Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31/21.7IDLSB.L2-5
Relator: JOÃO GRILO AMARAL
Descritores: CRIME CONTINUADO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Um dos requisitos do crime continuado é a verificação de uma conexão temporal entre os diversos actos, uma vez que, de contrário, dificilmente se poderá afirmar, no caso concreto, a referida diminuição considerável da culpa.
II. E quanto maior for o hiato temporal entre os diversos atos, maiores serão as razões para se questionar a verificação e /ou manutenção de uma situação factual subsumível na figura do crime continuado,
III. A mediação de um período de tempo dilatado, superior a um ano, entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com “um dolo empedernido no crime”.
IV. A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 31/21.7IDLSB, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 5, em que são arguidos AA e outros, melhor identificados nos autos, foi proferido sentença, no qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
B) Absolvo o arguido AA da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
(…)
D) Condeno o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.
E) Condeno (…) AA no pagamento das custas processuais, fixando a taxa de justiça em uma unidade e meia de conta.
(…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
(…)
A) Nos presentes autos, foi o Recorrente, na qualidade de administrador da sociedade arguida “BB”, condenado “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, n.º 2 e n.º 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infrações Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.”
B) O Recorrente discorda da douta decisão preferida, em primeiro lugar, atenta o vício da sentença que a mesma ostenta por erro de julgamento quanto ao crime continuado, devendo o Tribunal, salvo melhor opinião, ter julgado, no seguimento do Proc. n.º 303/17.5IDLSB, em 21-06-2018, e, posteriormente, com a sua continuação reconhecida e declara no Proc. n.º 590/17.9IDLSB, em 14-01-2021, e no Proc. n.º 521/17.9IDLSB, em 15-11-2023, já transitados, que os factos praticados pelo Recorrente integravam a continuação do crime de abuso de confiança fiscal, mantendo, assim, a pena já aplicada aos arguidos.
C) Depois, a sentença recorrida padece, ainda, no que respeita à escolha e medida da pena, de vícios por falta de aplicação de pena de substituição e omissão de atenuação especial da pena.
D) Estando nos presentes autos em causa a prática de um crime de abuso de confiança fiscal em sede de IVA, decorrente de não ter sido entregue ao Estado, pela sociedade arguida, a quantia daquele imposto correspondente às declarações periódicas respeitantes aos meses de ... e ..., ..., ..., ... e ...e ... tendo sido apurado que o valor do imposto a ser entregue ao Estado seria no TOTAL de €84.511,52 (cf. alíneas H) e I) dos factos provados da douta Sentença recorrida), é necessário trazer, antes de mais, à discussão a figura do crime continuado, por já ter o Recorrente e a BB sido condenados, em 21-06-2018, no âmbito do Proc. n.º 303/17.5IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, em relação ao IVA dos períodos de ...1.../03, ...1.../06, ...1.../09, ...1.../12, ...1.../01, ...1.../02, ...1.../03, ...1.../04, ...1.../05, ...1.../06, ...1.../07, ...1.../09, numa pena de três anos e dois meses de prisão (suspensa) e na multa de quinhentos dias à taxa diária de €5,00.
E) Foi devido a esta condenação (no processo n.º 303/17.TIDLSB), que, no âmbito do Proc. n.º 590/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, devido à não entrega de IVA dos períodos de ... até ...1.../10, o Tribunal, em 15-01-2021, considerou que “a conduta dos arguidos, no período compreendido entre ... a ..., teve por base diversas resoluções criminosas (...) e concretizou-se na realização reiterada de um crime de abuso de confiança fiscal”, considerando, deste modo, que os factos praticados “integravam a continuação do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º e 105.º n.º 1, 4, 5 e 7 do RGIT, pelo qual o arguido foi condenado no âmbito do processo n.º 303/17.TIDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6”, mantendo, assim, as penas aplicadas aos arguidos.
F) Assim como, por sua vez, no âmbito do Proc. n.º 521/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 3, referente a IVA dos meses de ... e ..., o Recorrente e a BB, após a prolação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-06-2023, e proferida nova sentença, já transitada em julgado, onde foi decidido: “Assim, e ponderando os factos provados, a quantia que está em dívida e a atitude do arguido em audiência de julgamento e considerando o supra referido de que os factos praticados integram a continuação do crime de abuso de confiança fiscal pelos qual os arguidos foram condenados no âmbito do processo n.º 303/17.5IDLSB mostrando-se adequadas e suficientes as penas em que aí foram condenados e atento o disposto no artigo 79.º do Código Penal, mantém-se as penas aplicadas aos arguidos neste último processo de pena de multa de 500 (quinhentos) dias à taxa diária de €5,00 (cinco euros) para a sociedade arguida e o arguido na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período subordinada ao pagamento das quantias no prazo da suspensão da pena em que é condenado.”
G) Contudo, com o devido respeito, erradamente, este Tribunal optou por não seguir o mesmo entendimento.
H) Ora, por se tratar do mesmo crime e submetidos o Recorrente e a BB a novo julgamento, salvo melhor opinião, também aqui deveriam considerar-se os factos praticados integrados na continuação e ter sido mantidas as penas aplicadas no âmbito do proc. n.º 303/17.5IDLSB, por estarmos perante uma infração continuada.
I) Uma vez que se tratava do mesmo crime, das mesmas (ou idênticas e homogéneas) condutas também a actuação/condenação do Recorrente, deveria ter sido considerada como continuação criminosa (crime continuado), circunstância que levaria à manutenção da pena aplicada no proc. n.º 303/17.5IDLSB, o que, erradamente, não sucedeu.
J) Como tal foi o ora Recorrente submetido a um novo julgamento, uma vez que as condutas levadas a cabo foram as mesmas ou idênticas, o “acontecimento histórico” foi o mesmo, tendo-se verificado, inclusivamente, uma grande proximidade temporal entre todas as ditas condutas.
K) Estavam assim preenchidos os requisitos do crime continuado: (i) a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime; (ii) os tipos legais de crime protegerem fundamentalmente o mesmo bem jurídico; (iii) a homogeneidade essencial na sua execução; (iv) uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.
L) A verdade é que a prática do primeiro ato (e já julgado no Proc. n.º 303/17.5IDLSB) favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, por ter havido aqui um certo circunstancialismo externo (a crise financeira da sociedade) que facilitou essa sucessiva reiteração de uma conduta idêntica, devendo ser menos censurável ao Recorrente ter sucumbido repetidamente.
M) Para além disso, também se encontra verificada a conexão temporal exigida pela jurisprudência, uma vez que os arguidos foram julgados nestes autos pela não entrega ao Estado de IVA, nos períodos já aqui indicados, tendo atuado no quadro da mesma situação descrita no Proc. n.º 303/17.5IDLSB, impondo-se, assim, no entender do Recorrente considerar que também os factos dos presentes autos se integram na mesma continuação criminosa por se tratar de um mesmo acontecimento histórico.
N) No entender do Recorrente, salvo melhor opinião, errou a douta sentença recorrida ao julgar relevante o hiato temporal para ter de ser desconsiderada a continuação criminosa, o hiato que emergiu de o recorrente AA ter alienado do seu próprio património pessoal um imóvel cujo produto da venda lhe serviu para pagamentos intercalares que coincidiram exatamente com esse hiato: esta circunstância (documentada, por assim dizer, numa leve referencia do texto sentencial e nas declarações finais do arguido) evidencia, à saciedade, pelo contrário, que a pressão exterior motivadora dos abusos de confiança fiscal permanecia em perfeita continuidade: não houve, nem deve ter sido em conta racional, hiato algum.
O) Ora, tendo sempre presente que processo não existe para condenar, o processo existe para aplicar o Direito aos factos e realizar a justiça e procurando o Recorrente evidenciar a lucidez pelo paradoxo, perfilhando esta linha de raciocínio, que não se entende, teríamos de concordar que um coxo que fratura uma perna não pode participar numa competição de corrida de atletismo porque fraturou uma perna em data distante (e não porque é coxo)!
P) Pelo que, s.m.o., impõe-se considerar o presente crime continuado com início na sucumbência do arguido quanto ao crime porque foi condenado com trânsito anterior, sem aplicação de nova pena, uma vez não consubstanciar o segmento do comportamento do arguido, quanto ao presente caso, uma conduta mais grave dessa continuação.
Q) Com efeito, nos termos do artigo 79.º n.º 2 do Código Penal, a lei não permite aplicar uma nova pena ao Recorrente, pelo que, s.m.o., a douta sentença proferida nos autos ora em crise ser revogada por força do princípio constitucional ne bis in idem (artigo 29.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa).
R) Pelo exposto, não tendo o douto Tribunal a quo neste sentido se pronunciado, e por estarmos perante um crime continuado, questão que trouxe o Recorrente na contestação escrita e em alegações orais à discussão a aplicabilidade do disposto no artigo 79.º n.º 2 do Código Penal, é notório que estamos perante um erro de julgamento.
S) Por outro lado, sem prescindir do que anteriormente se afirmou e concluiu, atenta a curta pena efetivamente aplicada (pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica), é acessível concluir que a mesma é excessiva e desproporcionada, devendo ser substituída por outra.
T) Neste sentido foi a promoção do Ministério Público em alegações orais finais produzidas na primeira audiência de discussão e julgamento (anulada) defendendo a aplicação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade.
U) É também opinião do Recorrente que deveria o julgador ter aplicado essa substituição, atenta a verificação dos respectivos pressupostos da aplicação.
V) E são pressupostos da aplicação desta pena os definidos no artigo 58.º do Código Penal, pressupostos esses que sempre que se verifiquem, como não pode deixar de se notar que se verificam in casu, deve o tribunal aplicar esta pena em substituição da pena de prisão.
W) Não se pode, assim, afirmar que a aplicação desta pena de substituição não permitiria observar critérios de prevenção geral e especial, pois que, conforme se expôs ao longo do presente Recurso, os mesmos encontram-se plenamente assegurados in casu.
X) Feita assim a ponderação e juízo de prognose sobre a futura conduta do Recorrente no que respeita ao cumprimento das normas jurídico-penais violadas, sem prescindir de tudo quanto se foi afirmando, deve a pena de prisão ser substituída pela prestação de trabalho a favor da comunidade, por estarem preenchidos os pressupostos da sua aplicação e por não existirem razões de prevenção geral e especial que obstem à sua aplicação, dando-se cabal cumprimento ao disposto no artigo 58.º do Código Penal.
Y) No que respeita à medida da pena, não concorda o Recorrente com os termos em que a mesma foi fixada, considerando que, quer a pena em concreto aplicada quer os fins das penas em geral, se afigura desproporcional e excessiva em face da factualidade dada como provada em juízo, sendo violadora do disposto nos artigos 40.º, 71.º 72.º e 73.º do Código Penal.
Z) Ora, tendo o Recorrente demonstrado que agiu com o propósito de envidar esforços no sentido de saldar os valores em dívida em cada um dos períodos dos autos (cf. factos provados nas alíneas V) e W), a fls. 6 da douta sentença recorrida) – trata-se de circunstâncias posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a culpa do agente, para além de as mesmas terem de se associadas ao facto de ter o agente confessado integralmente os factos imputados na acusação e demonstrado arrependimento sincero, revelam-se motivos suficientes para a aplicação da atenuação especial da pena, a que o tribunal recorrido erradamente não atendeu.
AA) Com efeito, a confissão do Recorrente teve um papel essencial no processo, uma vez que foi nela que se suportou a douta sentença para a condenação, haveria assim, por conseguinte, que proceder-se à atenuação especial da pena a aplicar, nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal.
BB) Deste modo, e não sendo sido o objetivo do Recorrente apropriar-se dos montantes dos autos (apenas pretendia assegurar o pagamento dos salários) deveria ter sido atenuada especialmente a pena.
Nestes termos, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser concedido provimento e, em consequência, ser totalmente revogada a douta sentença recorrida atentos os vícios que a mesma ostenta, designadamente:
a) por erro de julgamento, sobre a aplicabilidade do crime continuado no seguimento dos processos n.º 303/17.5IDLSB, n.º 590/17.9IDLSB e n.º 521/20.9IDLSB (artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal); ou, caso assim não se entenda, sem conceder, b) ponderada e substituída a pena de prisão pela prestação de trabalho a favor da comunidade, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 58.º do Código Penal; c) por erro na não atenuação especial da pena, em violação do artigo 72.º do Código Penal.
Desta forma Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão assim fazendo Justiça.
(…)
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 19/02/2025, com os efeitos de subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo.
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I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, não apresentando conclusões, mas aduzindo:
(…)
(I) - Do alegado “erro de julgamento”
O arguido e, bem assim, a sociedade arguida foram acusados pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, relativamente ao período respeitante às obrigações fiscais de IVA devidas entre o mês de ... e o mês de ....
Nos processos a que o arguido faz alusão na motivação de recurso interposto, a factualidade em causa reporta-se a períodos temporais diversos aos objecto dos presentes autos, mormente, “(…) a períodos de imposto devido em ...1.../03, ...1.../06, ...1.../09, ...1.../12, ...1.../01, ...1.../02, ...1.../03, ...1.../04, ...1.../05, ...1.../06, ...1.../07, ...1.../09.”
Destarte, conforme bem salientado na primeira resposta apresentada pelo Ministério Público, não se alcança como é que o recorrente pretende ver todos os períodos temporais em causa integrados numa mesma actuação criminosa.
De facto, “o arguido, já depois de ser acusado e condenado, reitera a sua conduta posteriormente, assumindo que decidiu pagar salários e utilizar os valores para outros fins que não sejam o pagamento de imposto do IVA devido, sendo certo que este imposto se caracteriza pela mera acessoriedade da posse no sujeito económico, cabendo o valor que é recebido a título de IVA ser, como quase um fiel depositário, retido apenas até ao momento em que deve ser entregue ao seu real proprietário, o Estado.
O arguido actuou, em novos períodos de imposto, com total desconsideração pelas obrigações fiscais que se lhe impunham, bem sabendo, além do mais, que recebeu IVA dos clientes e que tal IVA era devido ao Estado.
Sem prejuízo de eventual apreciação na medida da pena, consideramos que não ocorre qualquer erro de julgamento ao considerar que é praticado um novo crime, entre o período temporal de ... e ..., cujos períodos de imposto não se “cruzam” ou confundem com períodos anteriormente já julgados, pelo que deverá ser mantida a decisão condenatória nos seus precisos termos.”
Do que se deixa dito se conclui que, o Tribunal a quo não incorreu em erro de julgamento, tampouco violou qualquer normativo, considerando-se, assim, que a matéria dada como provada e respectiva subsunção jurídica não merecem qualquer reparo.
Afigura-se-nos, pois, que não assiste razão ao recorrente, naufragando, em consequência, a sua pretensão de absolvição da prática do crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, não subsistindo qualquer dúvida de que a factualidade dada como provada integra a prática do ilícito criminal em causa.
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(II) Da pena aplicada
Conforme supra aduzido, o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica.
Ora, a moldura penal correspondente ao crime de abuso de confiança fiscal que se reputa corretamente imputado ao arguido é: pena de prisão até 3 anos ou pena de multa com o limite mínimo de 10 dias e com o limite máximo de 360 dias – cfr. art.º 47.º/1 e 105.º/1 do RGIT.
Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que, em face da prova carreada para os autos e da prova produzida em audiência de discussão em julgamento, a pena de prisão concreta aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo se revela adequada e doutamente doseada, não merecendo, pois, qualquer crítica.
Senão vejamos.
Com efeito, a determinação da pena concreta depende de um juízo de ponderação norteado pelos critérios previstos nos artigos 40.º/1 e n.º 2 e 71.º/1 e n.º 2 do Código Penal.
Concretizando, de harmonia com o disposto no art.º 40.º/1 do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”
Acresce que, a necessidade de protecção de bens jurídicos, enquanto exigência de prevenção geral positiva, traduz a necessidade de reafirmação da validade das normas violadas, defendendo-se, desta forma, o ordenamento jurídico e devolvendo-se a segurança à comunidade, por forma a que se restabeleça a confiança e protecção pela norma violada.
Por sua vez, a necessidade de reintegração do arguido na sociedade, enquanto exigência de prevenção especial, tem como propósito a socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais.
Note-se, também, que art.º 71.º/1 do Código Penal apela, novamente, às finalidades da punição plasmadas no artigo 40.º do Código Penal, conforme supra aduzido.
Destarte, a escolha entre a aplicação de uma pena não privativa da liberdade ou privativa da liberdade, e no caso desta, a fixação do número de anos/meses da pena de prisão e modo de execução da mesma dependerá da prévia ponderação de factores reveladores de uma maior ou menor necessidade de protecção dos bens jurídicos violando, assim como de uma maior ou menor necessidade de reintegração social do arguido.
Porém, “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.” - cfr. art.º 40.º/2 do Código Penal.
De facto, não se poderá obnubilar que “a verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas (…).”
Consequentemente, “a função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. (…)” - assim sufraga Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss.
Atento o exposto, tendo como referência o binómio culpa/prevenção na determinação concreta da pena, o Tribunal atenderá “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)”, devendo sopesar todos os elementos relevantes atinentes quer à ilicitude e gravidade do facto, quer à culpa do arguido, quer, ainda, às condições pessoais do agente e à conduta por este adoptada ante e post crimen - cfr. art.º 71.º/2 do Código Penal.
Assim sendo, regressando ao caso concreto, atente-se no seguinte: “O arguido tem já averbadas 7 (sete) condenações pela prática de crimes tributários, mantendo-se a exercer funções como gestor de empresas.”
Não se poderá, pois, obnubilar que, “as penas anteriormente aplicadas não surtiram o efeito de integração e ressocialização pretendidos, além de não terem invertido a conduta do arguido perante a administração fiscal, qual seja a de absoluto desprezo pelo cumprimento das obrigações fiscais.”
Reitera-se que, “o arguido já foi advertido, pelo menos 7 vezes, de que a sua conduta integra a prática de crime.”
Contudo, “as penas não privativas da liberdade aplicadas apenas permitiram ao arguido continuar a sua actuação perante o Estado como “vítima” das circunstâncias”.
Ademais, o arguido actuou com dolo directo, na sua forma mais intensa, sendo elevado o grau de culpa do mesmo, evidenciado no significativo valor indevidamente retido e não entregue ao Estado (73.811,65 €) e, bem assim, no extenso período temporal no qual perdurou o cometimento do crime.
Acresce que, a confissão não implica, por si só, a ponderação de qualquer atenuação especial da pena.
Tal facto não “apaga” os demais factores que pesam a desfavor do arguido, mormente, as elevadas necessidades de prevenção geral e especial que, in casu, se verificam.
E, saliente-se, que o imposto devido não se encontra integralmente pago – sendo esse o meio de reposição da legalidade e verdade tributária - pelo que, pese a confissão dos factos consubstancie um factor positivo a sopesar, não poderá ter, no caso sub judice, uma valorização tal que implicasse uma atenuação especial da pena.
Talvez assim não se fosse se o arguido não possuísse condenações averbadas no respectivo certificado de registo criminal. “(…) Não obstante, após ter sofrido sete condenações, tão-só, se traduz num facto quase notório de que a sua gestão de empresas se realiza à custa do não pagamento de impostos.”
Acresce, ainda, que a pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada se revela, ainda, manifestamente distante do seu limite máximo (ou seja, de 3 anos de prisão), encerrando uma pena proporcional e adequada, face à elevada necessidade de prevenção geral e à culpa elevada manifestada pelo arguido na conduta adoptada.
Consequentemente, dúvidas não restam de que a aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade não seria susceptível de satisfazer cabalmente as finalidades da punição. Ao invés, seria passível de incutir no arguido um sentimento de impunidade face ao direito e à justiça. Pelo que, só a pena de prisão doutamente determinada pelo Tribunal a quo se nos afigura adequada à prossecução dos fins subjacentes à aplicação das penas.
Não obstante, não se ignore que foi, ainda, realizado pelo Tribunal a quo um juízo de prognose favorável ao cumprimento pelo arguido da pena de prisão aplicada em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica, afastando, por ora, o condenado de cumprir uma pena privativa da liberdade em contexto prisional.
Do que se deixa dito, e acompanhando o doutamente decidido pelo Tribunal a quo, sopesadas as circunstâncias acima elencadas, atendendo à moldura penal abstractamente aplicável e à luz dos critérios supra enunciados, afigura-se-nos, assim, razoável, adequada e proporcional a condenação do arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica.
Desta feita, cremos que não assiste qualquer razão ao recorrente, não tendo, assim, o Tribunal a quo violado qualquer preceito normativo, mormente, o disposto no art.º 70.º e 71.º/1 e n.º 2 do Código Penal, devendo, portanto, manter-se a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica, aplicada ao arguido, afigurando-se a mesma, à luz dos critérios supra anunciados, adequada, razoável e proporcional ao caso sub judice.
Face a todo o supra exposto, consideramos que deverá ser negado provimento aos recursos apresentados pelos arguidos, devendo, em consequência, manter-se na íntegra a douta Sentença recorrida.
Assim se requer por ser de inteira JUSTIÇA!
(…)
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
Mais aduziu:
(…)
Analisados a sentença, os fundamentos do recurso e a resposta que o Ministério Público ofereceu na 1.ª instância, não cremos que assista razão ao arguido/recorrente, pelos fundamentos da resposta ao recurso, que nos eximimos de repetir.
No entanto, quanto à atenuação especial da pena, o arguido/recorrente faz apelo à confissão e à sua essencialidade para a prova dos factos, o que não corresponde à verdade, pois que a prova dos factos assentou em prova documental, como bem resulta da motivação da decisão de facto, pelo que a prova sempre se faria sem confissão. Esta, mais não fez do que confirmar aquilo que era evidente. Finalmente, a confissão foi útil ao arguido recorrente por que lhe permitiu explicar ao Tribunal a quo a razão de ser da não entrega do IVA, o que foi tido em consideração, mas sem o efeito especialmente atenuativo da pena que pretende fazer valer.
Não se verifica qualquer circunstância que permita a atenuação especial da pena, destinada a situações excecionais, donde resulte a acentuada diminuição da ilicitude do facto ou da culpa do agente e a diminuição da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não merece provimento.
(…)
*
I.5. Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao dito parecer, reiterando as considerações vertidas no recurso.
*
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3.
*
II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões decidendas a apreciar são as seguintes:
a) Da existência de crime continuado, relativamente às anteriores condenações de que o arguido foi alvo.
b) Se a pena aplicada ao recorrente deveria ser atenuada especialmente.
c) Se a pena de prisão aplicada deveria ter substituída por trabalho a favor da comunidade, ao invés do seu cumprimento através do regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos à distância.
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal colectivo em 1ª Instância :
(…)
“1. FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultou assente a seguinte factualidade, com interesse para a decisão da causa:
A) A sociedade arguida BB. trata-se de uma sociedade anónima, constituída em ... de ... de 2006 e que tem por objeto a atividade de ..., ..., bem como a prestação de serviços conexos com tais atividades, particularmente nas áreas de ..., ... e ..., a que corresponde o CAE ....
B) A sociedade arguida está matriculada na ..., sob o n.º ... e tem sede na ....
C) A sociedade arguida obriga-se com a assinatura de um administrador único, dois administradores, um administrador e um procurador munido de poderes para o efeito ou de um procurador em conformidade com os precisos termos da procuração.
D) Desde deliberação datada de ... de ... de 2015, registada a ... de ... de 2015 o arguido AA exerce o cargo de administrador único da sociedade arguida, exercendo a administração de facto e de direito daquela sociedade, cargo que mantém na presente data.
E) Ao arguido AA, na qualidade de administrador único da sociedade BB incumbiu a prática de actos genéricos de gestão, que executou ou mandou executar, designadamente, o preenchimento e a entrega de declarações fiscais, ordenar pagamentos a fornecedores, ao Estado e aos empregados e seus administradores, bem como a prática das demais funções inerentes àquele cargo.
F) Em termos fiscais e no que concerne ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), a sociedade BB encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal desde ... de ... de 2018.
G) Entre ... e ..., no exercício da sua atividade, a sociedade BB, representada pelo arguido AA, praticou operações comerciais tributáveis e procedeu à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigada a entregar tais quantias nos cofres do Estado a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.
H) Efectivamente, a sociedade BB, representada pelo arguido AA, procedeu ao envio das declarações periódicas respeitantes aos meses de ... e ..., ..., ..., ... e ..., o que fizeram nas seguintes datas e apurando os seguintes montantes a título de IVA:
PeríodoImposto apurado a título de IVATermo do
prazo de pagamento e entrega da
Data de
...15.164,00€...-...-2020...-...-2020
...16.414,97€...-...-2020...-...-2020
...14.454,13€...-...-2020...-...-2020
...23.294,59€...-...-2021...-...-2021
...42.858,11€...-...-2021...-...-2021
...26.312,03€...-...-2021...-...-2021
TOTAL161.315,70€
I) Naqueles períodos a sociedade arguida BB e o arguido AA receberam efetivamente, a título de IVA entregue pelos seus clientes e até à data limite de entrega das declarações periódicas respeitantes a cada um dos referidos períodos os seguintes montantes:
PeríodoTermo do prazo de
pagamento e entrega da
Valor recebido a título de IVA até
à data limite de entrega da declaração
2020/0525-07-202010.206,13€
2020/0625-08-202020.847,42€
2020/1028-12-202011.130,62€
2020/1125-01-20217.575,83€
2020/1201-03-202127.063,59€
2021/0325-05-20217.687,93€
TOTAL84.511,52€
J) A sociedade arguida BB, representada pelo arguido AA entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira as declarações periódicas relativas às operações que efetuou no exercício da sua atividade e cobrou IVA nos montantes supra aludidos, tendo recebido as quantias discriminadas até ao termo do prazo legal para a entrega daquele montante à Autoridade Tributária.
K) Contudo, o arguido AA, no exercício das suas funções de administrador único, atuando em nome e em representação da sociedade arguida, não procedeu à entrega dos montantes supra descriminados em H), devidos a título de IVA, à Autoridade Tributária e Aduaneira, quer na data de vencimento, quer nos 90 dias sobre o termo do prazo legal para a sua entrega.
L) Apesar de o arguido AA saber que a sociedade arguida BB se encontrava legalmente obrigada a entregar mensalmente, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao período respetivo, à Administração Fiscal, as quantias recebidas a título de I.V.A., decidiu, em representação e no interesse daquela, deixar de cumprir tal obrigação, passando a utilizar em proveito da sociedade as respetivas quantias.
M) Não obstante terem elaborado e entregue as declarações periódicas do I.V.A. aos serviços tributários, relativas aos período acimas mencionados e nas datas legalmente assinaladas para o efeito, a sociedade arguida BB e o arguido AA, em nome e no interesse da daquela, não entregaram à Autoridade Tributária a importância de €161.315,70 devida a título de I.V.A., respeitante aos períodos melhor infra discriminados, nem no termo final do prazo para a entrega, nem nos noventa dias seguintes.
N) Do mesmo modo, receberam dos seus clientes, até às respetivas datas de pagamento, o valor global de 84.511,52€ (oitenta e quatro mil quinhentos e onze euros e cinquenta e dois cêntimos), porém não procederam à entrega desta quantia à Autoridade Tributária nem no termo final do prazo para a entrega, nem nos noventa dias seguintes, apropriando-se daquela quantia que receberam e de disporem dos meios financeiros para o fazer e saberem que a isso estavam obrigados.
O) A sociedade arguida e o arguido foram ainda notificados em ... de ... de 2022 para procederem ao pagamento das quantias em dívida, respetivos juros de mora e coima no prazo de 30 dias a contar da notificação, não tendo pago integralmente a quantia de €73.811,65 (atentos os pagamentos a que se alude em V)) no referido prazo.
P) A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em representação daquela, decidiram não entregar ao Estado a totalidade dos valores supra mencionados e por si efetivamente recebidos no valor global de €73.811,65 e apropriar-se dos mesmos, obtendo, por essa via, uma vantagem patrimonial que sabiam não lhes ser devida, o que quiseram e conseguiram.
Q) Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA e efetivamente recebido, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado nos prazos legais.
R) A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em proveito daquela sociedade, utilizaram o valor de €73.811,65 dando-lhe, assim, destino diverso daquele a que estava legalmente vinculada (a liquidação do imposto a que dizia respeito), alcançando para a sociedade o respetivo benefício económico que sabia indevido.
S) Ao não entregarem aos cofres do Estado os montantes mencionados, integrando-os na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar Estado e de assim obter vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram e quiseram.
T) Os arguidos após não terem entregue no mês de ... os montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA, dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta no mês de ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido, tendo o arguido AA, por si e em representação da sociedade BB, agido igualmente motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com as restrições instituídas durante o período pandémico Covid 19, tendo afecto o montante não entregue à Autoridade Tributária pelo menos ao pagamento de salários a trabalhadores.
U) De igual forma e com igual propósito, não tendo procedido à entrega dos montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA respeitante ao mês de ..., dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta nos meses de ... e em ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a atuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido.
V) Em ... e ... de ... de 2020 os arguidos procederam à entrega à Autoridade Tributária do valor global de 10.699,87€ (dez mil seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos), respeitando 699,87€ (seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos) ao IVA do mês de ... e 10.000,00€ (dez mil euros) respeitante ao IVA do mês de ....
W) A sociedade arguida BB e AA celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas apenas três das prestações acordadas.
X) Agiu o arguido AA em nome e no interesse da sociedade arguida bem como no seu próprio interesse.
Y) Actuaram os arguidos BB e AA livre, deliberada e conscientemente, não se abstendo de prosseguir com a sua conduta, apesar de saberem ser proibida e punida por lei.
Z) O arguido AA confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos.
AA) O arguido AA é …, auferindo mensalmente a quantia de €2.500, sendo que por força de penhoras incidentes sobre o respectivo vencimento, está a receber, efectivamente, o rendimento mínimo garantido.
BB) O arguido AA é divorciado e não tem companheira.
CC) O arguido AA tem três filhos, com 21, 17 e 5 anos de idades, encontrando-se o mais velho a frequentar o ensino universitário, o do meio a estudar e o mais novo em infantário, sendo o pai do arguido quem suporta as despesas referentes ao infantário, não estando fixada qualquer pensão de alimentos.
DD) O arguido AA reside em habitação arrendada, suportando, mensalmente, a quantia de pelo menos €2.000 a título de renda.
EE) O arguido AA é licenciado em ….
FF) A sociedade arguida encontra-se activa, tendo apresentado prejuízo.
GG) O arguido AA foi condenado, em .../.../2009, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 205º, Nº 1 e 4, alínea b) com referência ao artigo 202º, alínea b), 30º, nº 2 e 79º, TODOS DO Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º1, 218.º, n.º2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), e 79.º, todos do Código Penal, e de dois crimes de falsificação ou contrafacção de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a) e n.º3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, numa pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres.
HH) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 30 dias de multa.
II) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em .../.../2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.os 1, 2 e 4 e 7.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 180 dias de multa.
JJ) O arguido AA foi condenado, em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4 e 5 e 7.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a deveres. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
KK) O arguido AA foi condenado, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.
LL) A sociedade arguida foi condenada em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4, 5 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 500 dias de multa. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
MM) A sociedade arguida foi condenada, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 500 dias de multa. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.”
(…)
*
b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância :
Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito e sem relevância para a boa decisão da causa.
c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância :
“A convicção do tribunal estribou-se, no que respeita aos factos pelos quais os arguidos vinham acusados, em toda a prova documental constante dos autos e bem assim nas declarações produzidas pelo arguido AA e pelas testemunhas CC (inspectora tributária) e DD (foi administrativa na BB entre ... e ...) em sede de audiência de discussão e julgamento.
A prova da factualidade elencada em A) a Z) resultou do cotejo do teor do auto de notícia de fls. 25, 50, 57, 64, 71, 80, 87, 94 e 101, das certidões permanentes do registo comercial de fls. 2 e 406, dos prints de fls. 29 a 31, 34 a 37, 53 a 56, 60 a 63, 67 a 70, 75 a 79, 83 a 86, 90 a 93, 97 a 100, 104 a 107, 321 a 339, das declarações fiscais de fls. 32, 51, 58, 65, 72, 81, 88, 95 e 102, dos mapas de fls. 346 a 355, das notificações de fls. 118 e 158 e da documentação constante do apenso I com as declarações produzidas pelo arguido AA que, de modo espontâneo e firme admitiu a prática dos factos, confessando-os integralmente e sem reservas.
O arguido esclareceu que no período em causa nos autos não procedeu à entrega ao Estado do IVA cobrado a clientes pela sociedade arguida porquanto, por força do período covid, houve uma redução significativa das receitas devido à quebra na venda de jornais por parte de pontos de venda de imprensa escrita que fecharam no referido período.
Optou, pois, por pagar salários a colaboradores com o valor de IVA cobrado a clientes, evitando despedimentos.
Questionado, referiu que a sociedade já anteriormente aos períodos em causa nos autos tinha passado por dificuldades financeiras, sendo que no período sub judice foram as circunstâncias associadas às restrições decorrentes do período pandémico COVID as determinantes, declarações que permitiram ao tribunal ficar convencido que as anteriores condenações averbadas nos certificados do registo criminal dos arguidos são condutas autónomas face à que está em causa nos presentes autos.
DD, prestando um depoimento espontâneo e firme, confirmou ao tribunal as dificuldades da sociedade BB no período pandémico, referindo que era a própria quem, enviava facturas para clientes e emitia a facturas de fornecedores, tendo-se verificado, no período entre ... e o ano de ..., uma quebra na facturação.
Mais confirmou que nesse período o IVA cobrado a clientes foi destinado ao pagamento de salários a trabalhadores por tal ter sido estabelecido como prioridade.
A inspectora tributária CC confirmou ao tribunal os montantes constantes de H), explicitando que os mesmos se baseiam nas declarações fiscais remetidas pela sociedade arguida como sendo IVA a entregar ao Estado.
Mais esclareceu que realizou a circularização de clientes da sociedade, no âmbito da qual recolheu a documentação constante do Apenso I dos autos, tendo sido com base naquela diligência que apurou os valores de IVA efectivamente cobrados a clientes e recebidos pela sociedade, confirmando os valores indicados no quadro constante de fls. 343 verso.
Confrontada com os valores elencados em I), esclareceu que o quadro de fls. 343 verso considerou o IVA efectivamente cobrado e recebido de clientes para cada mês e até 90 dias após cada mês considerado no quadro de fls. 343 verso.
Por sua vez, os valores indicados em I) correspondem ao IVA efectivamente cobrado e recebido de clientes da sociedade até à data limite para entrega da declaração periódica para cada mês conforme consta de fls. 348 verso (...), 349 verso (...), 352 verso (...), 353 verso (...), 354 verso (...) e 355 verso (...).
CC confirmou ainda os pagamentos referidos em V), o que se mostra consonante com o teor de fls. 327 e 334, pelo que, em face dos pagamentos efectuados, não deve ser considerado o período de ... porquanto inferior a €7.500.
Do cotejo da prova produzida ficou, pois, o tribunal convencido da demonstração da factualidade elencada.
No que respeita às condições sociais e económicas dos arguidos, o tribunal tomou em consideração as declarações produzidas pelo arguido AA, as quais se revelaram verosímeis atendendo à forma espontânea e clara com que foram prestadas.
Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal valorou os certificados do registo criminal juntos aos autos e bem assim as certidões juntas referentes aos processos n.os 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6 e 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3.”
(…)
d. É como segue o enquadramento jurídico–penal dos factos que vem efectuado pelo tribunal colectivo em 1.ª Instância :
(…)
“A sociedade BB vem acusada da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.os 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
O arguido AA vem acusado da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
DA NÃO INCONSTITUCIONALIDADE DA INCRIMINAÇÃO DO ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Uma referência muito sucinta ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2000, de 20 de Junho, no qual aquele órgão jurisdicional se pronunciou sobre a compatibilidade da incriminação do abuso de confiança fiscal com o artigo 27.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, atento o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.
No citado aresto, o Tribunal Constitucional entendeu que a “norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.”.
Os argumentos expendidos prendem-se, essencialmente, com a natureza legal (e não contratual) da obrigação dos responsáveis tributários.
DO ILÍCITO CRIMINAL
Estatui o artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”.
O bem jurídico tutelado pelo crime sub judice prende-se com a protecção do património estatal (relativo às receitas fiscais provenientes de prestações tributárias, deduzidas por conta da administração tributária ou recebidas em nome dela) mediante a criminalização da conduta daquele que perante a administração fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dever fundamental na sua relação com o Estado: a não entrega das quantias que lhe foram confiadas para que as entregasse à Administração Tributária.
Constituem elementos típicos do crime de abuso de confiança fiscal os seguintes:
A) TIPO OBJECTIVO:
1) Não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária que o agente tenha efectivamente, recebido (de valor superior a € 7.500, deduzida nos termos da lei)
O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam as actividades previstas no artigo 2.º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, estando sujeitas a tributação as operações elencadas no artigo 1.º do citado compêndio normativo.
O apuramento do montante de imposto a entregar ao Estado, que o próprio sujeito passivo liquida e que deve remeter à Administração Tributária juntamente com a declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no mês correspondente ao imposto, é fixado de acordo com o disposto nos artigos 16.º e seguintes, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Constam dos artigos 27.º, n.º1, 29.º e 41.º, todos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, as obrigações fiscais do sujeito passivo.
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 8/2015, publicado no Diário da República n.º 106 SÉRIE I de 2015/06/02 fixou jurisprudência nos seguintes termos “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.”
Nos presentes autos resultou demonstrado que a BB é uma sociedade comercial que é sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado encontrando-se inscrita no regime normal com periodicidade mensal.
Nessa qualidade a sociedade arguida, através do respectivo legal representante (o arguido AA), remeteu a declaração periódica de Imposto sobre o Valor Acrescentado referente aos meses indicados em I), não tendo, porém, acompanhado tal declaração que remeteu aos serviços de cobrança do IVA do montante relativo a este imposto, o qual recebeu.
O valor que a sociedade arguida, através do seu legal representante, estava obrigada a entregar ao Estado a título de IVA ascende a um total de €73.811,65 (correspondente a €84.511,52-€10.699,87, sendo este último o valor total pago conforme consta de V) da factualidade assente).
Refira-se que, relativamente à prestação de IVA reportada ao mês de ..., atento o pagamento efectuado, em ... de ... de 2020, de €10.000 (não se olvidando que a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias data de ... de ... de 2022), a quantia em dívida a título de IVA é inferior a €7.500 pelo que o referido período não pode ser considerado para efeitos de cometimento do delito.
As demais prestações são superiores a €7.500- cfr. artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2) Que o agente estivesse legalmente obrigado a entregar a prestação tributária
Ao abrigo do disposto no artigo 27.º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, os sujeitos passivos deste imposto estão obrigados a entregar aos respectivos serviços de cobrança o montante que liquidaram aos clientes a título daquele imposto, no prazo previsto no artigo 41.º, n.º1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, devendo fazê-lo juntamente com a declaração periódica que remetem para a administração tributária.
Atenta a natureza de crime omissivo puro do ilícito em apreço, a respectiva consumação basta-se com o recebimento e não entrega do montante correspondente ao imposto, assim incumprindo os arguidos o dever legal que lhes está acometido pelo Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Concluímos, pois, pelo preenchimento dos elementos objectivos do crime em apreço.
B) TIPO SUBJECTIVO
O crime de abuso de confiança fiscal é doloso (artigo 13.º, do Código Penal).
Nos termos do disposto no artigo 14.º, do Código Penal, o dolo abrange os elementos intelectual (conhecimento dos elementos objectivos do tipo) e volitivo (vontade de praticar um acto ou de atingir um resultado).
A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em representação daquela, decidiram não entregar ao Estado a totalidade dos valores supra mencionados e por si efetivamente recebidos no valor global de €73.811,65 e apropriar-se dos mesmos, obtendo, por essa via, uma vantagem patrimonial que sabiam não lhes ser devida, o que quiseram e conseguiram.
Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA e efetivamente recebido, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado nos prazos legais.
A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em proveito daquela sociedade, utilizaram o valor de €73.811,65 dando-lhe, assim, destino diverso daquele a que estava legalmente vinculada (a liquidação do imposto a que dizia respeito), alcançando para a sociedade o respetivo benefício económico que sabia indevido.
Ao não entregarem aos cofres do Estado os montantes mencionados, integrando-os na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar Estado e de assim obter vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram e quiseram.
Os arguidos após não terem entregue no mês de ... os montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA, dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta no mês de ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido, tendo o arguido AA, por si e em representação da sociedade BB, agido igualmente motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com as restrições instituídas durante o período pandémico Covid 19.
De igual forma e com igual propósito, não tendo procedido à entrega dos montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA respeitante ao mês de ..., dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta nos meses de ... e em ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a atuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido.
Em ... e ... de ... de 2020 os arguidos procederam à entrega à Autoridade Tributária do valor global de 10.699,87€ (dez mil seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos), respeitando 699,87€ (seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos) ao IVA do mês de ... e 10.000,00€ (dez mil euros) respeitante ao IVA do mês de ....
A sociedade arguida BB e AA celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas apenas três das prestações acordadas.
Agiu o arguido AA em nome e no interesse da sociedade arguida bem como no seu próprio interesse.
Actuaram os arguidos BB e AA livre, deliberada e conscientemente, não se abstendo de prosseguir com a sua conduta, apesar de saberem ser proibida e punida por lei.
Ambos os elementos do dolo estão, por isso, verificados.
O tipo de dolo da arguida e, por essa via, também da sociedade, é directo (artigo 14.º, n.º1, do Código Penal) uma vez que representou que os seus actos constituíam uma conduta proibida por lei, não se tendo deixado determinar por essa consciência, antes agindo com intenção de praticar um comportamento ilícito.
Os elementos subjectivos do tipo estão, assim, verificados.
C) CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
As condições objectivas de punibilidade constituem pressupostos materiais de punibilidade, isto é, são elementos da norma extrínsecos ao tipo de ilícito e ao tipo da culpa (pelo que não se requer que sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência).
Da respectiva verificação depende, porém, a existência de consequências penais para a acção antijurídica.
Determina o artigo 105.º, n.º4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
No que respeita ao disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, decorre da previsão dos artigos 27.º, n.º1, e 41.º, n.º1, alínea a), ambos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, que os arguidos deveriam ter procedido à entrega das quantias supra mencionadas aquando do envio das declarações periódicas.
A operação corresponde aos períodos de ..., ..., ..., ... e ....
Resulta, pois, da factualidade provada que decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo previsto para a entrega do montante correspondente ao IVA.
Relativamente à alínea b), do artigo 105.º, n.º4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, verificamos que in casu as arguidas foram notificadas nos termos e para os efeitos do disposto neste normativo, sem que tenham procedido ao pagamento de qualquer quantia nesse prazo.
Pelo exposto, ambas as condições objectivas de punibilidade se mostram verificadas.
D) DO CRIME CONTINUADO
Estatui o artigo 30.º, n.º2, do Código Penal, que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”.
O crime continuado consiste na unificação, em termos jurídico-normativos, de situações que conformam um concurso efectivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, sendo tal unificação fundada numa culpa diminuída do agente.
Importa, então, verificar se estão preenchidos, in casu, os respectivos pressupostos, que são os seguintes:
a) A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico: Ao não entregar à Administração Fiscal, nos meses indicados na factualidade assente, as quantias correspondentes a Imposto sobre o Valor Acrescentado cobradas a clientes, a sociedade arguida e o arguido AA, seu legal representante, violaram o bem jurídico tutelado pelo ilícito em apreço, qual seja o da protecção do património estatal. Também praticaram sempre o mesmo tipo de crime: abuso de confiança fiscal.
b) Que os crimes sejam executados de forma essencialmente homogénea (similitude do modus operandi e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime): O arguido por si e em representação da sociedade arguida, não entregou, nos períodos referidos na factualidade assente, os montantes relativos a Imposto sobre o Valor Acrescentado, os quais recebeu.
c) Que o (s) arguido (s) actue (m) sob a solicitação de uma mesma situação exterior (supõe a proximidade espácio- temporal das violações plúrimas): No caso dos autos, nos períodos referidos na factualidade assente, o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, não entregou as quantias correspondentes ao IVA cobradas a clientes aproveitando a circunstância de não ter sido imediatamente detectada a não entrega da quantia referente ao primeiro período não entregue, repetindo tal actuação nos períodos seguintes, sendo motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com o período pandémico, o que tornou sucessivamente mais difícil não recorrer a tal expediente, diminuindo sensivelmente a sua culpa na prática dos factos.
A resolução criminosa associada a cada período é distinta uma vez que, quando a ocasião se propiciou, o arguido teve que decidir-se a não entregar as declarações e quantias cobradas a título de IVA, assim renovando o dolo inerente à prática do crime.
Apesar de existir um lapso temporal entre o período de ... e o de ..., considerando o reduzido número de meses que medeia entre os referidos períodos e face à motivação subjacente à conduta de não entrega do IVA (dificuldades financeiras da sociedade arguida durante o período pandémico e afectação da quantia não entregue ao Estado ao pagamento de salários a trabalhadores), considera-se estarmos perante uma continuidade entre os períodos indicados na factualidade assente.
Estamos, pois, diante de um único delito (cometido por cada um dos arguidos) e não de dois crimes de abuso de confiança fiscal.
Mostram-se, pois, verificados, in casu, os pressupostos do crime continuado.
No processo n.º 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, verificamos que os arguidos foram condenados por factos datados dos terceiro e quarto trimestres do ano de ....
A decisão condenatória proferida no referido processo em ... de ... de 2018 transitou em julgado em ... de ... de 2019, sendo pois anterior aos factos em causa nos presentes autos que datam de ..., ... e ....
Não se verifica, pois, que os factos em causa nos presentes autos integrem, como aliás adianta já o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a continuidade criminosa dos que são objecto do processo n.º 303/17.5IDLSB.
Considerando que os factos em causa no processo n.º 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, datam de ... e ..., quando os factos em causa nos presentes autos datam de ..., ... e ..., interpondo-se, pois, um lapso temporal de um ano e quatro meses entre aqueles e estes, não se verificando, pois, uma homogeneidade em termos de conduta criminosa que tenha continuidade temporal em termos de preencher os requisitos da continuidade criminosa, entende-se que os factos em causa nos presentes autos não integram a continuação da conduta criminosa dos factos em causa no processo 521/20.9IDLSB.”
(…)
E) DA AUTORIA
Estatui o artigo 7.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.”.
O n.º3, do mesmo normativo determina que “A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.”.
Determina o artigo 6.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.”.
Considerando estas disposições legais, a autoria do ilícito é atribuída à pessoa colectiva que é contribuinte da título de IVA, a qual é, no caso dos autos, a arguida BB
Todavia, porque o arguido AA, na qualidade de administrador é, nessa medida, seu legal representante, a responsabilidade penal da pessoa colectiva estende-se também àquele, não estando em causa o cometimento do delito em co-autoria mas antes em autoria material.
Inexistem causas de justificação e de exclusão da culpa.
Pelo exposto, a sociedade arguida BB praticou, em autoria material (devendo ser absolvida da prática em co-autoria) e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.os 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, devendo ser absolvida da prática do outro crime de abuso de confiança fiscal pelo qual vinha acusada.
O arguido AA cometeu, em autoria material (e não em co-autoria) e na forma consumada, um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, devendo ser absolvido da prática do outro crime de abuso de confiança fiscal pelo qual vinha acusado..”
(…)
e. É a seguinte a fundamentação relativa à determinação das consequências penais no caso :
(…)
“2. DOSIMETRIA DA PENA
O crime de abuso confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Para a pessoa colectiva a pena é de multa de 20 até 1920 dias (cfr. artigo 12.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Importa, agora, determinar a medida da pena de acordo com os critérios definidos no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal.
Estatui aquela norma legal que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A culpa é o limite, inultrapassável, da medida da pena (artigo 40.º n.º 2, do Código Penal).
Nos termos do disposto no artigo 13.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”
No caso dos autos as exigências de prevenção geral revelam-se elevadas porquanto a prática deste tipo de ilícito é recorrente acarretando nefastas consequências para o erário público. Justifica-se, pois, a necessidade de afirmação da norma jurídica infringida.
As exigências de prevenção especial (positiva e negativa) são moderadas quanto à sociedade arguida porquanto esta apresenta dois antecedentes criminais, ambos por delito da mesma natureza do sub judice, datando a decisão condenatória mais recente de ..., logo de data posterior à dos factos em caus anos autos.
As exigências de prevenção especial relativamente ao arguido AA são elevadas porquanto o mesmo apresenta inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por delitos contra o património, incluindo diversas condenações por delitos tributários.
O arguido iniciou o seu percurso criminoso no ano de ..., perdurando o mesmo até à actualidade, sem que a condenação em sanções crescentemente gravosas, que incluiu penas de prisão suspensas na sua execução, uma das quais por decisão datada de ... (temporalmente próxima dos factos em causa nos autos), tenha constituída contra motivação apta a obviar ao cometimento do delito em apreço.
Acresce que o arguido continua a exercer funções de administração de empresas, pelo que não é possível realizar-se um juízo de prognose face ao não cometimento de futuro de ilícitos desta natureza.
Pelo exposto, os fins das penas não ficam suficientemente realizados com a aplicação, in casu, de uma pena de multa para o arguido, optando-se, quanto a este, por pena privativa da liberdade. Relativamente à sociedade arguida apenas a pena de multa está em causa.
Relativamente à sociedade arguida a moldura da pena de multa tem por limite mínimo 20 dias e por limite máximo 1.920 dias (cfr. artigo 12.º, n.º2, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Quanto ao arguido pessoas singular a moldura da pena de prisão tem por limite mínimo um mês (cfr. artigo 41.º, n.º1, do Código Penal) e máximo 3 anos.
Importa agora determinar a medida da pena de acordo com os critérios definidos no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, ponderando, igualmente, o prejuízo causado pelo delito (cfr. artigo 13.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Estatui o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A culpa é o limite, inultrapassável, da medida da pena (artigo 40.º n.º 2 do Código Penal).
As exigências de prevenção geral e especial são as supra mencionadas pelo que damos por reproduzidos os argumentos aí expendidos.
O grau de culpa dos arguidos é elevado considerando que o montante retido e não entregue é elevado (€73.811,65), mantendo-se em dívida.
Também o período durante o qual os factos foram cometidos é significativo.
Considerando todos os factores mencionados, entende o tribunal que se mostra adequada e suficiente a aplicação de uma pena de 200 (duzentos) dias de multa para a sociedade arguida e de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para o arguido AA.
Nos termos do artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal, a situação económica e financeira dos arguidos e os seus encargos são os factores a ponderar na determinação do quantum diário da multa.
O quantitativo diário da multa deve, porém, importar um sacrifício patrimonial, sob pena de perder a característica de uma pena. Não pode, no entanto, implicar uma total privação do sustento dos arguidos e, no caso da pessoa singular, também o do respectivo agregado familiar.
Ponderados estes factores e o disposto no artigo 15.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, fixa-se o quantum diário da multa em €6 (seis euros).
DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Estatui o artigo 58.º, do Código Penal, que “1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”.
Impõe este normativo a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a dois anos, como é o caso dos autos, por prestação de trabalho a favor da comunidade, excepto quando exigências de prevenção a isso obstem.
No caso em apreço, atentas as exigências de prevenção geral e especial de grau supra mencionado, sendo de relevar a circunstância de o arguido apresentar inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes contra o património e inúmeros por crimes tributários, tendo sido já condenada em pena privativa da liberdade sem que tal circunstância tenha obviado ao cometimento do delito em apreço, somente o sancionamento com pena de prisão realiza, de modo cabal, as finalidades de prevenção que a situação concreta requer.
DA NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Determina o artigo 50.º, n.º1, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
No caso dos autos foi decidida a aplicação, em concreto, de uma pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
A suspensão da execução da pena de prisão tem subjacente um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do agente, considerando a sua personalidade e as circunstâncias do facto.
No presente caso, importa atender a que o arguido apresenta inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes de abuso de confiança fiscal, tendo iniciado o seu percurso criminoso no ano de ... e perdurando o mesmo até à actualidade, sem que a condenação em sanções crescentemente gravosas, incluindo de pena de prisão suspensa na sua execução datada de ..., tenha obviado ao cometimento do delito sub judice.
Acresce que o arguido continua a exercer funções de administração de empresas, pelo que não é possível realizar-se um juízo de prognose face ao não cometimento de futuro de ilícitos desta natureza.
Pelo exposto, entende o Tribunal que, in casu, a ameaça da pena de prisão efectiva e a censura do facto já não se mostra suficiente para prevenir o futuro cometimento de ilícitos criminais, pelo que não se suspende a execução da pena de prisão.
DO REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Estatui o artigo 43.º, n.º1, do Código Penal, que “ 1- Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos; b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º; c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º 2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas. 3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado. 4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: a) Frequentar certos programas ou atividades; b) Cumprir determinadas obrigações; c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado; d) Não exercer determinadas profissões; e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas; f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes. 5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.”.
Constituem requisitos formais para a aplicação do regime de cumprimento na habitação i) a verificação de qualquer uma das situações previstas nas alíneas do n.º1 do artigo 43.º, do Código Penal e ii) o consentimento do arguido.
São requisitos materiais a adequação da pena às finalidades da punição, isto é, só exigências de prevenção geral e especial podem justificar a opção pelo regime de permanência na habitação.
Nos presentes autos o tribunal optou pela aplicação de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e o arguido consentiu em cumprir tal pena na habitação com vigilância electrónica.
In casu considerando as exigências de prevenção geral e especial supra mencionadas e cujos fundamentos damos por integralmente reproduzidos, e ponderando que o arguido confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos e nunca cumpriu pena privativa da liberdade, mostrando-se inserido em termos sociais e familiares, entende o tribunal que o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação realiza de forma adequada as finalidades da punição que a situação concreta reclama, devendo ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
Pelo exposto, mostrando-se preenchidos os requisitos legais, deve o arguido cumprir a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão em regime de permanência na habitação, com recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Refira-se que in casu, considerando quer as circunstâncias relacionadas com o período pandémico que estiveram na génese dos factos sub judice, e que são autónomas face a factos datados de período anterior, quer a decisão condenatória datada de ... que é anterior ao início do cometimento da conduta criminosa em causa nos presentes autos (...), verificamos que não estamos em face da aplicação do disposto no artigo 79.º, do Código Penal.”
(…)
»
II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.
a) Da existência de crime continuado, relativamente às anteriores condenações de que o arguido foi alvo.
Sustenta o recorrente que o Tribunal a quo errou ao não ter considerado a figura do crime continuado por relação aos factos em discussão no presente processo e aqueles outros do proc.n.º 303/17.TIDLSB, em 21-06-2018, e, posteriormente, com a sua continuação reconhecida e declarada no Proc. n.º 590/17.9IDLSB, em 14-01-2021, e no Proc. n.º 521/17.9IDLSB, em 15-11-2023, já transitados, pelo que deveria ter sido mantida a pena aplicada naqueles.
Vejamos:
Nos termos do n.º 1 do artigo 30 do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Conforme o n.º 2 do citado artigo 30, constitui um só crime a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Para se verificar o crime continuado, o agente tem de repetir um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
Tem entendido a doutrina e jurisprudência que são pressupostos essenciais do crime continuado os seguintes – cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1º vol., 3ª .ed. pág. 397:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada";
- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Nem todos estes pressupostos têm suscitado o mesmo nível de dúvidas, já que as mais frequentes e sensíveis se vêm situando no âmbito de dois deles:
- o mesmo bem jurídico;
- as condições exógenas que geram diminuição considerável da culpa.
Quanto ao bem jurídico diz a lei que para haver continuação criminosa tem esse bem que ser o mesmo nas plúrimas acções do agente.
Mas temos ainda a questão do requisito que exige um condicionalismo exterior ao agente que lhe facilite a prática do acto, diminuindo assim a sua culpa.
Refere o Prof. Eduardo Correia, in Lições de Direito Criminal, II, pág. 209, "pelo que, pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporta de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito".
O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se assim na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente. Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Ora, como referimos já no anterior acórdão proferido por este Tribunal, a possibilidade de se considerar que determinadas condutas podem ser entendidas num quadro de continuação criminosa, na figura de crime continuado, e que caso se entenda que a pena aplicável possa ser de igual ou menor gravidade, não deverá a mesma ser aplicada, caso haja uma anterior condenação, prevalecendo esta, tem sido defendida doutrinal e jurisprudencialmente – atente-se nos Ac.RC de 27/09/..., proc. 1432/16.8T9PBL.C1, Ac.RL de 19/02/2019, proc. d, Ac.RC de 10/03/2021, proc. 377/19.4T9CVL.C1 e Ac.RC de 15-11-2017, proc. 160/15.6IDLRA.C1, bem como Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pag.249, que sustentam tal posição.
Vejamos como o tribunal recorrido abordou agora esta questão:
No processo n.º 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, verificamos que os arguidos foram condenados por factos datados dos terceiro e quarto trimestres do ano de ....
A decisão condenatória proferida no referido processo em ... de ... de 2018 transitou em julgado em ... de ... de 2019, sendo pois anterior aos factos em causa nos presentes autos que datam de ..., ... e ....
Não se verifica, pois, que os factos em causa nos presentes autos integrem, como aliás adianta já o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a continuidade criminosa dos que são objecto do processo n.º 303/17.5IDLSB.
Considerando que os factos em causa no processo n.º 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, datam de ... e ..., quando os factos em causa nos presentes autos datam de ..., ... e ..., interpondo-se, pois, um lapso temporal de um ano e quatro meses entre aqueles e estes, não se verificando, pois, uma homogeneidade em termos de conduta criminosa que tenha continuidade temporal em termos de preencher os requisitos da continuidade criminosa, entende-se que os factos em causa nos presentes autos não integram a continuação da conduta criminosa dos factos em causa no processo 521/20.9IDLSB.”
Antes de mais, cumpre salientar que o recorrente sistematicamente alude a uma pretensa condenação ocorrida no proc. n.º590/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, relativamente à qual tínhamos já referido, em anterior acórdão, que a mesma não constava do certificado de registo criminal.
Tendo os autos descido à 1ª instância para conhecimento da questão invocada pelo recorrente na sua contestação, esta primeira, e correctamente, apreciou tão só a questão tendo em consideração as condenações que resultavam patentes do CRC.
O arguido foi regularmente notificado do despacho que solicitou as certidões relativas aos processos 303/17.5IDLSB e 521/20.9IDLSB4, nada tendo invocado quanto ao mesmo, ou, em alternativa, juntando aos autos certidão do processo que invoca.
Assim, não existe qualquer omissão de pronuncia por parte do despacho agora em análise, não podendo ser alvo de apreciação existência da referida condenação, por parte deste Tribunal.
Devemos assim cingir-nos apenas aos dois processos referidos, e da sua análise resulta evidente o acerto da decisão da 1ª instância.
Naqueles outros processos apreciaram-se condutas relativas ao arguido, praticadas no terceiro e quarto trimestres do ano de 20165, transitado em .../.../2019 (processo 303/17.5IDLSB) e ... e ...0...966, transitado em .../.../2023 (processo 521/20.9IDLSB).
No presente processo as condutas em apreço situaram-se entre ..., ... e ....
No que à primeira condenação diz respeito, e face à data do trânsito em julgado da mesma, é evidente que a sentença ali proferida, constitui uma interrupção necessária, provocando a quebra do primitivo desígnio criminoso, assistindo-se a partir da mesma à formulação de uma nova vontade, originária, portanto, incompatível com a afirmação de um nexo de coesão entre todos os crimes, pelo que os factos do presente processo tendo sido praticados muito depois daqueles outros, nunca poderiam ser considerados na perspectiva da continuação da actividade criminosa.
Também é certo que a segunda condenação, entendendo existir tal figura entre os factos ali apreciados e os factos do processo 303/17.5IDLSB, condenou o arguido nos seguintes termos:
“Assim, e ponderando os factos provados, a quantia que está em dívida e a atitude do arguido em audiência de julgamento e considerando o supra referido de que os factos praticados integram a continuação do crime de abuso de confiança fiscal pelos qual os arguidos foram condenados no âmbito do processo nº 303/17.1 IDLSB mostrando-se adequadas e suficientes as penas em que aí foram condenados e atento o disposto no artigo 79º do Código Penal, mantém-se as penas aplicadas aos arguidos neste último processo de pena de multa de 500 (quinhentos) dias à taxa diária de €5,00 (cinco euros) para a sociedade arguida e o arguido na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período subordinada ao pagamento das quantias no prazo da suspensão da pena em que é condenado.”
Mas isso foi o juízo efectuado em tal processo, que em nada condiciona a apreciação a efectuar neste.
E não pode deixar de entender-se que tendo em conta a última conduta apreciada no processo 521/20.9IDLSB, que remonta a ..., e a primeira conduta apreciada no presente processo – ..., a mesma traduz um hiato temporal tão dilatado que torna impossível afirmar uma diminuição da culpa do agente.
A doutrina7 e a jurisprudência8 têm vindo exigir como requisito do crime continuado a verificação de uma conexão temporal entre os diversos atos, uma vez que, de contrário, dificilmente se poderá afirmar, no caso concreto, a referida diminuição considerável da culpa.
É certo que os hiatos que possam existir entre os diversos factos podem ser maiores nuns casos do que noutros. Mas quando na atuação do agente existam intervalos de duração de alguns meses ou anos, como é o caso, poderá questionar-se, no caso concreto, a verificação do crime continuado.
Efetivamente, quanto maior for o hiato temporal entre os diversos actos, naturalmente haverá mais fortes e fundadas razões para se questionar a verificação e /ou manutenção de uma situação factual subsumível na figura do crime continuado.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, In Comentário do Código Penal, anotação ao art.30º, nota 25 “A mediação de um período de tempo tão dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime.”.
Deste modo, apenas se pode concluir que o distanciamento no tempo dos factos se deveu à verificação de uma nova avaliação da situação por parte do agente, o mesmo é dizer da existência de uma distinta resolução criminosa.
Esta nova resolução é reveladora de uma culpa acrescida, e, não de culpa consideravelmente diminuída, como seria suposto se estivéssemos no âmbito de uma renovação de uma anterior resolução criminosa inicialmente formada.
Pretende o recorre esgrimir o argumento que o hiato temporal é irrelevante porquanto o mesmo emergiu “de o recorrente AA ter alienado do seu próprio património pessoal um imóvel cujo produto da venda lhe serviu para pagamentos intercalares que coincidiram exatamente com esse hiato”.
Ora, nem esse facto foi dado como provado, e logo não é passível de utilização (tanto mais que o recorrente não impugnou a matéria de direito), mas o mesmo é a antítese do que o recorrente pretende demonstrar. Se este vendeu um imóvel para poder pagar os anteriores valores devidos fiscalmente, então a omissão de pagamento em análise no presente processo tem por base uma resolução criminosa totalmente distinta das anteriores, dado que assente em pressupostos fácticos distintos.
Improcede assim a pretensão do recorrente.
b) Se a pena aplicada ao recorrente deveria ser atenuada especialmente
Entende o recorrente que a pena que lhe foi aplicada deveria ter sido especialmente atenuada.
Sustenta-se no facto de ter envidado esforços no sentido de saldar os valores em dívida, nunca se ter pretendido apropriar dos valores em dívida, para além de ter confessado integralmente os factos imputados na acusação e demonstrado arrependimento sincero.
Antes de voltarmos a tal tema, um breve parêntesis, porquanto o arguido, sem nunca o motivar, invoca que a pena seria desproporcional e excessiva, pese embora após conexionar essa temática à questão da não atenuação.
Ainda assim, para que não restem dúvidas, cumpre salientar que no que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte:
A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final.
É função do recurso (…), antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.” (Acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, Processo n.º 09P0484, )
“Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”.9
Conforme refere o Ac.STJ de 18/05/2022, proc. 1537/20.0GLSNT.L1.S1, “A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”.
Perante tais considerandos, forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
Ora, face a todos os elementos de facto apurados nos autos temos para nós que a referida pena se mostra fixada com respeito pelos parâmetros legais a que fizemos referência, situando-se acertadamente no meio da moldura penal, inexistindo motivo para que deva ser alterada por este Tribunal de recurso, no que concerne a uma pretensa violação do disposto no art.40º e 71º do Código Penal.
Retomando agora a questão central do recorrente:
In casu, apenas poderá ponderar–se da atenuação especial da pena (a operar nos termos consignados no art. 73º do Cód. Penal) no caso de, como estipula o nº1 do art. 72º do Cód. Penal, «existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena».
O instituto da atenuação especial da pena pressupõe, pois, uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade de pena, o que apenas sucede quando a imagem global do facto e do comportamento do arguido, resultantes da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresentem com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando instituiu os limites normais da moldura cabida no tipo de facto respectivo – sendo que, para a generalidade dos casos normais, «lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios», cfr. Prof. Figueiredo Dias, e, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, ed. 1993, §454.
Nomeadamente percorrendo aquelas circunstâncias exemplificadas no nº2 do mesmo artigo, e que podem ser consideradas como denotando tal efeito atenuativo, afigura-se que o recorrente apela àquela elencada na alínea c) do nº2 do art. 72º do Cód. Penal, onde se prevê a ocorrência de «actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados».
Em primeiro lugar, cabe referir que a sentença recorrida apenas dá conta que o arguido recorrente “confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos”, mas não figura qualquer menção relativamente a um arrependimento demonstrado.
Por outro lado, cumpre realçar que, como refere o Ac.RC de 15/02/2012, proc. 363/10.0PBCBR.C1 «I – Não é toda e qualquer confissão que releva positivamente para a determinação da medida da pena. II - A confissão, enquanto atitude colaborante do arguido, pode traduzir-se ou não numa circunstância atenuante de carácter geral, influindo directamente na determinação da medida concreta da pena, ou relevando indirectamente, ao nível da valoração das exigências de prevenção especial, se no contexto em que for feita transmitir indicações positivas relativamente à atitude/personalidade do agente. III - O seu valor processual, em termos práticos, acaba por variar na razão directa da sua relevância, podendo assumir um vasto leque de graduações que vão da confissão extremamente relevante (a que permite ultrapassar acentuadas dúvidas ou ter como assentes factos para os quais não existe outra prova) à confissão absolutamente irrelevante (a título de exemplo, a confissão feita após concluída a produção da prova, quando todos os factos confessados se oferecem já como manifestamente provados; a confissão do óbvio, quando tiver havido prisão em flagrante delito), podendo ainda ser subjectivamente valorada na determinação da atitude interna do agente relativamente aos factos praticados e à interiorização da gravidade da sua conduta».
É consabido que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios.
Ora, não se afigura que a confissão dos factos na presente situação revista uma qualquer relevância especial, face ao tipo de ilícito em questão, relacionado com a não entrega das prestações tributárias, previamente declaradas.
É reconhecido que neste tipo de criminalidade a quase totalidade da prova é documental, sendo de reduzido valor, em termos práticos, a confissão, para além de que resulta da motivação da matéria de facto que as declarações do arguido serviram para formar a convicção do Tribunal em materialidade fáctica que reduz a culpa e a ilicitude do comportamento do arguido, sendo-lhe, portanto, favorável.
Por outro lado, resulta dos factos provados que tendo os arguidos se apropriado da quantia de €73.811,65, procederam apenas à entrega à Autoridade Tributária do valor global de €10.699,87.
Por outro lado, os arguidos celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas apenas três das prestações acordadas.
Face às importâncias entregues, e ao valor ainda em dívida, é evidente, mais uma vez, que tal não assume qualquer relevo extraordinário, que permita a convocação da figura da atenuação especial da pena.
Aliás, o art.22º nº2 do RGIT apenas permite a convocação da atenuação especial da pena quando ocorrer o pagamento integral das quantias em dívida, o que não foi o caso.
Remata o recorrente que a pena deveria ter sido especialmente atenuada porquanto não foi seu objectivo apropriar-se dos montantes, mas sim assegurar o pagamento dos salários.
Tal problemática tem sido alvo de tratamento constante por parte da jurisprudência, que não vê em tal circunstancialismo os requisitos que levem à atenuação especial da penal.
Conforme refere (por todos) o Ac.RG de 11/04/2005, proc.365/05-1, “VII – Assim é que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais, em que as atenuantes assumam especial relevo poderá ter lugar, o que não é, manifestamente, o caso em apreço. VIII – Por um lado, o contexto em que o crime ocorreu não assume relevância de maior, tratando-se, como de resto é habitual neste tipo de crimes, de uma situação em que a empresa passa por dificuldades económicas e as quantias de IVA são retidas e integradas no seu património (seja qual for o destino – para pagamento de salários aos trabalhadores, de fornecedores, aquisição de máquinas, etc.).”
Improcede assim o recurso nesta parte.
c) Se a pena de prisão aplicada deveria ter substituída por trabalho a favor da comunidade, ao invés do seu cumprimento através do regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos à distância
Como de início se relatou, vem o arguido condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.
Recorda–se que no âmbito do presente recurso não está em causa quer a prática pelo arguido dos factos pelos quais vem condenado, quer o enquadramento jurídico-penal dos mesmos, sendo a única questão apreciar e decidir se a pena de prisão em que o arguido foi condenado deverá ou não ser substituída por trabalho a favor da comunidade.
Vejamos se assiste razão ao arguido:
Uma vez determinada a concreta medida da pena de prisão a aplicar ao agente, impõe-se ao Juiz verificar se ela pode ser objeto de substituição.
A mais usual é a categorização em penas de substituição em sentido próprio (não detentivas) e em sentido impróprio (detentivas)10.
As primeiras agregam as penas de multa substitutiva da pena de prisão (art.45º do Cód. Penal), de suspensão da execução da pena de prisão nas diversas modalidades (arts. 50º a 57º do Cód.Penal), de trabalho a favor da comunidade (art. 58º do Cód.Penal) e de proibição do exercício de profissão, função e atividade, pública ou privada (art. 46º do Cód.Penal).
. Quanto às segundas, abarcam o regime de permanência na habitação (art.43º nº 1, al. a) do Cód.Penal).
Os pressupostos da prestação de trabalho a favor da comunidade encontram-se enunciados no artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal, nos seguintes termos:
1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”.
Como escreveu o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do crime, pág. 378, pressuposto material de aplicação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é, sobretudo, que ela se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição; que ela se revele, já o sabemos, susceptível de, no caso, facilitar - e, no limite, alcançar - a socialização do condenado, sem se mostrar incompatível com as exigências mínimas de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico.
A sua aplicação privilegia um adequado recurso às medidas não privativas de liberdade e permite o equilíbrio necessário e desejável entre a protecção da ordem pública e a reparação dos prejuízos causados à comunidade pela prática da infracção, tendo em consideração as necessidades de reinserção social do delinquente.
A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só deve ser aplicada, por um lado quando estiverem criadas as necessárias condições externas de apoio social ao infractor, e por outro, quando este não revele ter, pelo seu comportamento anterior recidivo e pelas manifestações anti-sociais da sua conduta actual, uma nítida falta de preparação da sua personalidade para se comportar licitamente (vd.Ac.RP de 02/11/2022, proc. 1324/13.2TAVLG.P2)
Uma das finalidades da punição é justamente a prevenção especial – a pena tem que ser adequada a afastar o agente da prática de novos delitos. Como vem referido no Ac.RL de 29/03/2006, proc.811/2006-3, “A pena de substituição de trabalho a favor da comunidade destina-se predominantemente a pessoas em relação às quais o contacto com o trabalho possa assumir – em certos casos até pela novidade da situação… - um efeito socializador”.
Invoca o recorrente, muito em síntese, que os crimes foram todos cometidos no âmbito da administração da sociedade arguida, e que os crimes que cometeu tiveram por base um contexto de crise económica-financeira, do destino que foi dado aos impostos não pagos, das dificuldades económicas da sociedade arguida, e da sua inserção social.
Revertendo ao caso dos autos, vejamos como o Tribunal recorrido fundamentou a não suspensão da execução da pena de prisão:
(…)
DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Estatui o artigo 58.º, do Código Penal, que “1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”.
Impõe este normativo a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a dois anos, como é o caso dos autos, por prestação de trabalho a favor da comunidade, excepto quando exigências de prevenção a isso obstem.
No caso em apreço, atentas as exigências de prevenção geral e especial de grau supra mencionado, sendo de relevar a circunstância de o arguido apresentar inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes contra o património e inúmeros por crimes tributários, tendo sido já condenada em pena privativa da liberdade sem que tal circunstância tenha obviado ao cometimento do delito em apreço, somente o sancionamento com pena de prisão realiza, de modo cabal, as finalidades de prevenção que a situação concreta requer.
(…)
Em face da matéria de facto dada como provada – cuja exatidão não vem posta em causa no recurso – constata-se que, além da prática dos factos vertidos na acusação pública, resultou também demonstrado o extenso rol de antecedentes criminais do recorrente, que vem sendo condenado por crimes em tudo idênticos desde ..., em sucessivas penas de multa, e penas de prisão suspensas na sua execução, sendo evidente que todas as penas alternativas ao cumprimento efetivo de pena de prisão foram já, por diversas vezes, proporcionadas ao recorrente, sem que este tivesse aproveitado qualquer uma das oportunidades que lhe foram concedidas para adequar normativamente os seus comportamentos, persistindo na prática dos mesmos ilícitos.
Reiteremos aqui as condenações de que o mesmo foi alvo:
GG) O arguido AA foi condenado, em .../.../2009, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 205º, Nº 1 e 4, alínea b) com referência ao artigo 202º, alínea b), 30º, nº 2 e 79º, TODOS DO Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º1, 218.º, n.º2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), e 79.º, todos do Código Penal, e de dois crimes de falsificação ou contrafacção de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a) e n.º3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, numa pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres.
HH) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 30 dias de multa.
II) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em .../.../2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.os 1, 2 e 4 e 7.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 180 dias de multa.
JJ) O arguido AA foi condenado, em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4 e 5 e 7.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a deveres. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
KK) O arguido AA foi condenado, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.
Deste modo, a avaliação efectuada pelo tribunal recorrido apresenta-se como totalmente correcta, e merece a nossa inteira adesão.
É evidente que tal enquadramento demonstra que o arguido está longe de haver interiorizado o desvalor da sua conduta e o juízo de censura incidente sobre a mesma.
E isso – é o que nesta sede cumpre realçar – coloca desde logo a fasquia da demanda de tutela da ordem jurídica e das exigências de prevenção num patamar extremamente elevado.
É que quanto fica já dito, releva desde logo também no que tange à avaliação da personalidade do arguido, factor também preponderante na decisão aqui a adoptar.
Manifestamente as anteriores condenações do arguido em medidas punitivas não detentivas, não serviram de suficiente dissuasor da reiteração criminosa do arguido, e nomeadamente por reporte a ilícitos que colocam em causa precisamente os mesmos valores jurídico–penais de ordem pessoal e comunitário.
Decisivo, o facto de o arguido ter cometido o crime pelo qual foi agora condenado ainda no decurso do período de suspensão do processo 303/17.5IDLSB, impedindo assim qualquer juízo de prognose favorável.
Mesmo recaindo sobre si a possibilidade de a pena de prisão que lhe foi aplicada ser revogada, o arguido, através do seu comportamento, demonstrou que se tornou imune às advertências de que é alvo, adoptando uma recorrente perspectiva nacional, que o não pagamento de impostos são uma forma de viabilizar empresas.
O que, tudo, não pode deixar de acentuar numa perspectiva muitíssimo desfavorável, a avaliação que se faz sobre a personalidade do arguido, que revela assim, mais que uma deficiente preparação para assumir o respeito pelos valores jurídicos básicos que reiteradamente vem colocando em causa, um manifesto desprezo pelos mesmos.
Todas estas considerações inquinam à partida o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, tornando o ‘risco’ que, nesta perspectiva, sempre envolve a ponderação pelo tribunal da substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade num risco que é tudo menos ‘prudente’.
Como se refere no Ac.RC de 03/10/2018, proc. 19/18.5PEFIG.C1, “VIII - Sendo o trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição em sentido próprio, entendemos que, em princípio, será de aplicar a crimes de pouca gravidade, especialmente quando estamos perante jovens e pessoas idosas, mas não quando o agente vem reiteradamente praticando crimes, designadamente da mesma natureza, e o crime em apreciação é praticado com grande frequência.”
Em face de um tal quadro, não assumem as circunstâncias invocadas pelo recorrente, e atinentes à dificuldade na gestão das empresas, o relevo pretendido, porquanto vindo o arguido a praticar factos semelhantes há mais de 20 anos logo permite a conclusão que deparando-se o mesmo com qualquer dificuldade económica no desenvolvimento da sua actividade, logo recorre ao não pagamento dos devidos tributos fiscais como forma de financiamento.
Em suma, mesmo sopesando as circunstâncias invocadas pelo recorrente, a verdade é que as finalidades da punição, ao nível da prevenção especial, resultariam absolutamente goradas com a aplicação ao arguido recorrente de sanção penal não privativa da sua liberdade – além, naturalmente, do que tal traduziria no defraudar das expectativas comunitárias de reposição da ordem jurídica e da confiança nas normas violadas e no cumprimento do direito.
Donde entender–se que não se mostram reunidos aqui os necessários requisitos que possibilitam a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, e que se mostram previstos no art. 58º do Cód. Penal.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
»
Lisboa, 17 de Junho de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
João Grilo Amaral
Ana Cristina Cardoso
Paulo Barreto
____________________________________________
1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. GG, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Ref. 439880179 de 07/11/2024
5. Ref.41028125 de 13/11/2024
6. Ref.41035537 de 13/11/2024
7. Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal - Da Unidade à Pluralidade de Infracções, 2ª R., Coimbra, 1996, p. 252-253; Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I
8. Cfr.Ac.RP de 06/01/2010, proc. 314/08.1GCAMT.S1.P1, Ac.RL de 13/04/2011, proc. 250/06.6PCLRS.L1-3, Ac.RG de 03/12/2024, proc. 186/20.8IDBRG.G1
9. Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197
10. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pag. 335