Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3278/2004-8
Relator: CAETANO DUARTE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CÔNJUGE
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
Decisão Texto Integral:     Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

            (A) e(B) propuseram acção com processo ordi­nário contra (C) e (D) pedindo o seu reconhecimento como proprietários do 5º andar direito do prédio urbano sito em Olival da Quinta nova – Loures, Urb. ..., lote 73 ( actual n.º 9 da Rua ...) e a restituição da posse do andar. Alegam ser proprietários do andar e que o mesmo está a ser ocupado pelos Réus sem que, para tal, possuam algum título.
Contestaram os Réus reconhecendo a propriedade dos Autores mas alegando ter celebrado com eles contrato promessa de compra e venda do andar com tradição do andar. Em reconvenção, pedem a execução específica do contrato promessa ou, subsidiariamente, o pagamento do sinal em dobro.
Os Autores replicaram confessando o pedido reconvencional subsidiário e defendendo a impossibilidade de execução específica do contrato promessa por a Autora não estar obrigada a cumpri-lo por não ter assinado o contrato promessa.
Realizou-se tentativa de conciliação em que se rectificaram algumas irregularidades suscitadas nos autos e foi proferido despacho saneador-sentença con­si­derando procedente o pedido de reconhecimento da propriedade, ordenando a restituição do andar, declarando resolvido o contrato promessa e condenado os Autores a pagar aos Réus € 12.469,95. Desta decisão vem o presente re­curso de apelação inter­posto pela Ré.
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            Nas suas alegações, defende a Ré, ora apelante, em suma:
- A confissão do pedido reconvencional subsidiário feita pela Autora não é válido porque, havendo litisconsórcio necessário, não é permitida a confissão por um só um dos Autores;
- A confissão da Autora apenas pode relevar para efeito de custas por ser um acto nulo;
- A confissão posterior do Autor não valida o acto porque o pedido subsidiário só é atendido se o pedido principal não for atendido e ainda não se sabe se este vai ou não ser atendido;
- Daí, esta confissão ser nula e intempestiva;
- Estão alegados factos relevantes sobre a circunstância do Autor se dedicar à construção de imóveis para venda pelo que se imponha o prosseguimento dos autos para apuramento de tais factos;
- Também a falta de acatamento por parte do Autor da notificação camarária para proceder a obras é matéria de facto que impunha o prosseguimento dos autos porque a falta destas obras impedia a passagem da licença de habitação, imprescindível para a escritura;
- O cônjuge marido pode vender um bem comum quando se trate de acto de comércio;
- E a falta de consentimento da mulher sempre se podia ultrapassar através de suprimento judicial.
Os Autores contralegaram, dizendo que:
- Não houve uma confissão do pedido subsidiário apenas pela Autora mas pelos dois Autores muito embora em momentos diferentes;
- Os Réus só agora vem alegar que o Autor se dedica à construção para venda e que não podia obter a licença de habitação por não fazer obras exigidas pela Câmara Municipal;
- Por isso, não se aplica ao caso presente a doutrina do acórdão do STJ invocado pelos Réus;
- A alegada falta de licença de habitação, cuja atribuição é da competência da câmara municipal e não do tribunal, é mais um motivo que impede a execução específica do contrato promessa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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            Foram dados como provados os seguintes factos:
- Os Autores são casados entre si sob o regime de comunhão geral de bens;
- Os Autores têm registada a seu favor a propriedade da fracção autónoma designada pela letra P, correspondente ao 5º andar direito do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, sito no Olival da Quinta Nova, Urb. ..., lote 73 (ou Rua ... n.º 9, 9-A e 9-B), descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º 2507/199110924 e inscrito na matriz sob o artigo 7965 (fracção P);
- Por acordo escrito de 20/09/95, o Autor marido prometeu vender ao Réu marido, e este prometeu comprar, a mencionada fracção autónoma, estipulando o preço de 15.500.000$00, do qual o promitente comprador satisfez a quantia de 1.250.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, com a entrega das chaves e tomada de posse do andar, ficando os restantes 14.250.000$00 de liquidar no acto da escritura de compra e venda;
- Os Réus ocupam, desde essa altura, a mencionada fracção.
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O objecto do recurso é delimitado pelas alegações dos recorrentes – artigo 684º do Código de Processo Civil. No caso dos autos, há que decidir se o processo permitia a decisão no saneador.
Antes de entrar na apreciação do recurso, há que decidir duas questões prévias:
- a admissibilidade de junção dos documentos por parte dos Réus com as suas alegações de recurso;
- a extinção da instância por falta de legitimidade da Ré para prosseguir o recurso desacompanhada do marido.
Dispõe o artigo 524º n.º 1 do Código de Processo Civil que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.” Com as suas alegações de recurso, juntaram os Réus um documento que consiste num ofício da Câmara Municipal de Loures a notificá-los duma informação dos respectivos serviços. O ofício está datado de 27 de Fevereiro de 2002 e nada se alega sobre a data em que foi recebido pelo que se tem de admitir que terá sido recebido até 25 de Fevereiro de 2002. Em 15 de Abril de 2002, realizou-se uma tentativa de conciliação e a sentença está datada de 17 de Setembro de 2002. O documento já estava em poder dos Réus que o podiam juntar aos autos. Não o tendo feito, não podem agora, em sede de recurso, vir juntá-lo. Não pode, por isso, ser admitida a sua junção.
Defendem os Autores a extinção da instância porque apenas o Réu se obrigou no contrato promessa e, tendo o Réu desistido do recurso, a Ré deixou de ter legitimidade para prosseguir com este recurso. Por isso, deve ser considerada extinta a instância. Parece-nos que os Autores não têm razão porque, com a desist^3encia do Réu não se pode suscitar uma questão de legitimidade processual. Esta ficou assente no saneador e nenhuma das partes recorreu daquele despacho nessa parte pelo que a Ré tem de se considerar parte legítima. A questão é a de saber se a Ré, desacompanhada do Réu, pode fazer valer os direitos decorrentes dum contrato promessa em que não se obrigou. Mas isso é a apreciação da questão de fundo e não justifica a extinção da instância. Aliás, os casos de instância estão taxativamente previstos no artigo 287º do Código de Processo Civil e não se vê em qual das alíneas se baseiam os Autores para pedir a extinção. Se é na alínea d) – desistência -, sempre se dirá que tendo a desistência sido do Réu não pode a mesma arrastar atrás de si a Ré. Ou seja, a desistência do Réu extingue a instância relativamente ao Réu mas não pode provocar a extinção da instância para a Ré.
Dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil:
       “(Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação de audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de 20 dias, despacho saneador destinado a:) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, doo ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção p+peremptória.”
Entendem os Réus que o juiz a quo não poderia ter decidido sobre o mérito da causa no despacho saneador por haver matéria de facto, por si alegada, importante para a decisão a proferir a qual impunha a elaboração de base instrutória e o prosseguimento dos autos. Essencialmente os factos invocados pelos Réus como devendo ser submetidos e a discussão e prova são: o Autor foi o construtor do prédio e promoveu a sua venda no desenvolvimento da sua actividade profissional e o não acatamento pelo Autor da notificação para proceder a obras no andar. Ora, o primeiro facto não se encontra alegado na contestação dos Réus e não pode ser atendido “porque se alcança da contestação”. Os factos têm de ser alegados e não apenas alcançar-se do que se alega. O não acatamento da notificação para proceder a obras no andar em nada releva para o cumprimento do contrato promessa. Tanto mais que os Réus só nas suas alegações de recurso vieram pretender fazer ligação entre aquele não acatamento e a não existência de licença de habitação.  Mais uma vez, faltam factos alegados para que se justifique a elaboração de base instrutória.
Devia agora colocar-se a questão da legitimidade da Ré para exigir o cumprimento dum contrato promessa em que não interveio e que, logicamente, não a vincula. É muito duvidoso que o possa fazer mas, atendendo a que toda a sua posição processual ao longo dos autos revela a intenção e o interesse em obter o cumprimento do contrato e a que poderemos estar perante a casa de morada de família que tenha ficado para a Ré e os seus filhos, deixamos esta questão para apreciação ulterior.
 “Se alguém se tiver obrigado a celebrar contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário[1], obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida” – artigo 830º n.º 1 do Código Civil.
O contrato promessa foi celebrado apenas entre o Autor marido e o Réu marido pelo que a Autora não está vinculada ao seu cumprimento. O facto de se dever considerar como válido o contrato promessa celebrado apenas por um dos cônjuges não tem como consequência a vinculação do cônjuge que não interveio. Logo, para que este contrato promessa seja cumprido é necessário que a mulher do cônjuge que prometeu contratar queira cumprir aquele contrato promessa apesar dele não o vincular. No caso dos autos, é evidente que a Autora não quer cumprir um contrato promessa em que não se vinculou. Nesta situação, o tribunal não se pode substituir à Autora emitindo uma declaração de vontade que esta não está vinculada a emitir. Para que seja possível a execução específica do contrato promessa é necessário que seja possível ao tribunal substituir-se às partes. Neste caso, o tribunal poderia emitir a declaração de vontade do promitente vendedor mas não a da Autora e, por isso, o contrato não seria válido por falta de intervenção da Autora. Isso inviabiliza a possibilidade de execução específica do contrato.
Como resulta da longa citação que os Réus fazem do acórdão do STJ de 10/01/02, nos autos em que o mesmo foi proferido apreciava-se uma questão diversa da que se discute nestes autos. Estava em causa um cônjuge administrador de bens comuns que eram objecto do seu negócio: construía prédios que vendia. Logo, ao prometer vender os andares, estava a exercer o seu comércio. No caso dos autos, nada se alegou quanto a isso pelo que a situação é a de um casal que tem, entre os seus bens comuns, uma fracção autónoma. Não se pode aplicar a esta situação aquela doutrina.
Aqui chegados, temos de considerar que não importa determinar se a Ré pode continuar a exigir o cumprimento dum contrato promessa em que não se vinculou uma vez que existe impossibilidade de cumprimento do contrato.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

            Lisboa,    13/05/04  

                                                    
a) José Albino Caetano Duarte
a) Domingos Manuel Gonçalves Rodrigues
a) António Pedro Ferreira de Almeida

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[1] No caso dos autos não podia haver convenção em contrário porque o n.º 3 do artigo 830º do Código Civil estatui que as partes não podem afastar o direito à execução específica na promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele.