificados no Grupo Cónico (Diferencial), não são resultantes de uma avaria inesperada, o Veio do Pinhão de Ataque, já andava Fendido á algum tempo, como se pode verificar nas fotos em anexo deste.
- A razão mais plausível no nosso parecer para os danos terem ocorrido, deverá ter resultado devido à Transmissão Central, andar Empenada ou Desequilibrada.
- Eventualmente, os danos também poderão ter ocorrido devido a Esticões Bruscos exercidos pelo condutor do Trator (Camião), ao efetuar os Arranques com o Trator (Camião), quando este está a Transportar Carga com o peso de Lei, ou o mais provável, quando até ultrapassa a Carga Máxima permitida por Lei, situação que é muito comum nos transportadores.
- Além das causas mencionadas nos parágrafos acima, ainda temos a da Falta de Manutenção ao Grupo Cónico (Diferencial) do Trator (Camião), Falta da Mudança de Valvulina e Filtro, que deveriam ser Mudados (Substituídos), dentro dos primeiros Três Anos de Vida do Trator (Camião), conforme a Fábrica Preconiza, a falta de mudança Destes Dois Itens, foi ultrapassada em Mais Dois Anos e Seis Meses e Meio, além do que a Fábrica Preconiza.”
Porém, ficou provado, sem impugnação da Ré, que: (i) o óleo do diferencial do aludido veículo deve ser substituído de 3 em 3 anos ou 300.000 km, se a valvulina não for sintética, ou 500.000 km se for sintética; (ii) a primeira matrícula do veículo é de 28-01-2016; iii) em 25-03-2019, quando o veículo registava 161.305 Km, a Autora procedeu à substituição do óleo do diferencial e demais trabalhos discriminados na fatura junta a fls. 135 (cf. pontos 25, 26 e 27). Ora, não nos parece que o período (inferior a 2 meses) entre a data da matrícula e a data da substituição seja indicativo de falta de manutenção adequada. Pelo contrário, tendo o veículo, à data da avaria (em 12-07-2021) 355.769 Km (cf. ponto 14 e doc. 6 junto pela Ré), não tendo passado 3 anos desde a última intervenção, é evidente que está incorreta a afirmação feita no citado documento, quanto a não ter sido “efetuada qualquer manutenção ao Grupo Cónico (Diferencial) no tempo de vida do mesmo, 5 anos e quase seis meses e meio”.
As testemunhas A … e B … revelaram ter um conhecimento mais direto e completo a respeito de todos estes factos, sendo também evidente que tinham bastante experiência na área da manutenção automóvel, o primeiro, por ser chefe da oficina A.C. M …, S.A., onde disse trabalhar há 20 anos, e para a marca MAN há 25 anos; o segundo, por ser engenheiro mecânico e Diretor de unidade da A. C. M … S.A. desde 2016. Estas testemunhas, não só deram conta da forma (que consideraram ser adequada) como se processou a manutenção da viatura, como puderam observá-la na altura em que esteve na oficina para ser reparada, tendo sido categóricos ao dizerem que não podia ser apontada, no caso concreto, nenhuma causa específica para o sucedido.
O depoimento da testemunha B … foi mais completo e esclarecedor, afirmando que, no caso, considerava impossível concluir se a quebra era por torção ou por fadiga, não podendo dizer que o elemento tivesse sido solicitado por excesso de carga ou de força, salientando não havia evidência de excesso de carga; referiu que, tendo a viatura 5 anos à data da avaria, nem sequer lhe parecia que a quebra fosse prematura, admitindo apenas, como causa da avaria, que a quebra possa ter sido devida ao desgaste natural pelo uso constante da viatura, no transporte de carga pesada, em condições adversas com o típico “para arranca” que é mais usual no transporte nacional do que no transporte internacional.
Por tudo isto, não detetamos, a este propósito, nenhum erro de julgamento, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto.

Da obrigação de pagamento do custo da reparação da viatura

Na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou resultar da factualidade apurada que a Ré celebrou com a empresa que vendeu (à Autora) o veículo pesado de matrícula …-…-… um contrato de garantia, da qual a Autora é beneficiária, adquirindo, assim, esta última o direito à prestação a que a Ré se vinculou, conforme emerge do regime do contrato a favor de terceiro, constante dos artigos 443.º a 451.º do Código Civil. Afirma-se, na sentença, que se trata de um contrato atípico, que surge como uma manifestação da autonomia privada, podendo os contraentes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do Código Civil), dentro dos limites da lei, fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (n.º 1) e ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (n.º 2). Acrescentou-se que, no âmbito deste contrato, a Ré se obrigou perante o vendedor a garantir, em benefício da Autora, a reparação do veículo de matrícula …-…-…, causada por avaria num dos componentes elencados no documento a que se reporta o ponto 5) do elenco de factos provados.
Citou-se o acórdão da Relação de Guimarães de 16-12-2021 (proc. n.º 3268/17.0T8BRG.G2, acessível em www.dgsi.pt), referindo que este contrato de garantia traduz “uma garantia adicional (mas não excluidora da responsabilidade da vendedora), cujos termos, extensão e demais conteúdo é definido exclusivamente pelo contrato. Dito de outro modo, a responsabilidade do garante para com o beneficiário é única e exclusivamente de índole contratual e será nos exatos termos do clausulado que se terá de aferir da bondade da pretensão formulada”, pelo que “As cláusulas que enformam o acordo constituem um sistema autónomo, com vocação autossuficiente”.
No que ora mais releva, salientou-se na sentença recorrida que «o veículo de matrícula …-…-… sofreu uma avaria ao nível do Diferencial/Transmissão, que partiu, pelo que estamos perante uma situação coberta pela garantia contratada, à data em vigor, que confere ao beneficiário, ora Autora, o direito de exigir da entidade garante, ora Ré, a reparação da avaria e faz impender sobre esta a correlativa obrigação, como expressamente decorre do contrato.
Sustentou, porém, a Ré que a sua responsabilidade se encontra excluída, uma vez que a causa da avaria residiria na falta de manutenção e no uso negligente do veículo por parte da Autora, situações que se encontram excluídas do âmbito da garantia.
Com efeito, conforme resulta da factualidade descrita em 6), no âmbito do contrato em apreço, de que a Autora é beneficiária, ficou estabelecido que “Estão excluídas todas as avarias resultantes da falta de fluidos, de refrigeração, lubrificação, regeneração de gases e outros” e, bem assim, que “A G … Lda.,  declina qualquer responsabilidade, sempre que as avarias, ao abrigo desta garantia sejam claramente resultantes de uso indevido ou negligente, bem com utilização diferente daquela prevista pelo fabricante”.
Assim, não há dúvidas que se a Ré tivesse logrado provar o que alegava neste circunspecto, subsistiria um facto impeditivo do direito da Autora (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil).
Sucede que tal não sucedeu, tendo redundado não provada a factualidade susceptível de subsumir qualquer das aludidas cláusulas de exclusão da responsabilidade da Ré.
Não obstante, defendeu ainda a Ré que a circunstância da Autora ter feito deslocar o veículo para a oficina antes de lhe participar a avaria, consubstancia igualmente fundamento de recusa de assunção da responsabilidade pela avaria, atento o procedimento contratualmente estabelecido para estes casos.
Com efeito, está provado que a Autora só comunicou a avaria à Ré quando o veículo já se encontrava na oficina, não tendo assim observado o procedimento previsto no documento a que se alude em 8) – que, a despeito do alegado, se apurou ter sido comunicado à Autora – para o caso de avaria.
Mas ainda que assim seja, a Autora não alegou, e como tal não provou, que as partes tivessem estabelecido, em qualquer cláusula contratual, que a inobservância daquele procedimento determinava a exclusão da responsabilidade da Ré, como pretendido por esta.
Aliás, a própria Ré parece relevar tal omissão, ao solicitar documentos para dar início ao processo de acionamento da garantia, não obstante a inobservância daquele procedimento.
Acresce que, em caso de imobilização forçada de um veículo em consequência de avaria ou acidente, o condutor deve promover a sua rápida remoção da via pública (cfr. artigo 87.º, n.º 1 do Código da Estrada), o que nem sempre será compatível com tal comunicação prévia à Ré.
A pretensão da Ré de que a inobservância do aludido procedimento, para mais quando é certo que a viatura foi conduzida para uma das oficinas por si recomendadas, seria susceptível de excluir a sua responsabilidade, não só não tem cobertura contratual, como sempre haveria que se considerar atentatória do equilíbrio contratual (que deve presidir à interpretação do contrato em caso de dúvida – cfr. artigo 237.º do Código Civil), desconsiderando, sem fundamento razoável, os legítimos interesses da contraparte, como preceitua o princípio da boa fé contratual que vincula ambos os contraentes.
Neste sentido, aliás, apenas se encontra prevista a exclusão de responsabilidade nos casos em que “as avarias, ao abrigo desta garantia sejam reparadas antes da autorização ou tomada de conhecimento da G … Lda,” (cfr. facto 7), situação que não tem paralelo com a suscitada.
Deste modo, não se tendo verificado qualquer fundamento de limitação ou de exclusão da responsabilidade da Ré, tem que se concluir ser a mesma responsável pela reparação da viatura.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei, sendo que, nos termos do n.º 1 do artigo 762.º do mesmo diploma, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
Por sua vez, decorre do artigo 798.º do Código Civil que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelo prejuízo que causa ao credor, estabelecendo o n.º 1 do artigo subsequente que, nestas situações, a culpa se presume. São, pois, pressupostos da responsabilidade contratual: (i) o facto voluntário (acção ou omissão); (ii) violação cometida na relação obrigacional e dentro dos deveres compreendidos na relação de prestação; (iii) relação entre o facto voluntário e a violação de um dever compreendido na relação de prestação; (iv) a culpa (que nestes casos se presume, impendendo sobre o lesante o ónus da prova de que actuou sem culpa).
Não oferecendo dúvidas, face ao supra expendido, que estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade contratual, deve, pois, a Ré ser condenada a pagar à Autora o valor pela mesma despendido na reparação do veículo, em conformidade com o disposto nos artigos 562.º e 563.º do Código Civil.»

Das causas de exclusão da garantia
A Ré discorda deste entendimento, defendendo que deve ser absolvida do pedido atinente ao custo de reparação da avaria, por duas ordens de razão diferentes:
- por um lado, o facto de, no seu entender, a quebra do diferencial ter ocorrido por esforço exagerado, que provocou a torção, não estando essa avaria coberta pela garantia contratada;
- por outro lado, o facto de a avaria só ter sido comunicada à Ré no dia 13-07-2021, quando a viatura já se encontrava desmontada na oficina.
Vejamos.
Quanto à primeira exceção, é evidente que a procedência da mesma supunha que a impugnação da decisão da matéria de facto feita pela Ré tivesse sido atendida, o que não sucedeu, sendo, pois, inevitável concluir não estar demonstrado que a avaria tenha sido “claramente” resultante de “uso indevido ou negligente”, não merecendo censura a decisão recorrida a este respeito.
Quanto à segunda causa de exclusão da garantia invocada pela Ré, tendemos a concordar com o entendimento do Tribunal recorrido, apenas relevando o que foi estipulado no documento que foi entregue à Autora aquando da aquisição do veículo, nos termos do qual a Ré se escusou a assumir qualquer responsabilidade, sempre que as avarias, ao abrigo da garantia sejam reparadas antes da autorização ou tomada de conhecimento daquela.
Com efeito, parece-nos inaceitável considerar que a Autora se tenha vinculado a algo que surgiu por iniciativa unilateral da Ré, inexistindo qualquer manifestação de vontade por parte daquela a esse respeito, não podendo o seu silêncio valer aqui como meio declarativo (cf. art.º 218.º do CC). Tanto assim que, a própria Ré, num primeiro momento, aceitou a reclamação apresentada, dando seguimento à mesma, não obstante a Autora não tivesse seguido à risca as denominadas “CONDIÇÕES GERAIS EM CASO DE AVARIA”
1 - Imobilizar o imediatamente o veículo.
2 - Contactar pelo meio mais rápido a G … Lda, com uma descrição sumária da avaria e/ou sintomas
3 - Enviar o veículo utilizando a sua assistência em viagem para a oficina da rede G … Lda, mais próxima.
4 - Formalizar com a maior brevidade possível a apresentação da reclamação via e-mail”.
Assim, estas condições gerais apenas podem ser entendidas como linhas de orientação quanto ao funcionamento concreto da aludida causa de exclusão, de modo a assegurar que a Ré pudesse assumir a sua responsabilidade, sabendo-se que, nos termos contratados, se escusou a fazê-lo (ficando excluída a garantia) quanto a avarias que fossem reparadas antes da autorização ou tomada de conhecimento pela mesma.
Ora, nesta medida, o procedimento adotado pela Autora mostra-se adequado, considerando que procedeu à imobilização do veículo e ao envio do mesmo para uma oficina da rede da Ré (inexistindo motivo para pensar que existia outra mais próxima) e, logo no dia seguinte, comunicou o sucedido à Ré, que veio a proceder à peritagem da viatura na dita oficina, tendo-lhe sido facultado o orçamento da reparação, vindo a recusar assumir a responsabilidade pela mesma, só depois tendo a Autora dado a ordem de reparação.
Não se descortina, aliás, que diferença teria feito se a Autora tivesse contactado a Ré imediatamente antes de mandar a viatura avariada para a oficina – efetivamente, a Ré não alegou que teria recusado que a viatura fosse para a oficina em causa, limitando-se a sugerir algo que até nos parece descabido, dizendo que a Autora poderia ter rebocado a viatura para as suas próprias instalações onde teria local para parquear a viatura. Ora, parece-nos que seria inútil acionar a assistência em viagem dessa forma, pois obrigaria a um novo serviço do reboque, tornando previsivelmente mais demorada e dispendiosa a resolução da avaria; o procedimento normal quando uma viatura avaria na estrada é diligenciar da forma mais célere possível pelo reboque da mesma para a oficina onde se perspetiva que venha a ser reparada, como a Autora fez, tendo, logo no dia seguinte, disso informado a Ré, não tendo esta logrado provar nenhum outro facto substantivamente relevante para a procedência da exceção perentória invocada.
Aliás, nas demais considerações que fez na sua alegação recursória, veio lançar a confusão e até suspeita sobre a idoneidade da oficina, olvidando a Ré que é responsável pela garantia, não tendo (muito menos o seu legal representante) o papel de perito avaliador, sendo até contraditório que venha sustentar que o procedimento da Autora e da oficina inviabilizou uma “verificação isenta” quando antes, para efeito de impugnação da decisão da matéria de facto, buscou arrimo no que considerava ser um “relatório pericial” isento, que foi feito com base em documentos, incluindo fotografias das peças recolhidas na oficina.
Assim, concluímos não estar verificada nenhuma das apontadas causas de exclusão.

Do IVA
A Ré defende que o valor devido, atinente ao custo da reparação, não deve incluir o IVA, alegando, em síntese, que o montante em que foi condenada é o da fatura junta aos autos, em que consta o valor de 5.187,45€, acrescido do IVA de 1.193,11€, calculado à taxa de 23%, mas, segundo diz, a Autora já deduziu o IVA na sua contabilidade, pelo que haveria um enriquecimento sem causa por parte desta.
Vejamos.
Não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de estar expressamente previsto no contrato incumprido pela Ré, na parte intitulada Limites e Exclusões”, logo no ponto 1. “Até ao limite de 9900€+iva por intervenção”, sendo, pois, evidente que o pagamento do IVA estava abrangido pela garantia.
De salientar ainda que, em parte alguma dos factos provados consta que a Autora já deduziu o IVA da referida fatura. O que se compreende, já que um tal facto nunca foi alegado, não tendo essa questão sido sequer antes suscitada, pelo que, em bom rigor, não se pode conhecer da mesma.
Quanto à inadmissibilidade da apreciação de questões novas nos recursos, veja-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 23-03-2017, na Revista n.º 4517/06.5TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt: “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC).” Também Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág. 119, explica que: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto, de em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.

Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso no que diz respeito à questão de saber se a Ré não está obrigada a pagar à Autora a quantia atinente à reparação da viatura, incluindo o IVA.

Da indemnização pela privação do uso

Na sentença recorrida teceram-se a este respeito as seguintes considerações:
“Peticiona ainda a Autora a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelo período de paralisação do veículo.
Ora, não obstante o alegado pela Ré neste circunspecto quanto a estarem tais danos contratualmente excluídos, considera-se que semelhantes danos, na medida em que sejam decorrentes do incumprimento contratual, são susceptíveis de conferir um direito indemnizatório à Autora, acompanhando-se, também neste ponto, o já citado aresto do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/12/2021.
Sucede que, no caso, não resulta da factualidade apurada que a assinalada privação do uso do veículo pela Autora pelo período que demandou a sua reparação seja consequência do incumprimento contratual da Ré, sendo certo que a Autora, perante tal tomada de posição, deu ordem de reparação da viatura oficina à A.C. M … e C … de V …, S.A., oficina por si escolhida. Ora, não pode a Ré ser responsabilizada pela privação do uso pelo período que demandou tal reparação, nem, diga-se, pelo período que intercedeu entre a avaria (apenas comunicada no dia posterior) e a comunicação da decisão de recusa de accionamento da garantia, posto que em momento algum se invoca que o mesmo tenha sido desrazoável.
De resto, nada permite concluir que a reparação teria sido concluída em data anterior se a Ré tivesse assumido a responsabilidade pela mesma, sendo certo que nada é alegado quanto ao prazo necessário à reparação.
Deste modo, considera-se não ter a Autora direito à peticionada indemnização por privação do uso/paralisação da viatura, pelo que, nesta parte, a acção é improcedente.”
A Autora, no recurso subordinado, discorda deste entendimento, defendendo (além da impugnação que fez da decisão da matéria de facto), em síntese, que: a morosidade e a inércia por parte da Ré em assumir os custos inerentes à reparação da viatura da Autora se repercutiram num prejuízo patrimonial decorrente do facto da imobilização da viatura; no seu entender, a privação do uso pela Autora deverá ser ressarcida pela Ré, pese embora o contrato de garantia celebrado entre as partes não mencione qualquer cláusula quanto à obrigação de a Ré assumir perante a Autora a responsabilidade pela privação do uso do veículo; a este respeito, invoca o acórdão da Relação de Guimarães, no proc. n.º 2125/18.7T8VNF.G2; considera que recai sobre a Ré a responsabilidade de indemnizar a Autora a título de privação do uso da viatura, tendo em conta o tempo que durou e os atos que deixaram de ser praticados, designadamente as cargas que não foi possível efetuar, o que se refletiu na correspondente perda de ganho pela Autora; a não ser calculada a indemnização nos exatos termos em que foi peticionado pela Autora, deve, pelo menos, ser fixada no valor que o tribunal julgue mais equitativo, ao abrigo do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CC.
Apreciando.
A problemática da indemnização pela privação do uso do veículo tem merecido a atenção da doutrina e da jurisprudência, sobretudo no âmbito de litígios fundados em acidentes de viação, de modo que, veio a ganhar preponderância na jurisprudência uma corrente (“intermédia”), assente na ideia de que, verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil, a prova dos danos concretos se basta com a demonstração do uso regular da viatura por parte do lesado, a qual até se pode presumir (presunção judicial).
Assim, tem sido considerado que é devida indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo automóvel, sem necessidade de o lesado alegar e provar outros factos, designadamente que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas (por exemplo, com o aluguer de outra viatura) ou lucros cessantes (o que não obsta a que possa fazer essa alegação). Isto porque, a menos que outros factos indiquem não ser esse o caso, o normal é que, quando se adquire um veículo, se pretende utilizá-lo precisamente para transporte de pessoas e bens.
Portanto,  na medida em que se ficou impedido de poder usar o veículo que se possuía, é devida indemnização, a fixar, em regra, com base na equidade (pois não é normalmente possível fazê-lo com recurso à teoria da diferença - cf. art.º 566.º, n.º 2, do CC), atendendo, numa análise casuística, ao conjunto dos factos em presença, incluindo as caraterísticas do veículo, ao concreto uso que lhe era dado e até à atuação do lesado, apreciando se configura comportamento “socialmente adequado” e conforme à boa-fé ou, ao invés, se até contribuiu para o agravamento do dano (cf. art.º 570.º do CC), sendo de rejeitar a fixação de valores indemnizatórios que, globalmente considerados, por via do período temporal (de meses ou até anos) e/ou do valor diário considerados, redundem em verbas desproporcionadas, mormente face ao valor de mercado do veículo (sinistrado/avariado).
A este respeito, não obstante o interesse do acórdão da Relação de Guimarães de 15-06-2021 citado pela Autora, importa salientar que a situação aí apreciada é distinta da que nos ocupa: a aí 1.ª Ré tinha celebrado com o aí Autor um contrato de instalação de mecanismo GPL na sua viatura e a 2.ª Ré, seguradora, tinha celebrado com a 1.ª Ré um contrato de seguro, pela qual aceitou garantir o pagamento das indemnizações que fossem legalmente exigíveis à segunda, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões relativas à montagem e/ou reparação dos componentes inerentes à utilização de GPL em automóveis, mediante o pagamento de um prémio.
Ora, nos presentes autos, a Ré não celebrou nenhum contrato com a Autora, apenas assumiu nos termos acima descritos uma obrigação de garantia, denominada “Garantia Truck Plus”, que abrange determinadas avarias, designadamente no Diferencial/Transmissão, que inclui, além das peças propriamente ditas, “Mão-de-obra Necessária à reposição da viatura no estado, antes da avaria.”. Portanto, a obrigação de garantia assumida não abrange indemnizações de danos que tenham sido causados pelas avarias.
Todavia, porque de incumprimento do contrato se trata, concede-se que daí possam advir danos ressarcíveis nos termos gerais (cf. art.º 798.º do CC), mas então apenas quando a atuação da devedora (obrigada a custear a reparação) acabou por dar causa a tais danos, não bastando para isso que apenas estejam provados factos atinentes à comunicação efetuada pela devedora, no próprio dia em que lhe foi enviado o orçamento da reparação, informando que declinava a responsabilidade pela mesma, indicando as suas razões.
Nesta linha de pensamento, numa situação mais próxima, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 04-06-2020, proferido no proc. 422/19.3T8LSB.L1, disponível no blog “outrosacordaostrp”, em que a ora Relatora teve intervenção como 2.ª Adjunta, em que se considerou que a indemnização do dano da privação do uso de um veículo automóvel, quando não está coberto como risco próprio por um contrato de seguro facultativo de danos, só pode ser posta a cargo da seguradora se se provar que o comportamento desta, no tratamento do pedido do pagamento do capital seguro por um sinistro, foi a causa daquele dano, e não quando se provam, apenas, factos que têm a ver com a recusa, justificada do ponto de vista da seguradora, de aceitar a responsabilização pelo sinistro, acabando apenas por dar origem ao atraso no pagamento, indemnizável com juros de mora.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso a este respeito, nenhuma censura nos merecendo a sentença recorrida na parte em que absolveu a Ré do pedido indemnizatório pela privação do uso da viatura.

Dos juros

Na sentença recorrida, a Ré foi condenada no pagamento de juros de mora calculados sobre a totalidade do valor pago pela Ré e vencidos desde a data da citação, o que o Tribunal a quo justificou nos seguintes termos:
“Por último, suscita ainda a Autora o pagamento de juros de mora computados desde a citação.
Atento o disposto nos artigos 804.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, o atraso no cumprimento de uma dívida de natureza pecuniária constitui o devedor na obrigação de indemnizar o credor pelos prejuízos resultantes desse retardamento da prestação devida, a qual se consubstancia no pagamento de juros de mora.
Nos termos do disposto no artigo 805.º, n.º 1 do Código Civil, o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
Considerando o peticionado pela Autora a este nível e o disposto no artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deverá, pois, a Ré ser condenada no pagamento de juros de mora, sobre a indicada quantia de €6.380,56, desde a citação (27/10/2021) até efectivo e integral pagamento, sendo aplicável ao caso a taxa de juros civis, que foi fixada em 4% pela Portaria n.º 291/2003, de 08 de Abril (artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil).”
A Ré discorda, defendendo, em síntese, que: os juros só são devidos a partir do momento em que a obrigação se torne líquida, pois, não obstante o peticionado, à data da citação, o valor devido não era líquido (ainda não havia sido fixado), somente tendo sido fixado, a final, na sentença; como se está no domínio da responsabilidade contratual, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor (cf. art.º 805, n.º 3, 1.ª parte, do CC), o que notoriamente não é o caso, não sendo por culpa sua que isso não aconteceu.
Vejamos.
Preceitua o art.º 805.º do CC, sob a epígrafe “Momento da constituição em mora”, que:
“1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”
Como é sabido, uma obrigação é líquida quando a prestação se encontra determinada em relação à sua quantidade ou montante, sabendo-se, pois, exatamente quanto se deve, ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de uma simples operação de cálculo aritmético.
É evidente que a mera circunstância de ser discutida pelas partes a existência da obrigação – por divergirem relativamente à verificação de determinadas alegações de facto (que uma faz perante a outra) e/ou ao respetivo enquadramento jurídico – não é bastante para qualificar a obrigação como sendo ilíquida.
Assim, contrariamente ao que a Ré defende, a obrigação em apreço não pode ser considerada ilíquida, pois a Ré sempre teve conhecimento do valor orçamentado para a reparação do veículo, cujo custo (IVA incluído) até veio a ser inferior, apenas se tendo recusado a assumir a responsabilidade pelo seu pagamento, por entender que se verificavam causas de exclusão da garantia.
Portanto, é aplicável o art.º 805.º, n.º 1, do CC, conjugado com o art.º 219.º, n.º 2, do CPC, sendo devidos juros de mora, vencidos desde a data da citação, conforme decidiu o Tribunal recorrido.

Assim, improcedem as conclusões das alegações de ambos os recursos, aos quais será negado provimento.

Vencidas as partes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais dos respetivos recursos (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

***

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento a ambos os recursos, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Mais se decide condenar a Ré e a Autora no pagamento das custas dos recursos que cada uma interpôs.

D.N.

Lisboa, 23-05-2024
Laurinda Gemas
Orlando Nascimento
Higina Castelo