Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
391/09.8YXLSB.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: ÓNUS DA PROVA
VÍCIOS DA COISA
COISA DEFEITUOSA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - Verifica-se a venda de coisa defeituosa quando a mesma :
-Sofra de vício que a desvalorize ;
-Não possua as qualidades asseguradas pelo vendedor ;
-Não possua as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada ou sofra de vício que a impeça da realização desse fim.
II- O regime previsto no Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas, pois a venda de bens de consumo conhece variadas especificidades, nomeadamente a Directiva 1994/44/CE, que veio regular determinados aspectos dessa venda e das garantias dos consumidores, vindo a ser transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.
II- A referida Directiva e o aludido Decreto-Lei apenas se reportam à venda de bens de consumo, aplicando-se apenas quando o comprador seja consumidor, ficando excluídos todos os consumidores que sejam pessoas colectivas bem como as pessoas singulares que actuem no âmbito da sua actividade profissional.
III- Para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito.
( Da responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório
1)  José … e mulher, Maria … , propuseram contra “….. Comércio e Reparação de Automóveis, Unipessoal, Ldª”, a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo sumário, pedindo que se considere resolvido o contrato de compra e venda do veículo de matrícula 00-00-00, celebrado entre as partes, bem como a condenação da R. a restituir aos A.A. o preço pago pela sua aquisição, no montante de 9.900 € e a pagar a quantia de 2.000 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Para fundamentarem tal pretensão alegam, em síntese, terem adquirido à R. um veículo automóvel.  Acontece que tal viatura apenas foi utilizada em duas ocasiões e quando o A. se preparava para a utilizar numa terceira vez, aquela sofreu um incêndio, proveniente do seu interior, que a inutilizou completamente.  Invocam, assim, o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte da R..
2)  Regularmente citada, a R. deduziu contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Em sede de excepção alegou a ineptidão de um dos pedidos constantes da petição inicial, pretensão que veio a ser atendida em sede de despacho saneador.
Em termos de impugnação defendeu que o veículo automóvel por si vendido não padecia de qualquer vício susceptível de causar o seu incêndio.
3)  Os A.A. apresentaram réplica, mantendo a posição assumida na petição inicial.
4)  Após os articulados foi elaborado o despacho saneador, seguindo depois os autos para julgamento, ao qual se veio a proceder com observância do legal formalismo.
5)  O Tribunal “a quo” proferiu despacho a indicar os factos provados e, posteriormente, elaborou Sentença, onde julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos :
“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, julgo verificada a resolução do contrato de compra e venda, celebrado entre as partes, relativo ao veículo de matrícula 00-00-00, condenando a Ré a pagar aos Autores as quantias de € 9.900,00 e 1.000,00, num total de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Custas pela Ré.
Registe e notifique”.
6)  Desta decisão interpôs a R. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1. Face aos factos provados e constantes da douta sentença recorrida, pode-se concluir que nenhuma prova foi feita quanto à origem do incêndio que inutilizou o veículo que havia sido vendido aos Recorridos.
2. Tal incêndio pode ter múltiplas origens, nomeadamente decorrer de acto humano, caso fortuito ou vício/defeito do bem vendido.
3. Perante tal ausência de prova, há que concluir que, na situação concreta, indemonstrado está o facto gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que nem sequer se sabe ou apurou que defeito existia no veículo vendido pela Recorrente ou sequer mesmo se existia qualquer vício ou defeito.
4. E não pode ser imputada culpa decorrente de vício ou defeito, quando apenas se apurou que o veículo se incendiou a partir da roda dianteira do lado direito (órgão essencialmente mecânico e não atreito a combustão interna), sem que se prove a causa do incêndio, sem sequer se apurar vício ou defeito de que o veículo sofresse.
5. Cumprindo ao lesado a prova dos restantes elementos da responsabilidade civil, ou seja, o dano, o defeito do produto e o nexo que liga o facto ao dano, e não tendo sido feita tal prova, a acção não poderia proceder.
6. Na própria p.i., os Recorridos nem sequer chegam a causa concreta do incêndio, apenas se alegando em termos conclusivos, o teor do art. 16º da p.i., prova essa que nem sequer foi totalmente feita.
7. E, perante a ausência de prova, a ora Recorrente deveria ter sido absolvida de todos os pedidos formulados pelos AA.
8. No entanto, e caso assim se não entenda, na fixação aos danos não patrimoniais e do quantum indemnizatório a eles respeitante, a douta sentença fez errada interpretação e aplicação do disposto no nº 1 do art. 496º do C. Civil, uma vez que, dos factos provados, não decorre factualidade integrante do dever de indemnizar por parte da R.
9. Provado apenas que os AA. têm uma filha deficiente e que pretenderam adquirir o veículo para a transportar, pode-se concluir que, deste facto, por si só, não decorre qualquer dever de indemnizar, sobretudo tendo em consideração o isolamento de tal factualidade em relação aos factos (não provados) em que assenta tal pedido.
10. E provado apenas que em relação aos factos descritos sobre os nºs 4, 5, 6 e 8, os AA. sentem-se nervosos e angustiados, sendo certo que daqueles factos não decorre qualquer comportamento ilícito da Recorrente, não há lugar a qualquer indemnização, uma vez que o facto se reconduz a incómodos e preocupações genéricas, não se tendo provado que tenha havido qualquer dano resultante de tais nervos ou preocupações, manifestamente excluídos, pela sua imprecisão, da gravidade que deverão assumir os danos morais indemnizáveis.
11. Por outro lado, ser fixada indemnização por danos não patrimoniais, os juros só serão devidos a partir da data da sentença que fixe, definitivamente, o montante da indemnização e não desde a citação.
12. E no que toca a custas, face à ineptidão de um dos pedidos dos AA. e a parcial improcedência de outro, as custas, mesmo mantendo-se o decidido, o que aqui apenas se conclui como mera hipótese de raciocínio, sempre deveriam ser repartidas, na proporção de 3/4 para a R. e 1/4 para os AA., e não suportadas integralmente pela R., como consta da decisão recorrida.
13. A douta sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto na Lei 24/96, DL 67/2003 e arts. 496/1 e 9/3/1, ambos do C. Civil.
Termos em que o presente recurso deve ser admitido e, a final, ser julgado procedente, assim se fazendo Justiça, ao absolver-se a Recorrente de todos os pedidos formulados pelos AA.”.
7)  Os A.A. apresentaram as suas contra-alegações, pugnando pela manutenção da Sentença recorrida, formulando as seguintes conclusões :
“1. Conforme consta da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, “resultou provado que, cerca de quinze dias após os Autores terem adquirido o automóvel à Ré, para seu uso pessoal, o mesmo foi consumido parcialmente por um incêndio, incêndio esse provindo do interior da própria viatura, em consequência do que o veículo ficou parcialmente carbonizado.
2. Está, portanto, verificada a falta de conformidade do bem com o contrato, enquanto característica defeituosa, que se presume nos termos das alíneas c) e d) do artigo 2º, n.º 2 do D.L. n.º 67/2003.  Com efeito, e seguindo, mais uma vez, a lição do Prof. Calvão da Silva (ob.cit. pág. 147-148), à luz da alínea d) do artigo 2º, nº 2, presume-se que os bens de consumo são conformes ao contrato, “se apresentarem as qualidades e o desempenho que são normais em bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, tendo em conta a natureza do bem (…)”.
3. Resulta à evidência que o ónus da prova recai sobre a Ré.
4. Era esta que tinha que ilidir a presunção estabelecida no D.L. nº 67/2003 de 8 de Abril, sendo certo que não o fez.  Pelo que bem andou o Tribunal a quo em condenar a Apelante nos termos da douta sentença.
5. Quanto à indemnização por danos não patrimoniais, o Tribunal a quo fez, também uma correcta aplicação da lei, na medida em que ficou provado que os apelados sentiram-se nervosos e angustiados com a circunstância de se terem visto privados do automóvel que menos de um mês antes haviam adquirido para seu uso, nomeadamente para transportar a filha deficiente que depende dos seus cuidados.
6. Sendo que, bem andou o Tribunal a quo em condenar a apelante a pagar a quantia de € 1000,00 aos apelados, a qual é adequada face aos factos provados.
Pelo que a douta decisão recorrida em tudo deverá ser mantida, porque conforme ao direito, assim se fazendo, Venerandos Desembargadores, a já costumada Justiça”.
*  *  *
II – Fundamentação
a)  A matéria de facto dada como provada em 1ª instância foi a seguinte :
1-  No âmbito da sua actividade de comércio de automóveis, a R. vendeu aos A.A., em 23/4/2007, um automóvel usado, marca “SEAT”, modelo “Ibiza” e matrícula 00-00-00.
2-  O veículo identificado em 1. foi entregue pela R. aos A.A. em 27/4/2007.
3-  Pela viatura, os A.A. pagaram a quantia de 9.900 €, precedida de uma entrada no valor de 1.675 €.
4-  Depois de ter sido entregue aos A.A., o veículo identificado em 1. ficou estacionado à porta da residência destes, uma vez que ainda não tinham adquirido o “selo”.
5-  No dia 6/5/2007, o A. estava dentro da viatura, com a porta aberta e o motor a funcionar, quando o veículo começou a arder pela roda dianteira do lado direito.
6-  Em consequência do incêndio, o veículo ficou parcialmente carbonizado.
7-  Os A.A. remeteram à R., e esta recebeu, a carta datada de 7/5/2007, cuja cópia consta de fls. 21, na qual declaram, além do mais que aqui se dá por reproduzido :  “(…) Até à presente data, percorri cerca de 20 km e utilizei o veículo durante 2 dias.  Ontem, 06/05/2007 (…), o veículo começou a arder, ficando totalmente queimado e danificado (…).  Assim sendo, notifico Vossas Exas. que o veículo não estava nas condições que me foram garantidas pelo Sr. H. e devia padecer de qualquer avaria ou deficiência que provocou este lamentável acontecimento.  Por este motivo, considero o contrato de compra e venda sem qualquer efeito e, nesta data, denunciei o contrato de financiamento (…)”.
8-  A R. remeteu aos A.A., e estes receberam, a carta datada de 12/5/2007, cuja cópia consta de fls. 23, na qual declara, além do mais que aqui se dá por reproduzido :  “(…) temos a informar que :  (…) é impossível que já existisse uma falha que pudesse provocar um incêndio aquando da entrega da viatura.  No caso de tal falha existir o incêndio seria iminente nunca demoraria 9 dias até deflagrar (…).  Pelos factos apresentados declinamos qualquer responsabilidade sobre o ocorrido (…)”.
9-  Os A.A. têm uma filha deficiente e pretenderam adquirir o veículo para a transportar.
10-  Com os factos descritos em 4., 5., 6. e 8., os A.A. sentem-se nervosos e angustiados.
b)  Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente, as questões em recurso consistem em determinar :
-Se existia ou não o defeito do bem objecto do contrato de compra e venda, que constitui o facto gerador da obrigação de indemnizar.
-Se havia razão para condenar a recorrente no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais.
-Se os juros devidos pela indemnização a título de danos não patrimoniais são devidos desde a citação.
-Se há razão para alterar a condenação em custas.
c)  Quanto à primeira questão (determinar se existia ou não o defeito do bem objecto do contrato de compra e venda, que constitui o facto gerador da obrigação de indemnizar).
Resulta da matéria de facto que em 23/4/2007, entre os recorridos e a recorrida foi celebrado um contrato de compra e venda tendo por objecto um veículo automóvel usado, marca “SEAT”, modelo “Ibiza” e matrícula 00-00-00.
O contrato de compra e venda “é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” (artº 874º do Código Civil).
Um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste na obrigação da entrega da coisa (artºs. 874° e 879º al. b) do Código Civil).
Devendo os contratos ser pontualmente cumpridos, nos termos do artº 406° nº 1 do Código Civil, o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se, por um lado, a coisa for entregue e, por outro lado, sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais (defeitos de concepção ou design e defeitos de fabrico).
Ou seja, verifica-se a venda de coisa defeituosa quando a mesma :
Sofra de vício que a desvalorize ;
Não possua as qualidades asseguradas pelo vendedor ;
Não possua as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada ou sofra de vício que a impeça da realização desse fim.
Se a coisa vendida padecer daqueles defeitos estamos perante uma venda de coisa defeituosa (artº 913° do Código Civil).
Na fixação do regime jurídico da compra e venda de coisas defeituosas deve ter-se em conta o regime geral da responsabilidade contratual (artºs. 798º e ss. do Código Civil), o regime especial previsto no artº 913° do Código Civil (ao remeter para o regime da compra e venda de bens onerados) e as particularidades previstas nos artºs. 914° e ss. do Código Civil.
Assim, perante tal, verifica-se que incumbe ao comprador a prova do direito invocado, ou seja, a entrega da coisa com defeito (art° 342° nº 1 do Código Civil), presumindo-se, quanto à culpa, a culpa do vendedor (artº 799 nº1 do Código Civil).  Provada a entrega da coisa com defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, podem ocorrer as seguintes consequências :  reparação do defeito ;  substituição da coisa ;  redução do preço ;  resolução do contrato e indemnização.
Este, o regime regra.
Todavia, pode acontecer que, por convenção ou por força dos usos, o vendedor esteja obrigado a garantir o bom funcionamento do bem vendido (cf. artº 921º do Código Civil), caso em que, o comprador tem direito a exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e tiver natureza fungível, a sua substituição, independentemente de culpa do vendedor ou de erro seu (do comprador).
Como refere Calvão da Silva (in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, pgs. 62 e 63) :  “Expressão da melhor doutrina quanto ao direito ao cumprimento e a sua independência do requisito da culpa do devedor é a do artº 921º, na chamada garantia de bom funcionamento, a que o vendedor esteja obrigado por convenção ou por força os usos.  ( ... ) É que o escopo da garantia de bom funcionamento consiste em fixar um período de provação (temp d épreuve) ou de “rodagem” da coisa, durante o qual o vendedor se responsabiliza por que na sua utilização normal e correcta nenhum defeito de funcionamento aparecerá.  Vale isto por dizer que o vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa inerente à coisa e dentro do uso normal da mesma.  Este facto, o facto de o vendedor assumir a garantia de assumir a garantia de um resultado tem importância no domínio do ónus probandi :  ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de provar a sua existência no momento da entrega ;  ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade é que cabe a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa – assim ilidindo a presunção da anterioridade ou contemporaneidade do defeito (em relação à entrega) que caracteriza a garantia convencional do bom estado e bom funcionamento – e imputável ao comprador (v.g. má utilização), a terceiro ou devida a caso fortuito”.
d)  No entanto, o regime previsto no Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas.
A venda de bens de consumo conhece variadas especificidades.
Desde logo, a Directiva 1994/44/CE, de 25/5, veio regular determinados aspectos da venda de bens de consumo e das garantias dos consumidores, vindo a ser transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8/4.
Esta Directiva, enquadrando-se nos propósitos de contribuição para a realização de um nível elevado de defesa dos consumidores na União Europeia, da criação de regras comuns de Direito do Consumo, procura proteger os consumidores relativamente à aquisição de bens defeituosos, independentemente do país da União Europeia em que estes sejam adquiridos, e de evitar distorções na concorrência entre os vendedores em resultado das disparidades das legislações dos Estados-Membros, respeitantes às vendas de bens de consumo.
A Directiva apenas se reporta à venda de bens de consumo, aplicando-se apenas quando o comprador seja consumidor.  E é considerado consumidor qualquer pessoa singular que actue com objectivos não respeitantes à sua actividade comercial ou profissional, tendo sido acolhido o conceito de consumidor “stricto sensu”.  Excluídos ficam, assim, todos os consumidores que sejam pessoas jurídicas (sociedades e pessoas colectivas), bem como as pessoas singulares que actuem no âmbito da sua actividade profissional.  O artº 1º nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4 remete para o conceito de consumidor, previsto na Lei 24/96, de 31/7, a qual considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados ao uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Estabelece-se, no artº 2º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4, a regra de que os bens devem ser conformes com o contrato de compra e venda, enunciando o nº 2 do mesmo normativo os casos em que se presume que os bens de consumo não são conformes com o contrato.
De acordo com o artº 3º nº 1 da Directiva 1994/44/CE, de 25/5 (reproduzido no Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.  E acrescenta o nº 2 do citado preceito que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.  Ou seja, se o vendedor responde pelo “defeito” existente no momento em que entrega o bem ao consumidor, estabelece-se a presunção de que os “defeitos” (faltas de conformidade) manifestados nos aludidos prazos a partir da entrega já existiam nessa data.  A não ser assim, o consumidor suportaria um duplo ónus :  Por um lado teria de alegar e provar a falta de conformidade e, por outro lado, teria de alegar e provar que o defeito, embora manifestado ou exteriorizado em momento ulterior, já se verificava aquando da entrega do bem. 
Esta presunção legal de que o defeito já se verificava à data da entrega do bem não é aplicável quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (artº 3º nº 2, “in fine”, do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).  Aqui o legislador terá tido, sobretudo, em consideração os casos em que o bem esteja sujeito a um prazo de validade ou de consumo mais curto.
Os direitos do consumidor também são tutelados em caso de venda de coisas móveis usadas.  Neste caso, o prazo mínimo de protecção pode, no entanto, ser reduzido a um ano, havendo acordo das partes (artº 5º nº 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).
O Decreto-Lei 67/2003 de 8/4, veio, também, regular as chamadas “garantias voluntárias” ou de bom funcionamento, ou seja, a declaração pela qual o vendedor, o fabricante ou qualquer intermediário promete reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se, de qualquer modo, da coisa defeituosa vincula o seu autor nas condições constantes dela e da correspondente publicidade (cf. artº 9º do diploma).
A garantia voluntária é aplicável em tudo o que possa conferir mais e melhor protecção ao consumidor, mas não afasta, nem pode afastar o conteúdo (mínimo) da garantia legal.
Um dos meios de tutela do consumidor é a resolução do contrato (artº 4º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), que pode ser exercido mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador (artº 4º nº 4 do referido Decreto-Lei).  Mas o consumidor não terá direito à rescisão do contrato se a falta de conformidade for insignificante (artº 3º nº 6 da Directiva 1994/44/CE, de 25/5), regra esta que resultaria já dos princípios gerais do direito (nomeadamente, da boa fé) e da proibição do abuso de direito (cf. artºs. 334º do Código Civil e 4º nº 5 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).
A par dos meios de tutela enunciados na Directiva e no Decreto-Lei acima mencionados, o consumidor goza também do direito a ser indemnizado, podendo esta faculdade ser usada isoladamente ou em conjunto com outros direitos, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.  É que, apesar de não ser previsto na Directiva, o direito a indemnização deve considerar-se aplicável por recurso às regras gerais, nomeadamente, conforme previsão expressa do artº 12º nº 1 da Lei 24/96 de 31/7, uma vez que a Directiva tem por objectivos a definição de um conteúdo mínimo de protecção do consumidor e a fixação de regras uniformes da União Europeia.  Aliás, é o próprio nº 1 do artº 8º da Directiva que prescreve que “o exercício dos direitos resultantes da presente directiva não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual”.
e)  Reportando-nos, então, ao caso em apreço,
Não estando em causa nos autos que os apelados têm a qualidade de consumidores, isso significa que beneficiavam eles de uma garantia de bom estado e bom funcionamento do veículo no período da garantia, sendo que esta garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida (artºs. 4° nº 1 da Lei 24/96 de 31/7 e 2° nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).
Por isso, dessa garantia resulta uma presunção ilidível de que o vício ou defeito que a coisa venha a revelar após a entrega já existia nessa data, com os consequentes reflexos a nível do ónus da prova (artº 3° do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).
Assim, para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.  Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito.
Ora, conforme resulta da matéria de facto provada, tendo o veículo sido adquirido pelos recorridos em 23/4/2007 e a eles entregue em 27/4/2007, logo nove dias depois (em 6/5/2007) veio o mesmo a incendiar-se e a ficar parcialmente carbonizado e inutilizado, numa ocasião em que o recorrido se encontrava dentro do mesmo, com a porta aberta e o motor a funcionar.  Não foi apurada nos autos a causa do incêndio, mas trata-se, obviamente, de uma ocorrência inesperada e de cariz excepcional, alheia às características do veículo automóvel.
Nestas circunstâncias, é manifesto que o veículo adquirido pelos apelados à apelada não foi apto a satisfazer os fins e os efeitos a que se destinou, sofrendo um incêndio que o inutilizou, não satisfazendo, assim, as legítimas expectativas dos recorridos com a compra do veículo em apreço.
Ora, perante estes factos, tendo-se provado o mau funcionamento do veículo no período da garantia, isto é, antes de decorrido um ano após a venda (único facto cuja prova incumbia aos recorridos) a recorrente, como vendedora do bem, era responsável pelas consequências desse mau funcionamento, independentemente de culpa sua, presumindo-se que a anomalia existia já na data em que o bem foi entregue ao consumidor (cfr. artºs 3º nºs. 1 e 2 e 5º nº 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4).
De acordo com as regras do ónus da prova acima expostas, cabia à vendedora, aqui apelante, para afastar a acima referida presunção, a prova da imputação do defeito a causa externa e ulterior, como por exemplo um caso fortuito, sabotagem de terceiro, sabotagem ou mau uso do próprio consumidor (cfr. Calvão da Silva in “Venda de Bens de Consumo”, pg. 78),
O que, manifestamente, não logrou provar em face da factualidade que ficou demonstrada.
Ou seja, nada se provou quanto à relação entre o defeito verificado (que deu origem ao incêndio) e a conduta dos apelados.
Resumindo :  Não logrou a recorrente afastar a presunção a que se refere o artº 3º n° 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4.
Assim, bem andou o Tribunal “a quo” ao julgar procedente a acção
Em face do exposto, terá de improceder o recurso no que diz respeito a este ponto (determinar se existia ou não o defeito do bem objecto do contrato de compra e venda, que constitui o facto gerador da obrigação de indemnizar).
f)  No que diz respeito à segunda das suscitadas questões (verificar se havia razão para condenar a apelante no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais).
Dispõe o artº 496º nº 1 do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Ora, provou-se, no que a esta matéria diz respeito, que os recorridos têm uma filha deficiente e pretenderam adquirir o veículo em causa para a transportar.
Mais se apurou que, com a ocorrência do incêndio na viatura, com a sua destruição e com o facto de a vendedora ter declinado a responsabilidade no sucedido, os recorridos se sentem nervosos e angustiados.
O Tribunal de 1ª instância entendeu ser de atribuir aos apelados uma indemnização no montante de 1.000 €.
A recorrente entende não haver lugar à fixação de tal indemnização.
Ora, perante a noção que de danos não patrimoniais é dada no supracitado artº 496º nº 1 do Código Civil, teremos de concluir que simples incómodos ou contrariedades não justificam a atribuição de uma indemnização.
Na apreciação da gravidade do dano ter-se-ão em conta as circunstâncias de cada caso, ponderadas segundo um padrão objectivo e não à luz de uma sensibilidade exacerbada.
No caso “sub judice”, sendo certo que os recorridos se sentem nervosos e angustiados com a situação, afigura-se-nos, porém, que tais sentimentos e incómodos causados pelo incêndio e destruição da viatura, não são susceptíveis de configurar um perturbação emocional grave ou incómodos graves.
Deste modo, e embora se reconheça que os recorridos sofreu danos não patrimoniais, entendemos que os mesmos não se revestem de gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, pelo que nesta parte procede o recurso, havendo que revogar a parte da Sentença que atribuiu aos apelados uma indemnização a título de danos não patrimoniais.
g) No que diz respeito à terceira questão (saber se os juros devidos pela indemnização a título de danos não patrimoniais são devidos desde a citação).
Trata-se de uma questão ultrapassada, uma vez que a mesma só faria sentido se a recorrente fosse condenada no pagamento de uma indemnização a tal título.
Como tal não se verifica, é óbvio que inexistem quaisquer juros.
Deste modo, considera-se prejudicado o conhecimento da mesma.
h)  Finalmente, vejamos a quarta questão (verificar se há razão para alterar a condenação em custas).
Em primeira instância foi a recorrente condenada no pagamento da totalidade das custas do processo.
Afigura-se-nos que, logo à partida, teria razão, uma vez que os recorridos haviam formulado um pedido de condenação da recorrente, a título de danos não patrimoniais, no montante de 2.000 €, acabando o Tribunal “a quo” por fixar em 1.000 € essa indemnização.
Ora, sendo certo que “a decisão que julgue a acção (…) condenará em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito” (artº 446º nº 1 do Código de Processo Civil) e que se entende “que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for” (artº 446º nº 2 do Código de Processo Civil), isso significa que os recorridos deveriam ter sido condenados nessa parte do decaimento (1.000 €).
E sempre se dirá mais que, uma vez que nesta instância se optou por alterar na totalidade a condenação a título de danos não patrimoniais, tal implicará necessariamente uma modificação na condenação em custas, nos termos que abaixo se determinarão.
Deste modo, nesta parte procederá o recurso.
i)  Sumariando :
I-  Verifica-se a venda de coisa defeituosa quando a mesma :
-Sofra de vício que a desvalorize ;
-Não possua as qualidades asseguradas pelo vendedor ;
-Não possua as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada ou sofra de vício que a impeça da realização desse fim.
II-  O regime previsto no Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas, pois a venda de bens de consumo conhece variadas especificidades, nomeadamente a Directiva 1994/44/CE, que veio regular determinados aspectos dessa venda e das garantias dos consumidores, vindo a ser transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.
II-  A referida Directiva e o aludido Decreto-Lei apenas se reportam à venda de bens de consumo, aplicando-se apenas quando o comprador seja consumidor, ficando excluídos todos os consumidores que sejam pessoas colectivas bem como as pessoas singulares que actuem no âmbito da sua actividade profissional.
III-  Para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.  Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito.
*  *  *
III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência :
1º-  Revoga-se a decisão recorrida na parte em que condena a recorrente no pagamento de 1.000 € a título de danos não patrimoniais, bem como nos juros de mora sobre tal quantia.
2º-  Revoga-se a condenação em custas proferida, a qual se altera nos termos abaixo expostos.
3º-  No mais confirma-se a decisão recorrida.

Custas na 1ª instância e nesta Relação por recorrente e recorridos, na proporção do respectivo decaimento (artigo 446º do Código do Processo Civil).
Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 12 de Abril de 2011

Pedro Brighton
Anabela Calafate
António Santos