Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4113/11.5TCLRS.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
CREDOR SOCIAL
GERENTES OU ADMINISTRADORES
RESPONSABILIDADE DELITUAL
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O artigo 78.º (Responsabilidade para com os credores sociais) do Código das Sociedades Comerciais, no seu n.º 1, consagra uma acção pessoal e directa para o exercício de um direito próprio do credor, contra os titulares do órgão de gestão (responsabilidade independente da existente para com a sociedade), destinada a fazer valer um direito próprio a ressarcimento de prejuízos sofridos com a insuficiência do património social, assentando:
a- por um lado na inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção de credores sociais;
b- por outro, na insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos.
II – Trata-se de uma responsabilidade delitual (ou aquiliana) e não contratual, uma vez que não existe qualquer vínculo ou relação jurídica directa entre os gerentes/administradores e os credores da sociedade susceptível de gerar qualquer tipo de responsabilidade obrigacional.
III – Inexiste qualquer presunção de culpa por parte dos gerentes, desde logo porque o n.º 5 do artigo 78.º remete para os n.ºs 2 a 6 do artigo 72.º e não o faz para o n.º 1.
IV – Para que este direito por parte dos credores da sociedade possa ser exercido tem, conjugadamente com o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, de ocorrer:
(i) - a inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais;
(ii) - a insuficiência do património social para a satisfação dos créditos;
(iii) - a culpa dos administradores; e
(iv) - o nexo de causalidade (adequada) entre a referida inobservância e a insuficiência do património societário.
V – A violação de normas de conduta por parte dos gerentes/administradores da sociedade que, através de uma análise ex ante seja idónea à diminuição do património social da sociedade, tendo em conta a bitola do gerente ordenado e criterioso prevista pelo artigo 64.° do Código das Sociedades Comerciais-CSC, releva para completar a situação concreta em que se pretende a aplicação do n.º 1 do artigo 78.º.
VI - Consideram-se normas de protecção aos credores sociais as relativas:
- à conservação do capital social (artigos 31.º, 34.º, 51.º, 236.º, 346.º, n.º 1, 513.º, 220.º, n.º 2, 317.º, n.º 4);
- à constituição e utilização da reserva legal (artigos 218.º, 295.º, 265.º);
- à proibição de acções próprias (artigo 316.º, n.º 1) e certas aquisições e detenções de acções próprias (artigos 317.º, n.º 2 e 323.º);
- à capacidade jurídica das sociedades (artigo 6.º);
- ao dever do administrador em requerer a insolvência da sociedade (artigos 18.º e 19.º do CIRE).
VII – O capital social tem nas relações externas de uma sociedade uma função de garantia, visando o artigo 35.º CSC assegurar um mínimo de correspondência entre o capital real e o capital nominal, ou seja, assegurar que não ocorra uma desproporção grave entre o património líquido e a cifra do capital.
VIII - Verificada a situação do artigo 35.º, os sócios têm o dever de tomar uma deliberação em Assembleia, ficando com o ónus de dissolver a sociedade, reduzir o capital social, ou realizar entradas em dinheiro que reponham a situação líquida legal, sob a consequência penosa de terem de publicitar a sua subcapitalização.
IX – O artigo 35.º funciona como uma forma de tranquilizar os credores da sociedade, tocando a campainha de alarme em que se traduz a obrigação de convocar a assembleia para tomada de alguma das medidas previstas no seu n.º 3.
X – Os gerentes e administradores de uma sociedade gozam de ampla autonomia e espaço de livre apreciação no desempenho das suas funções societárias (respeitando as necessárias agilidade e risco inerentes à actividade empresarial), pelo que, quando o resultado da gestão é a insolvência, tal não é, em princípio, suficiente para alicerçar uma obrigação de indemnizar com recurso aos artigos 64.º e 78.º, n.º 1.
XI – Independentemente do instrumento legal e societário que revista, o desvio da sociedade (com uma situação financeira crítica e um capital social negativo) de €640.000, que impede o pagamento a credores, sem que para tal seja apresentada uma justificação racional, constitui uma violação dos artigos 31.º, 32.º e 33.º, conjugados com o 78.º, n.º 1.
XII - O dever de apresentação à falência a que alude o artigo 18.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas está expressamente limitado à situação descrita no n.º 1 do abrangendo a dos n.ºs 2 e 3, pelo que a sociedade pode encontrar-se numa real situação de insolvência e, todavia, não estar directamente imposto aos seus gerentes/administradores a sua obrigação se apresentação.
XIII - Para efeitos de eventual violação directa dos artigos 18.º e 19.º do CIRE, o que releva não é o passivo ser manifestamente superior ao activo, mas apenas que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
XIV – Para efeitos do n.º 1 do artigo 78.° do CSC, a insuficiência patrimonial deve ser entendida como a insuficiência das posições jurídicas activas da sociedade comercial para fazer face ao seu passivo num determinado momento concreto e, em consequência de tal insuficiência, incumprir com as suas obrigações vencidas, não se confundido esse conceito com a insolvência da sociedade.
XV – Usando da diligência de um gestor criterioso e ordenado os gerentes de uma sociedade que desde a sua constituição (e durante cinco anos consecutivos) apresentou resultados contabilísticos negativos não logrando cumprir as suas obrigações vencidas, num contexto em que a sua casa-mãe (com sede no estrangeiro) se encontra num processo pré-falimentar, devem apresentá-la à insolvência, em cumprimento dos artigos 18.º e 19.º do CIRE, para protecção dos credores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
 Massa Insolvente de… intentou acção declarativa com processo comum contra S…, LDA., J…, P… e M… peticionando a sua condenação no pagamento de €590.801,80 (sendo €463.389,22 de capital e o restante em juros vencidos), acrescida dos juros vincendos, contados à taxa legal.
Em síntese, alegou a Autora que fez à primeira Ré fornecimentos no valor do capital peticionado (facturas com vencimento a 180 dias), valor que não foi liquidado.
Quanto aos restantes Réus é peticionado o mesmo valor, com fundamento no artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais, por serem os três gerentes da primeira Ré e terem praticado diversos actos de gestão danosa da Ré, que a levaram a uma situação de incapacidade de satisfazer as suas obrigações, com prejuízo para a Autora.
 Citados, os Réus vieram contestar:
 - o Réu P… defendendo a prescrição das verbas peticionadas e a ilegitimidade da Autora para a acção por não se verificarem os pressupostos do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais e pedindo a sua absolvição do pedido;
- o Réu M… defendendo a prescrição das verbas peticionadas e a ilegitimidade da Autora para a acção por não se verificarem os pressupostos do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais e pedindo a sua absolvição do pedido.
Dispensada a realização de Audiência Prévia foi feito o Saneamento da acção decidindo-se:
 - absolver a Ré S… da instância, nos termos do artigo 38.º , n.º 1, do Código de Processo Civil, por falta de verificação dos pressupostos de coligação enunciados no artigo 36.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma (por a Autora, para tal notificada, ter declarado pretender que a causa prosseguisse para a apreciação do pedido que formula contra os demandados pessoas singulares);
- ser improcedente a arguição de ilegitimidade defendida pelos RR. P… e M…;
- ser improcedente a arguição da prescrição;
- fixar o objecto do processo (“Averiguar se sobre os RR. impende a obrigação de reparar a A. em razão da inobservância culposa pelos mesmos das disposições legais e contratuais destinadas à protecção dos credores sociais” e “Em caso afirmativo, apurar o montante da reparação devida”);
- fixar os temas da prova.
Realizou-se a audiência de Julgamento sendo proferida Sentença, na qual se conclui com o seguinte dispositivo:
“Termos em que se julga a acção improcedente e em consequência se:
a) Absolve os RR. do pedido.
b) Condena a A. no pagamento das custas.
Registe e notifique”.
É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Autora, a qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:
A) Andou mal a sentença proferida pelo tribunal a quo ao absolver os Recorridos do pedido formulado pela Recorrente.
B) Os factos provados e o direito aplicável implicavam uma decisão diversa, que condenasse os Recorridos.
C) A Recorrente pediu a condenação dos Recorridos a pagarem-lhe a quantia de 590.801,80€ entre capital e juros vencidos, acrescidos dos juros vincendos, em virtude de os ditos Recorridos terem praticados atos de gestão danosa, em violação culposa das disposições legais e contratuais destinadas à proteção dos credores sociais, que levaram a que não fosse paga a dívida de empresa S… da qual eram gerentes, à referida Recorrente.
D) A Recorrente entende que os Recorridos deviam ter apresentado a empresa à insolvência, deviam ter convocado uma assembleia de sócios em virtude de a empresa ter perdido metade do capital social, e bem assim considera que distribuíram de forma ilícita bens sociais da sociedade aos sócios quando esta estava em situação de falência técnica.
E) Sucede que o tribunal a quo decidiu absolver os Recorridos, por entender inter alia que não se verificavam os pressupostos da sua responsabilização como gerentes, desde logo porque a sociedade não estava insolvente, também por não se ter provado que os gerentes omitiram o dever de convocar a assembleia geral nos termos do artigo 35.º do CSC em virtude de perda de metade do capital social, e ainda porque não se apurou o instrumento que levou à retirada do dinheiro da sociedade para os sócios.
F) O Tribunal a quo considerou que a empresa S…, Lda. (de ora em diante abreviadamente “S…”), da qual os demais Réus eram gerentes, não se encontrava nem encontrou em algum momento da sua existência em situação de insolvência, nem os 2º, 3º e 4º Réus omitiram o dever de a apresentar à insolvência.
G) A sentença considera que apesar de ser verdade que a S… nunca teve meios financeiros próprios, património ou ativos suficientes para solver a totalidade das suas dívidas, tal não significa que estivesse impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, porque os factos apurados não permitem determinar a expressão, momentaneamente e ao longo dos anos, dos débitos vencidos no quadro geral da dívida, e também porque não há dados que evidenciem a impossibilidade de cumprimento das obrigações pela empresa perante os seus credores.
H) A sentença afirma ainda que o cumprimento por parte das empresas das suas obrigações não tem necessariamente de ser alcançado com a afetação de recursos do próprio património, podendo as mesmas socorrer-se de financiamento ou outros meios de aporte de fundos à tesouraria, nada tendo sido alegado nem nada se sabendo quanto à inviabilidade da S… no período de 2004 a 2008, lançar mão de tais mecanismos para assegurar o cumprimento dos seus débitos.
I) Sucede que de acordo com os factos provados, a empresa teve, com exceção do ano de 2006, sempre resultados operacionais negativos, sendo que mesmo nesse ano a situação líquida não passou a positiva, considerando os resultados transitados, tudo conforme factos provados 11), 14), 19), 24), 31), 32) e 38), tendo inclusivamente o passivo da empresa atingido em 2008 valor superior a 2 milhões de euros.
J) Como aliás a sentença reconhece expressamente, a empresa nunca dispôs de meios financeiros próprios, património ou ativos suficientes para solver a totalidade das suas dívidas, e o relatório pericial levado a cabo no processo às contas da empresa refere expressamente que a mesma se encontrava em falência técnica logo em 2005 (resposta ao quesito 15), o mesmo em 2007, com tendência para se agravar (resposta ao quesito 32), não havendo nenhuma melhoria depois disso.
K) O Réu M… reconheceu a falência técnica da empresa logo em 2005 no seu depoimento de parte (vidé ata da audiência de julgamento datada de 16 de setembro de 2020 (ref.ª 145756056)), sendo que aliás os números consistentemente negativos são reconhecidos como verdadeiros pelos dois Réus que depuseram no tribunal.
L) De acordo com a lei, um devedor encontra-se em situação de insolvência quando se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, e no caso de pessoas coletivas também quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
M) Não foi feita qualquer contraposição no processo às conclusões da falência técnica plasmadas no relatório pericial e reconhecidas pelos Réus, e salta à vista que uma empresa com dividas a fornecedores na ordem de 2.045.483,07€ e apenas 498.000,00€ de créditos de clientes, está mais do que insolvente, principalmente quando nessa altura (2009) já nem sequer tinha praticamente qualquer atividade, pois as vendas não ultrapassaram os 11 mil euros (facto 39), e ainda, de acordo com o facto provado 51) a empresa em 2009 estava somente a liquidar stocks no sentido de fechar a operação.
N) A expressão da dívida à Autora é substancial face às dívidas globais a fornecedores da S…, na ordem dos 25%, o que indicia só por si a situação de insolvência da empresa, e contradiz o que a sentença refere no que respeita à expressão da dívida reclamada no quadro geral do passivo da empresa.
O) Uma empresa com prejuízos consistentes durante todo o período da sua atividade, que não paga uma dívida superior a 500 mil euros, está claramente insolvente, e o relatório pericial assume claramente a falência técnica da empresa, não tendo sido posto em causa por nenhuma das partes.
P) Não faz sentido a consideração da sentença relativamente à possibilidade de a empresa se socorrer de outros meios que não os próprios para pagar dividas, seja porque não o fez, seja porque de qualquer modo não existem quaisquer meios de crédito disponíveis para uma entidade claramente insolvente.
Q) De acordo com tal raciocínio, uma entidade nunca estaria insolvente porque poderia sempre recorrer ao crédito.
R) Se fosse ónus da Recorrente provar a inviabilidade da S... lançar mão desses mecanismos para assegurar o cumprimento dos seus débitos no período em referência, estaríamos claramente a entrar no campo da prova diabólica.
S) A Autora entende que apenas tem de provar que a empresa está insolvente de acordo com os critérios estabelecidos na lei, e tudo aquilo que ficou provado nos autos parece ser mais do que suficiente.
T) A sentença contradiz-se de forma insanável quando a fls. 16 quando refere que os factos provados determinam a dívida da S... à Recorrente, também que os Recorridos sempre foram gerentes da sociedade, e igualmente que a mesma sociedade esteve sempre numa situação financeira deficitária do principio ao fim da sua atividade, mas afinal não se encontrava insolvente, por causa da possibilidade de obter credito, e porque não se conseguia determinar a expressão certa e determinada da divida dos autos no passivo da empresa ao longo dos anos.
U) Aquilo que a sentença referiu no ponto imediatamente acima identificado traduz precisamente a verificação dos pressupostos da insolvência duma empresa, ao contrário do que a própria sentença refere mais abaixo.
V) A sentença não apresenta qualquer fundamentação válida para a sua conclusão sobre este ponto, entrando em total contradição, e violando o estabelecido no artigo 615º do CPC.
W) O entendimento da jurisprudência nacional acerca da verificação dos pressupostos da situação de insolvência corrobora a tese da Recorrente em toda a linha, nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 878/08.0TYLSB-K.Ll-8, com data de 11-07-2013, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3e9c30d04c596cfa80257c4400319279?OpenDocument, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 248/11.2TYLSB.Ll-8, com data de 27-10-2011, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7b59475e44badb8e8025794f0058d0d1?OpenDocument, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 1577 /08.STBALQ-C.Ll-8, com data de 22-04-2010, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/6b29f167d7ea61c58025774a0055f6a7?OpenDocument, e principalmente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 580/08.2TYLSB-D.L1-1, com data de 17-11-2009, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8bc10e3b04ea82e9802576850054fa95?OpenDocument, e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 14089/18.2T8LSB-A. L1-1, datado de 12-11-2019, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/492a4b49435108b6802584b70042e792?OpenDocument.
X) Não restam dúvidas acerca da situação de insolvência da S..., o que implicava a obrigação da apresentação do respetivo pedido junto do tribunal competente por parte dos seus responsáveis, ou seja, os Recorridos enquanto gerentes da mesma com a efetiva gestão corrente da sociedade, conforme provado nos autos (facto 7) e (factos não provados 69) e 70), tal como resulta dos artigos 18º e 19º do CIRE, tendo ainda ficado provado que os ditos gerentes conheciam perfeitamente a situação financeira da empresa desde sempre (facto 8).
Y) Ao manterem a situação inalterada, os Recorridos concorreram determinantemente para que a Recorrente se visse impossibilitada de obter o pagamento do seu crédito, na medida em que bem sabiam que a empresa não tinha capacidade para liquidar as suas dividas já em 2007 (data das primeiras faturas), uma vez que se encontrava em falência técnica antes disso.
Z) A Recorrente desconhecia em absoluto a situação financeira da S... quando lhe forneceu os bens não pagos.
AA) Por outro lado, resulta ainda claro de acordo com as contas da S..., os documentos do processo e bem assim os factos provados, que a empresa perdeu metade do seu capital social logo em 2004, conforme resposta ao quesito 17 do relatório pericial.
BB) A sentença determinou que apesar disso, não se provou que os gerentes tenham omitido o (único) dever que sobre eles impendia de acordo com a lei, e que consistia em convocar de imediato a assembleia geral da sociedade para que os sócios fossem postos ao corrente da situação, tomando as medidas que julgassem convenientes.
CC) Acontece que os Recorridos M... e P… reconheceram nos respetivos depoimentos de parte os números plasmados na contabilidade da sociedade, o que significa que estavam bem cientes de que a sociedade havia perdido metade do capital social logo em 2004 (resposta ao artigo 17º da PI - ata da audiência de julgamento datada de 16 de setembro de 2020 (refª 145756056)), nada tendo feito para corrigir a situação.
DD) As próprias contestações dos Réus referem que tentaram enquanto gerentes promover um processo de aumento do capital social da empresa (artigo 20º das contestações), mas nada demonstraram nesse sentido (facto não provado 71).
EE) Os Recorridos alegam que cumpriram com o estipulado no artigo 35º do CSC, mas atendendo aos factos alegados e não provados, salta à vista que tal não é verdade, na medida em que se tivessem levado a cabo tal convocatória, tentado propor um aumento de capital, e nada se tivesse passado por culpa do outro acionista, teriam necessariamente de apresentar de seguida a empresa à insolvência, o que não sucedeu nunca.
FF) A inércia dos Recorridos foi total e absoluta, pelo que obviamente a única conclusão logica possível é que não cumpriram com o preceito legal suprarreferido, devendo em consequência ser considerado como devidamente provado o facto não provado 68).
GG) No que respeita à distribuição ilícita de bens sociais, ficou provado nos autos, inclusivamente por admissão expressa de um dos Recorridos em sede de depoimento de parte, que houve já durante o ano de 2009 uma retirada de 640.000,00€ por parte dos sócios.
HH) Sucede que o tribunal a quo entendeu na sentença, erradamente, que não se sabe qual o instrumento utilizado para suportar a referida movimentação de dinheiro a favor dos sócios, o que inibe que se possa dizer que se tratou de uma deliberação dos sócios abrangida pelas normas legais previstas nos artigos 31.º, 32.º e 33.º do CSC, ou seja, as normas que proíbem a distribuição de lucros aos sócios quando não estejam garantidas as despesas essenciais da empresa, mais dizendo ainda que o movimento dos referidos 640.000,00€ a favor dos sócios nem sequer se pode considerar uma distribuição de bens sociais, já que se assim fosse os sócios não se apresentariam como devedores de médio e longo prazo da sociedade pelo respetivo valor.
II) A conclusão da sentença não respeita os factos apurados no processo, especificamente o que ficou provado sob os pontos 5), 7), 8), 41), 42), 43) e 44), e a confissão levada a cabo pelo Recorrido M... no âmbito do seu depoimento de parte relativamente aos artigos 52.º, 54.º e 55.º da petição inicial (ata da audiência de julgamento datada de 16 de setembro de 2020 (ref.ª 145756056)).
JJ) Também a fundamentação apresentada pela sentença no que tange à fixação da matéria de facto sobre o ponto da retirada do referido dinheiro (a fls. 13), em concreto a conclusão sobre a “justificação” para a inscrição contabilística da retirada do valor em causa da esfera da empresa, é totalmente incompreensível.
KK) Os gerentes sabiam da situação brutalmente deficitária da empresa, e das dividas da mesma, maxime a dívida à Recorrente, e foram os próprios a reconhecer que caso esse valor se tivesse mantido na sociedade, teria permitido – ao menos em parte – pagar a divida à mesma Recorrente.
LL) O facto de o montante em causa ter sido inscrito contabilisticamente como divida dos sócios, ou qualquer outra classificação, é perfeitamente irrelevante para o caso, pois o que importa é que esse montante foi retirado da empresa e nesse sentido não pôde servir para pagar aos credores, quando não havia mais disponibilidade de dinheiro para tal.
MM) Não se entende a justificação dada na sentença para aceitar a retirada do dinheiro, uma vez que aparentemente o tribunal a quo considerou que uma vez que tal valor saiu a coberto de um “crédito” aos sócios, não diminuiu o património da empresa, conclusão com a qual não se pode concordar.
NN) Segundo este entendimento, qualquer saída de dinheiro de uma empresa para os sócios, ainda que ilícita, como é o caso, atendendo à situação deficitária em que se encontrava, não oferece qualquer problema de violação de normas de proteção da garantia dos credores, desde que a classificação contabilística dada não tenha a ver com distribuição de bens aos sócios.
OO) De acordo com este tipo de julgamento, é extremamente fácil aos prevaricadores drenarem capitais de qualquer empresa, pois terão simplesmente de classificar as saídas de dinheiro, mesmo que sem justificação económica e societária válidas, como “empréstimos” a sócios e o problema fica aparentemente resolvido.
PP) Semântica à parte, parece que a sentença tenta dar cobertura à retirada de dinheiro da sociedade, levada a cabo de forma totalmente ilícita, com base no facto de a classificação contabilística respetiva não mencionar expressamente “distribuição de bens aos sócios”.
QQ) A conclusão é tanto mais incompreensível quanto ficou provado que a retirada do dinheiro foi intencional, conforme resulta no facto provado 42).
RR) É precisamente esse tipo de atuação que a lei proíbe.
SS) De acordo com a lei, em concreto os artigos 31.º, 32.º e 33.º do CSC, os gerentes não podem distribuir aos sócios valores da sociedade, quando a mesma tenha um capital social negativo, sendo a razão de ser dos referidos artigos precisamente manter a empresa devidamente capitalizada, nomeadamente para poder fazer face às suas obrigações.
TT) No caso concreto, nada de positivo havia na situação patrimonial da sociedade à data de tal distribuição.
UU) A sentença a quo refere ainda que não se conhecendo o instrumento que levou à retirada do valor referido da empresa, não se pode responsabilizar os gerentes por tal retirada, o que mais uma vez se considera não ser uma conclusão correta de um ponto de vista legal.
VV) Sendo certo que no caso concreto não se pode tratar de uma distribuição de resultados, porque não existiam lucros, nem sequer se pode ter uma noção do tipo de deliberação tomada, ou melhor, de um ponto de vista jurídico não podia ser nenhum, atendendo a que os sócios da empresa não podiam retirar dinheiro fosse de que modo fosse.
WW) Qualquer saída de dinheiro para os acionistas seria pura e simplesmente ilegal na situação em que a empresa se encontrava, fosse através do mecanismo de distribuição de bens previsto no artigo 32º do CSC, ou outro, e os gerentes como guardiões da boa governança da sociedade tinham de evitar tal distribuição, fosse a que titulo fosse, sob pena da sua própria responsabilização decorrente das regras legais atinentes.
XX) Tiveram de ser obrigatoriamente os próprios gerentes e ora Recorridos a levar a cabo a referida distribuição, na medida em que eram os titulares do órgão de gestão da sociedade desde sempre.
YY) A sentença a quo também neste ponto faz tábua rasa das regras da prova, ao pretender que a Recorrente faça prova diabólica no sentido de ter de apresentar os documentos societários que deram suporte à dita transferência, quando na verdade se trata de documentos, caso existissem, o que nem sequer é razoável supor, internos da sociedade, e não disponíveis ao publico.
ZZ) É virtualmente impossível retirar de uma sociedade por quotas dinheiro desta monta para os acionistas, sem passar pelos gerentes, ainda mais quando não existe possibilidade legal de o fazer face à situação económico financeira da sociedade em questão, e não se pode esquecer que são os gerentes que movimentam – ou autorizam alguém a fazê-lo, sendo sua a responsabilidade em primeira linha – as contas bancárias das sociedades.
AAA) Resulta da lei, da jurisprudência e da doutrina que os gerentes não podem executar deliberações sociais que violem a lei, sob pena de responsabilidade perante os credores, conforme está escrito nomeadamente no Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I (Artigos 1º a 84º), 2ª Edição, Almedina, pág. 514 e ss. 48.
BBB) Não restam dúvidas, atentos os factos provados nos autos, de que foram os Recorridos quem levou a cabo a retirada dos 640.000,00€ da sociedade, independentemente da forma utilizada para tal, porquanto isso resulta da lei e da normalidade da vida das sociedades comerciais.
CCC) O gerente e Recorrido M... reconheceu todos os elementos de facto essenciais para concluir acerca da sua própria responsabilização pela retirada do dinheiro, tendo inclusivamente mencionado o sócio (Concentra) para quem alegadamente foi transferido o dinheiro em causa (ata da audiência de julgamento datada de 16 de setembro de 2020 (ref.ª 145756056)).
DDD) Trata-se de uma conduta tão gravosa que a própria lei a sanciona também como ilícito penal!
EEE) Resulta do artigo 259.º do CSC que os gerentes das sociedades por quotas devem praticar os atos necessários ou convenientes à prossecução do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios, e obviamente dentro da lei, não podendo nomeadamente executar deliberações ilegais ou ilícitas, como é o caso da distribuição de bens aos sócios quando o património social não o permita, como se passou no caso concreto, conforme resulta dos artigos 31.º nº 2 alínea b) e 32º do CSC.
FFF) Não existe a mínima justificação para a referida retirada de dinheiro da sociedade, e não colhe a declaração feita na sentença sobre a impossibilidade de aferir da sua legalidade face ao desconhecimento do suporte para tal, pura e simplesmente porque nos termos da lei não existe nenhuma justificação válida, atenta a situação patrimonial da sociedade.
GGG) Face aos critérios legais, seja por ação, seja por omissão, a responsabilidade dos Recorridos enquanto gerentes da S..., em virtude da retirada do dinheiro da mesma, é certa e inevitável.
HHH) Os Recorridos não podiam ter praticado quaisquer atos que levassem à retirada do dinheiro da sociedade, e caso tivessem sido “ultrapassados” por alguém na prática de atos proibidos, não podiam ter omitido os comportamentos devidos relativos à conservação do capital da mesma sociedade, sendo que ambas as condutas, por ação e/ ou omissão, os responsabilizam.
III) É clara a violação por parte dos Recorridos do previsto nos artigos 31.º, 32.º e ainda 33.º do CSC, o que importa a sua responsabilidade perante a Recorrente enquanto credora da S....
JJJ) De acordo com a lei e conforme entendido de forma unânime pela jurisprudência, não restam dúvidas de que a responsabilidade dos gerentes das sociedades perante os credores sociais é de natureza extracontratual.
KKK) Havendo violação de disposições legais (ou contratuais) de proteção dos credores, a saber, regras de conservação do capital social, defesa da integridade do património social ou da solvência da sociedade por parte dos gerentes, os mesmos respondem diretamente perante os credores sociais, no caso de lhes terem causado prejuízos com a sua atuação.
LLL) Isso mesmo é entendimento pacifico da jurisprudência, conforme nomeadamente se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Proc. 117/11.6TBAMM.C1, com data de 28-11-2022, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5142d25cb07438198025820a003df764?OpenDocument, e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Proc. 3045/16.5T8BRG.P1, com data de 14-01-2021, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/fb78a13fc77d4e6c8025867f00546bda?OpenDocument.
MMM) De acordo com o que acima se expos, não restam dúvidas acerca da responsabilidade dos Recorridos enquanto gerentes da S..., perante a Recorrente, relativamente à divida não liquidada por parte daquela primeira.
NNN) Os gerentes da S... não a geriram com cuidado, com a competência técnica e com o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções, não tendo empregue nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado, nem atenderam ou ponderaram os interesses dos clientes e credores imprescindíveis à sustentabilidade da sociedade, pelo que desrespeitaram o artigo 64° do CSC.
OOO) À luz dos factos acima descritos, verificou-se uma atuação ilícita (foram violadas obrigações próprias do direito das sociedades) e culposa (podiam e deviam ter agido de outro modo) dos Recorridos, enquanto gerentes da S..., de que resultou a insuficiência patrimonial da sociedade, ficando sem possibilidade de honrar os seus compromissos para com os credores sociais.
PPP) Os atos e omissões praticados pelos Recorridos foram a causa de insuficiência do património social da S... no que respeita ao cumprimento dos respetivos débitos, nomeadamente o reclamado pela aqui Recorrente.
QQQ) A conduta dos Recorridos enquanto gerentes da S... preenche todos os pressupostos legais no que se refere à responsabilidade extracontratual perante a credora social da sociedade e ora Recorrente.
RRR) Os Recorridos enquanto gerentes da S... praticaram atos e omitiram outros, de forma totalmente voluntária, no exercício da sua funções societárias, a saber, em primeiro lugar omitiram o dever de apresentar a empresa à insolvência, quando se verificavam em concreto os pressupostos para tal, na medida em que a situação da mesma empresa era altamente deficitária, sem possibilidade de retorno, depois e em segundo lugar os mesmos Recorridos não convocaram uma assembleia geral da sociedade a fim de comunicar aos sócios a situação de perda de metade do capital social, que permitisse a estes tomar uma decisão que resolvesse o problema em causa, e finalmente, em terceiro lugar, levaram a cabo uma operação de retirada de dinheiro da sociedade a favor dos sócios, no montante de 640.000,00€, numa altura em que a mesma sociedade se encontrava numa situação de enorme gravidade de um ponto de vista financeiro, não podendo a dita operação ocorrer, fosse a que título fosse, tendo inclusivamente, um dos Recorridos reconhecido que tal operação impediu que fosse feito o pagamento da dívida à Recorrente.
SSS) Mesmo que tal operação tivesse ocorrido sem intervenção direta dos Recorridos, o que de um ponto de vista societário nem sequer se concebe, e face à prova dos autos nem se aceita, a verdade é que os mesmos estavam perfeitamente ao corrente da situação, pelo que tinham a obrigação de atuar em conformidade, ou seja, impedir, nem que fosse através dos meios judiciais ao seu alcance, que o dinheiro fosse retirado da sociedade.
TTT) Seja por ação, seja por omissão, os Recorridos violaram a lei, e como tal as suas condutas foram ilícitas, no sentido em que não protegeram o património social, que constitui a garantia geral dos credores.
UUU) Os Recorridos tinham plena consciência, e não podiam deixar de ter, que estavam a praticar atos ilícitos e lesivos dos direitos dos credores, ao permitirem que o património social fosse sendo delapidado, tendo a obrigação de agir de outro modo, de acordo com os princípios de atuação de gestores criteriosos e diligentes, pelo que agiram com culpa.
VVV) Os Recorridos claramente atuaram mesmo de forma dolosa, e não apenas pouco diligente, pois estavam desde o primeiro momento perfeitamente conscientes da situação da empresa, considerando que a mesma nunca foi positiva, e quiseram que se mantivesse assim, pois nada fizeram para que melhorasse, nem para evitar o prejuízo dos credores, tendo acabado por ainda delapidar mais o já parco património da empresa.
WWW) A Recorrente ficou prejudicada num elevadíssimo montante, superior a 500 mil euros, em virtude da falta de pagamento das faturas relativas à mercadoria que forneceu à S....
XXX) Resulta evidente que foi a conduta ilícita dos Recorridos que causou a insuficiência patrimonial da S..., impossibilitando o pagamento do crédito da Recorrente, pois de facto, se os Recorridos tivessem apresentado a empresa à insolvência quando legalmente devido, ou seja, logo em 2005 ou no limite em 2006, a Recorrente, a qual era desconhecedora da situação da empresa, nunca teria fornecido os bens cujo preço nunca foi pago.
YYY) Se os Recorridos tivessem ao menos convocado a assembleia geral para informar os sócios da situação da perda de metade do capital social da S..., de molde a permitir aos mesmos resolver a situação, naturalmente não se teria gerado a situação de incumprimento referida.
ZZZ) Caso os Recorridos tivessem deixado de executar a decisão de retirada de 640.000,00€ da sociedade a favor dos sócios, ou ao menos a tivessem evitado, e a Recorrente teria recebido o pagamento das faturas, sendo de sublinhar o reconhecimento expresso pelo menos de um dos Recorridos acerca de tal situação.
AAAA) Estão assim preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos Recorridos perante a Recorrente, pelo que devem ser condenados a ressarcir esta última no valor da dívida que a sociedade S... tem perante a mesma.
BBBB) Estão preenchidos todos os requisitos a que aludem os artigos 78.º, n.º 1 do CSC e 483.º n.º 1 do CC. CCCC).
 A sentença a quo errou na aplicação da lei aos factos concretos, concretamente no que respeita ao artigo 3.º do CIRE, artigos 31.º, 32.º, 33.º, 35.º e 78.º, nº 1 do CSC e 483.º, nº 1 do CC, para além de ter julgado mal o facto não provado 68, o qual devia ter sido considerado provado.
Não foram apresentadas Contra-Alegações.
Questões a Decidir
São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de atuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
Verificadas as Alegações e Conclusões da Autora-Recorrente importará decidir neste Recurso:
 - da correcta ou incorrecta colocação do Facto não Provado 68., como não provado e se deve passar a provado;
 - da existência de uma nulidade, “violando o estabelecido no artigo 615º do CPC”, porque “sentença contradiz-se de forma insanável quando a fls. 16 quando refere que os factos provados determinam a dívida da S... à Recorrente, também que os Recorridos sempre foram gerentes da sociedade, e igualmente que a mesma sociedade esteve sempre numa situação financeira deficitária do principio ao fim da sua atividade, mas afinal não se encontrava insolvente, por causa da possibilidade de obter credito, e porque não se conseguia determinar a expressão certa e determinada da divida dos autos no passivo da empresa ao longo dos anos”;
 - da adequada subsunção dos Factos ao Direito, nomeadamente se os Réus podem ser condenados, com fundamento no artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais.
***
Fundamentação de Facto
Releva para a presente decisão a seguinte factualidade:
1 - A Autora é a massa insolvente da sociedade comercial de direito francês com a denominação ------, S.A., declarada em liquidação judicial pelo Tribunal de Commerce de Lons le Saunier, por sentença proferida em 19.6.2008, e que se dedicava, entre outros, ao fabrico, compra e venda de artigos de plástico e de outros materiais.
2) No exercício da sua actividade, a Autora, a pedido e no interesse da sociedade S... Portugal - ---, Lda., forneceu-lhe diversos artigos de plástico e de outros materiais, nomeadamente brinquedos, pelo preço total de €463.389,82.
3) O valor referido em 2) é resultante das seguintes facturas:
· Factura n.º 8032987, emitida em 25.04.2007 e vencida em 25.10.2007, no valor de €245,18;
· Factura n.º 8032988, emitida em 25.04.2007 e vencida em 25.10.2007, no valor de €12.688,00;
· Factura n.º 8033010, emitida em 26.04.2007 e vencida em 26.10.2007, no valor de €6.373,80;
· Factura n.º 8033360, emitida em 14.05.2007 e vencida em 14.11.2007, no valor de €3.014,50;
· Factura n.º 8033061, emitida em 14.05.2007 e vencida em 14.11.2007, no valor de €4.891,20;
· Factura n.º 8033062, emitida em 14.05.2007 e vencida em 14.11.2007, no valor de €10.315,80;
· Factura n.º 8033412, emitida em 15.05.2007 e vencida em 15.11.2007, no valor de €5.058,40;
· Factura n.º 8033566, emitida em 16.05.2007 e vencida em 16.11.2007, no valor de €8.680,80;
· Factura n.º 8033614, emitida em 22.05.2007 e vencida em 22.11.2007, no valor de €5.746,00;
· Factura n.º 8033957, emitida em 30.05.2007 e vencida em 30.11.2007 no valor de €7.548,00, relativamente à qual apenas se encontra em divida o valor de €7.421,50;
· Factura n.º 8033958, emitida em 30.05.2007 e vencimento em 30.11.2007, no valor de €960,00;
· Factura n.º 8034089, emitida em 01.06.2007 e vencimento em 01.12.2007, no valor de €11.922,60;
· Factura n.º 8034090, emitida em 01.06.2007 e vencimento em 01.12.2007, no valor de €8.914,40, relativamente à qual apenas se encontra em divida o valor de €8.807,15;
· Factura n.º 8034409, emitida em 07.06.2007 e vencimento em 07.12.2007, no valor de €1.436,70;
· Factura n.º 8034410, emitida em 07.06.2007 e vencimento em 07.12.2007, no valor de €1.680,00, relativamente à qual apenas se encontra em divida o valor de €1.666,25;
· Factura n.º 8034944, emitida em 21.06.2007 e vencimento em 21.12.2007, no valor de €16.574,40;
· Factura n.º 8034977, emitida em 26.06.2007 e vencimento a 26.12.2007, no valor de €12.775,60;
· Factura n.º 8034978, emitida em 26.06.2007 e vencimento a 26.12.2007, no valor de €1.537,60;
· Factura n.º 8035661, emitida em 11.07.2007 e vencimento a 12.07.2008, no valor de €19,25;
· Factura n.º 8035752, emitida em 18.07.2007 e vencimento a 18.01.2008, no valor de €4.641,60;
· Factura n.º 8036433, emitida em 29.08.2007 e vencimento a 29.02.2008, no valor de €27.557,80;
· Factura n.º 8036434, emitida em 29.08.2007 e vencimento a 29.02.2008, no valor de €17.490,00, relativamente à qual apenas se encontra em divida o valor de €17.340,00;
· Factura n.º 8036576, emitida em 04.09.2007 e vencimento a 04.03.2008, no valor de €16.617,65;
· Factura n.º 8036669, emitida em 10.09.2007 e vencimento a 10.03.2008, no valor de €14.698,00;
· Factura n.º 8036779, emitida em 17.09.2007 e vencimento a 29.02.2008, no valor de €190,00;
· Factura n.º 8037129, emitida em 02.10.2007 e vencimento a 02.04.2008, no valor de €15.832,60;
· Factura n.º 8037142, emitida em 02.10.2007 e vencimento a 02.04.2008, no valor de €17.384,80;
· Factura n.º 8037493, emitida em 05.10.2007 e vencimento a 05.04.2008, no valor de €17.519,50;
· Factura n.º 8037516, emitida em 09.10.2007 e vencimento a 09.04.2008, no valor de €22.857,00;
· Factura n.º 8037567, emitida em 11.10.2007 e vencimento a 11.04.2008, no valor de €2.016,00;
· Factura n.º 8037568, emitida em 11.10.2007 e vencimento a 11.04.2008, no valor de €9.281,25;
· Factura n.º 8037776, emitida em 23.10.2007 e vencimento a 23.04.2008, no valor de €18.795,75;
· Factura n.º 8037777, emitida em 23.10.2007 e vencimento a 23.04.2008, no valor de €8.225,54;
· Factura n.º 8037807, emitida em 24.10.2007 e vencimento a 24.04.2008, no valor de €624,60;
· Factura n.º 8037811, emitida em 24.10.2007 e vencimento a 24.04.2008, no valor de €17.165,00;
· Factura n.º 8037986, emitida em 31.10.2007 e vencimento a 29.04.2008, no valor de €13.413,75;
· Factura n.º 8038078, emitida em 08.11.2007 e vencimento a 08.05.2008, no valor de €150,00;
· Factura n.º 8038079, emitida em 08.11.2007 e vencimento a 08.05.2008, no valor de €1.209,60;
· Factura n.º 8038080, emitida em 08.11.2007 e vencimento a 08.05.2008, no valor de €1.672,00;
· Factura n.º 8038162, emitida em 12.11.2007 e vencimento a 12.05.2008, no valor de €22.778,80;
· Factura n.º 8038239, emitida em 15.11.2007 e vencimento a 15.05.2008, no valor de €19.492,00;
· Factura n.º 8038277, emitida em 16.11.2007 e vencimento a 16.05.2008, no valor de €20.875,90;
· Factura n.º 8038298, emitida em 19.11.2007 e vencimento a 19.05.2008, no valor de €6.130,40;
· Factura n.º 8038449, emitida em 28.11.2007 e vencimento a 28.05.2008, no valor de €1.024,00;
· Factura n.º 8039247, emitida em 24.01.2008 e vencimento a 24.07.2008, no valor de €23.098,85; e,
· Factura n.º 8040014, emitida em 14.02.2008 e vencimento a 14.08.2008, no valor de €22.662,70, enviadas à S... Portugal - ---, Lda.
4) Foi ajustado entre a Autora e a S... Portugal - ---, Lda. que o pagamento das facturas se venceria no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data da sua emissão.
5) A S... Portugal - ----, Lda. não procedeu ao pagamento dos valores referidos em 2) e 3).
6) A S... Portugal - ---, Lda. não foi apresentada à insolvência.
7) Os Réus são ininterruptamente gerentes da S... Portugal - ---, Lda. desde a sua constituição.
8) Os Réus conheciam a situação financeira da S... Portugal – ---, Lda.
9) A S... Portugal - ---, Lda. foi constituída com o capital social de €200 000.
10) A S... Portugal - ---, Lda. iniciou a respectiva actividade no 2º semestre de 2004.
11) No ano da sua constituição, 2004, a S... Portugal - ---, Lda. apresentou um resultado líquido negativo de €119 080,78.
12) No ano de 2004 a S... Portugal - ---, Lda. registou uma margem bruta sobre vendas de 38,43%, superior à esperada pela sua gerência, que não foi suficiente para cobrir os custos de exploração.
13) No ano de 2004 a S... Portugal - ---, Lda. declarou ter despendido com remuneração de pessoal €35.497,38, €8.430,63 com encargos sociais com remunerações, €1.720,87 com seguros de acidentes de trabalho e doenças profissionais, €5.832,79 em subsídio de alimentação, encargos que somam €51.481,66.
14) No ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. encerrou o ano com um resultado líquido negativo de €98.843,93.
15) Tendo então uma situação líquida negativa no montante de €17.924,71, apurada pela diferença entre o seu activo e passivo.
16) No ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. teve despesas com remuneração de pessoal no valor de €126.474,60, €30.037,72 com encargos sociais com remunerações, €3.441,73 com seguros de acidentes de trabalho e doenças profissionais, €8.851,60, encargos que somam €168.805,65.
17) No ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. despendeu €594.626,40 com fornecimentos e serviços externos.
18) No ano de 2005 o custo da mercadoria vendida ascendeu a €1.413.344,08.
19) No ano de 2005 os custos operacionais da S... Portugal - ---, Lda., no montante de €2.114.975,88, superaram o total dos proveitos.
20) No exercício de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. teve uma margem bruta de vendas de €674 798,96, correspondente a uma margem de exploração de 47,74%.
21) No ano de 2005 a margem bruta sobre vendas foi de 32,32%.
22) No ano de 2005 a margem bruta sobre vendas perspectivada pela gerência da a S... Portugal - ---, Lda. foi de 35%.
23) No exercício de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. cedeu créditos, tendo recebido a título de adiantamentos sobre facturação a quantia d0e €606.564,52.
24) No exercício de 2006 a S... Portugal - ---, Lda. apresentou um resultado líquido positivo de € 120 149,06, tendo ficado com um resultado transitado negativo de €97.775,65.
25) No exercício de 2006 as existências finais da S... Portugal - ---, Lda. aumentaram €170.225,47.
26) No exercício de 2006 foram despendidos pela S... Portugal - ---, Lda. €632.056,37 em fornecimentos de Serviços Externos, tendo €152.698,32 sido destinados a publicidade, €126.752,80 a trabalhos não especificados e €211.016,19 incluídos na conta 62290 sem qualquer nomenclatura.
27) Em 2007 a S... Portugal - …, Lda. registou uma quebra nas vendas em relação ao ano de 2006, tendo apresentado uma margem bruta sobre vendas de 26,84% e uma margem de exploração de 36,69%.
28) No exercício de 2007 a S... Portugal - ---, Lda. inscreveu em fornecimentos e serviços externos a verba de €505.452,13, sendo €116.440,47 relativos a trabalhos especializados e €237.090,11 a outros fornecimentos e serviços.
29) No ano de 2007 a o montante da dívida a fornecedores aumentou €131.789.
30) No ano de 2007 houve uma melhoria no prazo médio de recebimento de clientes por comparação com exercícios anteriores. 31) No ano de 2007 a S... Portugal - ---, Lda. apresentou resultados negativos, passando o valor acumulado de capitais próprios a fixar-se em €33.604,45 negativos.
32) A S... Portugal - ---, Lda. encerrou o exercício de 2008 com um resultado líquido negativo de € 778 671,02.
33) No exercício de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. realizou vendas a baixo do preço de custo.
34) No ano de 2008 o imobilizado corpóreo e incorpóreo, no valor global de €35.650,12, foi totalmente amortizado, tendo-se para o efeito deduzido as amortizações acumuladas até então - €11.637,23 - e levado a custos do exercício o valor remanescente - €24 012,92. 35) No ano de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. teve um custo de mercadoria vendida de €1.189.044,16 e vendas no montante de €1.066.915,65 e uma margem bruta negativa de 11,45%.
36) No ano de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. comprou mercadoria no valor de €440.125,85.
37) No ano de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. teria apresentado resultados positivos se tivesse tido uma margem bruta equivalente à margem bruta média dos anos anteriores.
38) No ano de 2008 a dívida da S... Portugal - ---, Lda. passou para o valor de €2.067.817,51.
39) No ano de 2009 a S... Portugal - ---, Lda. fez vendas no valor de €11.137,96, onde obteve uma margem de exploração de 111,02%.
40) No ano de 2009 a S... Portugal - ---, Lda. recebeu €567.351,56 de clientes e realizou pagamentos no valor global de €30.845,83.
41) No ano de 2009 foi movimentada a débito a conta de sócios pelo valor de €640.000, sócios que passaram a ser devedores da S... Portugal - ---, Lda. de médio e longo prazo.
42) O movimento referido em 41) visou retirar a referida verba da esfera da S... Portugal - ---, Lda.
43) O exercício de 2009 foi encerrado com o activo de €640.000 de dívidas dos sócios, €498.638,15 de dívidas de clientes, €76.411,88 em depósitos bancários, €21.050,49 de dívidas do Estado e outros entes públicos e €15.723,33 de créditos sobre outros devedores, integrando o passivo €2.045.483,07 de dívidas a fornecedores e €11.158,03 na rubrica outros credores.
44) Se não tivesse ocorrido a movimentação referida em 41) o valor de €640.000 aí referido teria permitido a S... Portugal - ---, Lda. realizar pagamentos a fornecedores, entre os quais a Autora.
45) A criação da S... Portugal - ---, Lda. visou a comercialização no mercado português dos produtos de um grupo empresarial francês, no qual a Autora estava inserida.
46) A S... Portugal - ---, Lda. tinha como únicos fornecedores empresas do grupo empresarial francês referido em 45).
47) Na relação com a S... Portugal - ---, Lda. o grupo empresarial referido em 45) estabeleceu preços de venda para os seus produtos que determinavam preços de revenda com margens de lucro reduzidas por forma a que o lucro ficasse na origem, em França.
48) Em Março de 2007 foi decretado em França o início dos processos de salvaguarda sociedades S... Majorette Groupe, S... SAS, Majorette Solido SAS, ETS Ecoiffier Albert et Fils SAS e Groupe Berchet SA.
49) Em Julho de 2008 foi judicialmente decretada em França a liquidação das sociedades S... SAS, Majorette Solido SAS, ETS Ecoiffier Albert et Fils SAS e Groupe Berchet SA.
50) A partir de Julho de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. perdeu os fornecedores e interlocutores em França.
51) Após Julho de 2008 a S... Portugal - ---, Lda. procedeu à venda dos stocks existentes a preços mais baixos para garantir o seu rápido escoamento, diminuir os custos com logística, pessoal e serviços e operacionalizar o fim da actividade da S... Portugal - ---, Lda..
68) Os Réus não convocaram Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de informarem os sócios da perda de metade do capital social da sociedade[2].
O Tribunal considerou não Provados os seguintes factos
52) Que no ano de 2004 a S... Portugal - ---, Lda. tendo apresentado um resultado operacional negativo de €122.466,36.
53) Que no ano de 2004 a S... Portugal - ---, Lda. tenha declarado ter despendido com remuneração de pessoal €51.481,66.
54) Que no ano de 2004 a S... Portugal - ---, Lda. não tenha processado quaisquer encargos sociais com pessoal.
55) Que no ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. tenha tido despesas com remuneração de pessoal no valor de €168.805,64.
56) Que no ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. não tenha suportado encargos sociais com pessoal.
57) Que no ano de 2005 a S... Portugal - ---, Lda. tenha tido dispêndios no valor de €108.111,85 com consultores, assessores e intermediários e €173.398,60 com outros credores.
58) Que no exercício de 2005 a margem bruta sobre vendas tenha sido de 47,74%.
59) Que no exercício de 2005 a margem bruta sobre vendas da S... Portugal - ---, Lda. tenha sido superior à perspectivada pela gerência.
60) Que no exercício de 2006 a margem de comercialização da S... Portugal - ---, Lda. tenha sido de 58,22%.
61) Que a margem de comercialização estimada para o ano de 2006 tenha sido de 33,3%.
62) Que a melhoria de resultados do ano de 2006 resulte do aumento de existências sem correspondência no inventário permanente.
63) Que no ano de 2007 inexistisse inventário permanente e que na valorização da mercadoria não se tenha seguido o mesmo critério de anos anteriores.
 64) Que no ano de 2007 as compras tenham sido inferiores a €21.000.
65) Que nunca tenha havido interesse em pagar as dívidas da S... Portugal - ---, Lda.
66) Que sejam injustificados os gastos da S... Portugal - ---, Lda. com trabalhos especializados, fornecimentos externos ou publicidade.
67) Que no exercício de 2009 na rubrica outros credores tenha sido inscrito o valor de €22.689,04.
[68) Que os RR. não tenham convocado a Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de informarem os sócios da perda de metade do capital social da sociedade][3].
69) Que o R. P…nunca tenha exercido a gerência da S... Portugal - ---, Lda., entidade em representação da qual não praticou quaisquer actos, não assinou documentos, não recebeu fornecedores ou clientes, nem alguma vez lhe foi reconhecido como gerente pelos recursos humanos da empresa.
70) Que o R. M...  nunca tenha exercido funções de gerência da S... Portugal - ---, Lda., tendo nos actos que praticou em representação da mesma apenas seguido as instruções que lhe eram transmitidas pelo grupo empresarial estabelecido em França.
71) Que a gerência da S... Portugal - ---, Lda. tenha proposto um aumento de capital para evitar a deterioração da situação líquida da sociedade, o qual não foi concretizado por falta de acordo do accionista S... Internacional, S. A.
72) Que os fornecedores da S... Portugal - ---, Lda. lhe vendessem os seus produtos a preços mais elevados do que os de mercado.
73) Que os prejuízos verificados na S... Portugal - ---, Lda. fossem expressamente assumidos pela empresa mãe e pelos seus fornecedores.
74) Que, em Maio de 2007, a empresa MGA tenha apresentado um plano de recuperação das empresas referidas em 48) que não foi aceite pelo tribunal e que tanto tenha conduzido a que, em Março de 2008, os respectivos activos tenham sido vendidos à SIMBA.
75) Que até ao momento da entrada em insolvência das sociedades referidas em 48) a gerência da S... Portugal - ---, Lda. foi determinada pelo cumprimento das instruções transmitidas desde França.
***
Apreciação da Matéria de Facto
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido[4], salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual releva ainda o já citado artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[5].
Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/09/2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.
Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[6], nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[7], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[8], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[9].
Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Relação de Guimarães 15/12/2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos[10] e Relação de Lisboa 26/09/2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2-Carlos Castelo Branco).
Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância”[11].
Ana Luísa Geraldes sublinha mesmo que, em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[12].
Vejamos então o Facto que - de forma relevante - é colocado em causa pela Recorrente.
i)- quanto à colocação do Facto não provado 68. nos Factos Provados (”Que os RR. não tenham convocado a Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de informarem os sócios da perda de metade do capital social da sociedade”).
A Autora-Recorrentes pretende que esta factualidade deva ser considerada como provada, quer porque os Recorridos M... e P... reconheceram nos respetivos depoimentos de parte os números plasmados na contabilidade da sociedade, o que significa que estavam bem cientes de que a sociedade havia perdido metade do capital social logo em 2004, nada tendo feito para corrigir a situação, quer porque nas suas próprias contestações (artigos 20.º) referiram que tentaram enquanto gerentes promover um processo de aumento do capital social da empresa (artigo 20.º das contestações), mas não comprovaram quem tivessem convocado a assembleia geral.
O Tribunal a quo a este propósito referiu o seguinte: “Não foram produzidos meios de prova quanto ao que se regista em 68), 69), 70), 72), 73) e 74). Pese embora a alusão a respeito feita pelos RR. a propósito, no decurso do depoimento de parte que prestaram, e o facto de a testemunha Ivone Sobreiro ter referido que eles lhe deram conta da situação, na sequência de sugestão feita pela auditoria ao constatar a redução do capital social, a verdade é que não há evidência cabal no processo, designadamente de natureza documental, de que a gerência da S... Portugal - ---, Lda. tenha sugerido aos sócios um aumento de capital, nem que esta proposta tenha sido recusada por indisponibilidade de um deles para a formalizar. Isto quando é certo que os documentos de fls. 224 e ss. nada mais revelam do que actos preparatórios de uma possível deliberação de aumento de capital. Donde a não prova do facto mencionado em 71)”.
Compulsados os autos, tem de concluir-se assistir razão à Autora-Recorrente.
De facto, esta tinha o ónus de alegação de que não fora convocada a Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de serem informados os sócios da perda de metade do capital social da sociedade. E fê-lo.
E cabia aos Réus o ónus de provar que ela fora convocada (ou se o não fosse, as razões prementes por que o não fora).
Ora os Réus M... e P... confirmaram essa não convocação, quer nas suas Contestações (artigo 20.º de cada uma delas), quer nos seus depoimentos de parte (nas respostas ao artigo 17.º da Petição Inicial), sendo certo ainda que reconheceram o seu conhecimento da situação que decorria da contabilidade da S... e, portanto, que esta perdera metade do capital social logo em 2004.
Assim sendo, não há qualquer fundamento para que o Facto em causa tenha sido considerado Não Provado, pelo que deve passar a constar do elenco dos Factos Provados, com o seguinte teor:
68) Os Réus não convocaram a Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de informarem os sócios da perda de metade do capital social da sociedade.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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Fundamentação de Direito
O Tribunal a quo decidiu pela improcedência da acção, assente no seguinte processo de raciocínio:
A – A Autora alegou que os demandados foram ininterruptamente desde a sua constituição os gerentes da S... Portugal - ---, Lda., entidade a quem, no período de 25.4.2007 a 14.2.2008, vendeu e entregou mercadoria no referido montante, sem que tenha obtido o correspondente pagamento, facto que atribui à circunstância de tais demandados terem levado a cabo uma gestão danosa daquela sociedade que conduziu à sua insolvência, tendo também violado deveres sociais e legais destinados à protecção de credores que condicionaram e impediram a cobrança do seu crédito.
B - A acção funda-se na norma do artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, sendo que se sustenta que os Réus:
 - incumpriram o dever de apresentar a S... Portugal à insolvência, em violação da disciplina dos artigos 18.º e 19.º do CIRE;
- violaram a disciplina legal de conservação do capital social ao não darem cumprimento à injunção do artigo 35.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais e, em contrário ao prescrito nos artigos 31.º, 32.º e 33.º do mesmo diploma, ao permitirem uma distribuição ilícita de bens sociais;
- incumpriram o dever de constituição de reserva legal estabelecido no artigo 218.º do Código das Sociedades Comerciais e usaram de expedientes contabilísticos para justificar a saída indevida de capitais próprios da sociedade;
- tais comportamentos são ilícitos, censuráveis e contrários ao adequado cumprimento dos deveres indicados no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais.
C – O artigo 78.º do CSC consagra um caso de responsabilidade civil extracontratual, cujo accionamento pressupõe e depende:
- da alegação e prova (com o ónus a cargo da Autora) de factos que evidenciem a ocorrência dos pressupostos gerais da responsabilidade civil (artigo 483.º CC: facto, ilicitude, culpa, imputação, nexo causal e dano);
- da invocação e demonstração dos requisitos específicos enunciados na própria norma (inobservância culposa de disposições legais destinadas à protecção dos credores sociais, insuficiência do património social para a satisfação dos credores e que a violação de deveres seja a causa da insuficiência patrimonial registada);
D - Não há dúvida que a demandante é credora da S... Portugal - ---, Lda. no montante de €463.389,22, em razão do fornecimento de mercadorias que esta lhe encomendou e recebeu, entre 25.4.2007 e 14.2.2008, e que não obteve até ao momento o pagamento.
E – Os Réus foram ininterruptamente e desde a sua constituição em 2004 gerentes da referida sociedade, sendo que esta, em 2007 e 2008, se apresentava com uma situação financeira deficitária e por isso incapaz de solver a integralidade dos seus débitos (designadamente o da Autora).
F – A situação financeira deficitária da S... era conhecida dos Réus, a qual - desde a sua constituição em 2004 e até 2009 - sempre apresentou resultados contabilísticos negativos.
G - Os factos apurados não são suficientes para afirmar que a S... Portugal - ---, Lda. tenha estado desde o ano da sua constituição, ou em algum momento da sua existência, numa situação de insolvência, nem que os Réus tenham omitido o dever de a apresentar a processo de insolvência que resulta dos artigos 19.º, 18.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1, do CIRE (gerentes obrigados a requerer insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas).
H - Em termos contabilísticos a S... Portugal - ---, Lda. nunca teve meios financeiros próprios, património ou activos suficientes para solver a totalidade das suas dívidas, mas isso não é sinónimo de que a sociedade estivesse impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (desde logo porque os factos apurados não permitem determinar a expressão, momentaneamente e ao longo dos anos, dos débitos vencidos no quadro geral da sua dívida, o que inviabiliza que possa dizer-se que os seus activos eram insuficientes para assegurar o cumprimento das obrigações vencidas)
I - Não há dados que evidenciem a impossibilidade de cumprimento pela S... Portugal - ---, Lda. das suas obrigações para com os credores. Isto quando é certo que esse cumprimento não tem de ser alcançado com a afectação de recursos de que a devedora disponha no seu património, podendo outrossim ser logrado com recurso a financiamento ou outros meios de aporte de fundos à tesouraria.
J - No caso, nada se alegou, nem nada se sabe quanto à inviabilidade da S... Portugal - ---, Lda., no período de 2004 a 2008, lançar mão desses mecanismos para assegurar o cumprimento dos seus débitos.
K - No cenário circunstancial apurado não pode apontar-se aos Réus a falha de, contra a obrigação legal que sobre eles impendia, não a terem apresentado à insolvência.
L - Resulta dos factos provados que logo no ano da sua constituição, 2004, a S... Portugal - ---, Lda. encerrou as contas do exercício com o capital social diminuído em mais de metade do seu valor, situação que se verificou também em anos posteriores.
M - Porém não está provado que em face dessa circunstância os RR., enquanto gerentes da sociedade, tenham omitido o dever – decorrente do artigo 35.º, n.º 1, do CSC – que sobre eles impendia de convocar de imediato a assembleia geral da sociedade para que os sócios fossem postos ao corrente da situação e tomassem as medidas que julgassem convenientes.
N – Relativamente à eventual infracção do preceituado pelos artigos 31.º e 32.º do CSC em face dos factos 41. e 42. (dever dos gerentes não cumprirem deliberações dos sócios que se traduzam na distribuição de bens sociais e em relação às quais tenham fundadas razões para crer que: a) alterações entretanto ocorridas no património social tornariam a deliberação ilícita, nos termos do artigo 32.º; b) a deliberação dos sócios viola o preceituado nos artigos 32.º e 33.º; e c) a deliberação de distribuição de lucros de exercício ou de reservas se baseou em contas da sociedade aprovadas pelos sócios, mas enfermando de vícios cuja correcção implicaria a alteração das contas de modo que não seria lícito deliberar a distribuição, nos termos dos artigos 32.º e 33.º), uma vez que se desconhece que instrumento viabilizou o movimento assinalado em 41., tal inibe que possa assumir-se que se trata de uma deliberação dos sócios abrangida por tais normas e, portanto, de uma deliberação a cuja execução os Réus pudessem e devessem obstar.
O – Acresce que o movimento referido em 41. e que promoveu a transferência para os sócios do montante de €640.000 não pode corresponder a uma distribuição de bens sociais, designadamente lucros ou reservas, já que se assim fosse os sócios não se apresentariam como devedores de médio e longo prazo da sociedade pelo correspondente valor.
P – Quanto ao incumprimento da obrigação de constituição da reserva legal a que reporta o artigo 281.º, n.º 1, CSC, não há notícia nos factos alegados ou apurados a essa não constituição, nem quanto à sua eventual repercussão e relevância para o caso que nos ocupa, designadamente em termos de ter proporcionado a situação de insuficiência patrimonial da devedora e o não pagamento do crédito da Autora (nem se divisando em que termos tal reserva pudesse ter sido constituída por uma sociedade que não registou lucros nos exercícios conhecidos).
O raciocínio é claro e compreensível, importando agora verificar a sua correcção jurídica (sendo certo, por outro lado, que a alteração factual produzida com o deferimento da pretensão da Recorrente deixa de justificar – só por si – a conclusão tirada, sem prejuízo da que venha a ser encontrada).
A base da abordagem já se vê que assenta no artigo 78.º (Responsabilidade para com os credores sociais) do Código das Sociedades Comerciais[13] onde, no seu n.º 1, se preceitua que os “gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”.
Aqui se “consagra uma acção pessoal e directa para o exercício de um direito próprio do credor (não um caso de sub-rogação do nº 2 desse artigo) uma responsabilidade independente da existente para com a sociedade” (Acórdão da Relação de Lisboa de 05 de Novembro de 2015 - Processo n.º 932-13.6TJLSB.L1-8-Ilídio Sacarrão Martins).
Usando as palavras de Miguel Pupo Correia, este “preceito consagra uma acção pessoal e directa dos credores contra os titulares do órgão de gestão, destinada a fazer valer um direito próprio a ressarcimento de prejuízos sofridos com insuficiência do património social"[14].
A mesma ideia é reforçada por Maria Elisabete Ramos quando escreve que este normativo “consagra uma responsabilidade directa e autónoma dos gerentes, administradores e directores perante os credores sociais destinada a obter o ressarcimento do dano que estes sofreram em virtude de o património social se ter tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos. E, por isso, a indemnização que eventualmente obtiverem irá ingressar directamente no seu património, sem passar pelo património da sociedade”[15].
Como assinala Filipe Barreiros, estamos “perante uma responsabilidade directa dos administradores perante os credores sociais”, que se traduz numa “responsabilidade delitual (ou aquiliana) e não contratual”[16], uma vez que não existe “nenhum vínculo entre os administradores e os credores da sociedade susceptível de gerar qualquer tipo de responsabilidade obrigacional ou contratual. Não tem os credores com os gestores nenhuma relação jurídica nem contrato pelo que são terceiros para todos os efeitos”[17] [18].
Na mesma linha, Tiago Henrique Sousa conclui que, desta “guisa, entre os credores sociais e os gerentes e administradores não se estabelece qualquer relação jurídica directa que possa alicerçar uma responsabilidade de tipo obrigacional, na esteira do disposto no artigo 798.° do Código Civil, com presunção de culpa do devedor, nos termos do disposto no artigo 799.° do mesmo diploma”, pelo que “a responsabilidade civil dos gerentes e administradores perante os credores sociais reveste natureza delitual ou aquiliana, com a subsequente imputação de danos, mediante o cumprimento integral dos seus requisitos de aplicação”[19]: “os titulares do órgão de gestão (…) não são os sujeitos passivos da relação creditícia inerente à dívida cuja cobrança se mostrar frustrada: o devedor é a sociedade e a atribuição desta responsabilidade dos gestores desta tem um significado obviamente sancionador da prática de actos injurídicos, porque violadores de preceitos legais ou contratuais destinados à protecção daqueles”[20] .
Como se assinala com pertinência no Acórdão da Relação do Porto de 11 de Julho de 2012 (Processo n.º 3306/08.7TBGDM.P1-Rui Correia Moura), o “artigo explica-se face à lógica do direito das sociedades. Qualquer inobservância culposa das normas de protecção, conduz à responsabilidade aquiliana, desde que haja danos. Os credores podem ter danos a emergir de uma eventual insuficiência patrimonial, de incómodos, danos de imagem, danos morais. Tudo isso é imputado à própria sociedade por via do nexo de organicidade. É à própria sociedade, e não aos administradores, que cumpre indemnizar.
A directa responsabilização dos gerentes, administradores ou directores só surge, face a este artigo 78º do CSC, para com os credores da sociedade, quando a culposa inobservância das normas de protecção provoque uma insuficiência patrimonial social para a satisfação dos respectivos créditos”.
Assenta-se, portanto, na inexistência de qualquer presunção de culpa por parte dos gerentes, como resulta claro de a remissão feita pelo n.º 5 do artigo 78.º (“Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º”), não ser feita também para o n.º 1 do artigo 72.º (“Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”), o que permite concluir - como no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012 (Processo n.º 916/03.2TBCSC.L1.S1-Álvaro Rodrigues) - que, “reina o consenso sobre o carácter delitual desta responsabilidade civil, não havendo lugar à presunção da culpa a que se refere o art.º 72º do CSC, pelo que o ónus da prova desta segue a regra geral da responsabilidade extracontratual (art.º 487º do C. Civil)”.
“Sublinha-se, neste sentido” – afirma Fábio da Silva Vieira – “que a culpa do n.º 1, do art.º 78.º, pressupõe a modalidade tradicional de culpa do CSC, ou seja, a bitola da «diligência de um administrador criterioso e ordenado», porém, aqui a culpa não é presumida, têm os credores o ónus de provar a culpa”[21].
Assim, e para que possa ser exercido este direito por parte dos credores da sociedade, importa assentar quais os requisitos que têm de se considerar verificados, sendo certo que o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil nos norteará, por ser aí que se define que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos provenientes da violação, assim permitindo assumir como pressupostos do dever de indemnizar:
(i) a existência de um facto/omissão ilícito,
(ii) a existência de danos,
(iii) o nexo de causalidade entre o facto/omissão e os danos sofridos,
(iv) o nexo de imputação do facto/omissão ao lesante e a atuação do lesante com dolo ou mera culpa.
Concorda-se com Tiago Henrique Sousa, quando refere que a “norma resultante da interpretação do número 1 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais, a par com a segunda parte do número 1 do artigo 483.° do Código Civil, é uma proposição remissiva incompleta global em que parte da hipótese legal necessita de ser completada através de outra disposição legal. Na esteira do pensamento de Karl Larenz, a força constitutiva de tal norma fundamentadora da imputação de danos ao lesante (gerente ou administrador) pelo lesado (credor social), verifica-se só com a conexão com outras proposições jurídicas, adquirindo a proposição jurídica em causa a sua completude, com tal conexão”[22].
Fazendo assim a necessária conjugação com o artigo 78.º, n.º 1[23], do Código das Sociedades Comerciais, temos que, seguindo a proposta de abordagem de Maria Elisabete Ramos, é possível agrupar os requisitos legais deste último preceito, “em dois segmentos normativos: a) inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção de credores sociais; b) insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos”[24].
O que - conjugado com os restantes pressupostos - permite concluir como no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016 (Processo n.º 1916/03.8TVPRT.P2.S1-Orlando Afonso), que a “responsabilidade dos administradores de uma sociedade, no quadro do art.º 78.º, n.º 1, do CSC, que é de natureza extracontratual, impõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
(i)- a inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais;
(ii)- a insuficiência do património social;
(iii)- a culpa dos administradores; e
(iv)- o nexo de causalidade entre a referida inobservância e a insuficiência do património societário”[25].
Assim, e voltando a Tiago Henrique Sousa, atendendo “ao alargamento da letra do número 1, do artigo 78.° do Código das Sociedades Comerciais, que permite a imputação de danos por violação de normas de protecção resultantes de disposições contratuais, além das disposições legais imperativas vigentes, parece-nos que a violação de toda e qualquer norma de conduta, por parte dos gerentes e administrador da sociedade que, através de uma análise ex ante seja idónea à diminuição do património social da sociedade, tendo em conta a bitola do gerente ordenado e criterioso do artigo 64.° do Código das Sociedades Comerciais, revelam para completude desta norma remissiva incompleta, devendo ser convocadas na aplicação do caso concreto”[26].
Nesta base, como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Setembro de 2016 (Processo n.º 1636/13.5TBOER.L1-7-Graça Amaral), “a ilicitude do comportamento por parte do administrador não abarca a violação de um qualquer dever a que se encontre adstrito, cingindo-se à violação dos deveres prescritos em disposições legais ou contratuais de protecção dos credores sociais, embora não identifique (ainda que exemplificativamente) quais as disposições que sejam de qualificar de protecção dos credores sociais. Está-se perante uma cláusula geral delimitadora da ilicitude que cumpre à doutrina e jurisprudência concretizar.
Na concretização a efectuar importa ter presente que as normas legais de protecção aos credores sociais são aquelas que contemplam em si a defesa dos seus interesses.
No âmbito do CSC têm sido consideradas normas de protecção aos credores sociais as seguintes:
 - conservação do capital social (artigos 31.º, 34.º, 51.º, 236.º, 346.º, n.º 1, 513.º, 220.º, n.º 2, 317.º, n.º 4);
 - constituição e utilização da reserva legal (artigos 218.º, 295.º, 265.º);
 - proibição de acções próprias (artigo 316.º, n.º 1) e certas aquisições e detenções de acções próprias (artigos 317.º, n.º 2 e 323.º, entre outros);
 - capacidade jurídica das sociedades (artigo 6.º).
Fora do referido Código, consideram-se os artigos 18.º e 19.º, do CIRE, que prescrevem o dever do administrador em requerer a insolvência da sociedade.
Relativamente à densificação da ilicitude a ter em conta neste âmbito, a falta de clarificação conceitual da norma em causa permite desenvolver posicionamentos que redundam numa intensificação da responsabilização dos administradores através de um conceito amplo de norma de protecção dos interesses dos credores sociais, acabando, em grande parte dos casos, por fazer reconduzir o conceito de protecção do credor à satisfação dos respectivos créditos. Nesse sentido, norma legal ou contratual de protecção do credor social seria aquela cuja inobservância culposa determinasse a insuficiência do património da empresa, prejudicando a satisfação dos créditos dos credores[27].
Não parece que o preceito em causa possa assumir tal amplitude.
Não há dúvida de que a protecção dos credores a que alude o preceito tem a ver com normas que visem a protecção dos seus interesses. E se é certo que os interesses dos credores são, em grande parte, dimensionados pela preservação do património do devedor, a responsabilidade directa para com os credores sociais prevista no normativo em apreciação não pode ser confundida quer com a responsabilidade da própria sociedade, quer com o dever de cumprimento do administrador para com o credor de uma obrigação da sociedade.
O direito próprio dos credores perante o administrador de uma sociedade consagrado no artigo 78.º em apreciação reporta-se ao dever do administrador de não afectar o património da sociedade por violação de leis destinadas a proteger aqueles credores. Só assim se justifica que, nos termos da referida disposição legal, a inobservância das normas de protecção determine a responsabilização do administrador se causar uma diminuição do património social (o dano directo na sociedade), diminuição que o torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (dano indirecto dos credores sociais). A insuficiência a ter em conta terá de se caracterizar por uma diminuição do património social em montante que comprometa a viabilidade da cabal satisfação dos direitos dos credores.
Perspectivado o preceito nestes parâmetros, dificilmente o incumprimento de obrigações decorrentes de contratos celebrados entre a sociedade e terceiros poderá, ao seu abrigo, envolver responsabilidade directa do administrador para com eles”.
“É que, como é evidente” - completa o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016 - “ainda que tal incumprimento possa envolver responsabilidade civil da sociedade perante terceiros e dos administradores para com a sociedade, não envolve, por si só, a responsabilidade do administrador perante terceiros. Repare-se que, estando em causa obrigações contratuais, os credores sociais sabem, necessariamente, ao contratar com a sociedade, que a lei apenas lhes dá como garantia o património desta, sendo que, se houver culpa dos administradores na referida falta de cumprimento, estes serão responsáveis para com a sociedade e os credores sociais poderão, quando muito, fazê-la valer a seu favor através da competente acção sub-rogatória – a qual, porém, como se disse, se distingue da acção directa a que alude o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais. Trata-se, pois, de solução que está em inteira consonância com a ideia de que os riscos da actividade social correm por conta da sociedade (o mesmo é dizer por conta dos sócios), posto que, beneficiando a sociedade da actividade do administrador, deve a mesma suportar igualmente as desvantagens decorrentes dessa actividade.
Em suma, pode dizer-se que a responsabilidade para com os credores sociais prevista no citado normativo, a que corresponde um direito próprio destes e uma acção directa, nada tem que ver com a questão de saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir uma obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes com o dever que recai sobre o administrador de não afectar o património social em violação de leis destinadas a proteger aqueles credores”.
“Enfim, em síntese”, refere-se no já aludido Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2014, que “no art.º 78.º/1 do CSC apenas estão em causa as violações das disposições que regulam a função de garantia do capital social; fora disto, só nas violações à capacidade de gozo (art.º 6.º do CSC) das sociedades comerciais (só os actos praticados em nome da sociedade pelos órgãos sociais que não sejam nem necessários nem convenientes ao fim lucrativo da sociedade) ou na violação do dever de apresentação à insolvência do art.º 18.º do CIRE são divisáveis possíveis violações de normas directamente tuteladoras dos interesses dos credores sociais”.
É sobre esta paisagem jurídica que vai assentar a situação concreta que os presentes autos nos proporciona.
Assim, é verdade que:
I – a Autora forneceu mercadoria à S... Portugal----, Lda., no montante de € 463.389,22 (entre 25/04/.2007 e 14/02/2008), valor que não lhe foi pago (Factos 2. e 3.);
II – os Réus foram, desde a sua constituição em 2004, gerentes da referida S... (Facto 7.) e conheciam a sua situação financeira (Facto 8.);
III - desde a sua constituição em 2004 e até 2009 a S... sempre apresentou resultados contabilísticos negativos (2004 -resultado líquido negativo-RLN de €119.080,78- Facto 11; 2005 -RLN de €98.843,93- Facto 14.; 2006 -resultado líquido positivo de € 120.149,06, tendo ficado com um resultado transitado negativo de €97 775,65 - Facto 24.; 2007 -resultados negativos, passando o valor acumulado de capitais próprios a fixar-se em €33.604,45 negativos - Facto 31.; 2008 -RLN de €778.671,02- Facto 32.);
 IV – o exercício de 2009 foi encerrado com o activo de €640.000 de dívidas dos sócios, €498.638,15 de dívidas de clientes, €76.411,88 em depósitos bancários, €21.050,49 de dívidas do Estado e outros entes públicos e €15.723,33 de créditos sobre outros devedores, integrando o passivo €2.045.483,07 de dívidas a fornecedores e €11.158,03 na rubrica outros credores (Facto 43.);
V – no ano de 2009 foi movimentada a débito a conta de sócios pelo valor de €640.000, sócios que passaram a ser devedores da S... Portugal - ---, Lda. de médio e longo prazo (Facto 41.);
VI – este movimento visou retirar a referida verba da esfera da S... Portugal - ---, Lda. (Facto 42.) e, caso não tivesse ocorrido, teria permitido a S... Portugal - ---, Lda. realizar pagamentos a fornecedores, entre os quais a Autora (Facto 44.);
VII – os Réus não convocaram Assembleia-Geral da S... Portugal - ---, Lda. a fim de informarem os sócios da perda de metade do capital social da sociedade (Facto 68.);
VIII – a S... Portugal não foi apresentada à insolvência (Facto 6.);
IX – a S... Portugal - ---, Lda. foi constituída com o capital social de € 200.000 (Facto 9.).
Perante este enquadramento, aos Réus é imputado pela Autora:
 - a violação do dever de apresentação da S... Portugal à insolvência, incumprindo o determinado pelos artigos 18.º e 19.º do CIRE;
 - a violação do artigo 35.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais[28] – por não terem diligenciado pela conservação do capital social;
 - a violação dos artigos 31.º, 32.º e 33.º do Código das Sociedades Comerciais, por terem permitido uma distribuição ilícita de bens sociais;
 - a violação do dever de constituição de reserva legal estabelecido no artigo 218.º do Código das Sociedades Comerciais e o uso de expedientes contabilísticos para justificar a saída indevida de capitais próprios da sociedade.
 - pelo conjunto destas violações, o incumprimento dos deveres indicados no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais.
Ora é o juízo sobre estas circunstâncias que o Tribunal a quo produziu que vem posto em causa.
Começando pela violação do artigo 35.º, n.º 1[29], do Código das Sociedades Comerciais, não vemos como fugir a considerá-la presente, em face quer dos Factos 68. e 9., quer dos que definem a situação financeira e contabilística da S... Portugal entre 2004 e 2009 (Factos 11.º a 40.º e 43.º).
Pedro Pais de Vasconcelos refere que na “posição jurídica do sócio, o artigo 35.º insere uma sujeição. Quando se verifique a sua previsão, ficam numa situação em que têm de deliberar, ou a dissolução da sociedade, ou a redução do seu capital social, ou a realização de entradas em dinheiro que permitam que o património alcance o valor, pelo menos, de dois terços do capital, ou outras providências que produzam esse resultado. Esta situação constitui tecnicamente um ónus: o ónus de dissolver a sociedade, de repor a sua situação líquida mínima legal, sob a consequência penosa de ter de publicitar a sua subcapitalização”[30].
A função de garantia do capital social nas relações externas da sociedade[31] estava – in casu – claramente afectada e, conhecendo a situação (Facto 8.) os Réus, efectivamente, não convocaram de imediato a assembleia geral (nem se apurou qualquer circunstancialismo que justificasse essa conduta), a fim de nela se informarem os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
Este artigo 35.º - usando palavras de Paulo de Tarso Domingues - na “medida em que visa assegurar um mínimo de correspondência entre o capital real e o capital nominal, ou, dito de outro modo, na medida em que visa assegurar a não existência de uma desproporção «grave» entre o património líquido e a cifra do capital, a norma consagra, indubitavelmente, o princípio da efectividade do capital, rectius, consagra o mínimo de efectividade que o capital deve ter em qualquer circunstância. Os terceiros que lidem com a sociedade sabem – por força deste regime – que esta tem, ciclicamente, que verificar e assegurar que o seu património líquido é, pelo menos, igual a 50% do capital social. O artigo 35.º do CSC constitui, deste modo, o verdadeiro «fermaglio del sistema» da relação entre o capital social e o património”[32].
Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012 (já citado), o “estatuto económico da sociedade comercial é factor decisório do crédito que lhe é concedido, não se limitando apenas ao capital social, mas também tendo em consideração o estofo patrimonial da empresa (sociedade) que possa «tranquilizar» os seus credores”, sendo que os Réus, não deram o seu contributo para essa tranquilidade como lhes competia, e não fizeram tocar “«a campainha», o «sinal de alerta»”[33] em que se traduz a obrigação de convocar a assembleia para tomada de alguma das medidas previstas no n.º 3 do artigo 35.º.
A apreciação sobre esta matéria feita pelo Tribunal a quo foi, portanto, incorrecta e eis-nos perante um primeiro acto ilícito e culposo.
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Seguindo quanto à questão da violação dos artigos 31.º, 32.º e 33.º do Código das Sociedades Comerciais, por terem permitido uma distribuição ilícita de bens sociais.
Aqui, importa tirar consequências da circunstância de ter resultado provado que em 2009 “foi movimentada a débito a conta de sócios pelo valor de €640.000, sócios que passaram a ser devedores da S... Portugal - ---, Lda. de médio e longo prazo” (Facto 41.) e que este movimento teve como objectivo retirar essa verba da esfera da S... Portugal - ---, Lda. (Facto 42.), impedindo-a de realizar pagamentos a fornecedores, entre os quais a Autora (Factos 44., 2., 3. e 5.).
O Tribunal a quo desvalorizou estes factos, considerando que o desconhecimento de qual o instrumento jurídico utilizado para suportar a referida movimentação de dinheiro (cuja existência é indubitável) a favor dos sócios, impedia que deles se tirassem consequências para efeitos dos artigos 31.º[34], 32.º[35] e 33.º[36] do Código das Sociedades Comerciais.
O argumento é meramente formal e carece de razão, uma vez que qualquer que fosse o instrumento em causa, sempre haveria de partir dos sócios gerentes da S... Portugal, ou seja, dos Réus (os únicos que o poderia fazer), acrescendo que o seu efeito foi a efectiva retirada do valor em causa da disponibilidade da sociedade (a favor dos sócios) com a impossibilidade desta proceder aos devidos pagamentos a que esta se encontrava contratualmente vinculada (como ocorre com as dívidas à Autora – Factos 3. e 5.).
Ou seja, dizer que não conhecendo o instrumento utilizado tal “inibe que possa assumir-se que se trata de uma deliberação dos sócios abrangida pelas normas atrás mencionadas e portanto de uma deliberação a cuja execução os RR. pudessem e devessem obstar”, choca com a circunstância de só eles a poderem ter tomado…
Acresce que os Réus também não apresentaram qualquer explicação racional que justificasse a dita movimentação dos €640.000, naquele momento e com a situação financeira crítica (e com um capital social negativo) que a sociedade apresentava e que era deles conhecida. Bem pelo contrário, o Tribunal a quo considera provado que a intenção foi mesmo a de retirar tal verba da esfera da S... Portugal - ---, Lda. (Facto 42.).
Repare-se que, recorrendo a Carneiro da Frada, no “desempenho das funções de direcção, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos de livre apreciação. Tal é desejável e a responsabilidade civil terá de o respeitar; pelo que quando o resultado da gestão é a insolvência, isso não se afigura suficiente para alicerçar uma obrigação de indemnizar com recurso ao art.º 64 do CSC.
Vale a pena sublinhar este aspecto. Não há responsabilidade só porque uma dada gestão não teve êxito. Aceitá-la colidiria com o risco da própria empresa, com a necessidade de tornar a administração atractiva e razoavelmente protegida de acções de responsabilidade, de modo a permitir a adopção de medidas audazes; contrariaria, portanto, a agilidade das empresas e a competitividade destas, com prejuízo para toda a economia”[37].
In casu, e como bem assinala a Autora nas suas Alegações de recurso, os Réus, enquanto gerentes e “como guardiões da boa governança da sociedade tinham de evitar tal distribuição, fosse a que título fosse, sob pena da sua própria responsabilização decorrente das regras legais atinentes”.
Não se tratou de uma opção de gestão de risco, tratou-se de uma opção com o objectivo de retirar o dinheiro da S... Portugal impedindo-a de pagar aos credores.
Neste ponto, só podemos concluir que a apreciação feia pelo Tribunal a quo foi errada, o que nos deixa diante de um segundo facto ilícito e culposo.
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Seguindo de novo e agora quanto à violação do dever de constituição de reserva legal estabelecido no artigo 218.º[38] do Código das Sociedades Comerciais.
Aqui, o Tribunal a quo - com inteiro acerto - sublinha que:
 - “Não há notícia nos factos alegados ou apurados a essa não constituição, nem quanto à sua eventual repercussão e relevância para o caso que nos ocupa, designadamente em termos de ter proporcionado a situação de insuficiência patrimonial da devedora e o não pagamento do crédito da A.”;
 - “não se divisa em que termos tal reserva pudesse ter sido constituída por uma sociedade que não registou lucros nos exercícios conhecidos. Sinal de que também por esta via se mostra inviável sustentar a responsabilidade dos RR. pretendida pela A.”.
Nada a dizer, sendo certo, quanto a este concreto aspecto, nem a Autora-Recorrente levanta quaisquer objecções nas suas alegações.
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Por fim e quanto à violação do dever de apresentação da S... Portugal à insolvência, em incumprimento do determinado pelos artigos 18.º e 19.º[39] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas-CIRE (conjugado com o seu artigo 3.º[40], n.º 1).
O Tribunal a quo, neste aspecto, entendeu que “os factos apurados não são suficientes para afirmar que a S... Portugal - ---, Lda. tenha estado desde o ano da sua constituição, ou em algum momento da sua existência, numa situação de insolvência, nem que os RR. omitiram o dever de a apresentar a processo de insolvência”.
Isto uma vez que apesar de se ter apurado que a S... Portugal nunca teve meios financeiros próprios, património ou activos suficientes para solver a totalidade das suas dívidas, daí não decorre que a sociedade estivesse impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, desde “logo porque os factos apurados não permitem determinar a expressão, momentaneamente e ao longo dos anos, dos débitos vencidos no quadro geral da sua dívida. O que inviabiliza que possa dizer-se que os seus activos eram insuficientes para assegurar o cumprimento das obrigações vencidas. Mas também porque não há dados que evidenciem a impossibilidade de cumprimento pela S... Portugal - ---, Lda. das suas obrigações para com os credores. Isto quando é certo que esse cumprimento não tem de ser alcançado com a afectação de recursos de que a devedora disponha no seu património, podendo outrossim ser logrado com recurso a financiamento ou outros meios de aporte de fundos à tesouraria.
Sendo que, no caso, nada se alegou, nem nada se sabe quanto à inviabilidade da S... Portugal - ---, Lda., no período de 2004 a 2008, lançar mão desses mecanismos para assegurar o cumprimento dos seus débitos. Donde não pareça que no cenário circunstancial apurado possa apontar-se aos RR. a falha de, contra a obrigação legal que sobre eles impendia, não a terem apresentado à insolvência”.
Importa sublinhar que o dever de apresentação à falência a que alude o artigo 18.º, n.º 1, está expressamente limitado à situação descrita no n.º 1 do artigo 3.º e não à dos n.ºs 2 e 3, pelo que a sociedade pode encontrar-se numa real situação de insolvência e, todavia, não estar directamente imposto aos seus gerentes/administradores a sua obrigação se apresentação[41].
Ou seja, para efeitos de eventual violação directa dos artigos 18.º e 19.º do CIRE, o que releva não é o passivo ser manifestamente superior ao activo, mas apenas que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Uma coisa é, portanto, a situação de insolvência, outra a de insuficiência patrimonial.
Como refere Tiago Henrique Sousa, a primeira ocorre quando a sociedade se vê “impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas” e, a segunda, “quando o passivo da sociedade fosse superior ao activo ou existisse falta de liquidez ou solvabilidade, concluindo que estes dois conceitos se entrecruzariam e sobreporiam, quando a insolvência da sociedade se devesse a uma insuficiência do seu activo para fazer face ao passivo e, em razão dessa insuficiência, não conseguisse cumprir com as suas obrigações”.
E conclui o mesmo Autor com enorme clareza, que “atendendo à letra do articulado legal vertido no número 1 do artigo 78.° do Código das Sociedades Comerciais, a insuficiência patrimonial deve ser entendida como a insuficiência das posições jurídicas activas da sociedade comercial para fazer face ao seu passivo num determinado momento concreto e, em consequência de tal insuficiência, incumprir com as suas obrigações vencidas, não se confundido esse conceito com a insolvência da sociedade. A sociedade pode estar numa situação de insuficiência patrimonial pontual, sendo, porém, o credor social alheio a esta questão e podendo desde logo demandar a sociedade comercial inadimplente e, posteriormente, os gerentes ou administradores, desde que demonstrem que a violação das disposições de protecção foi a causa da insuficiência patrimonial, em sede de danos futuros previsíveis. Se esta situação de insuficiência patrimonial for definitiva para o cumprimento daquele crédito, tal situação coincidirá com a insolvência da sociedade, materializando-se a concretização dos danos futuros previsíveis e expectáveis, com a sua subsequente tutela indemnizatória. Entendemos, ainda, (…) que a aferição do momento da insuficiência do activo ocorre aquando do vencimento do direito de crédito da sociedade, sem que esta o tenha cumprido”.
Deste contexto e perante a factualidade apurada, temos presentes quer uma situação de insolvência, quer de insuficiência patrimonial não pontual, quer de incumprimento do dever de apresentação.
Não só os resultados da S... foram sempre consistentemente negativos, como só podemos estranhar como ninguém, leia-se nenhum credor (incluindo a Autora), requereu a sua insolvência.
A circunstância de existir uma putativa capacidade de endividamento (que não foi explorada factualmente nos autos) e de que tal impediria considerar a S... Portugal insolvente (para efeitos da obrigação dos seus gerentes decorrente dos artigos 18.º e 19.º do CIRE), deixa de poder ser considerada a partir de Dezembro de 2007 (60 dias após o vencimento da primeira factura com fornecimentos da Autora), por a partir dessa altura ser factualmente evidente que a S... Portugal não tem capacidade de cumprir as suas obrigações vencidas, tudo em conjugação com a ostensiva e impressionante factualidade descritiva da situação contabilística e financeira da sociedade (que consta nos Factos 11. a 27. - até 2007 - e 28. a 40. e 43. a partir daí), aos quais se juntam os desenvolvimentos ocorridos com a casa-mãe (48., 49., 50.), cujo relacionamento era verdadeiramente umbilical (45., 46., 47.).
É a partir deste momento que - com todos estes factos conjugados - nenhum razoável e racional entendimento permite perspectivar a partir dessa altura, que a S..., não estava insolvente, e que os seus gerentes não tivessem de cumprir a sua obrigação de apresentação à insolvência, para protecção dos credores.
Era o que se exigia aos ora Réus, enquanto gerentes da S... Portugal: terem a diligência de um gestor criterioso e ordenado (que corresponde, no dizer de Adelaide Menezes Leitão, à “diligência do gestor criterioso e ordenado surge, nestes termos, como medida do cuidado interior do administrador face à sociedade, correspondendo ao conhecimento e ao evitar da violação do dever de cuidado e de lealdade pela sua parte”[42]).
Quer isto significar que “a precocidade do dever de apresentação à insolvência é um fator que afere o comportamento desejável dos administradores, resultando numa conduta esperada, em conformidade com os deveres do “bom” administrador – numa analogia ao standard do administrador criterioso e ordenado contemplado no CSC pela alínea a) do n.º 1, do artigo 64.º”[43].
Como se diz no Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Outubro de 2011 (Processo n.º 4206/07.3TBVCT.G2-Ana Cristina Duarte), os “gerentes da sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, recaindo-se sobre eles um dever geral de diligência (ver 64º do CSC).
Na perspectiva da responsabilidade dos gerentes, a sindicância do tribunal não se prende com o mérito da gestão mas apenas com a licitude da sua actuação.
O acto ilícito do gerente afecta, em primeiro lugar, o património social e, indirectamente, do credor, pelo que a responsabilidade daquele “só surge se o dano atingir o património social e o devedor o tornar insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade. Há-de ser um dano patrimonial para a sociedade” (…) de forma que o património social se torne insuficiente para satisfazer os seus débitos. A conduta ilícita do administrador atinge, imediata e directamente, o património social, o que, indirecta ou mediatamente, vem a afectar o património dos credores, perdendo consistência efectiva os seus créditos, de modo que o acto do administrador pode vir a considerar-se causa adequada do dano do credor, apesar de só indirectamente atingir o seu património”.
Eis-nos, portanto, diante de um terceiro facto ilícito e culposo.
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Em face do exposto e perante o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, os Réus, enquanto gerentes da S... Portugal, violaram:
 - o dever de apresentação da S... Portugal à insolvência, incumprindo o determinado pelos artigos 18.º e 19.º do CIRE;
 - o dever de diligenciar pela conservação do capital social, convocando a assembleia geral, em incumprimento do artigo 35.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais;
 - o dever de não permitir uma distribuição ilícita de bens sociais, em desrespeito pelos artigos 31.º, 32.º e 33.º do Código das Sociedades Comerciais.
Todas estas violações foram culposas, em face do apurado nos Factos 7., 8., 44., e 68.
Os Autores não eram sócios ausentes e tinham o conhecimento da situação vivida pela sociedade, tendo optado por agir omissivamente da forma censurável descrita.
Quanto ao nexo de causalidade, ele resulta evidente quanto ao primeiro e ao segundo (pois o não pagamento das facturas decorre da situação de insolvência e incumprimento do artigo 35.º que teria permitido alertar a Autora e esta poder optar por não fazer os fornecimentos à Ré), sendo que, quanto ao terceiro, e abarcando todo o período em causa e todos os valores peticionados, releva o Facto 44. (de forma que os pagamentos à Autora não foram feitos porque o dinheiro disponível para o fazer deixou de o estar por ter sido desviado da sociedade).
O dano, nos presentes autos é também evidente (o não pagamento das facturas, em consequência da violação dos deveres dos gerentes).
Assim, e podendo concluir-se - como pode -, que a insuficiência do património social da S... Portugal para satisfazer os seus compromissos com a Autora decorre do comportamento culposo dos ora Réus, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais é possível responsabilizá-los e, em consequência, fazer proceder a acção[44].
A Sentença proferida pelo Tribunal a quo e ora objecto de recurso, tem assim de ser alterada e, em consequência, os Réus haverão assim de ser condenados no pagamento de €590.801,80 (€463.389,22 - correspondentes à soma das facturas vencidas e não pagas; €127.411,98 – correspondentes aos juros vencidos até à data de entrada em juízo do processo), acrescidos dos juros vincendos, até integral pagamento, à taxa de 4% (Portaria n.º 291/03, de 08 de Abril de 2003).
*
Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[45].
Autora e Réus escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", dar razão à Autora e não a dar aos Réus, considerando procedente o recurso e condenando estes no pagamento peticionado (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes ; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[46]).
***
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar procedente a apelação e, em consequência, alterar a Sentença recorrida, condenando os Réus no pagamento à Autora:
1- de quinhentos e noventa mil oitocentos e um euros e oitenta cêntimos (€ 590.801,80);
2- dos juros vencidos e vincendos, à taxa de 4%, desde a data de entrada em juízo da Petição Inicial e até integral pagamento, calculados sobre quatrocentos e sessenta e três mil trezentos e oitenta e nove euros e vinte e dois cêntimos (€463.389,22)
Custas a cargo dos Réus.
Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
***
Lisboa, 20 de Dezembro de 2022
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete

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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Facto que constava dos Factos não Provados e que adiante será considerado Provado.
[3] Este Facto, impugnado pela Recorrente, adiante passará a constar como Provado.
[4] Sempre no respeito pelo que o Código Civil preceitua nos artigos 389.º (prova pericial), 391.º (prova por inspecção) e 396.º (prova testemunhal).
[5] “O atual art.º 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 332.
[6] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 193 a 210.
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.
[8] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 201 a 205.
[9] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 206-207.
[10] Que acrescenta, relevantemente, que “este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”.
[11] Relação de Guimarães 15/12/2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos.
[12] Assinalando ainda que “nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, páginas 589 e seguintes(609), com o texto disponível on line em http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, páginas 17-18).
[13] Artigo 78.º (Responsabilidade para com os credores sociais)
1 - Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
2 - Sempre que a sociedade ou os sócios o não façam, os credores sociais podem exercer, nos termos dos artigos 606.º a 609.º do Código Civil, o direito de indemnização de que a sociedade seja titular.
3 - A obrigação de indemnização referida no n.º 1 não é, relativamente aos credores, excluída pela renúncia ou pela transacção da sociedade nem pelo facto de o acto ou omissão assentar em deliberação da assembleia geral.
4 - No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida.
5 - Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º.

[14] Miguel Pupo Correia, Direito Comercial-Direito da Empresa, 11.ª edição, revista e actualizada, Ediforum, 2009, página 285.
Vd., também, Miguel Pupo Correia, Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 61, Abril de 2001, páginas 667 a 698, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bf063d78b-bf74-4991-b758-ed2beb7677c3%7D.pdf.
[15] Maria Elisabete Ramos, Da Responsabilidade Civil dos Membros da Administração Para com os Credores Sociais, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXXVI, Coimbra, 2000, páginas 260-261.
[16] “É de natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao acto ilícito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral. Não de trata de saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais” – refere-se no citado Acórdão da Relação de Lisboa de 05/11/2015.
Vd., também, Maria Elisabete Ramos, Da Responsabilidade…, cit., páginas 261-265; António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 1997, páginas 121-122; Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas - Organização e Estatuto dos Administradores, Petrony, 1990, páginas 224-225 Cunha Oliveira, Responsabilidade Civil dos Administradores e Gerentes das Sociedades Comerciais, Vida Económica, 2001, páginas 51-52.
[17] Filipe Barreiros, Responsabilidade Civil dos Administradores: os Deveres Gerais e a Corporate Governance, Wolters-Kluwer-Coimbra Editora, 2010, páginas 109-110 (onde se acrescenta que, pelo contrário, já o n.º 2 consagra “uma responsabilidade obrigacional, face ao vínculo que existia entre os administradores e a própria sociedade”).
[18] O entendimento é quase unânime, embora não seja totalmente pacífico, pois, não só Menezes Cordeiro teve inicialmente o entendimento de que se tratava de responsabilidade obrigacional (Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, in Estruturas Jurídicas da Empresa, AADFL, 1989, páginas 100 e seguintes) alterando-o posteriormente (Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, LEX, 1997, páginas 494 e seguintes), como Jorge Nunes Lopes, entende que o referido n.º 1 do artigo 78.º se não insere em primeira linha, em sede de responsabilidade aquiliana, por se reportar uma situação de tutela da eficácia externa das obrigações (in Responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras em crise ou insolventes, Direito das Sociedades em Revista, Ano 6, n.º 11, Almedina, 2014, páginas 191 a 225).
Esta última tese deve ser afastada uma vez que a imputação se faz directamente através deste n.º 1 do artigo 78.º, sem necessidade de recurso a qualquer válvula de escape do sistema (assim, Tiago Henrique Sousa, Da Responsabilidade Civil dos Gerentes e Administradores das Sociedades Comerciais, Perante os Credores Sociais, por Violação de Normas de Protecção, no Direito Português [em linha], Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume LVIX-2018/2, Lisboa, páginas 137 a 168 (145), disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/55104/1/RFDUL_LIX_2018_2%20-%20Tiago%20Henrique%20Sousa.pdf).
[19] Tiago Henrique Sousa, Da Responsabilidade Civil…, cit., página 143.
[20] Miguel Pupo Correia, Direito Comercial…, cit., página 285.
[21] Fábio da Silva Veiga, A responsabilidade dos administradores de sociedades em Portugal. A relação de coexistência entre a responsabilidade societária e a responsabilidade na insolvência [em linha], Tese de Doutoramento apresentada na Escola Internacional de Doutoramento da Universidade de Vigo, 2016, página 164, disponível em https://www.investigo.biblioteca.uvigo.es/xmlui/bitstream/handle/11093/747/A_responsabilidade_dos_administradores.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
[22] Tiago Henrique Sousa, Da Responsabilidade Civil…, cit., página 156.
[23] O qual constitui, nas palavras Tiago Henrique Sousa, “uma norma de protecção. Desta feita, para que haja violação de normas de protecção com tutela ressarcitória é necessário, em primeiro lugar, que o lesado credor social pertença ao domínio subjectivo da norma resultante da interpretação do número 1 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais, sendo o seu epicentro o círculo de sujeitos que o legislador visou proteger, tratando-se, porém, de uma protecção com carácter individual.
Em segundo lugar, afigura-se essencial que ocorra a violação do interesse/bem jurídico tutelado pela norma de protecção, isto é, o património e os direitos de crédito dos credores sociais.
Em terceiro e último lugar, é necessário que se mostre concretizado o dano ou o perigo concreto que o número 1 do artigo 78.° do Código das Sociedades Comerciais visa proteger e impedir (área de protecção objectiva)” (ob. cit., página 155).
[24] Maria Elisabete Ramos, Da Responsabilidade…, páginas 265-266.
[25] Com outra formulação, o já referido Acórdão da Relação de Lisboa de 05 de Novembro de 2011 decidiu que, para “que os credores sociais possam exercer este direito de indemnização, exige-se cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Que o facto praticado pelo administrador, gerente ou director constitua uma inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores da sociedade;
b) Que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
c) Que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano” (também, no Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Outubro de 2011 (Processo n.º 4206/07.3TBVCT.G2-Ana Cristina Duarte).
Mais sucinto, o Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2014 (Processo n.º 517/11.1TBGRD.C1-Barateiro Martins), conclui que são “dois os requisitos legais (para a responsabilidade dos gerentes e administradores) previstos no art.º 78.º/1 da CSC:
a) Inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais; e
b) Insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos”.
[26] Tiago Henrique Sousa, Da Responsabilidade Civil…, cit., páginas 156-157.
[27] Maria Elisabete Ramos assinala que “a responsabilidade autónoma dos administradores perante os credores sociais assenta na «inobservância (...) das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes [dos credores sociais]» (art.º 78.º, n.º 1). Esta delimitação restritiva da ilicitude mantém conexões com as «normas destinadas a proteger os interesses alheios» referidas no art.º 483.º, n.º 1, do CCiv. Valorizando, justamente, a referida ligação, dir-se-á que as normas destinadas a proteger os credores sociais são caracterizadas por terem em vista a ofensa de deveres impostos por lei que, embora proteja interesses particulares, não confere qualquer direito subjectivo a tal tutela. Acrescem, ainda, os seguintes requisitos próprios:
a) que à lesão dos interesses dos credores corresponda a ofensa de uma norma legal;
b) que se trate de interesses dos credores sociais protegidos por essa norma e não de simples interesses reflexos ou por ela reflexamente protegidos, enquanto tutela de interesses gerais indiscriminados;
c) que a lesão provocada pelo administrador se efective no próprio bem jurídico ou no interesse privado que a lei tutela” (O seguro de responsabilidade civil dos administradores – entre a exposição ao risco e a delimitação da cobertura, Almedina, 2010, páginas 126-127).
Também, Fábio da Silva Veiga, A responsabilidade…, cit., página 167.
[28] Artigo 35.º (Perda de metade do capital)
1 - Resultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
2 - Considera-se estar perdida metade do capital social quando o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social.
3 - Do aviso convocatório da assembleia geral constarão, pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) A dissolução da sociedade;

b) A redução do capital social para montante não inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do disposto no n.º 1 do artigo 96.º;
c) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável durante a pendência de qualquer processo de reestruturação de empresas previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
.
[29] Que constitui, como também já se disse, uma situação clara de norma de protecção dos credores sociais (vd., também, Tiago Henrique Sousa, Da Responsabilidade Civil…, cit., página 157: “Esboçando alguns exemplos concretos clássicos de normas que completam o número 1 do artigo 78.° do Código das Sociedades Comerciais, podemos invocar as relativas à conservação do capital social, previstas nos artigos 31.° a 35.º, as relativas às reservas legais, artigos 218.° e 295.°, ou as relativas às liquidações das partes, artigos 183.° e 188.°”).
[30] Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, Almedina, 2005, página 282.
[31] Vd., sobre esta matéria, Paulo de Tarso Domingues, Do Capital Social-Noção, Princípios e Funções, Coimbra Editora, 1998, páginas 138 a 185.
Também, Maria Elisabete Ramos, Da Responsabilidade…, cit., páginas 269-270.
[32] Paulo de Tarso Domingues, Do Capital Social…, cit., páginas 123-124.
[33] Expressões de Dama-Démaret, citadas por Paulo de Tarso Domingues, Do Capital Social…, cit., página 124.
[34] Artigo 31.º (Deliberação de distribuição de bens e seu cumprimento)
1- Salvo os casos de distribuição antecipada de lucros e outros expressamente previstos na lei, nenhuma distribuição de bens sociais, ainda que a título de distribuição de lucros de exercício ou de reservas, pode ser feita aos sócios sem ter sido objecto de deliberação destes.
2 - As deliberações dos sócios referidas no número anterior não devem ser cumpridas pelos membros da administração se estes tiverem fundadas razões para crer que:
a) Alterações entretanto ocorridas no património social tornariam a deliberação ilícita, nos termos do artigo 32.º;
b) A deliberação nos sócios viola o preceituado nos artigos 32.º e 33.º;
c) A deliberação de distribuição de lucros de exercício ou de reservas se baseou em contas da sociedade aprovadas pelos sócios, mas enfermando de vícios cuja correcção implicaria a alteração das contas de modo que não seria licito deliberar a distribuição, nos termos dos artigos 32.º e 33.º
3 - Os membros da administração que, por força do disposto no número anterior, tenham deliberado não efectuar distribuições deliberadas pela assembleia geral devem, nos oito dias seguintes à deliberação tomada, requerer, em nome da sociedade, inquérito judicial para verificação dos factos previstos nalguma das alíneas do número anterior, salvo se entretanto a sociedade tiver sido citada para a acção de invalidade de deliberação por motivos coincidentes com os da dita resolução.

4 - Sem prejuízo do disposto no Código de Processo Civil sobre o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, a partir da citação da sociedade para a acção de invalidade de deliberação de aprovação do balanço ou de distribuição de reservas ou lucros de exercício não podem os membros da administração efectuar aquela distribuição com fundamento nessa deliberação.
5 - Os autores da acção prevista no número anterior, em caso de improcedência desta e provando-se que litigaram temerariamente ou de má fé, serão solidariamente responsáveis pelos prejuízos que a demora daquela distribuição tenha causado aos outros sócios.

[35] Artigo 32.º (Limite da distribuição de bens aos sócios)
1 - Sem prejuízo do preceituado quanto à redução do capital social, não podem ser distribuídos aos sócios bens da sociedade quando o capital próprio desta, incluindo o resultado líquido do exercício, tal como resulta das contas elaboradas e aprovadas nos termos legais, seja inferior à soma do capital social e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição.
2 - Os incrementos decorrentes da aplicação do justo valor através de componentes do capital próprio, incluindo os da sua aplicação através do resultado líquido do exercício, apenas relevam para poderem ser distribuídos aos sócios bens da sociedade, a que se refere o número anterior, quando os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos, liquidados ou, também quando se verifique o seu uso, no caso de activos fixos tangíveis e intangíveis.

3 - Os rendimentos e outras variações patrimoniais positivas reconhecidos em consequência da utilização do método da equivalência patrimonial, nos termos das normas contabilísticas e de relato financeiro, apenas relevam para poderem ser distribuídos aos sócios, nos termos a que se refere o n.º 1, quando sejam realizados.
[36] Artigo 34.º (Lucros e reservas não distribuíveis)
1 - Não podem ser distribuídos aos sócios os lucros do exercício que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas impostas pela lei ou pelo contrato de sociedade.
2 - Não podem ser distribuídos aos sócios lucros do exercício enquanto as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento não estiverem completamente amortizadas, excepto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual ao dessas despesas não amortizadas.
3 - As reservas cuja existência e cujo montante não figuram expressamente no balanço não podem ser utilizadas para distribuição aos sócios.
4 - Devem ser expressamente mencionadas na deliberação quais as reservas distribuídas, no todo ou em parte, quer isoladamente quer juntamente com lucros de exercício.

[37] Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência [em linha], Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Volume II, Setembro de 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/.
[38] Artigo 218.º (Reserva legal)
1 - É obrigatória a constituição de uma reserva legal.
2 - É aplicável o disposto nos artigos 295.º e 296.º, salvo quanto ao limite mínimo de reserva legal, que nunca será inferior a 2.500 euros.
[39] Na versão vigente à data dos factos (a do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março), uma vez que em 2012 ( Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril) e 2022 (Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro) o artigo 18.º sofreu pequenos acertos (que não bulem com a presente acção):
Artigo 18.º (Dever de apresentação à insolvência)
1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60[30, desde 2012] dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
2 - Exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
[alterado pela Lei n.º 9/2022 ,de 11 de Janeiro]
3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º.
Artigo 19.º (A quem compete o pedido)
Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores.
[40] Artigo 3.º (Situação de insolvência)
1 - É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2 - As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3 - Cessa o disposto no número anterior quando o activo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:
a) Consideram-se no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor.

4 - Equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.
[41] Assim, vd., o citado Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2014 e Fábio da Silva Veiga, A responsabilidade…, cit., páginas 195 a 197.
[42] Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção, Revista de Direito das Sociedades, Ano I (2009), Número 3, página 668.
[43] Fábio da Silva Veiga, A responsabilidade…, cit., página 267.
[44] Adelaide Menezes Leitão (Responsabilidade…, cit.) assinala que:
- “A responsabilidade dos administradores perante os credores sociais deve ser subsidiária da responsabilidade da sociedade para com estes” (página 674);
- a “verificação do dano dos credores encontra-se, por isso, dependente de insuficiência patrimonial da sociedade, que funciona como conditio sine qua non do recurso à responsabilidade ex artigo 78.°. Trata-se, assim, de uma responsabilidade de segunda linha. Com efeito, não existe uma relação directa entre os administradores e os credores sociais, pelo que se impõe encontrar as normas de protecção destes que funcionem como normas primárias para o artigo 78.°. Curiosamente, não é suficiente haver disposições de protecção dos credores sociais – porquanto in limine pode afirmar-se que todas as normas que visam a protecção do património social protegem reflexa ou mediatamente os interesses dos credores sendo necessário que tenha sido a violação dessas concretas disposições a causa da insuficiência patrimonial” (página 675);
- “só são indemnizados os danos que se encontrem no âmbito de protecção da norma violada e, para além da necessidade de qualificar a norma em abstracto e em concreto como norma de protecção, é ainda preciso que seja provado que foi a sua violação a causa da insuficiência patrimonial da sociedade” (página 675).
- “A ilicitude in casu assenta na violação de normas de protecção dos credores sociais e na causação de uma insuficiência patrimonial, enquanto a culpa deve ser aferida de acordo a bitola do artigo 64.°/1, a) do gestor criterioso e ordenado em relação à conduta referida, bem como ao resultado verificado. A causalidade é dupla, na medida em que pressupõe que o dano seja causado pela insuficiência patrimonial que, por sua vez, foi causada pela violação da norma de protecção” (675-676);
- não basta “a violação da norma de protecção, sendo essencial a sua conjugação com a insuficiência patrimonial, pelo que o artigo 78.° contém parte da previsão a acrescer à remissão para as normas primárias” (página 676);
- “um ilícito de resultado – na dimensão de insuficiência patrimonial – que impõe que incumba aos credores sociais o ónus do seu preenchimento” (página 676);
- “Como não há lugar a reconduzir a insuficiência a uma situação de insolvência actual ou iminente, basta que o passivo da sociedade seja superior ao seu activo. As constelações de casos abrangidos apontam, assim, essencialmente, para decisões dos administradores que conduzam à descapitalização da sociedade. Não nos parece que o dano do credor, que se verifica pela insatisfação do seu crédito implique necessariamente um dano da sociedade, ainda que implique um passivo acrescido desta” (página 677).
[45] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[46] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.