Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LAURINDA GEMAS | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA TÍTULO EXECUTIVO EMBARGOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – Nos embargos deduzidos pela arrendatária, como oposição à execução para pagamento de quantia certa movida com base no título previsto no art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006, não é nulo o saneador sentença, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por não conhecer de questões atinentes à (suposta) pendência do recurso de revista do despacho que julgou não verificada a deserção da instância na execução ou à pendência do processo de execução para entrega de coisa imóvel arrendada no âmbito do qual o locado já foi entregue. II – A norma do n.º 3 do art. 10.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, é abstratamente aplicável às cartas que integrem título para pagamento de rendas, quando se conclua que ocorreu alguma das vicissitudes previstas no n.º 1, o que, no caso dos autos, importa verificar. Não tendo a sociedade arrendatária, Embargante, negado que, pelo menos, uma das duas cartas cujas cópias foram juntas aos autos, com o respetivo a/r tenha sido enviada para o locado, tão pouco tendo alegado que o respetivo a/r da carta tenha sido assinado por “pessoa diferente do destinatário”, nada indicando, ante os factos provados, antes pelo contrário, que o a/r da carta enviada para o locado dirigida à arrendatária, que é uma sociedade comercial, tenha sido assinado por pessoa diferente do seu destinatário, é de concluir que a comunicação em apreço foi válida e eficazmente realizada, não estando demonstrada a verificação de nenhuma vicissitude que a tanto obste. III – No caso dos autos, a resposta à questão de saber se era devida a quantia indemnizatória prevista no art. 1045.º, n.º 2, do CC, de valor correspondente ao dobro da renda desde a data da cessação do contrato de arrendamento até à entrega do locado (que aconteceu a 22-10-2024) – pressupunha que estivesse resolvida, com trânsito em julgado, a questão (prejudicial) da denúncia do contrato de arrendamento, a qual ficou definitivamente decidida com o trânsito em julgado da sentença confirmada por acórdãos proferidos no aludido processo de oposição à execução para entrega de coisa imóvel arrendada, impondo-se com a autoridade do caso julgado. IV – O título executivo formado ao abrigo do disposto no art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006 pode abranger a indemnização prevista no art. 1045.º do CC quando, na comunicação enviada pelo senhorio ao destinatário - a sociedade arrendatária, ora Executada e Embargante - tenha sido interpelado para o respetivo pagamento no caso de não cumprir a obrigação de restituir o prédio arrendado, tendo sido indicados os elementos necessários para o cálculo do quantum indemnizatório. V – No caso dos autos, as alegações de facto feitas na Petição de embargos não justificam a procedência da exceção do não cumprimento do contrato, tendo em atenção o disposto nos artigos 428.º, 1032.º e 1040.º, n.ºs 1 e 2, do CC; nem tão pouco permitem qualificar a atuação das senhorias, ao exigirem o pagamento das rendas vencidas até à data da cessação do contrato de arrendamento e da indemnização prevista no art. 1045.º do CC, como um abuso do direito (cf. art. 334.º do CC). VI – Já a atuação da arrendatária, ao invocar nos presentes embargos, deduzidos em novembro de 2018, as aludidas exceções para justificar a recusa do pagamento da renda, ainda que hipoteticamente tivesse respaldo nos preceitos legais invocados, configuraria um inadmissível exercício do direito, uma posição abusiva, porquanto contrária à boa fé, aos bons costumes ao fim económico e social dos direitos em apreço, considerando designadamente que: outorgou o contrato de trespasse em 2007, quando no locado funcionava um estabelecimento de “garagem – estação de serviço, oficina de reparação de veículos motorizados”, estando o espaço, segundo diz, carecido de obras; apesar disso, além de ter celebrado o trespasse, procedeu durante anos ao pagamento de rendas; só a poucos meses da cessação do contrato e quando o mesmo já havia sido denunciado, deixou de pagar as rendas por alegadamente estar “exausta” e continuar a não poder exercer qualquer atividade no locado; apesar disso, nada comunicou então à senhoria no sentido de serem realizadas as necessárias obras, nem se compreendendo como poderia esperar que o fossem nos escassos meses que restavam para a cessação do contrato; apesar disso ainda, continuou a ocupar o locado durante mais de 12 anos, o que não deixa de constituir uma forma de gozo da coisa locada; pese embora até seja indiferente o uso concreto que deu ao espaço locado, tudo aponta que o fez para parqueamento de automóveis que se encontram a aguardar oportunidade de serem reparados no espaço onde a Executada tem a sua oficina de reparação de automóveis, estação de serviço e escritórios a funcionar. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados I - RELATÓRIO GARAGEM VENEZA, LDA., com sede na Praça 1, interpôs o presente recurso de apelação do saneador-sentença que julgou improcedente a oposição à oposição, mediante embargos, que deduziu por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa contra si intentada por AA e BB. Os autos executivos principais tiveram início em 28-12-2016, com a apresentação de Requerimento executivo em que as Exequentes peticionaram o pagamento coercivo da quantia exequenda que liquidaram no montante de 55.204.11 €, alegando que: 1. As Exequentes são, ambas, proprietárias da fração autónoma designada pela letra "A", correspondente ao rés do chão, com entrada pelos números 3-A a 3-E, destinado a garagem, e uma arrecadação no piso de entrada e galeria superior parcial a tardoz, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Praça 2, inscrito sob o art.º ... na matriz predial respetiva da freguesia de Alvalade, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n.º ... da mencionada freguesia (cf. cópia da certidão permanente, que se junta como documento n.º 1 e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais); 2. Em 13.02.2007, a Executada adquiriu, por trespasse, o estabelecimento comercial de garagem e oficina de reparação automóvel, instalado e a funcionar na fração autónoma do prédio urbano referido em 1., bem como o direito ao respetivo arrendamento, em que era, na altura, senhoria CC, mãe das Exequentes (cf. cópia do contrato de trespasse que se junta como documento n.º 2 e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais); 3. A então senhoria procedeu à denúncia do contrato de arrendamento relativo à fração autónoma onde se encontra instalado o estabelecimento mencionado em 2. e, nesses termos, a Executada estava obrigada a entregar o respetivo imóvel até ao dia 31.08.2012 - o que ainda não aconteceu - sendo que a validade da referida denúncia e o efetivo despejo da Executada são objeto da ação executiva que corre termos no J5 da 1.ª Secção de Execução da Comarca de Lisboa, sob o n.º de processo 20896/12.2YYLSB; 4. Não obstante, a verdade é que a Executada desde abril de 2012 a até à presente data não pagou qualquer quantia pela ocupação do imóvel que se mantém até aos dias de hoje; 5. Com efeito, a Executada não pagou as rendas relativas ao locado referentes aos meses de abril de 2012 a agosto de 2012, no total de € 2.510,50 (dois mil quinhentos e dez euros e cinquenta cêntimos) nem tão-pouco a indemnização correspondente ao valor da renda elevada ao dobro, conforme o disposto no artigo 1045.º do Código Civil, devida desde 31.08.2012, data em que o contrato de arrendamento cessou por caducidade - indemnização que, em outubro de 2016, ascendia a € 50.210,00 (cinquenta mil duzentos e dez euros); 6. Nos termos do disposto no artigo 14.º A do NRAU, no dia 27.10.2016, as Exequentes procederam à notificação da executada, comunicando-lhe o montante da dívida, referido em 5. (cf. cópia das cartas remetidas para o local arrendado, bem como para a sede da Executada e dos respetivos avisos de receção que se juntam como documento n.º 3 e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), constituindo tal comunicação título executivo nos termos da lei; 7. Não obstante ter recebido a referida comunicação, até à presente data, a Executada nada pagou às Exequentes; 8. Deste modo, a Executada é devedora da quantia referida em 5, no total de € 52.720,50 (cinquenta e dois mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos), bem como dos juros de mora vencidos, à taxa legal, calculados desde o dia 28.10.2016 até à presente data no valor de € 475,21 (quatrocentos e setenta e cinco euros e vinte e um cêntimos); 9. A tais quantias acresce ainda a indemnização correspondente ao valor da renda elevada ao dobro, que se venceu desde novembro a dezembro de 2016, no total de € 2.008,4 (dois mil e oito euros e quatro cêntimos), bem como os juros de mora, à taxa legal, calculados sobre o capital em dívida, até integral pagamento; 10. Deste modo, a Executada é devedora da quantia de € 55.204,11 (cinquenta e cinco mil duzentos e quatro euros e onze cêntimos), valor ao qual acrescem ainda a indemnização estabelecida no artigo 1045.º do CC, correspondente ao valor da renda elevado ao dobro, até à entrega do imóvel, e os juros vincendos. O valor exequendo corresponde ao valor total de € 55.204,11 (cinquenta e cinco mil duzentos e quatro euros e onze cêntimos), conforme se discrimina: a) € 2.510,50 (dois mil quinhentos e dez euros e cinquenta cêntimos) relativas às rendas do locado referentes aos meses de abril de 2012 a agosto de 2012; b) € 50.210,00 (cinquenta mil duzentos e dez euros) correspondente à indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil, equivalente ao valor da renda elevada ao dobro, devida desde 31.08.2012 até outubro de 2016; c) € 475,21 (quatrocentos e setenta e cinco euros e vinte e um cêntimos) correspondente aos juros de mora vencidos sobre as quantias em a) e b), à taxa legal, calculados desde o dia 28.10.2016 até à presente data; d) € 2.008,4 (dois mil e oito euros e quatro cêntimos) correspondente à indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil que se venceu desde novembro a dezembro de 2016. As Exequentes juntaram os referidos documentos, juntando ainda, na sequência de notificação nesse sentido, cópia “legível” do contrato de arrendamento e respetiva cópia datilografada [dada a difícil legibilidade do contrato original, celebrado por escritura pública em 10-10-1958], bem como cópia integral do contrato do contrato de trespasse, constando do doc. 3, além do mais, dois avisos de receção de cartas dirigida à Executada, para a “Praça 2” e para “Praça 1” assinados em 28-10-2016. A Executada juntou procuração em 24-01-2017 (assinada por DD, em representação daquela). Em 21-05-2019, foi proferido despacho que indeferiu o incidente de arguição da nulidade da citação. Em 06-02-2023 foi proferido despacho que indeferiu o requerimento da Executada de extinção da instância executiva por deserção, despacho do qual foi interposto recurso (com efeito devolutivo – cf. despachos de 15-05-2023 e 29-09-2024). O presente apenso teve início em 07-11-2018, com a apresentação pela Executada da sua Petição de embargos, invocando, em síntese, no que ora importa: - A falta de título executivo, por a comunicação do montante em dívida não obedecer aos requisitos legais, por não ter sido assinada pelo seu legal representante e não ter sido confirmada nos termos do art. 10.º, n.º 3, do RAU; - A inexigibilidade da obrigação exequenda, já que o contrato de arrendamento não findou, não tendo a Executada a obrigação legal de pagar a indemnização do art. 1045.º do CC, não sendo, por isso, correto o valor da execução, sendo o valor das rendas vencidas desde abril de 2012 de 25.000 €; - A execução configura uma situação de exceção de não cumprimento do contrato e de abuso de direito, porque a oficina, quando foi tomada de trespasse, apresentava pavimento, paredes e teto em estado de degradação, esburacados e com infiltrações, casas de banho que não funcionavam, sem sistema elétrico de incêndio, infiltração de água quando chovia, entupimento do esgoto do prédio, tendo a Executada solicitado a realização de obras, mas que foram recusadas e mesmo assim, foi pagando as rendas até meados de 2012, sem que os recibos solicitados tenham sido recebidos, deixando a Executada de auferir lucros que computa no valor mensal de 1.000 €. As Exequentes apresentaram Contestação, em que pugnaram pela improcedência dos embargos, alegando, em síntese, que: - A comunicação do valor em dívida foi remetida para a morada do local arrendado e também foi remetida para a sede da Executada; - A denúncia do contrato foi validamente efetuada, dizendo o valor em execução respeito às rendas e à indemnização; - A Executada conhecia perfeitamente o estado em que se encontrava o imóvel quando ao adquiriu por trespasse em 2007; - Enquanto houve pagamento, os recibos foram emitidos, o que deixou de acontecer quando a Executada deixou de pagar. Mais requereram a condenação da Executada por litigância de má fé no pagamento de 10.000 €. A Executada respondeu, defendendo inexistir fundamento para a sua condenação por litigância de má fé. Foi junta aos autos (cf. ofício de 21-05-2024) informação sobre o estado do proc. n.º 20896/12.2YYLSB-A, ou seja, da oposição à execução para entrega de coisa imóvel arrendada que as ora Exequentes, como sucessoras habilitadas da primitiva exequente, movem contra a ora Executada; da informação consta designadamente a sentença proferida na oposição à execução, bem como certidão dos acórdãos aí proferidos, com indicação de que o trânsito em julgado se verificou em 02-02-2024; na referida sentença, datada de 01-10-2018, decidiu-se julgar improcedente a oposição à execução, e, em consequência, determinou-se o prosseguimento da ação executiva com vista à entrega, às exequentes, da fração autónoma em causa nos autos; nessa sentença foram considerados provados os seguintes factos: 1. Por sentença transitada em julgado proferida em 09.07.2014, no âmbito dos autos de habilitação de herdeiros que constitui o apenso “B” aos autos executivos a que o presente se encontra também apenso, em face do falecimento da exequente originária CC, foram as requerentes BB e AA, julgadas habilitadas a assumir a posição de exequentes nos autos – decisão de fls. 38 e 39 dos autos de Habilitação de Herdeiros apensos aos autos executivos a que o presente incidente se encontra, também, apenso 2. As exequentes, à altura da propositura do incidente de habilitação de herdeiros que consta como apenso “B”, eram proprietárias da totalidade do prédio urbano sito na Praça 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de Alvalade e inscrito na matriz sob o art.º 187 da Freguesia de Alvalade e, atualmente, são, ambas, proprietárias da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés do chão, com entrada pelos números 3-A e 3-E, destinado a garagem, e uma arrecadação no piso de entrada e galeria superior parcial a tardoz, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Praça 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de Alvalade e inscrito na matriz sob o art.º ... da Freguesia de Alvalade, com inscrição a favor das exequentes pela apresentação 4, de 29.12.2003 – certidão predial de fls. 5 e 6 do apenso “B” e documento entretanto pesquisado e junto aos autos 3. Em 13.02.2007, a executada/opoente adquiriu, por trespasse, o estabelecimento comercial de garagem e oficina de reparação automóvel, instalado e a funcionar na fração autónoma do prédio urbano referido em 2.2, bem como o direito ao arrendamento respetivo – cópia do contrato de trespasse de fls. 43 a 52 do processo executivo e acordo das partes 4. Em 15.02.2007, a anterior arrendatária do estabelecimento referido em 2.3., “Garagem Auto-Arrais, Lda.”, remeteu à então senhoria CC, uma carta, comunicando-lhe a realização da transferência da sua posição negocial para a agora executada e juntando cópia do contrato de trespasse – documento de fls. 22 do processo executivo 5. A então senhoria identificada em 2.4., requereu, em 24.05.2007, a notificação judicial avulsa da executada/opoente, na pessoa do seu sócio-gerente DD de que, nos termos dos artigos 26º, n.º 6, al. a) da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro e 1101º doo Código Civil, pretendia denunciar o contrato de arrendamento relativo à fração autónoma onde se encontra o estabelecimento referido em 2.3., a partir de 31.08.2012, informando que a executada/opoente lhe devia restituir o locado completamente devoluto naquela data, tendo aquela notificação sido realizada na morada da executada/opoente, na pessoa de EE, identificado como responsável da sociedade, em 26.06.2007 – documentos de fls. 31 a 33, do processo executivo 6. A então senhoria identificada em 2.4., remeteu à sociedade executada/opoente, em junho de 2011, uma carta registada com aviso de receção, confirmando a denúncia do contrato de arrendamento relativo à fração autónoma onde se encontra o estabelecimento referido em 2.3. informando que tal imóvel lhe deveria ser restituído até 31.08.2012, tendo o respetivo aviso de receção sido devolvido devidamente assinado – documentos de fls. 34 a 36 do processo executivo 7. Tal carta foi recebida em 02-06-2011 por FF, que na altura trabalhava para a executada, exercendo as suas funções no Posto de Abastecimento de combustíveis explorado pela executada, a poucos metros das instalações desta ( dos nºs 2 e 3 ), sendo certo que sempre que a oficina de reparações de automóveis explorada pela executada por qualquer razão estava encerrada, o distribuidor do serviço postal entregava a correspondência àquela dirigida no dito posto de abastecimento de combustível 8. O que sucedeu naquele dia, tendo FF aposto a sua assinatura no aviso de receção de fls. 36 dos autos de execução, cujo original se encontra a fls. 289 da oposição . 9. Tendo depois entregue aquela carta a EE, genro do patrão, e melhor identificado em 5 dos factos provados. 10. A executada/opoente, apesar das solicitações que lhe têm sido feitas, ainda não entregou às exequentes a fração autónoma referida em 2. – art.º 7 do requerimento inicial executivo e acordo das partes 11. A executada tem a sua oficina de reparação de automóveis, estação de serviço e escritórios a funcionar na Praça 1 12. Desde que a executada recebeu de trespasse o estabelecimento referido nos nºs 2.2 e 2.3 dos factos provados, que destina esse espaço ao parqueamento de automóveis que se encontram a aguardar oportunidade de serem reparados no nº 2, em virtude daquele espaço situado no nº 3 ter problemas com infiltrações de água, que degradaram as paredes e o chão, não tendo assim condições para ali serem reparadas as viaturas. Situação que já se verificava quando adquiriu o espaço através do trespasse. 13. A executada solicitou à exequente autorização para realizar obras de beneficiação no locado, o que a senhoria não consentiu. 14. A exequente disponibilizou-se a fazer as obras com vista a suprimir as infiltrações de água no interior do nº 3. Na referida sentença, considerou-se que era válida e eficaz a comunicação da denúncia do contrato de arrendamento, o que mereceu a concordância da Relação de Lisboa, designadamente no acórdão datado de 02-07-2020, em que se julgou, além do mais, que a então senhoria deu cumprimento ao disposto no artigo 1104.º do Código Civil, confirmando atempadamente a sua decisão de denunciar o contrato de arrendamento, comunicação também válida e eficaz, e que vir agora invocar o abuso de direito de denúncia do contrato com base na alegada falta de realização de obras no locado, por danos pré-existentes à celebração do contrato de arrendamento inicial, traduz uma situação de venire contra factum próprio que sempre obstaria à procedência da exceção de abuso de direito. Realizou-se audiência prévia em 23-10-2024. Após, em 21-01-2025, foi proferido o Saneador-sentença recorrido, cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “5.1. Atento o exposto, julga-se a oposição mediante embargos improcedente por não provada, prosseguindo a execução os seus trâmites. 5.2. Absolve-se a executada do pedido de condenação por litigância de má fé em indemnização às exequentes no valor de 10 000,00€. 5.3. Custas pela executada/embargante (art. 527 nº. 1 e nº. 2 do C. P. Civil). * Fixa-se o valor dos embargos de executado em 25 000,00€ (art. 306 do C. P Civil).” É com esta decisão que a Executada/Embargante não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões (que reproduzimos, retificando os lapsos de escrita): A - A Recorrente recorre da decisão que que julgou a oposição mediante embargos improcedente por não provada, B - A decisão refere que a comunicação efectuada pelas exequentes obedeceu aos requisitos legais, devendo improceder o alegado pela arrendatária, sendo devida a indemnização nos termos do 1045º do Código Civil, e que também improcede a excepção do não cumprimento do contrato e de exercício abusivo do direito. C - O Meritíssimo Juiz, ao decidir de mérito no saneador, como fez, proferiu uma decisão precipitada, surpresa, com falta de alicerces, o que conduziu a uma decisão errada, injusta e mesmo nula. D - O Tribunal deveria mandar prosseguir os autos para julgamento, e apreciar não só a documentação junta, como aquela que, eventualmente, as partes viessem a juntar, assim como ouvir os depoimentos das testemunhas, e as declarações e depoimentos das partes. E - Com uma incompleta fundamentação e uma fundamentação de Direito, também incompleta e errada, o Meritíssimo Juiz cometeu erro de julgamento. F - Também não conheceu factos e questões fundamentais para a sua decisão, e que deveria apreciar e ter em conta, e também pronunciou-se sobre questões que não deveria conhecer, inquinando a decisão com a nulidade do artigo 615º, nº 1 ,alínea d) do CPC. G - O Meritíssimo Juiz, na sua fundamentação de facto, não conheceu questões que não poderia deixar de ter em conta: Assim, - No processo nº 20896/12.2YYLSB, do 5º Juízo de Execução de Lisboa, não foi conhecida a questão de que os autos não estão findos, nomeadamente, está pendente desde, 13/11/2024, um recurso, o qual ainda não objecto de despacho de admissão. - No processo nº 20896/12.2YYLSB, do 5º Juízo de Execução de Lisboa, não foi conhecida a questão de que os autos não estão findos, nomeadamente, está pendente um recurso de procedimento cautelar com o nº 20896/12.2YYLSB-D. - Nos autos de execução à margem, está pendente um recurso, cujo objecto é a existência ou não de extinção da instância por deserção. H - Em relação aos factos 3 e 4 que constam dos fundamentos de facto e das demais referências que a decisão faz ao processo nº 20896/12.2YYLSB, do 5º Juízo de Execução de Lisboa, ou o Meritíssimo Juiz não as deveria fazer, ou então não omitia os pontos acima alegados em G, a real situação do referido processo nº 20896/12.2YYLSB. I - Não poderia ter feito uma escolha selectiva. J - Se na execução à margem, está pendente um recurso, cujo objecto é a existência ou não de extinção da instância por deserção, tal questão não pode ser omitida na fundamentação de facto. L - Na fundamentação de facto, o Tribunal não conheceu os prejuízos que a executada tem tido com a atitude das exequentes ao recusarem quaisquer obras no locado, mesmo a expensas da arrendatária, numa intenção deliberada de impedir a executada, desde o trespasse em 2007, de exercer a actividade objecto do contrato de arrendamento - a reparação de veículos. M - Na apreciação das várias questões da fundamentação de facto, na apreciação das questões fundamentais dos embargos, relativamente à comunicação efectuada pelas exequentes, à indemnização requerida e consequente valor em execução, à falta de condições do locado, à falta de emissão dos recibos de renda, o tribunal errou no julgamento das questões. N - A comunicação feita pelas exequentes à arrendatária não foi válida e eficaz. O - É fundamental aferir da sua eficácia da comunicação, aferir se foi recebida e conhecida pelo representante legal da ora recorrente. P - A comunicação não foi recebida nem conhecida pelo representante legal da executada/arrendatária. Q - É inaplicável e desajustada a referência ao processo de execução para entrega de coisa certa (nº 20896/12.2YYLSB), na consideração da comunicação como válida e eficaz, uma vez que o processo para entrega de coisa certa é um processo ainda em crise com, pelo menos, dois recursos a correr, não existindo qualquer autoridade do caso julgado. R - Desde 2027, desde a tomada do trespasse, a executada não teve condições para instalar no local uma oficina de reparação automóvel, conforme o objecto do contrato. S - Dispõe o artigo 428º do CC, que nos contratos bilaterais, cada um dos contraentes pode recusar a sua prestação, enquanto a outra não cumprir também a parte que lhe cabe. T - A arrendatária pediu obras, propôs mesmo fazê-las, logo após o trespasse, mas foram recusadas e, mesmo assim, ainda foi pagando rendas até Abril de 2012. U - Até que entendeu parar o pagamento das rendas até a outra parte cumprir também o que lhe cabia - assegurar o gozo do locado, para as finalidades contratadas. V - O dever do pagamento da indemnização do artigo 1045º do CC, o mesmo deve ser aferido ao momento da interposição da acção. X - O título executivo deve ser exacto e definir, com precisão, os fins e os limites da acção executiva. W - Na execução para entrega de coisa certa, o processo não findou e a própria entrega poderá ter natureza provisória. Z - Quanto à questão da execução configurar uma situação de não cumprimento do contrato e de abuso de direito, apesar de conhecida a situação ao momento do trespasse, as senhorias impediram a realização de obras e a actividade da arrendatária. AA - Existe uma situação de Abuso de Direito, por impedimento na realização e obras, uma vez que foi a atitude das exequentes que impediu a executada de poder usufruir o objecto do arrendamento, ultrapassando os limites da boa-fé. BB - A situação foi causando prejuízos à executada, os quais computa em quantia superior a €1.500.000,00. CC - O Tribunal violou os artigos 615º, nº 1, alínea d) e artigo 20º da CRP. Terminou a Apelante requerendo que seja dado provimento ao presente recurso, anulando-se em consequência a decisão recorrida, bem como a sua substituição por uma outra que mande prosseguir os autos. Foi apresentada alegação de resposta, em que as Apeladas defenderam que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto e, subsidiariamente, ser julgado totalmente improcedente, e, em consequência: a) serem indeferidas as nulidades invocadas pela Apelante; e b) manter-se integralmente a Sentença recorrida e a execução nos seus termos. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II - FUNDAMENTAÇÃO Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC). Identificamos as seguintes questões a decidir: 1.ª) Se a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por omissão de pronúncia sobre factos e questões de que o Tribunal a quo deveria ter conhecido e por se ter pronunciado sobre questões de que não deveria conhecer; 2.ª) Se a comunicação feita pelas Exequentes à Executada/arrendatária não é válida e eficaz; 3.ª) Se na execução principal não pode ser efetuada a cobrança coerciva da quantia atinente à indemnização prevista no art. 1045.º do CC; 4.ª) Se devem ser julgadas procedentes as exceções do não cumprimento do contrato e do abuso do direito, considerando as alegações fácticas de que as senhorias impediram a realização de obras e a atividade da arrendatária e não emitiram recibos. Questão prévia Pese embora na conclusão M da sua alegação recursória, a Apelante afirme que “Na apreciação das várias questões da fundamentação de facto, na apreciação das questões fundamentais dos embargos, relativamente à comunicação efectuada pelas exequentes, à indemnização requerida e consequente valor em execução, à falta de condições do locado, à falta de emissão dos recibos de renda, o tribunal errou no julgamento das questões”, o certo é que não concretizou minimamente em que consistiu o erro de julgamento na apreciação de “várias questões da fundamentação de facto”. Se porventura a Apelante pretendeu impugnar a decisão da matéria de facto, rejeita-se uma tal impugnação, por manifesta inobservância dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1, do CPC. Factos provados Na decisão recorrida foram considerados provados os factos que ora se reproduzem (retificando os lapsos de escrita, designadamente no ponto 1): 1. As Exequentes intentaram ação executiva para pagamento de quantia certa, munidas dos seguintes documentos (que se consideram reproduzidos): 1.1. contrato de arrendamento, celebrado em 10 de outubro de 1958, do imóvel sito na Praça 2, no qual era Senhoria CC, mãe das Exequentes e arrendatária a Garagem Auto-Arrais, Ldª. 1.2. comunicações remetidas à Garagem Veneza, Ldª.: para a Praça 2, datada de 26 de outubro de 2016, e recebida por GG [trata-se de lapso de escrita, lendo-se no a/r “HH”] em 18-10-2016 [leia-se 28-10-2016], e para a Praça 1, datada de 26 de outubro de 2016, e recebida por GG [trata-se de lapso de escrita, lendo-se no a/r “HH”] em 18-10-2016 [trata-se de lapso de escrita, a data é 28-10-2016], de que constam entre o mais: 1.3. “Contrato de trespasse (art. 1112 do Código Civil)” de 13-02-2007, celebrado entre a Garagem Auto-Arrais, Ldª. e a Executada, de que consta: 2. Desde abril de 2012 que a Executada não paga as rendas. 3. O locado foi entregue pela Executada em 22 de outubro de 2024 às Exequentes no âmbito da execução para entrega de coisa certa com n.º 20896/12.2YYLSB, intentado pelas aqui Exequentes contra a Executada, que corre termos no Juízo Execução de Lisboa – Juiz 5. 4. Nos embargos de executado, que correram por apenso à referida ação executiva para entrega de coisa certa com n.º 20896/12.2YYLSB, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 02-02-2024, manteve a sentença proferida na 1.ª instância que julgou improcedentes os embargos ali deduzidos (certidão junta que se dá por integralmente reproduzida). Da nulidade da decisão recorrida A Apelante pretende que seja declarada a nulidade da decisão recorrida, pelas razões suprarreferidas, que, em síntese, são as seguintes: na fundamentação de facto, o Tribunal recorrido não conheceu questões que não poderia deixar de ter em conta, designadamente que no proc. n.º 20896/12.2YYLSB está pendente desde, 13-11-2024, um recurso, estando ainda pendente um recurso de procedimento cautelar n.º 20896/12.2YYLSB-D; nos autos principais de execução, está pendente um recurso cujo objeto é a existência ou não de extinção da instância por deserção; o tribunal não deveria fazer referência aos factos 3 e 4 dos fundamentos de facto nem outras referências ao proc. n.º 20896/12.2YYLSB ou então, fazendo-as, não deveria omitir os pontos alegados em G, que evidenciam a real situação desse processo; na fundamentação de facto, o Tribunal não conheceu os prejuízos que a Executada tem tido com a atitude das Exequentes ao recusarem quaisquer obras no locado, numa intenção deliberada de impedir a Executada, desde o trespasse em 2007, de exercer a atividade objeto do contrato de arrendamento (a reparação de veículos). As Apeladas discordam, argumentando, em síntese, que: a conclusão G não faz sentido nenhum e a Apelante não justifica a que título, nem em que sentido, deveria a 1.ª instância pronunciar-se sobre recursos apresentados noutros processos, sendo certo que a sentença proferida no âmbito dos embargos de executado deduzidos na ação executiva para entrega do locado (proc. n.º 20896/12.2YYLSB-A – cf. ponto 4. da matéria de facto) transitou em julgado; a alegação de que está pendente um recurso relativo à extinção da instância por deserção, não tem cabimento porque: (i) o Tribunal a quo já se tinha pronunciado nos autos sobre a questão (cf. despacho de 29-09-2024); (ii) o mesmo em nada conflitua com a presente lide; (iii) ao recurso foi dado efeito meramente devolutivo; (iv) a decisão da 1.ª Instância que indeferiu o pedido de extinção da instância por deserção, apresentado pela Apelante, foi já confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça já indeferiu a revista dessa decisão por acórdão proferido em 25-02-2025; não existe qualquer omissão de pronúncia que determine a nulidade da sentença recorrida, a qual contemplou todas as questões em juízo. Vejamos. Nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. De salientar ser absolutamente pacífico que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que alude aquele normativo legal, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos (mormente alegações de factos e meios de prova) produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões. Neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 10-01-2012, no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt. A lei é também muita clara ao prever que, quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, que até pode ser oficiosamente determinada em certas situações, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC. Da análise do processo, e como melhor se verá adiante até pelas passagens da decisão recorrida que serão citadas, resulta claro que na mesma não foi omitida pronúncia sobre quaisquer verdadeiras questões, como tal não se podendo considerar os aspetos indicados pela Apelante, designadamente os atinentes à alegada pendência do processo n.º 20896/12.2YYLSB (execução para entrega de coisa certa) ou do apenso D desse processo (procedimento cautelar), sendo isso irrelevante para o andamento da execução para pagamento de coisa certa de que os presentes autos constituem apenso, uma vez que o locado foi entregue pela Executada em 22 de outubro de 2024 às Exequentes no âmbito da execução para entrega de coisa certa com n.º 20896/12.2YYLSB (já o decidido na oposição à execução desse processo se reveste de relevância pelas razões que adiante serão mencionadas). Tal como se mostra irrelevante a suposta pendência de um recurso de revista do despacho proferido na execução principal que julgou não verificada a deserção da instância. De qualquer modo, sempre se dirá que a Apelante não comprovou a pendência de um tal recurso e não nos foi possível pela consulta do Citius verificar o estado do mesmo, mas tudo indica que já terá findado, face ao alegado pelas Apeladas e ao teor do acórdão do STJ de 25-02-2025, proferido no proc. n.º 32041/16.0T8LSB-C.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Por outro lado, a suposta questão atinente aos alegados prejuízos é matéria que se relaciona apenas com as exceções do não cumprimento do contrato e do abuso do direito, que foram apreciadas na decisão recorrida, como adiante se verá; de qualquer forma, as alegações de facto quanto a prejuízos não foram dadas como provadas, sendo certo que um eventual erro de julgamento de facto a esse respeito é questão que a Apelante não cuidou de suscitar devidamente, com observância dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1, do CPC, conforme suprarreferido. Nenhuma razão assiste à Apelada quando defende ter havido excesso de pronúncia, pois o Tribunal limitou-se a apreciar as questões suscitadas na Petição de embargos, tendo ainda em atenção, como não podia deixar de ser, por se tratar de questão de conhecimento oficioso, o decidido na oposição à execução que correu termos n.º 32041/16.0T8LSB-A, face à autoridade do caso julgado. Acresce que a Apelante não impugnou devidamente a decisão de facto a esse respeito, parecendo ter olvidado, além do mais, o disposto nos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 644.º, n.º 1, do CPC. Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso atinentes à arguição de nulidades da decisão recorrida. Da invalidade ou ineficácia da comunicação que integra o título executivo Na fundamentação de direito da decisão recorrida foram tecidas as seguintes considerações: «Vieram as exequentes intentar ação executiva para pagamento de quantia certa nos termos do art. 14-A do NRAU, de que resulta que “o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”. Trata-se, pois, de um título executivo complexo, composto pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao arrendatário dos valores em dívida: “Para as acções de pagamento da renda, o título executivo é de natureza complexa, porque formado não só pelo contrato de arrendamento, mas também pelo documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do valor em dívida” (ac. TRC de 29.11.2011, proc. nº. 6519/10.8TBLRA.C1, relatado pelo Desembargador Jorge Arcanjo, disponível em dgsi.pt). O contrato em causa é um contrato de arrendamento, cuja definição legal consta do art. 1º do RAU como o contrato sinalagmático pelo qual é cedido o gozo temporário de um prédio urbano, mediante retribuição (a renda). * Alega a embargante que as comunicações do montante em dívida não obedecem aos requisitos legais, por não terem sido assinadas pelo seu legal representante e não foi confirmada nos termos do art. 10 nº. 3 do RAU. As exequentes invocam que a comunicação do valor em dívida foi remetida para a morada do local arrendado e também foi remetida para a sede da executada, sem terem qualquer obrigação legal disso. Refira-se, primeiramente, que esta execução para pagamento das rendas em falta não depende da resolução do contrato pelo senhorio, pelo que a comunicação da dívida não tem de revestir as formalidades exigidas pelo arts. 9 nº. 1 do NRAU: “no caso da execução para pagamento de quantia certa com fim de obter a cobrança de rendas, encargos ou despesas em dívida a comunicação ao arrendatário, nos termos do art. 14-A do NRAU, pode ser efetuada através da utilização de qualquer meio (cfr. o art. 219, CCiv), desde que seja idóneo para transmitir essa comunicação e para comprová-la, diversamente do que a redação da al. b) do nº. 2 do art. 10 NRAU parece incutir” (J. H. Delgado de Carvalho, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Quis Juris, 2ª Edição, p. 503, igualmente aplicável ao referido art. 15 nº. 2 do RAU). Assim, a comunicação não tem de ser feita por carta registada com aviso de recepção: “Uma vez que o que a lei pretende é que esteja comprovada a comunicação ao arrendatário dos montantes de renda em dívida, parece-nos que apenas é de exigir que tal comunicação se encontre comprovada, por qualquer meio, desde que suficiente para atingir tal desiderato – comprovação de que ao arrendatário foi feita a comunicação com indicação/especificação dos montantes em dívida. O que mais se reforça se atentarmos que nos termos do disposto no artigo 219.º, do CC, vigora como regra geral a liberdade de forma e que, nos termos do artigo 224.º, n.º 1, do mesmo Código, a declaração negocial que tem um destinatário, se torna eficaz logo que chega ao seu poder ou dele é conhecida.” (ac. TRC de 5.02.2013, proc. 643/11.7TBTND-A.C1, relatado pelo Desembargador Arlindo Oliveira, disponível em dgsi.pt). Sucede que, no caso dos autos, as exequentes até optaram por remeter a comunicação por carta por via registada com aviso de recepção. E enviaram-nas para duas moradas, sendo uma o local do arrendamento, e a outra a sede da executada, como resulta do contrato de trepasse. Note-se que o art. 9 nº. 2 do RAU determina que “as cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.” E assim fizeram as exequentes. Como tal, é irrelevante não ter sido o legal representante da executada a assinar o aviso de recepção. Por outro lado, o invocado art. 10 nº. 3 do RAU é inaplicável. De facto, o art. 10 reporta-se ao art. 9 nº. 1, no qual estão em causa comunicações para cessação do contrato, para atualização da renda e para obras. Portanto questões que aqui não estão em causa, uma vez que a comunicação é relativa à falta de pagamento de rendas. De resto, a questão foi apreciada no âmbito dos embargos deduzidos por apenso à ação executiva para entrega de coisa certa, sendo que o acórdão ali proferido julgou a comunicação “válida e eficaz”. Nestes termos, improcede o alegado pela executada.» A Apelante discorda deste entendimento, defendendo, em síntese, que: as comunicações feitas pelas Exequentes à arrendatária não foram válidas e eficazes, sendo fundamental aferir se foram recebidas / conhecidas pelo seu representante legal, o que não sucedeu; é inaplicável e desajustada a referência ao processo de execução para entrega de coisa certa (n.º 20896/12.2YYLSB) na consideração da comunicação como válida e eficaz, uma vez que o processo para entrega de coisa certa é um processo ainda em crise com, pelo menos, dois recursos a correr, não existindo qualquer autoridade do caso julgado. As Apeladas, por sua vez, argumentam, em suma, que: a Executada recebeu a comunicação, nos termos do art. 14.º-A do NRAU, encontrando-se a mesma junta aos autos com os respetivos registos e avisos de receção como título executivo, não tendo a Apelante posto em causa nenhum dos meios de prova constantes dos autos, não se vislumbrando, por isso, o sentido ou a validade das afirmações da Apelante sobre a eficácia da comunicação. Vejamos. A questão em apreço relaciona-se com a formação do título executivo (complexo) que foi dado à execução – cf. art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC e art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27-02. A Apelante não impugnou a decisão da matéria de facto (pelo menos não o fez devidamente), estando provado que as comunicações que integram o título executivo, foram remetidas à Garagem Veneza, Ld.ª para (i) a Praça 2, datada de 26 de outubro de 2016, e recebida por HH em 28-10-2016, e (ii) para a Praça 1, datada de 26 de outubro de 2016, e recebida por HH em 28-10-2016. Estabelece o art. 9.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 6/2006, de 27-02 (na redação vigente à data da expedição das referidas cartas) que: “1 - Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção. 2 - As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação por escrito deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.” O art. 10.º, n.ºs 1 a 3, da referida Lei (na redação então em vigor) tem o seguinte teor: “1 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que: a) A carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais; b) O aviso de receção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário. 2 - O disposto no número anterior não se aplica às cartas que: a) Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º; b) Integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14.º-A e 15.º, respetivamente, salvo nos casos de domicílio convencionado nos termos da alínea c) do n.º 7 do artigo anterior. 3 - Nas situações previstas no número anterior, o senhorio deve remeter nova carta registada com aviso de receção decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta.” Não é, assim, correto afirmar, como entendeu o Tribunal a quo, que o art. 10.º, n.º 3, é inaplicável por a comunicação em apreço ser relativa à falta de pagamento da renda. Na verdade, a norma do n.º 3 é abstratamente aplicável às cartas que integrem título para pagamento de rendas, mas apenas quando se conclua que ocorreu alguma das vicissitudes previstas no n.º 1, o que, no caso dos autos, importa verificar. A este respeito, as considerações feitas no acórdão proferido, em 02-07-2020, no proc. n.º 20896/12.2YYLSB, cuja certidão foi remetida aos presentes autos, não podem ser transpostas em ordem a concluir pela validade e eficácia da comunicação em apreço. Com efeito, as comunicações ali analisadas nada tinham a ver com o pagamento de rendas, mas com a denúncia do contrato de arrendamento. No entanto, embora a propósito de questão diversa da que nos ocupa, tais considerações não deixam de ter algum interesse para o caso, servindo como referência jurisprudencial, na medida em que aí se considerou pertinente fazer uma interpretação sistemática e teleológica dos preceitos atinentes às comunicações aos arrendatários, lembrando, além do mais, o regime da citação das pessoas coletivas, o que nos parece ajustado. Com efeito, o regime da citação das pessoas coletivas mostra bem que, mesmo perante um ato com a importância de que se reveste a citação, não é indispensável que seja efetuada na pessoa dos legais representantes, estando previsto (cf. art. 223.º, n.º 3, do CPC), que as pessoas coletivas e as sociedades se consideram ainda pessoalmente citadas ou notificadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração. A Embargante não negou que, pelo menos, uma das duas cartas cujas cópias foram juntas aos autos, com o respetivo a/r tenha sido enviada para o locado. Tão pouco alegou que o respetivo a/r da carta tenha sido assinado por “pessoa diferente do destinatário”. Aliás, na Petição de embargos, nem sequer foi alegado quem eram os gerentes da sociedade Executada em 28-10-2016. Ante os factos provados (sendo certo que a Apelante não cuidou de impugnar a decisão da matéria de facto, pelo menos com observância do disposto no art. 640.º, n.º 1, do CPC), nada indica, antes pelo contrário, que o a/r da carta enviada para o locado dirigida à arrendatária, que é uma sociedade comercial, tenha sido assinado por pessoa diferente do seu destinatário, pelo que só podemos concluir que a comunicação em apreço foi válida e eficazmente realizada, não estando demonstrada a verificação de nenhuma vicissitude que a tanto obste. Da indemnização prevista no art. 1045.º do CC Na sentença recorrida, ainda com relevância para a questão mais abrangente da formação válida / insuficiência do título executivo e da constituição da obrigação prevista no art. 1045.º do CC, teceram-se as seguintes considerações: «A embargante vem alegar que o contrato não findou e não tem qualquer obrigação legal de pagar a indemnização do art. 1045 do C. Civil, não sendo a quantia exequenda exigível e não sendo o valor da execução correto, sendo o valor das rendas desde abril de 2012 de 25 000,00€. Cumpre referir, primeiramente, que como resulta da execução para a entrega de coisa certa, o contrato findou, já tendo inclusivamente sido entregue o imóvel. De acordo com os art. 1038 al. a) do C. Civil é obrigação do arrendatário pagar a renda: “a renda é a obrigação principal do sinalagma contratual que impende sobre o arrendatário por força do preceituado nos artigos 1022, in fine, e 1038 alínea a), ambos do CC” (Albertina Maria Gomes pedroso, A resolução do contrato de arrendamento no novo e novíssimo regime do arrendamento urbano, Julgar, 19 – janeiro-abril 2013, p. 51). Nos termos do princípio geral contido no art. 762 nº. 1 do C. Civil, “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”. Resulta dos autos que a executada não cumpriu, deixando de pagar a renda desde abril de 2012, executando as exequentes os valores devidos a esta título. No que concerne à indemnização, dispõe o art. 1045 nº. 1 do C. Civil que se o locado não for restituído, o locatário é obrigado a pagar até ao momento da restituição a renda que as partes tiverem estipulado. Caso o não faça, nos termos do nº. 2, constitui-se em mora e a indemnização é elevada para o dobro. No caso dos autos, as exequentes fizeram constar da referida comunicação que, além das rendas, ficaria a executada constituída na obrigação de indemnização: “Também na nossa jurisprudência, a questão da inclusão das rendas e indemnizações vincendas não tem sido pacífica, tendo sido entendido que podendo este título abranger também as rendas vincendas até à resolução do contrato e as indemnizações devidas após a resolução e até entrega do locado, para a sua fixação haverá que recorrer ao incidente de liquidação previsto no artigo 805º do CPC (actual 716º), quer esteja dependente de simples operação aritmética ou não (neste sentido vidé Ac. de 22/05/2014, proferido no proc. nº 8960/12.2 TCLRS-B.L1-6). Tem sido igualmente entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se este artigo 14-A, apenas às rendas e encargos. Ora, o título executivo deve ser preciso e conter com rigor todos os termos da obrigação, não podendo a obrigação exequenda sair do âmbito aí delimitado e estabelecendo o artigo 10 nº 5 (anterior artº 45º) doCPC, em conformidade, que “toda a execução tem por base num título, pelo qual determinam o fim e os limites da acção executiva”. Ora, neste caso, quer o arrendatário quer o fiador, foram notificados do valor das rendas em dívida, que constam aliás especificadas no contrato, decorrendo igualmente da lei o valor da indemnização devida. A fixação concreta do valor destas rendas vincendas depende da data em que o locado for (ou foi) entregue e o valor devido pelo atraso na restituição do locado está também avisado na notificação realizada: - é o dobro da renda devida, conforme decorre do disposto no artº 1045 do C.C. Em suma, “sendo conhecido o valor da renda, derivando da lei o prazo de entrega do locado após a declaração de resolução, e dependendo este da data concreta em que a entrega seja feita, e em caso de ultrapassar o prazo, tendo havido aviso de que seria devido o pagamento da renda em dobro, os concretos valores devidos podem, com mediana clareza, ser alcançados, compreendidos e estabelecidos, em suma podem, pelo notificado, ser liquidados por dependerem de simples cálculo aritmético a partir da data de entrega do locado. De resto, a interpretação segundo a qual “o montante em dívida” tem de ser indicado por referência numérica expressa seria incompatível com os casos em que estivessem em curso efeitos ainda não concretamente fixados, mas fixáveis, designadamente rendas vencidas após a notificação judicial avulsa.” (mencionado Acordão desta Relação de 27/10/16; neste sentido vidé ainda o Ac. de 18/12/2014, T.R. Coimbra 182/13.1TBCTB-A.C1). Estando a indemnização liquidada pela própria lei, e constando da comunicação que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia e extraprocessual liquidação através da comunicação efectuada ao arrendatário. De facto, neste caso, a liquidação resume-se a uma operação aritmética, por forma a que a iliquidez desaparece em função dos montantes já indicados pelo exequente, que acaba por formular um pedido líquido.” (ac. TRL de 18.01.2018 processo nº. 10087-16.9T8LRS-B.L1-6, relatado pela Desembargadora Cristina Neves, disponível em dgsi.pt). Entende-se, pois, ser devida a indemnização, improcedendo o alegado.» A Apelante sustenta que o Tribunal recorrido errou na apreciação da questão relativa à indemnização requerida e consequente valor em execução, alegando, em síntese, que o dever do pagamento da indemnização do art. 1045.º do CC deve ser aferido ao momento da propositura da ação, sendo que, na execução para entrega de coisa certa, o processo não findou e a própria entrega poderá ter natureza provisória; o título executivo deve ser exato e definir, com precisão, os fins e os limites da ação executiva. Vejamos. Preceitua o art. 1045.º do CC, sob a epígrafe “Indemnização pelo atraso na restituição da coisa”, que: “1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.” É sabido que, em certos casos de cessação do contrato (como a caducidade ou a resolução extrajudicial do contrato – cf. artigos 1053.º e 1087.º do CC), o arrendatário pode continuar a ocupá-lo durante algum tempo, sem incorrer em mora quanto à obrigação de restituição do mesmo, sendo devido, até à data da entrega do imóvel, a título de indemnização, o valor da “renda”, nos termos do n.º 1 do art. 1045.º do CC. Porém, conforme previsto no n.º 2 do art. 1045.º, logo que o arrendatário se constitua em mora na restituição da coisa, incorre na obrigação de pagar uma indemnização “agravada”, no valor da “renda” em dobro (com referência ao período temporal entre o início dessa mora e a efetiva entrega do imóvel). No caso dos autos, a resposta à questão em apreço – saber se era devida a quantia indemnizatória (em parte já liquidada no requerimento executivo), de valor correspondente ao dobro da renda desde a data da cessação do contrato de arrendamento até à entrega do locado (que aconteceu a 22-10-2024) – pressupunha que estivesse resolvida, com trânsito em julgado, a questão (prejudicial) da denúncia do contrato de arrendamento, a qual ficou definitivamente decidida com o trânsito em julgado da sentença confirmada por acórdãos proferidos no proc. n.º 20896/12.2YYLSB-A, sendo irrelevante que a execução propriamente dita possa eventualmente não ter findado (por alguma razão que não se descortina). É evidente que essa decisão se impõe agora, com a autoridade do caso julgado, não se descortinando nenhum erro de julgamento da decisão recorrida a este respeito. O mesmo se diga, aliás, quanto à questão, que sempre seria de conhecimento oficioso, da falta de título executivo válido (insuficiência do título) no tocante à quantia indemnizatória correspondente ao dobro da renda. Com efeito, não se desconhece a existência de uma corrente jurisprudencial (minoritária) que considera não estar abrangida pela previsão do art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006 a indemnização prevista no art. 1045.º do CC, corrente essa ilustrada, a título exemplificativo, pelos seguintes acórdãos: - o ac. da Relação de Lisboa de 19-11-2020, no proc. 5508/20.9T8SNT (disponível em ECLI:PT:TRL:2020:5508.20.9T8SNT.A.L1.2.44 e com voto de vencida da ora Relatora), em cujo sumário se refere precisamente que: “I – A indemnização prevista no art. 1045/2 do CC, mesmo que incluída em termos determináveis na comunicação em causa no art. 14-A/1 do NRAU, não é abrangida pela exequibilidade do título aí previsto, por não ser uma obrigação contratual e na data da comunicação ainda não estarem verificados os pressupostos da indemnização. II – Já o mesmo não se pode afirmar da “indemnização” prevista no art. 1045/1 do CC.” - o ac. da Relação de Guimarães de 27-01-2022, no proc. n.º 4218/20.1T8VNF-A.G1 (disponível em www.dgsi.pt): “1 – O artigo 14-A do NRAU abrange as rendas e a indemnização devida por o locatário, após findar o contrato, não restituir a coisa locada. 2 – A indemnização prevista no artigo 1045º, nº 2, do Código Civil não é abrangida pela exequibilidade do título previsto no artigo 14-A do NRAU.” - o ac. da Relação de Lisboa de 07-04-2022, no proc. n.º 20420/19.6T8SNT-B.L1-6, (disponível em www.dgsi.pt): “4.1.–Considerando que as normas que prevêem a criação dos títulos executivos acabam em rigor por dispensar a existência de processo judicial prévio, então devem as mesmas “ser interpretadas restritivamente, não se podendo ir além da sua literalidade, ou seja, não é de admitir o seu alargamento por interpretação extensiva e, muito menos, por analogia. 4.2.–As indemnizações previstas nos artºs 1041º/1 e 1045º/2 ,ambos do CC, mesmo que incluídas em termos determináveis na comunicação em causa no art. 14º-A/1 do NRAU, não se mostram em termos claros abrangidas pela exequibilidade do título neste último normativo previsto. 4.3.–No seguimento do referido em 4.1. e 4.2., não pode assim a execução prosseguir termos para cobrança coerciva dos montantes pela exequente reclamados a título de indemnização devida pela arrendatária/executada e a título de mora em sede de obrigação de pagamento da renda e obrigação de restituição do locado.” Todavia, a maioria da jurisprudência tem considerado que se pode formar validamente título executivo para cobrança de tal indemnização quando o destinatário (no caso, a arrendatária) tenha sido advertido/interpelado para o seu pagamento, na comunicação enviada pelo senhorio, aí se indicando, com referência ao elementos necessários para o cálculo do quantum indemnizatório, que incorria no dever de indemnizar no caso de não cumprir a obrigação de restituir o prédio arrendado. Neste sentido, destacamos os seguintes acórdãos (disponíveis em www.dgsi.pt): - o ac. da RL de 18-01-2018, no proc. n.º 10087-16.9T8LRS-B.L1-6: “– Não revestindo por si, o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, a qualidade de título executivo, esta qualidade foi-lhe atribuída expressamente pelo artº 703 nº1 d) do C.P.C., sendo este título de natureza complexa, composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e fiador) dos montantes em dívida. (…) – O artº 14-A do NRAU abrange quer as rendas vencidas quer as rendas vincendas e a indemnização devida pela mora na entrega do locado, contendo a comunicação remetida todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia liquidação, a qual se resume a uma operação aritmética.” - o ac. da Relação de Coimbra de 04-06-2019, no proc. n.º 7285/18.4T8CBR-B.C1: “I – O título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador). II – O título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida. III – Não obstante, tem de constar da comunicação feita [ao arrendatário e a eventual fiador] que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.” - o ac. da Relação de Guimarães de 27-01-2022, no proc. n.º 4218/20.1T8VNF-A.G1: “1 – O artigo 14-A do NRAU abrange as rendas e a indemnização devida por o locatário, após findar o contrato, não restituir a coisa locada. 2 – A indemnização prevista no artigo 1045º, nº 2, do Código Civil não é abrangida pela exequibilidade do título previsto no artigo 14-A do NRAU.” - o ac. da Relação de Coimbra de 18-01-2022, no proc. n.º 998/20.2T8SRE-A.C1: “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para obter o pagamento coercivo da indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada, quando o destinatário foi advertido de que incorria no dever de indemnizar no caso de não cumprir a obrigação de restituir o prédio arrendado e lhe foram indicados todos os dados para o cálculo do quantum indemnizatório”. - o ac. da Relação do Porto de 11-10-2022, no proc. 309/22.2T8VLG-A.P1 : “I – O título executivo configurado pelas disposições conjugadas dos artigos 703.º, n.º 1, al. d), do Código Civil, e 14.º-A, n.º 1, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, é suscetível de justificar a propositura de ação executiva não só contra o arrendatário mas também contra o fiador, desde que este, tal como aquele, seja previamente notificado quanto ao montante em dívida, e desde que esta se mostre abrangida pelo âmbito obrigacional da fiança prestada. II – Para além das rendas em dívida, incluindo as vincendas até restituição do locado, também a indemnização por mora, nos termos do n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil, é suscetível de ser abrangida pela força executiva do título mencionado em I).” - o ac. da Relação de Lisboa de 21-03-2024, no proc. n.º 1397/22.7T8SNT-A.L1-8 (com voto de vencido):“O título executivo formado nos termos e ao abrigo do disposto no art. 14º-A do NRAU abrange a indemnização pelo atraso na restituição da coisa prevista no nº 2, do art. 1045º, do CC desde que na comunicação a efetuar ao arrendatário (e ao fiador – quando do contrato resulte a obrigação de pagar as indemnizações devidas ao ex-senhorio nos termos daquele normativo -) constem os seguintes elementos: comunicação da resolução do contrato; interpelação para entrega da coisa e para o pagamento da indemnização decorrente da lei para o caso de incumprimento, que, dependendo de simples cálculo aritmético, será liquidada no requerimento executivo por referência ao período temporal ali balizado”. - o ac. da Relação de Lisboa de 26-06-2025, no proc. n.º 3679/23.1T8OER-A.L1-6: “(…) II - A licitude da ocupação não afasta a aplicação do disposto pelo art.º 1045º, n.º 1 do Código Civil; já assim ocorre com a aplicação do n.º 2 da norma: sendo justificada (e enquanto for justificada) a ocupação do imóvel pelos executados não há qualquer mora e, por consequência não há lugar à elevação ao dobro da indemnização. III – A exequente dispõe de título executivo nos termos do art.º 703º, n. 1 d) do Código de Processo Civil e art.º 14º-A, n.º 1, do NRAU, formado à luz desta norma, para obter o pagamento da indemnização devida pela ocupação do locado no período que medeia entre a cessação do contrato e a entrega do locado.” O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 21-06-2022, proferido no proc. n.º 9443/20.2T8SNT-A.L1.S1, uma execução com base em título formado ao abrigo do art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006, composto por «um contrato de arrendamento e dois contratos denominados “prestação de serviços”, acompanhados de cartas de comunicação das rendas em atraso, valores das despesas a cargo dos executados e valores de indemnização», considerou, conforme consta do respetivo sumário que: “I - O título executivo previsto no art.14.º-A da Lei n.º 6/2006 (denominada NRAU) pode ser feito valer contra o fiador do arrendatário, desde que este seja notificado diretamente dos montantes em dívida, como decorre do disposto no art. 1041.º, n.os 5 e 6, do CC (aditados pela Lei n.º 13/2019). II - Tal solução não constitui uma violação do numerus clausus dos títulos executivos previstos no art. 703.º do CPC, porque, em rigor, o art. 14.º-A não enuncia, em termos excludentes, o sujeito em relação ao qual o título executivo pode ser feito valer. Esta norma define a estrutura constitutiva do título (integrado por dois documentos: contrato de arrendamento e comunicação do montante em dívida) e delimita a tipologia de débitos relativamente aos quais tal título se torna normativamente operativo (rendas, encargos, despesas que corram por conta do arrendatário).” Estava em causa, conforme consta do ponto 12 do elenco dos factos provados, uma situação de falta de pagamento das rendas e preço respeitantes às frações arrendadas e aos lugares de estacionamento utilizados, bem como aos encargos e despesas anexos ao contrato de arrendamento, em que a exequente havia interpelado a sociedade executada e o seu fiador (executado) para pagamento dos valores em dívida nessa data, alertando para a aproximação da data de cessação dos contratos, altura em que os espaços deveriam ser entregues, sob pena de aplicação de indemnização correspondente ao valor da renda elevada ao dobro, tendo o Supremo entendido que se encontrava formalmente constituído título executivo com base no qual o fiador pode ser demandado e, consequentemente, para se concluir que a execução deve continuar contra ele. Na doutrina, Soares Machado e Regina Santos Pereira, in “Arrendamento Urbano (NRAU)”, 3.º ed., Petrony, pág. 281, alertando para as possíveis discussões judiciais que a aplicação do aludido preceito pode suscitar, indicam o que consideram ser o procedimento mais seguro (menos controverso) e eficaz a adotar pelo senhorio, referindo designadamente que a notificação do arrendatário (e do fiador) “deve conter a comunicação da resolução do contrato e, também, a comunicação relativa ao montante de rendas, encargos ou despesas em dívida até esse momento, mencionando-se, desde logo o valor das rendas, encargos e despesas vincendos, incluindo os devidos nos termos do art.º 1045.º, n.º 1, ou n.º 2 do C.C., consoante o caso”. A posição que se perfilha é esta última, mantendo a relatora a posição já adotada na declaração de voto no ac. da RL de 19-11-2020 acima indicado, seguindo-se de perto as considerações então expendidas. Com efeito, pese embora a letra do art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27-02, não seja tão clara como seria desejável quanto à questão de saber se título executivo assim formado pode ou não abranger a indemnização prevista no art. 1045.º do CC, os elementos de interpretação histórico, teleológico e sistemático, apontam para que os conceitos de “montante em dívida” e “rendas” constantes do referido art. 14.º-A (e na versão primitiva da lei, no art. 15.º, n.º 2) abranjam a indemnização legal do art. 1045.º do CC, preceito legal em que está estabelecido/tarifado (sem recurso, pois, às regras gerais dos artigos 562.º e ss. do CC) o valor da compensação devida pelo arrendatário ao senhorio pela ocupação do locado uma vez findo o contrato de arrendamento e até à efetiva entrega do imóvel. Assim, alcança-se, a nosso ver, a melhor harmonia do sistema jurídico (no plano do direito substantivo e processual) com respeito pela intenção do legislador dispensar o senhorio do recurso à ação declarativa para cobrança das quantias a que tenha direito no caso de falta de pagamento de renda, quer na primitiva versão do NRAU (2006), quer posteriormente, apontando nesse sentido desde logo as alterações introduzidas com a Lei n.º 31/2012, que veio ampliar de forma expressa a possibilidade de formação de título também quanto às despesas e encargos que corram por conta do arrendatário e criar o procedimento especial de despejo, com possibilidade de “o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário” “ser deduzido cumulativamente com o pedido de despejo no âmbito do referido procedimento desde que tenha sido comunicado ao arrendatário o montante em dívida”. Efetivamente, com o NRAU de 2006 facultou-se ao senhorio a possibilidade de recorrer à execução para entrega do imóvel arrendado e, depois, no NRAU revisto em 2012, ao procedimento especial de despejo (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 34/X, na génese da Lei n.º 6/2006: “Tendo em vista aligeirar a pendência processual em fase declarativa, prevê-se a ampliação do número de títulos executivos de formação extrajudicial, possibilitando-se ao senhorio o recurso imediato à acção executiva (…)”). Ou seja, criou-se uma alternativa ao regime da ação de despejo para resolução do contrato com o fundamento previsto no art. 64.º, n.º 1, al. a), do antigo RAU (aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10), ação em que habitualmente, a par da resolução do contrato e do despejo propriamente dito, era corrente o pedido de condenação do arrendatário no pagamento das “rendas vencidas e vincendas até efetiva desocupação do locado, sendo o valor correspondente ao dobro da renda após a data do trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução do contrato” (ou formulações idênticas), sendo certo que sempre se entendera que pretensões assim formuladas abrangiam a indemnização prevista no art. 1045.º do CC e uma decisão judicial condenatória que as atendesse constituía título executivo. Não se compreenderia, pois, que o legislador tivesse pretendido tornar mais difícil ao senhorio a cobrança coerciva dessa indemnização, na situação mais gravosa da mora na obrigação de restituição da coisa locada, impondo-lhe que, apesar de poder exigir o pagamento das rendas devidas por via da execução baseada no título executivo previsto na Lei n.º 6/2006, tivesse de recorrer à ação declarativa para aí obter o título executivo quanto ao valor (indemnizatório) remanescente em dívida. Indispensável para a formação do título executivo é que, na comunicação efetuada pelo senhorio, conste a expressa advertência quanto à intenção de cobrar, por a considerar devida, uma tal indemnização, com referência aos elementos a considerar para a sua liquidação, a qual poderá ter lugar, por se bastar com um simples cálculo aritmético, no âmbito da própria execução, desde logo no próprio no requerimento executivo, sem prejuízo da liquidação feita a final pelo agente de execução. Portanto, as razões que justificam que o montante da indemnização seja elevado para o dobro não afastam a possibilidade de formação do título executivo a esse respeito, desde que, como acontece no caso em apreço, a comunicação tenha sido devidamente efetuada e estejam já definidos os indispensáveis marcos temporais (designadamente a data a partir da qual a mora na restituição do locado se iniciou). Em suma, contanto que a comunicação prevista no art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006 as mencione, é legalmente admissível a formação de título executivo relativamente às rendas vencidas, às rendas vincendas, bem como à “indemnização pelo atraso na restituição da coisa” prevista no art. 1045.º do CC, incluindo no n.º 2 deste preceito legal (de qualquer modo, não tendo a comunicação essa abrangência, sempre se concederia que pudesse ser efetuada nova comunicação, mesmo na pendência da execução para pagamento das rendas, atenta a possibilidade de cumulação sucessiva de execuções – cf. art. 711.º do CPC). Por tudo isto, atento o teor da comunicação enviada à arrendatária, concluímos que a indemnização de valor correspondente ao da renda no período que decorreu entre a cessação do contrato e a restituição do locado, pode ser cobrada coercivamente na execução de que os presentes autos constituem apenso. Do não cumprimento do contrato e do abuso do direito Na fundamentação de direito da sentença recorrida, foram ainda tecidas, além do mais, as seguintes considerações: “Alega a embargante que a execução configura uma situação de não cumprimento do contrato e de abuso de direito, porque a oficina quando foi tomada de trespasse apresentava pavimento, paredes e teto em estado de degradação, esburacados e com infiltrações, casas de banho que não funcionavam, sem sistema elétrico de incêndio, infiltração de água quando chovia, entupimento do esgoto do prédio, tendo a executada solicitado a realização de obras, mas que foram recusadas e mesmo assim, foi pagando as rendas até meados de 2012. Como resulta do invocado pela própria embargante, as alegadas condições do locado seriam já por si conhecidas no momento em que celebrou o contrato de trespasse (contrato que, aliás, não foi celebrado com as exequentes, mas com a anterior arrendatária). E contrato esse celebrado em 13 de fevereiro de 2007. Invocar que, em 2012 deixou de pagar as rendas face aos invocados anteriormente existentes problemas no locado, constituiria um abuso de direito, como reconhecido no acórdão proferido nos embargos à ação executiva para entrega de coisa certa, do qual consta: “Provou-se em 2.12. que “Desde que a executada recebeu de trespasse o estabelecimento referido nos nºs 2.2 e 2.3 dos factos provados, que destina esse espaço ao parqueamento de automóveis que se encontram a aguardar oportunidade de serem reparados no nº 2, em virtude daquele espaço situado no nº 3 ter problemas com infiltrações de água, que degradaram as paredes e o chão, não tendo assim condições para ali serem reparadas as viaturas. Situação que já se verificava quando adquiriu o espaço através do trespasse. Ou seja, a situação invocada já existia aquando da celebração do contrato com os iniciais contratantes. Vir agora invocar o abuso de direito por falta de realização de obras no locado, por danos pré-existentes à celebração do contrato de arrendamento inicial, traduz uma situação de venire contra factum próprio que sempre obstaria à procedência da excepção de abuso de direito”. Nestes termos, improcede o alegado. * Alega a embargante que os recibos solicitados não foram recebidos. Dispõe o art. 428 nº 1 do C.C. que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”. Para analisar o instituto da excepção de não cumprimento do contrato cumpre, em primeiro lugar, definir o que é um contrato bilateral ou sinalagmático, uma vez que o regime em apreço está delimitado para este tipo de contratos. Um contrato bilateral ou sinalagmático é um contrato do qual derivam obrigações recíprocas para ambas as partes; sendo essas obrigações correlativas: “existe entre elas um sinalagma, significando que a obrigação de cada uma das partes constitui a razão de ser da outra.” (Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 8ª Edição, p. 320). Continuando na análise do instituto da “exceptio non adiplementi contractus”, temos que se um dos contraentes não cumpre a sua obrigação na data do vencimento, o devedor da contraprestação “pode recusá-la enquanto subsistir esse estado de coisas.” (Inocêncio Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 1997, p. 452). Ora, conforme resulta do acima exposto quando se fez a caracterização do contrato, o pagamento da renda constitui a contrapartida pela concessão de gozo do prédio. O contrato de arrendamento é, pois, um contrato bilateral ou sinalagmático, isto é, um contrato do qual derivam obrigações recíprocas para ambas as partes, sendo essas obrigações correlativas: “existe entre elas um sinalagma, significando que a obrigação de cada uma das partes constitui a razão de ser da outra.” (Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 8ª Edição, p. 320). Existe, assim, uma correspondência entre a concessão do gozo do prédio, por parte do senhorio, e o pagamento da renda pelo arrendatário, sendo cada qual credor e devedor da outra parte. Ora entre a obrigação de emissão do recibo pelo senhorio e a obrigação do pagamento da renda pelo arrendatário, inexiste um sinalagma, sendo aquela uma obrigação acessória do senhorio. O que eventualmente pode estar em causa, nos casos de omissão de entrega dos recibos, é o estatuído pelo art. 787 nº. 2 do C. Civil é a recusa da prestação enquanto a quitação não for dada: “(…)” (ac. TRP de 16.05.2023, proc. 2767/21.3T8STS.P1, relatado pelo Desembargador João Diogo Rodrigues, disponível em dgsi.pt). Veja-se também: “(…)” (ac. TRP de 4.03.2024, proc. 453/23.9T8PRT.P1, relatado pela Desembargadora Teresa Fonseca, disponível em dgsi.pt). Sucede que, no caso, não resulta sequer factualmente alegado que foi devido à recusa de entrega dos recibos de renda que a executada não procedeu ao pagamento, nem que o tenha exigido e comunicado que não pagaria a renda face a tal omissão de entrega dos recibos. Improcede, pois o alegado.» A Apelante discorda, argumentando, em síntese, que: desde a tomada do trespasse, não teve condições para instalar no local uma oficina de reparação automóvel; a arrendatária pediu obras, propôs mesmo fazê-las, logo após o trespasse, mas foram recusadas e, mesmo assim, ainda foi pagando rendas até abril de 2012; até que entendeu parar o pagamento das rendas até a outra parte cumprir também o que lhe cabia, estando configurada uma situação de não cumprimento do contrato e de abuso de direito, situação essa que foi causando prejuízos à executada, os quais computa em quantia superior a 1.500.000 €. As Apeladas, por sua vez, defendem que: a Executada reconhece, porém, na sua conclusão R, que aceitou o locado nessas mesmas condições quando celebrou o trespasse do mesmo; a falta de veracidade e fundamento resulta evidente da contradição contida nas alegações da Apelante, como bem notou o Tribunal a quo ao considerar essa alegação abusiva; ainda que o locado se encontrasse no estado que a Apelante descreve (o que é falso), a própria afirma que tinha conhecimento desse estado quando em 2007 adquiriu a posição de arrendatária por traspasse; não é, por isso, admissível, sob pena de abuso de direito, a invocação da exceptio non adimpleti contractus para o não pagamento de rendas apenas a partir de abril de 2012, especialmente quando o contrato caducou em agosto desse ano, tendo a Executada ocupado abusivamente o locado desde essa data até à entrega coerciva do mesmo em 22-10-2024 (mais de 12 anos depois); se a Apelante não pudesse efetivamente gozar do locado, não o teria ocupado durante mais de 12 anos sem possuir qualquer título para o efeito; o alegado prejuízo de 1.500.000 € é infundado, falso e irrelevante. Vejamos. A (alegada) existência de prejuízos não resulta dos factos provados. De qualquer forma, a sua eventual relevância seria enquanto facto complementar da matéria em que a Embargante baseou as exceções do não cumprimento do contrato e do abuso do direito, tanto mais que, em sede de embargos, não há reconvenção e a Executada não invocou a compensação de créditos. Portanto, não há que apreciar nenhuma questão autónoma a este respeito, até porque isso seria uma questão nova. A suposta falta de emissão de recibos de rendas foi alegada na Petição de embargos em termos vagos e incipientes, sem que seja possível estabelecer qualquer correlação com a falta de pagamento das rendas vencidas, sendo acertadas as considerações que a este respeito constam da sentença recorrida. Quanto à exceção do não cumprimento do contrato e ao invocado abuso do direito (por alegada falta de realização de obras ou de autorização para a realização de obras por parte da senhoria), parece-nos importante lembrar que tais figuras estão consagradas nos artigos 428.º e 334.º do CC, respetivamente, constituindo a primeira uma exceção dilatória de direito material e podendo o segundo operar como exceção perentória. Quanto ao funcionamento da exceção do não cumprimento do contrato, em matéria de arrendamento urbano e, especialmente, como fundamento para recusa temporária, por parte do arrendatário, do cumprimento da obrigação de pagamento da renda, impõe-se, nos casos de privação ou diminuição do gozo do imóvel arrendado, convocar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 1040.º do CC, cujo teor é o seguinte: “1. Se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, sem prejuízo do disposto na secção anterior. 2. Mas, se a privação ou diminuição não for imputável ao locador nem aos seus familiares, a redução só terá lugar no caso de uma ou outra exceder um sexto da duração do contrato. Sem olvidar o disposto no art. 1032.º do CC, nos termos do qual: “Quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido: a) Se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa; b) Se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.” Numa situação próxima da que nos ocupa, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão da Relação do Porto de 26-01-2023, no proc. n.º 1344/20.0T8VRL.P2 (disponível em www.dgsi.pt), em que se considerou, conforme consta do respetivo sumário, que: “I - O contrato de arrendamento é, por natureza, bilateral ou sinalagmático, uma vez que dele nascem obrigações para ambas as partes, estando essas obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência. II - A obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa ao locatário. III - Na invocação da excepção de não cumprimento do contrato deve ser respeitado o princípio da boa-fé, impondo-se a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. IV - A excepção de não cumprimento constitui uma excepção material dilatória, cabendo ao arrendatário a alegação e a prova da matéria de facto que a pode sustentar.” Destacamos ainda, citando as pertinentes passagens dos respetivos sumários, os seguintes acórdãos do STJ: - de 10-09-2009, no proc. n.º 375/1999.C1.S1, disponível em ECLI:PT:STJ:2009:375.1999.C1.S1.80 www.dgsi.pt Fonte: STJ (DGSI): “1. No caso de privação parcial do gozo do prédio, por causa não imputável ao locatário, tem este o direito de ver reduzida a parte proporcional da renda. É este um caso de afloração do princípio de excepção de não cumprimento do contrato. A exceptio pode ser invocada pelo locatário quando ocorra incumprimento parcial da correspectiva obrigação por parte do locador. Agora o que se exige também, o que a boa fé postula é que a privação parcial do uso seja relevante e que haja adequação entre a ofensa do direito e o exercício da excepção.” - de 11-12-2014, na Revista n.º 680/2002.L2.S1 - 7.ª Secção (sumário disponível em www.stj.pt): “IV - Demonstrando-se que, entre Janeiro de 2001 e Janeiro do ano seguinte, o locado padecia de infiltrações de água que provocavam danos no frigorífico e podiam acarretar a deterioração de produtos alimentares – carecendo, pois, de condições para a exploração do comércio de snack-bar, self-service, cafetaria e pastelaria – e que, não obstante, a recorrente continuou a pagar à recorrida as rendas devidas nesse período, é despiciendo debater a excepção do não cumprimento do contrato, tanto mais que aquela podia lançar mão do disposto no art. 1032.º do CC ou exigir indemnização, nos termos do art. 562.º do mesmo diploma. (…) VI - Dado que a obrigação de pagamento de rendas não é correspectiva da obrigação da recorrida que consiste na realização de obras no arrendado, a mora desta última não justifica o inadimplemento daquela pela recorrente, possibilitando-se apenas a esta, além da indemnização referida em IV, o exercício da faculdade a que se reporta o art. 1036.º, do CC. VII - Defendendo-se a recorrente com a invocação da excepção do não cumprimento, cabia-lhe o ónus da prova dos factos que a sustentam (art. 342.º, n.º 2, do CC) e, designadamente, que, em função dos vícios referidos em IV, ficou completamente inviabilizada a utilização do locado, o que não se verifica se aquela, apesar do anunciado encerramento, prosseguiu no seu gozo até à sua entrega à recorrida em 2006, sem nada pagar.” No caso sub judice, o contrato de arrendamento em apreço teve início em 01-10-1958, destinando-se à instalação e exploração de um estabelecimento de “garagem – estação de serviço, oficina de reparação de veículos motorizados”, desconhecendo-se em absoluto o estado do locado a essa data. A Apelante limitou-se a alegar o estado do locado à data do trespasse, constando do contrato de trespasse, junto com o requerimento executivo e com o requerimento de 21-03-2019 apresentados no processo principal, que no locado está “instalado e a funcionar” o estabelecimento comercial de garagem e oficina de reparação automóvel. Retira-se, pois, dos factos alegados que, não obstante o estado do locado, não existiu privação do gozo da coisa, tanto assim que a arrendatário se manteve efetivamente no gozo da mesma até ao dia 22-10-2024, tão pouco tendo existido, em bom rigor, uma diminuição do gozo da coisa locada: essa diminuição do gozo da coisa, a ter existido, aconteceu em momento anterior ao trespasse, por motivos que se desconhecem, e não terá deixado de “pesar” no preço do mesmo. De qualquer modo, ainda que se pudesse admitir que essa diminuição justificaria uma redução do valor da renda proporcional à extensão da diminuição do gozo do locado, o certo é a Apelante não quantificou minimamente o valor dessa redução e alegou que, apesar de o estado do locado não ter sofrido alteração, só muito perto do fim do contrato, entendeu deixar de pagar a renda. Além disso, não podemos deixar de lembrar o que foi decidido no ac. da Relação de Lisboa proferido no proc. n.º 32041/16.16.0T8LSB-B.L1, tendo ficado provado, além do mais, que “Desde que a executada recebeu de trespasse o estabelecimento referido nos nºs 2.2 e 2.3 dos factos provados, que destina esse espaço ao parqueamento de automóveis que se encontram a aguardar oportunidade de serem reparados no nº 2, em virtude daquele espaço situado no nº 3 ter problemas com infiltrações de água, que degradaram as paredes e o chão, não tendo assim condições para ali serem reparadas as viaturas. Situação que já se verificava quando adquiriu o espaço através do trespasse.” Considerou-se ainda que: “a situação invocada já existia aquando da celebração do contrato com os iniciais contratantes. Vir agora invocar o abuso de direito por falta de realização de obras no locado, por danos pré-existentes à celebração do contrato de arrendamento inicial, traduz uma situação de venire contra factum próprio que sempre obstaria à procedência da excepção de abuso de direito.” Portanto, os factos que poderiam, eventualmente, sustentar as exceções em apreço acabaram por ser dados como não provados por decisão transitada em julgado, tendo ficado provado, precisamente como fundamento fáctico do aí decidido quanto à denúncia do contrato de arrendamento, matéria de facto que, no contexto dos demais factos provados, nos leva a considerar ilegítima a invocação da exceção do não cumprimento do contrato. Com efeito, tal como entendeu a Relação de Lisboa no recurso de apelação da sentença proferida na oposição à execução para entrega do imóvel arrendado e foi salientado pelo Tribunal a quo, também nos parece que, mesmo admitindo, por hipótese, estarem verificados os factos alegados atinentes às exceções do não cumprimento do contrato e do abuso do direito, não pode deixar de ser considerada como um abuso do direito a defesa assim deduzida. Vejamos melhor. Como é consabido o Código Civil de 1966 consagrou no art. 334.º o abuso do direito na conceção objetiva, dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. O abuso do direito é, assim, o excesso patente dos limites impostos pela boa fé, não se tornando necessário que tenha havido a consciência de se excederem esses limites. E tem sido entendido que para determinar quais os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo para apurar do fim social ou económico do direito considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 299). A este respeito, veja-se a síntese exemplar feita no acórdão do STJ de 21-09-1993, a partir dos ensinamentos de Manuel de Andrade, Almeida Costa, Pires de Lima e Antunes Varela: “a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social (...) em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito, dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica envolve o seu reconhecimento” (in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, pág. 21). De referir que as consequências do abuso do direito não podem deixar de ser ajustadas às especificidades de cada caso concreto, operando, com frequência, como exceção perentória. Assim, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs. 299-300, “tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade, nos termos do artigo 294.º; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade.” Na mesma linha, sobre as consequências do abuso do direito, veja-se Menezes Cordeiro, in “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, in ROA Ano 2005, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/. É sabido que a doutrina vem dando abundante contributo para a compreensão desta figura, elaborando, muitas vezes com base na jurisprudência dos tribunais superiores, uma série de hipóteses típicas concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Destaca-se a proibição de venire contra factum proprium, que visa impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a anterior conduta do pretendente; ocorre sempre que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou negócio invocando, por exemplo, uma determinada causa de resolução, denúncia, nulidade ou anulação, quando já tinha feito crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito. Uma outra situação, próxima do “venire”, é a “verwirkung”, que visa vetar o exercício de um direito subjetivo ou de uma pretensão quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos, assumindo o seu posterior exercício natureza desleal e intolerável. A “verwirkung” corresponde, assim, à figura da “neutralização do direito” de que já se falava no Acórdão do STJ de 28-06-1994, in CJ II - 157. Não há para a “verwirkung”, ao contrário do que sucede com a prescrição e a caducidade, limites fixos de tempo. O tempo necessário dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança. A “verwirkung” distingue-se do venire por estar mais em causa, além do decurso do tempo associado a um “não agir”, o resultado a que o exercício tardio do direito conduziria e a questão de saber se ainda será exigível da contraparte conformar-se à pretensão do titular do direito a suportar esse resultado. De qualquer modo, a maioria das vezes, a inadmissibilidade de exercício do direito resultará também da proibição de venire contra factum proprium. A este propósito, avultam os ensinamentos de Menezes Cordeiro, na vasta obra publicada, designadamente in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1.º Vol. 1987/88, pág. 371 e ss. e 663 e ss., indicando como figura parcelar de comportamento inadmissível a suppressio, que se caracteriza por o exercente de um direito deixar passar um tal lapso de tempo sem exercer esse direito que, quando o faça, contraria a boa fé (reconduz-se à figura da surrectio, em que, por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria). E também no artigo acima citado, onde explica (omitimos as notas de rodapé): «O abuso do direito é um instituto multifacetado. Encontramo-lo, hoje, no dia-a-dia dos nossos tribunais, para resolver questões deste tipo: (…) II. Os exemplos alinhados documentam, sucessivamente, cinco subinstitutos, ausentes dos nossos manuais até há bem pouco tempo: venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de um princípio clássico: a boa fé. (…) I. A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé. (…) Qual a efectiva sustentação dogmática da suppressio? Duas hipóteses: — ela visa o comportamento do agente, cuja inacção deveria ser penalizada; — ela visa proteger o beneficiário, na sua confiança de que não haverá exercício. Na primeira hipótese, a suppressio deveria ser normalizada e os seus prazos nivelados. Só sendo cognoscíveis de antemão, eles surtiriam algum efeito. Na segunda, teríamos de indagar, junto do beneficiário, os pressupostos da tutela da confiança. Equacionado desta forma, o problema tem solução fácil. Se a suppressio visasse a conduta omissiva do agente, ela aproximar-se-ia dos pressupostos histórico-culturais da prescrição. Mas para eles, temos já, justamente, a prescrição: nenhuma vantagem existiria em duplicar esta através de um instituto que, apesar de tudo, sempre pecaria por falta de clareza. Fica a segunda hipótese: a suppressio é uma forma de tutela do beneficiário, confiante na inacção do agente. Teríamos, no fundo, uma espécie de venire, em que o factum proprium seria constituído por uma simples inacção. Esta, porém, nunca poderá ser tão clara e óbvia como um comum factum proprium. Por isso, o correspondente modelo de decisão será um pouco mais complexo do que o da habitual tutela da confiança: — um não-exercício prolongado; — uma situação de confiança, daí derivada; — uma justificação para essa confiança; — um investimento de confiança; — a imputação da confiança ao não-exercente. O quantum do não-exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haveria exercício. A justificação será reforçada por todas as demais circunstâncias ambientais capazes de conformar essa convicção, legitimando-a. Quer isto dizer que, no fundo, o confiante ex bona fide, vê surgir, na sua esfera, uma nova posição jurídica: será a surrectio (surgimento), contraponto da suppressio. IV. Resta acrescentar que a suppressio está perfeitamente radicada no nosso Direito. Assim, referindo apenas arestos publicados a partir de 2000: (…) I. No Direito português, a base jurídico-positiva do abuso do direito reside no artigo 334.º e, dentro deste, na boa fé. Para além de todo o desenvolvimento histórico e dogmático do instituto que aponta nesse sentido, chamamos ainda a atenção para a inaten-dibilidade, em termos de abuso, dos bons costumes e da função económica e social dos direitos. Os bons costumes remetem para regras de comportamento sexual e familiar que, por tradição, não são explicitadas pelo Direito civil, mas que este reconhece como próprias. E eles remetem, também, para certos códigos deontológicos reconhecidos pelo Direito. Nestes termos, os bons costumes traduzem regras que, tal como muitas outras, delimitam o exercício dos direitos e que são perfeitamente capazes de uma formulação genérica. Não há, aqui, qualquer especificidade. Quanto ao fim económico e social dos direitos: a sua ponderação obriga, simplesmente, a melhor interpretar as normas instituidoras dos direitos, para verificar em que termos e em que contexto se deve proceder ao exercício. Também aqui falta um instituto autónomo, já que tal interpretação é sempre necessária. (…) II. A boa fé, em homenagem a uma tradição bimilenária, exprime os valores fundamentais do sistema. Trata-se de uma visão que, aplicada ao abuso do direito, dá precisamente a imagem propugnada. Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa. III. Aparentemente vago, este postulado obtém uma concretização fecunda através dos vectores próprios do manuseio da boa fé. Recordamos: — a utilização dos princípios mediantes da tutela da con-fiança e da primazia da materialidade subjacente; — o enquadramento nos grupos típicos de actuações abusivas, com relevo para o venire, a suppressio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício.» Esta doutrina tem sido acolhida em vários acórdãos, nos quais se equaciona lançar mão da figura suppressio ou verwirkung, merecendo destaque os acórdãos do STJ (todos disponíveis em www.dgsi.pt) de 07-02-2008, na revista n.º 4403/07 - 2.ª Secção (proc. n.º 07B4403), de 11-12-2013, no proc. n.º 629/10.9TTBRG.P2.S1, e de 05-06-2018, no proc. n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1. Transpondo estas considerações para o caso dos autos, entendemos que a atuação das senhorias, Apeladas, pretendendo o pagamento das rendas vencidas até à data da cessação do contrato de arrendamento e da indemnização prevista no art. 1045.º do CC, não constitui um abuso do direito, ao contrário da atuação da arrendatária, Apelante, que, tendo sido demandada, veio, nos presentes embargos, deduzidos em novembro de 2018, defender-se nos termos suprarreferidos, que configuram um inadmissível venire contra factum proprium ou supressio: outorgou o contrato de trespasse em 2007, quando no locado funcionava um estabelecimento de “garagem – estação de serviço, oficina de reparação de veículos motorizados” (se não funcionasse, nem poderia ter existido um trespasse – cf. art. 1112.º do CC), estando o espaço, segundo diz, carecido de obras; apesar disso, além de ter celebrado o trespasse, procedeu durante anos ao pagamento de rendas; só a poucos meses da cessação do contrato e quando o mesmo já havia sido denunciado, deixou de pagar as rendas por alegadamente estar “exausta” (o que não tem qualquer sentido, considerando que se trata de sociedade comercial) e continuar a não poder exercer qualquer atividade no locado; apesar disso, nada comunicou então à senhoria no sentido de serem realizadas as necessárias obras, nem se compreendendo como poderia esperar que o fossem nos escassos meses que restavam para a cessação do contrato; apesar disso ainda, continuou a ocupar o locado durante mais de 12 anos, o que não deixa de constituir uma forma de gozo da coisa locada; pese embora até seja indiferente o uso concreto que deu ao espaço locado, tudo aponta, face ao elenco de factos provados no proc. n.º 20896/12.2YYLSB-A, que o fez para parqueamento de automóveis que se encontram a aguardar oportunidade de serem reparados no n.º 2, onde a Executada tem a sua oficina de reparação de automóveis, estação de serviço e escritórios a funcionar na Praça 1 Posto isto, invocar nos presentes embargos, deduzidos em novembro de 2018, as aludidas exceções para justificar a recusa do pagamento da renda, ainda que hipoteticamente tivesse respaldo nos preceitos legais invocados (e não tem, a nosso ver) configuraria um inadmissível exercício do direito, uma posição abusiva, porquanto contrária à boa fé, aos bons costumes ao fim económico e social dos direitos em apreço. Assim, improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento. Vencida a Executada/Embargante/Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). *** III - DECISÃO Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida. Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso. D.N. Lisboa, 25-09-2025 Laurinda Gemas Fernando Caetano Besteiro Susana Mesquita Gonçalves |