Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
901/23.8T8ALM-B.L1-8
Relator: MARÍLIA LEAL FONTES
Descritores: EXECUÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO
CLÁUSULA RESOLUTIVA
VIOLAÇÃO DE NORMA IMPERATIVA
FALTA DE INTEGRAÇÃO NO PERSI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A omissão por parte do Banco mutuante de sujeição do cliente devedor ao PERSI, quando estejam reunidos os respectivos pressupostos, assume o cariz de incumprimento de normas imperativas, que justifica a absolvição da executada da instância, face à verificação de excepção dilatória inominada, artsº 573, nº 2, 576, nºs 1 e 2, 577 e 578 do CPC.
II - Uma cláusula contratual inserta no contrato de mútuo que preveja a resolução do mesmo, em caso de penhora do imóvel hipotecado, colide com as normas imperativas do PERSI e, como tal, é ferida de nulidade, nos termos do artº 294 do Código Civil.
III - O princípio da autonomia privada tem como limite a imperatividade da lei.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO
………………, deduziu oposição à Execução que lhe moveu ……………., por excepção, alegando o incumprimento pela Exequente das regras do PERSI.
Alegou, em síntese, que:
- A presente execução funda-se no vencimento da obrigação de restituição das quantias mutuadas pela exequente por força de um contrato de mútuo (com hipoteca) celebrado com …………. (já falecido e relativamente ao qual a exequente desistiu da instância) e ………………..
- A exequente celebrou o referido contrato de crédito habitação no dia 14 de Setembro de 2000, no qual financiou aqueles o montante de 74.819.68 €.
- Sendo que, a ora executada constituiu-se fiadora dos executados/devedores principais na referida data juntamente com outros 2 fiadores onde se inclui o seu marido falecido …………………. e ……………….
- Afirma a exequente que os 2 devedores principais ora executados deixaram de pagar as prestações relativas ao crédito habitação a partir de 14.09.2018 e não mais pagaram.
- Sendo que à presente data se encontra o valor em dívida de 23.310,87 €, incluindo juros e outras quantias.
- Até à presente data nunca foi a ora executada notificada da existência da referida dívida e incumprimento dos devedores principais.
- E caso fosse notificada/interpelada certamente poderia tentar ajudar a liquidar alguma quantia que estivesse em dívida.
- Em 01-01-2013 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização destas situações.
- Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 2º, o referido diploma legal aplica-se aos contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel, sendo irrefutável que se verifica no caso “sub judice”.
- Atendendo ao disposto nos artigos 12º a 21º do citado diploma, resulta a obrigatoriedade, da exequente enquanto instituição de crédito, implementar o PARI e iniciar o PERSI quanto aos mutuários, nomeadamente quanto aos executados …….. e …….. aplicando-se igualmente tal regime aos fiadores. O que não sucedeu.
- Conforme resulta das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 18º do referido diploma legal, entre a data de integração dos executados no PERSI e a extinção deste procedimento, a exequente estava impedida de resolver o contrato de crédito e de intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação daquele.
- A falta de inclusão dos executados no PERSI juntamente com a falta de comunicação aos fiadores, por parte da exequente constitui uma excepção dilatória, que deve ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal.
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Contestou a embargada/apelada do seguinte modo:
- A Embargante foi interpelada, à semelhança dos demais intervenientes, para pagamento dos valores em dívida, por carta datada de 27.12.2022, enviada com aviso de recepção, a qual foi recebida pela própria. E nada fez.
- Pelas AP. 292 de 2014/04/22, AP. 3140 de 2014/09/17 e AP. 1994 de 2017/09/20 foram registadas sobre ½ do imóvel objecto de garantia do contrato executado, penhoras a favor da Fazenda Nacional, na sequência de processos de execução fiscal instaurados contra o executado ……………
- Da mesma forma, e pela AP. 1434 de 2014/05/23 foi registada uma penhora, igualmente a favor da Fazenda Nacional, sobre a ½ do imóvel pertencente à executada ……………….
- Nessa sequência o aqui embargado reclamou os seus créditos junto do Serviço de Finanças respectivo.
- O Embargado não estava obrigada a encetar quaisquer diligências em relação quer ao PERSI quer ao PARI pois, nos termos das condições gerais do documento complementar à escritura – e que dela faz parte integrante nos termos do art. 64.º do Código do Notariado – ficou consignado que “(…) constituem causa bastante e fundamentada de resolução do presente contrato: a não cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato, assumidas pelo mutuário; (…) d) Penhora, arresto ou qualquer outra forma judicial ou não de apreensão do (s) imóvel (eis) hipotecado (s) (…)”.
- De tal forma que a ½ do imóvel pertencente ao executado foi, conforme melhor descrito no requerimento executivo, adjudicado pelo Embargado, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2194201401088670.
- Está em causa o princípio da liberdade contratual.
- Aquando da instauração da execução, já o contrato se encontrava resolvido e os executados cientes dessa resolução pois subscreveram os contratos.
- A resolução operou, eficazmente, antes da entrada da execução, pelo que o exequente não estava obrigado a integrar os executados no PERSI e/ou PARI nos termos do DL. 227/2012 de 25 de Outubro.
Pugna pela improcedência dos embargos.
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Foi proferido despacho saneador e realizada audiência de julgamento.
Na sequência desta última o Mmª. Juiz “a quo” proferiu sentença que julgou procedentes os presentes embargos, verificada a excepção dilatória inominada de falta de integração no PERSI e, absolveu a embargante da instância executiva e, consequentemente, declarou extinta a execução (com levantamento de quaisquer penhoras).
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1.2. Inconformada com tal decisão, veio a exequente/embargada …………………. dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. A sentença em apreço veio julgar os embargos à execução  procedentes e verificada a excepção dilatória inominada de falta de integração de PERSI, absolvendo a embargante e os demais da instância executiva e, consequentemente, declarar extinta a execução, com o levantamento de quaisquer penhoras.
B. Conforme resulta da douta sentença, foi alegado no requerimento executivo que as prestações do empréstimo foram interrompidas, isto é, deixaram de ser pagas, a partir de 14 de Setembro de 2018, e este facto não foi impugnado pela embargante motivo pelo qual se mostra aceite.
C. A aqui embargada não estava obrigada à integração dos executados em PERSI.
D. Pelas AP. 292 de 2014/04/22, AP. 3140 de 2014/09/17 e AP. 1994 de 2017/09/20 foram registadas sobre ½ do imóvel objecto de garantia do contrato executado, penhoras a favor da Fazenda Nacional, na sequência de processos de execução fiscal instaurados contra o executado ………..
E. Da mesma forma, e pela AP. 1434 de 2014/05/23 foi registada uma penhora, igualmente a favor da Fazenda Nacional, sobre a ½ do imóvel pertencente à executada ………………...
F. Ora, nessa sequência o aqui recorrente reclamou os seus créditos junto do Serviço de Finanças.
 G. O recorrente não estava obrigada a encetar quaisquer diligências  em relação quer ao PERSI quer ao PARI pois, nos termos das condições gerais do documento complementar à escritura – e que dela faz parte integrante nos termos do art. 64.º do Código do Notariado – ficou consignado que “(…) constituem causa bastante e fundamentada de resolução do presente contrato: a não cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato, assumidas pelo mutuário; (…) d)  Penhora, arresto ou qualquer outra forma judicial ou não de apreensão do (s) imóvel (eis) hipotecado (s) (…)”.
H. Tanto assim é que a ½ do imóvel pertencente ao executado foi, conforme melhor descrito no requerimento executivo, adjudicado pelo Embargado, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2194201401088670.
I. Ora, significa que as partes contratantes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, regularam especialmente as situações em que o mutuário se encontrasse em mora ou incumprimento, ficando estabelecido que bastava a ocorrência do incumprimento para que pudesse considerar resolvido o contrato e de imediato constituir-se o Banco no direito de exigir globalmente a obrigação de reembolso do capital mutuado, igualmente resultando que as partes afastaram a necessidade de o mutuante usar do seu direito de resolução para exigir tudo o que se mostrasse devido nos termos do contrato, e ainda que não vencido.
J. Repisa-se por ser verdade: as partes regularam especial e especificamente cada uma das situações que levariam à resolução do contrato não o tendo feito de forma genérica ou abstracta.
K. Deste modo, conclui-se que aquando da instauração da execução, já o contrato se encontrava resolvido e os executados cientes dessa resolução pois subscreveram os contratos.
L. Assim, a resolução operou, eficazmente, antes da entrada da execução, pelo que o exequente não estava obrigado a integrar os executados no PERSI e/ou PARI nos termos do DL. 227/2012 de 25 de Outubro.
M. A convenção pela qual se atribui a uma das partes o direito de resolver o contrato, prevista no n.º 1 do art. 432.º do CC, é normalmente uma cláusula do próprio contrato, que deve obedecer a determinados requisitos.
N. E não se diga que a Cláusula referida supra não cumpre os requisitos exigidos pois a cláusula resolutiva assenta no princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual e consiste no estabelecimento dos moldes em que se efectivará o direito de resolução, devendo precisar quais as prestações cujo incumprimento o espoletará e as modalidades deste que relevarão.
O. Distingue-se da condição resolutiva na medida em que, nesta, a verificação do evento condicionante opera imediatamente a resolução ao passo que, naquela, o facto futuro e incerto é apenas um pressuposto de constituição do desse direito.
P. Em suma, é indispensável que da cláusula resolutiva conste uma referência explícita e precisa às obrigações cujo não cumprimento dará direito à resolução e, na falta de tal convenção, a mora (em particular, na obrigação de pagamento das prestações do empréstimo) haverá de ter sido convolada em incumprimento definitivo com a prévia interpelação admonitória, fazendo-se a resolução do contrato mediante declaração à outra parte (art. 436.º, n.º 1, do CC), cuja eficácia depende do disposto no art. 224.º do CC, o que se verifica.
Q. A carta remetida à recorrida em 27.12.2023 é apenas interpelatória e confirmatória da resolução legal ocorrida, nos termos descritos.
R. Foram violadas, entre outras disposições, os artigos 224.º, 436.º, n.º 1 e 432.º, n.º 1 do CC.
Conclui, pugnando pela revogação da sentença proferida e substituição da mesma por outra que julgue os embargos improcedentes.
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A apelada …………………., contra alegou, referindo, em suma que:
I – A recorrente como instituição bancária, não deu cumprimento ao regime imperativo introduzido pelo DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que entrou em vigor a 01 de Janeiro de 2013.
II - As alegações apresentadas, vêm apenas confirmar e reafirmar a violação por parte da Recorrente do regime do “PERSI” relativamente a todos os executados, FIADORES E MUTUÁRIOS.
III – A recorrente não impugnou a matéria de facto e os 5 factos dados como provados pelo Tribunal “a quo” na douta sentença.
IV – Os cinco factos devem ser dados como irremediavelmente provados.
V - Inexistem factos não provados.
VI – O contrato sob que versam os autos trata-se de um mútuo bancário “crédito habitação” para aquisição de 1 imóvel para habitação com hipoteca, onde interveio a recorrida como fiadora, os mutuários e outros fiadores.
VII - Tal contrato está abrangido pelo DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que entrou em vigor a 01 de Janeiro de 2013, atento o disposto no artigo 2.º, Nº 1, al. a).
VIII - O contrato deixou de ser cumprido pelos mutuários a partir de 14 de Setembro de 2018 tendo deixado de pagar as prestações mensais, entrando em incumprimento e mora.
IX – A recorrente NUNCA integrou os mutuários no PERSI ou notificou de igual forma a recorrida da faculdade de pedir para ser integrada naquele.
X - Violando grosseiramente tal regime legal.
XI - A recorrente em 27 de Dezembro de 2022 através de carta registada com AR, interpelou os mutuários e fiadores e resolveu o contrato de mútuo bancário por falta de pagamento das prestações.
XII – Facto que lhe era proibido pelo PERSI.
XIII - A recorrente sabia que em 27.12.2022 o contrato estava em incumprimento e mora pelos mutuários e fiadores, senão nem seria necessário proceder à sua interpelação/ resolução, como fez.
XIV - Em 30 de Janeiro de 2023 a recorrente interpôs a presente ação sem, contudo, ter integrado previamente no PERSI os mutuários e alertado previamente a recorrida Fiadora de tal procedimento.
XV - Estava obrigada perante os mutuários, a integrá-los, mediante comunicação em suporte duradouro, em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data do vencimento da obrigação – art. 12.º, e 14.º, ou seja, entre 15 de Outubro e 13 de Novembro de 2018, abrindo-se então a fase da avaliação/proposta, seguida da fase da negociação e, por fim, havendo ou não havendo acordo, a fase da extinção do PERSI – arts. 14.º a 17.º;
XVI - E estava obrigada perante a recorrida e outros fiadores, a informá-los, no prazo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, do atraso do cumprimento e dos montantes em dívida, ou seja, entre 15 de Outubro e 29 de Outubro de 2018 – art. 21.º, n.º 1 – por forma a que esta pudesse solicitar, no prazo de dez dias, a sua integração em PERSI – art. 21.º, n.º 2, faculdade que a instituição de crédito devia comunicar naquela informação – art. 21.º, n.º 3.
XVII - A recorrente não deu cumprimento a tais disposições legais, de índole imperativa.
XVIII - A recorrente fez uma dupla violação do PERSI, relativamente aos Mutuários e aos Fiadores.
XIX - A falta de integração dos executados no PERSI e ausência de comunicação aos fiadores da faculdade de serem integrados no PERSI, configura uma excepção dilatória insuprível, por falta de pressuposto prévio e antecedente da instauração da acção executiva, que determina a absolvição da embargante/recorrida e, por ser de conhecimento oficioso, dos demais executados.
XX - A recorrente enuncia como fundamento único, de justificada falta de integração dos executados em PERSI, a resolução do contrato antes da propositura da acção executiva, o que sabe ser FALSO (já não assim seria no caso de a resolução ter sido anterior à data da entrada em vigor do D.L. n.º 227/2021).
XXI - Invoca ainda a recorrente o facto de ter pendido uma execução fiscal contra um dos mutuários na qual reclamou a totalidade do crédito emergente do empréstimo e lhe foi adjudicada ½ do imóvel hipotecado, o que não constitui, também, fundamento para a falta de integração dos executados em PERSI.
XXII- Dando a entender que uma penhora de terceiros sobre ½ do imóvel a desoneraria de instituir o PERSI.
XXIII - Contudo, não é assim, já que a penhora a favor de terceiros sobre bens do devedor constitui razão justificativa para a instituição de crédito poder extinguir o PERSI – art. 17.º, n.º 2, al. a) – e não causa automática de extinção do PERSI, para se poder defender a inutilidade originária da integração em PERSI; “.
XXIV – O direito a poder extinguir, não é igual a extinguir de forma automática, tratando-se de uma mera faculdade.
XXV - A recorrente nunca implementou o PERSI, não fazendo sentido falar em extinguir o PERSI.
XXVI - A recorrente invoca a penhora de ½ do imóvel hipotecado, a reclamação de créditos e adjudicação desse ½ a favor da recorrente em processo de execução fiscal de forma a ilibar-se do cumprimento do PERSI.
XXVII – Argumento falacioso porquanto tal aquisição ocorre ainda em data anterior à data em que o empréstimo em causa começou a ser incumprido.
XXVIII - Conforme decorre do Doc. Nº 1 “titulo de transmissão” junto pela recorrente no requerimento executivo, a aquisição de ½ do imóvel ocorre em 02.05.2018.
XXIX – O incumprimento das prestações do empréstimo bancário dá-se posteriormente, em 14.09.2018. conforme é afirmado pela recorrente nos artigos 14º e 15º do seu requerimento executivo.
XXX - Pelo que nesta última data já não existia qualquer penhora (a adjudicação do imóvel fê-la caducar – art. 824.º, n.º 2, do CC) – que pudesse justificar a extinção do PERSI, antes o incumprimento obrigava à sua implementação conforme entendeu bem o Tribunal “a quo”.
XXXI - Contrariamente ao que pretende dar a entender a recorrente, o contrato não previa a penhora do bem hipotecado como causa automática da extinção do contrato.
XXXII - Mas apenas a exigibilidade das responsabilidades garantidas (Cf. cláusula vigésima quarta do contrato junto pela recorrente no requerimento executivo como Doc. 1).
XXXIII - Por isso é que a recorrente se viu na necessidade de lhe pôr termo, por via da resolução, apenas em 27 de Dezembro de 2022.
XXXIV - Tal missiva é prova cabal de que o contrato se encontrava em incumprimento na referida data e ainda se encontrava por resolver.
XXXV – Os contratos não podem estar resolvidos e em incumprimento em simultâneo como parece querer fazer crer a recorrente.
XXXVI – Tal missiva constitui uma confissão por parte da recorrente em como o contrato se encontrava em incumprimento à data de 27.12.2022.
Pugna pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, nada obstando ao conhecimento do seu mérito.
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Foram colhidos os vistos legais.
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São as conclusões formuladas pelo recorrente que delimitam o objeto do recurso, no tocante ao desiderato almejado por aquele, bem como no que concerne às questões de facto e de Direito suscitadas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC.
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC)[1].
Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso, conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
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2. Do objecto do recurso
É questão a decidir:
- Apurar se, no âmbito do presente recurso a executada deve ser absolvida da instância por verificação de exceção dilatória inominada decorrente da instauração da acção executiva sem integração dos executados no PERSI e subsequente extinção deste procedimento.
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II – FUNDAMENTOS
2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se sumariamente provados os seguintes factos:
 1. No dia 14 de Setembro de 2000, o Banco …, S.A., ……….. e ……………….., e ………………., …………….. (embargante) e ……………., outorgaram escritura de “Compra, Mútuo e Fiança”, pela qual a primeira emprestou aos segundos, para compra de imóvel destinado a habitação própria permanente, a quantia de 74.819,68 euros, os segundos obrigaram-se a reembolsar este valor, acrescido de juros, à primeira, em prestações mensais, para o que, em garantia, constituíram hipoteca sobre o referido imóvel, e os terceiros declararam-se “fiadores e principais pagadores” de tudo quanto viesse a ser devido em consequência do empréstimo, - cf. escritura e documento complementar juntos ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. No dia 02 de Maio de 2018, em processo de execução fiscal movido conta ………………, foi adjudicado, após nele ter reclamado créditos, ½ do imóvel à embargada.
3. A partir de 14 de Setembro de 2018, as prestações do empréstimo deixaram de ser pagas.
4. Após 14 de Setembro de 2018, a embargada não integrou os executados em PERSI e não comunicou à embargante tal procedimento.
5. No dia 27 de Dezembro de 2022, a embargada enviou carta à embargante, recebida, com o “Assunto” “Carta de Interpelação por Resolução” a informar que o empréstimo estava em incumprimento e que “nos termos do sobredito contrato ora resolvido” o montante total em dívida ascende a 23.310,87 euros.
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Factos não provados:
Não existem.
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3. Fundamentos de direito
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Interessa, apurar se, no âmbito do presente recurso a executada deve ser absolvida da instância por verificação de exceção dilatória inominada decorrente da instauração da acção executiva sem integração dos executados no PERSI e subsequente extinção deste procedimento:
As exceções dilatórias, nominadas ou inominadas, são de conhecimento oficioso, com ressalva incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou da preterição de tribunal arbitral voluntário e da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 104º – vide artigo 578º do Código de Processo Civil.
A nossa jurisprudência vem entendendo que a falta de integração do cliente bancário no PERSI consubstancia uma exceção dilatória inominada, reconhecendo, por isso, a possibilidade do seu conhecimento oficioso, aplicando o regime decorrente dos artigos 576º, n.ºs 1 e 2 e 578º do Código de Processo Civil, sendo, assim, de admitir a sua invocação até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, não operando o efeito preclusivo do prazo para deduzir embargos – vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/29/2020, processo 1827/18.2T8ALM-B.L1-7[3].
Pelo regime instituído e regulado pelo DL 227/2012 determinam-se os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, criando-se uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.
A integração do cliente bancário, em caso de incumprimento de contrato de crédito, no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (doravante, PERSI), é obrigatória (vide artigos 12º e 14º n.º 1 do DL 227/2012).
E constitui uma garantia do cliente bancário, nos termos do disposto no artigo 18º n.º 1 alínea b) do referido DL 227/2012, a proibição da instituição de crédito intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento.
Cabe à instituição de crédito, para além da alegação, a demonstração da implementação e extinção do PERSI.
Como já foi decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no Processo 340/21.5TBBELV-A.E1, EM 16-12-2021, “é entendimento pacífico que compete ao credor alegar e demonstrar que os devedores tiveram conhecimento da sua integração no PERSI, bem como da extinção desse procedimento.
Também não sofre contestação que se tratam de declarações receptícias, constituindo ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pelos executados”[4].
As comunicações em causa não têm que ser feitas por carta registada com aviso de recepção, o que preenche para além do exigível o conceito de “suporte duradouro” a que aludem os artsº 14, nº 4 e 17, nº 3 do D.L. 227/2012, de 25/10. Efectivamente, tal suporte duradouro, inclui também a carta simples ou um e-mail.
A isto acresce que, devendo as obrigações acessórias dos contratos ser pontualmente cumpridas, cabia à exequente enviar as cartas relativas ao PERSI para a morada constante do contrato e aos destinatários/executados adoptar a diligência devida de molde a que fosse efectivamente assegurada a recepção e o conhecimento das comunicações relevantes, que lhes fossem enviadas pelo credor.
No caso em apreço a apelante que, não logrou provar que as comunicações em causa foram feitas de modo eficaz e recebidas, entende que se encontrava desonerada de o fazer.
Interessa pois, apurar se a entidade bancária em causa, se encontra desonerada de activar os mecanismos do PERSI, quando o cliente bancário começa a incumprir a sua obrigação perante si, no decurso de acção executiva instaurada por outra entidade,  em que , havendo penhora do imóvel hipotecado, a entidade bancária, aparece nesses autos como credora reclamante.
Em primeiro lugar, cumpre aferir que o diploma que regula o Plano de Acção para o risco de incumprimento , aprovado em 6 de Agosto de 2021 (D.L. 70-B), não contém norma expressa para esta situação.
Contudo, resulta do seu Preâmbulo que o objectivo desta legislação, é o de prever que cada instituição de crédito crie um Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, nomeadamente, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento.
Consta ainda do diploma em análise que a existência de processos judiciais e de situações litigiosas, constituem indícios de degradação da capacidade financeira do cliente bancário para cumprir com as obrigações decorrentes de contrato de crédito (artº 9, nº 4 do D.L. 227/2012, de 25.10).
No caso em concreto, o cliente bancário estava a ser executado em processo autónomo, o que revela, sem dúvida dificuldades em cumprir as suas obrigações com o imóvel hipotecado, objecto de penhora naqueles autos.
Ora, o que ditam as regras de diligência e lealdade previstas no artº 4 do diploma em análise, é que a instituição bancária ora recorrente, adoptasse junto dos devedores/mutuários, antes do incumprimento que se reputava eminente, as medidas adequadas à prevenção desse mesmo incumprimento ou, ocorrido o mesmo, as necessárias para regularizar a situação de incumprimento surgido, nomeadamente o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento  (PERSI) a que alude o artº 12 do diploma em estudo.
O facto de a instituição bancária ora recorrente ter sido chamada a reclamar o seu crédito hipotecário na execução em causa, não a impedia de promover junto dos devedores/mutuários o referido PERSI.
Conforme se decidiu na primeira instância, “o facto de ter pendido  uma execução fiscal contra um dos mutuários na qual a embargada reclamou a totalidade do crédito emergente do empréstimo e lhe foi adjudicada ½ do imóvel hipotecado, não constitui, também, fundamento para a falta de integração dos executados em PERSI, pelas razões que seguem:
- primeiro, a penhora a favor de terceiros sobre bens do devedor constitui razão justificativa para a instituição de crédito poder extinguir o PERSI – art. 17.º, n.º 2, al. a) – e não causa automática de extinção do PERSI, para se poder defender a inutilidade originária da integração em PERSI;
- segundo, a penhora de ½ do imóvel hipotecado, a reclamação de créditos e adjudicação desse ½ a favor da embargada em processo de execução fiscal ocorreram em data anterior (até 2 de Maio de 2018) à data em que o empréstimo em causa começou a ser incumprido (14 de Setembro de 2018), pelo que nesta última data já não existia qualquer penhora (a adjudicação do imóvel fê-la caducar – art. 824.º, n.º 2, do CC) – que pudesse justificar a extinção do PERSI, antes o incumprimento obrigava à sua implementação”.
Efectivamente, o facto de ter corrido outra execução contra o cliente bancário, no âmbito do qual foi penhorado o imóvel sobre o qual o aqui exequente tem hipoteca constituída, o que motivou que a exequente reclamasse créditos naquela execução, não afasta a obrigação do exequente. No artigo 17º n.º 2 do DL 227/2012 prevê-se que a penhora, a favor de terceiros, de bens do devedor, constitua causa de extinção do PERSI por iniciativa da instituição de crédito – todavia, a extinção pressupõe que, antes, tenha havido abertura, sendo que ambos (abertura e extinção) devem ser efetuadas em suporte duradouro (vide artigos 15º n.º 4 e 17º n.º 3 do DL 227/2012) – a  lei não prevê a extinção automática.
Em abono da tese que perfilhamos, já se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, ao decidir que numa situação como a destes autos, em que, o credor hipotecário que viu graduado o seu crédito numa execução em que foi penhorado o imóvel onerado, só pode prosseguir a mesma para cobrança do crédito em questão, se comprovar que encetou diligências para integrar o executado em PERSI.
Está em causa o Processo 2711/15.7T8GMR-C.G1 e o acórdão relatado pela Srª Desembargadora Lígia Venade, segundo o qual:
“Na altura em que a exequente reclamou o crédito, nem sequer havia falta de pagamento por parte dos mutuários pelo que, não fosse a necessidade de reclamação, certamente não iria propor uma ação executiva.
Só quando a execução passa a correr sob o impulso processual do credor reclamante para pagamento do seu crédito então já vencido é que se pode considerar que há o exercício de um ato que demonstra a intenção de exercer o direito.
Significa isto que, a nosso ver, o credor teria de ter demonstrado nos autos que encetou o PERSI quando, em 24/10/2018, já vencidas as prestações (e não em 17/10/2016 quando reclama o crédito, embora aí também já vencidas; cfr. artº. 781º do C.C.) requer a renovação da execução extinta ao abrigo do artº. 850º, nº. 2, C.P.C., sendo certo que já o tinha de ter feito atenta a data do incumprimento nos termos dos artºs. 12º, 13º e 14º, nº. 1, do DL nº. 227/12. Quando o credor apresenta tal requerimento assume-se como exequente a partir daí. Por outras palavras, verificado o incumprimento o credor tinha de ter encetado o PERSI. Ao fazer o requerimento de renovação da execução extinta tinha de demonstrar que o fez”[5].
Alega a exequente que “não estava obrigada a encetar quaisquer diligências  em relação quer ao PERSI quer ao PARI pois, nos termos das condições gerais do documento complementar à escritura – e que dela faz parte integrante nos termos do art. 64.º do Código do Notariado – ficou consignado que “(…) constituem causa bastante e fundamentada de resolução do presente contrato: o não cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato, assumidas pelo mutuário; (…) d)  Penhora, arresto ou qualquer outra forma judicial ou não de apreensão do (s) imóvel (eis) hipotecado (s) (…)”.
Refere que está em causa o princípio da liberdade contratual.
Dispõe o artº 405, nº 1 do Código Civil que, “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.
As consequências teóricas deste princípio são várias e podem resumir-se assim:
1º - os indivíduos têm a faculdade de contratar ou não contratar, como entenderem;
2º podem, livremente, juntar aos contratos que celebram, as cláusulas, principais ou acessórias, que julgarem convenientes;
3º são igualmente livres para determinarem os efeitos das obrigações contratuais, efeitos que somente devem ser os que as partes previram e quiseram”[6];
Mas como resulta, no enunciado da disposição citada, o princípio em análise tem que ser conformado aos limites da lei.
E, decorre do artº 294 do Código Civil que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.
Ora, o D.L. 227/12, de 25.10, alterado pelo D.L. nº 70-B/2021, criou uma rede extrajudicial de apoio aos clientes bancários no âmbito da regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito, com normas de carácter imperativo.
Visou proteger especificamente o cliente bancário que seja consumidor nos termos e para os efeitos do nº 1 do artº 2º da Lei de defesa do Consumidor, que celebra contratos de mútuo com entidades bancárias, nos termos do artº 3º, al. a) do D.L. nº 227/2012, de 25.10 (englobando, nomeadamente contratos de crédito para aquisição de habitação própria permanente e contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel.
O legislador reconheceu que estes mutuários estão numa posição negocial de inferioridade em regra e que, podendo em teoria, ao abrigo do princípio da autonomia privada, fazer incluir cláusulas nos contratos de mútuo que subscrevem, na prática, perante as entidades bancárias mutuantes, face à necessidade de adquirir o bem imóvel que vai provir as suas necessidades de habitação, acabam por assinar contratos modelo, com cláusulas previamente determinadas pela entidade mutuante.
Esta reconhecida necessidade de proteger o cliente bancário nos moldes delimitados pelo PERSI, acaba por redundar na imposição às instituições de crédito de “uma renegociação forçada” do contrato de mútuo, como já se reconheceu em 06.20.2016, no acórdão proferido pelo TRE, no âmbito do Processo 4956/14.8T8ENT-A.E1[7].
Sendo assim, uma cláusula contratual inserta no contrato de mútuo que permitisse a resolução automática do mesmo, em caso de penhora do imóvel hipotecado, sempre colidiria com as normas imperativas do PERSI e, como tal, haveria que concluir pela respectiva nulidade, nos termos do artº 294 do Código Civil.
O princípio da autonomia privada sempre cederia perante a imperatividade da lei.
Posto isto, importa reafirmar que a decisão não podia, de facto, ser outra, que não a que se traduzisse na extinção a execução, absolvendo a executada da instância executiva, nos exactos termos constantes da decisão recorrida.
Termos em que, não é concedido provimento ao recurso interposto pelo exequente …………….. e, consequentemente, mantem-se a decisão recorrida proferida pela primeira instância.
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V. Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante (art. 527º, nº 1, CPC).
Notifique.
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Lisboa ,8/2/2014
Marília Leal Fontes
Amélia Puna Loupo
Cristina da Conceição Pires Lourenço
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[1] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, págs. 114 a 116.
[2] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Opus Cit.”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 116.
[3] Disponível em www.dgsi.pt.
[4] Disponível em www.dgsi.pt.
[5] In ecli – https://jurisprudência.csm.com
[6] Dr. José de Azeredo Perdigão, in “O Princípio da autonomia da vontade e as cláusulas limitativas da responsabilidade civil”, https://portal.oa.pt.
[7] Disponível em www.dgsi.pt